utopia

Hubert Alquéres: “Proletários de todo o mundo, perdoem-nos!”

A Revolução Bolchevique de novembro de 1917 pelo calendário gregoriano e de outubro pelo calendário juliano foi a mola propulsora da grande utopia do século 20: o comunismo. Para o bem e para o mal – e mais para o mal – marcou a vida e a morte, sonhos e pesadelos, como diz o historiador italiano Silvio Pons. E foi, ao mesmo tempo, “realidade e mitologia, ideologia progressista e dominação imperial, utopia libertadora e sistema concentracionário”.

A bipolaridade também caracterizou os descendentes de Vladimir Ilyich Lenin que se espraiaram pelo mundo. Os comunistas foram vítimas de regime ditatoriais e artífices de estados policiais, protagonistas de lutas sociais e libertárias e fundadores de regimes totalitários e liberticidas, na genial definição de Pons em seu livro A Revolução Global.

Sim, os comunistas estiveram na primeira trincheira das lutas pela jornada das oito horas, pelo direito de greve, pelos direitos da mulher no trabalho e ao voto, no enfrentamento do fascismo e do nazismo, entre tantas e tantas batalhas. O surgimento do primeiro país socialista incidiu sobre as sociedades capitalistas no sentido de consagrar em seu arcabouço conquistas sociais que perduram até hoje.

Os anseios por equidade e igualdade despertados pela Revolução Russa teve a sua melhor resposta no Estado de Bem-Estar Social, no qual a justiça social se concretizou em uma economia de mercado sem a supressão da democracia e das liberdades.

Mas ao se erigirem em poder geraram ditaduras atrozes. Do seu passivo fazem parte regimes tirânicos como o de Nicolae Ceausescu na Romênia, Erich Honecker na Alemanha Oriental, Pol Pot no Camboja, o terror da era Josef Stalin ou da Revolução Cultural Chinesa.

A instalação do socialismo em um país atrasado teve seu preço: a consolidação da ditadura do partido único por meio do terror e do extermínio de todas as correntes políticas – inclusive as com raízes operárias e camponesas, como os mencheviques de esquerda liderado por Julius Martov e os esseristas de esquerda (socialistas revolucionários com base sólida no campesinato).

Os fundamentos teóricos para o poder totalitário que viria a se instalar foi dado por Lenin às vésperas da Revolução, por meio do seu livro O Estado e a Revolução. Stalin não foi um desvio de rota. Foi a versão do leninismo levada às últimas consequências.

Como julgar uma revolução que prometia construir o paraíso terrestre por meio de uma sociedade sem classes, sem Estado, e da qual brotaria o homem novo – o “homo sovieticus” - e 74 anos depois ruiu por causa do seu obsoletismo tecnológico, por sua incapacidade de produzir bens de consumo moderno e por ter se transformado na sociedade da escassez?

A revolução de 1917 produziu feitos homéricos. Em poucas décadas a Rússia secularmente atrasada e autocrática dos tempos de czarismo transformou-se na segunda potência mundial, rivalizando com os Estados Unidos nas corridas espacial e armamentista.

Não se pode ignorar as páginas épicas que escreveu, como a derrota das tropas de Adolf Hitler às portas de Moscou, Stalingrado, Leningrado, assim como a vitória do Exército Vermelho na batalha final de Berlim. Os soviéticos foram capazes de mandar o primeiro ser vivo a orbitar o planeta – a cadela Laika - e a levar o primeiro homem ao espaço sideral, o major Yuri Gagarin.

Mas nem por isso merecem a absolvição da história.

Já nos estertores da Pátria Mãe do socialismo, Mikhail Gorbachev indagava como era possível uma nação dominar inteiramente a tecnologia espacial e ser incapaz de fabricar um sapato ou uma calça de qualidade.

Há uma explicação lógica: para fazer frente à corrida nuclear e espacial, que ao final perdeu para os EUA – a URSS teve de deslocar volumosos recursos de outras áreas. A consequência disso foi a escassez de produtos de primeira necessidade.

Para a população dos países que experimentaram o “socialismo real”, o comunismo está indissoluvelmente associado à fome, ao terror, à falta de liberdade, ao Muro de Berlim, às KGB e Stassi, às ditaduras de Stalin, Honecker e Ceaucesco.

Na sua fase terminal já não se discutia mais na URSS se sua história tinha sido um desastre; os debates eram sobre as razões dos desastres. E responsabilizava-se Lenin por ter dado o tom do poder soviético com o Terror Vermelho e os primeiros campos de concentração.

O melhor balanço dos 74 anos da experiência socialista soviética veio em forma de ironia em uma faixa de uma das manifestações multitudinárias de Moscou: “Proletários de todo mundo, perdoem-nos!”. Para quem viveu sob o tacão da tirania do partido único não há como oferecer a outra face e perdoar.

E para a história não há como não ser implacável em seu julgamento sobre os cem anos da Revolução Russa.

 


Gilvan Cavalcanti de Melo: A utopia e os direitos

Há um tema que me desperta e provoca minha atenção: a questão da utopia. Nesse pequeno trabalho, tentarei de forma resumida, fazer uma aproximação sobre a minha percepção do polêmico assunto. É apenas uma hipótese entre tantas versões em circulação. Espero contribuir nesse debate instigante.

É conhecida a história política recente dos últimos 12 anos do País. São conhecidos, também, seus resultados políticos: “hegemonismo” partidário, cooptação, aparelhamento, mensalão, Lava-Jato, etc. Os fundamentos da democracia foram abalados: a divisão dos poderes da República esgaçados. O parlamento e os partidos políticos perderam protagonismo. Conhecidos, também, as sequelas da economia politicamente dirigida: recessão, juros altos, inflação acima do teto, milhões de desempregados, aumento da pobreza e da violência, etc. Os movimentos sociais omissos. Pior, em silencio. É conhecido a modificação no campo da ética: o cinismo, a manipulação, a enganação, a fantasia, a ilusão e a mentira, a corrupção sistêmica, passaram para a categoria de valores “universais”. Este é o nosso drama. Também a nossa miséria e tragédia.

Nessa circunstância, concreta, escuta-se muitas vozes de notáveis – dirigentes políticos, colunistas da mídia, intelectuais, etc. -, falar e escrever sobre a perda de utopia e a busca de uma nova. Mas, que isso significa? Buscar sua definição? A tentativa é bastante complicada, complexa e de múltiplas aproximações. Mas, o conceito é usualmente conhecido como “lugar inexistente”, “lugar feliz”, ou um mundo sem contradições.

Mas, isso não significa que não tenha valor político, inclusive, filosófico, mesmo desconexa e apenas esboçada. Neste aspecto, a religião é a mais gigantesca utopia que já apareceu na história: sua tentativa de conciliar as contradições reais da vida. Seria oportuno recordar um trecho de Marx na Introdução da Crítica da filosofia do direito de Hegel: “o homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular”. É uma realização fantástica e fantasiosa do ser humano.

A morte de Sócrates levou Platão a desprezar a vida na pólis e questionar alguns dos ensinamentos dele. O fato de Sócrates não ter conseguido persuadir os juízes de sua inocência e seus méritos, fez Platão duvidar da validade da persuasão, convencimento. Sócrates considerava a retórica, a arte da persuasão, a mais elevada, a arte verdadeiramente política. Platão seguiu um caminho diferente: a utopia social. Em sua obra A República, cria um Estado perfeito, governado por reis-filósofos. Em outras palavras, a República dos filósofos.

Já Thomas More cria uma ilha-reino, chamada Utopia. Nela tenta demonstrar como seria aplicável uma sociedade sem propriedade privada e sem intolerância religiosa, na qual a razão é o critério para estabelecer condutas sociais e não o autoritarismo do Rei ou da Igreja.

A revolução francesa gerou uma leva de pensadores conhecidos como socialistas utópicos: Henri Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen. Entre eles, percebe-se a concepção de construção de uma sociedade ideal, onde se defendia a possibilidade de criação de uma organização onde as classes sociais vivessem em harmonia ao buscarem interesses comuns que estivessem acima da exploração ou da busca incessante pelo lucro. Alguns deles chegaram a levantar a questão: “A cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas obras”.

Mas, havia um traço comum entre eles: o autoritarismo. O sistema proposto para liquidar com os males do industrialismo liberal era entregar as tarefas a homens “capazes” como produtores, técnicos, cientistas e artistas. Seria abolido o direito hereditário, o Estado seria proprietário único dos meios de produção, do capital e de distribuição.

Em oposição ao socialismo utópico, Friedrich Engels propõe a utopia do socialismo cientifico. Com base nos estudos e pesquisas do fundador da filosofia da práxis, transforma capítulos de sua obra polêmica com o pensador positivista Eugen Dürhring no panfleto Do socialismo utópico ao socialismo cientifico que se constituiu desde então, no manual da nova utopia para educação de amplos setores do ocidente.

O que propunha o autor da utopia cientifica? A classe do proletariado tomaria o poder político e, por meio dele, converteria em propriedade pública os meios sociais de produção. Com esse ato livraria os meios de produção da condição de capital, que tinham até então. Daria a seu caráter social plena liberdade para se impor. A partir desse fato já seria possível uma produção social segundo um plano previamente elaborado. O desenvolvimento da produção transformaria num anacronismo a sobrevivência de classes sociais. À medida que desaparecesse a anarquia da produção social, iriai diluindo-se também a autoridade política do Estado. Os homens, donos por fim de sua própria existência social, tornar-se-iam senhores da natureza, senhores de si mesmos, homens livres. A realização desse ato, que redimiria o mundo, seria missão histórica do proletariado moderno.

As diversas utopias exprimiam, na verdade, uma crítica das sociedades existentes em seu tempo. Ao mesmo tempo introduziram a igualdade econômica como a base para as reformas idealizadas. Mas, consideravam, só possível, estabelecer essa mesma igualdade pela via de atos de vontades desde o alto: sem a política, sem democracia.

Com a visão crítica a respeito das utopias como ato de vontade, o pensador italiano, Antonio Gramsci, chegou a escrever um texto nos Cadernos do Cárcere muito significativo: “Não é talvez a reação, também ela, um ato construtivo de vontade? E não é ato voluntário a conservação? Por que, então, seria “utópica” a vontade revolucionária de Maquiavel, e não utópica a vontade de quem pretende conservar o existente e impedir o surgimento e organização de forças novas que perturbariam e subverteriam o equilíbrio tradicional? A ciência política abstrai o elemento “vontade” e não leva em conta o fim a que uma vontade determinada é aplicada. O atributo de “utópico” não é próprio da vontade política em geral, mas das vontades particulares que não sabem ligar o meio ao fim e, portanto, não são nem mesmo vontade, mas veleidades, sonhos, desejos, etc.”.

Seria importante relembrar que Maquiavel não escreveu nenhuma utopia que aspirasse um Estado já constituído com todas as suas funções e elementos. Diferentes dos utopistas ele escreveu sobre a ação política concreta, imediata do homem. A criação de uma vontade coletiva para um determinado objetivo político, sob a forma de fantasia e arte. Na ação concreta virtù e fortuna são elementos fundamentais, ou seja, aliar a capacidade de adaptação aos acontecimentos e as coisas permanentes e inevitáveis.

Como foi dito anteriormente, a utopia também tinha o seu valor político. Um livro do pensador alemão, Jürgen Habermas, Sobre a constituição da Europa parece-me ter como objeto a mesma temática. Mas, introduz a sua inquietação de não reproduzir a imagem da utopia social de uma felicidade coletiva. Sua preocupação, agora, é o tópico da dignidade humana e, na prática, dos direitos humanos. Isso significa resgatar a dimensão política da participação democrática dos indivíduos nos processos decisórios na gestão das políticas econômicas e financeiras.

Na sua tese deixa claro sua preocupação com a incapacidade da política de controlar a economia e reação às crises econômicas. Amplia seu horizonte com proposta de reforma institucional e em gerar uma sociedade mais justa, não só no sentido de garantir as liberdades básicas, mas também de assegurar mais igualdade e uma vida a todos os seres humanos. Para ele os direitos humanos formam uma utopia realista.

No Brasil, intelectuais do campo da esquerda democrática, em seus artigos e ensaios, sempre deixam evidente a ausência de um pensamento constitucionalista dos direitos humanos, de uma parte da esquerda. Essa parte é portadora de uma cultura não democrática, sob a ação de uma versão da filosofia da práxis, de viés positivista, mística, fideísta.

A Constituição brasileira, no próximo ano completará trinta anos. Não é pouco. É a mais longa da nossa história. Nela está contida uma série de compromissos. Vão desde seus princípios fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Aponta que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a inviolabilidade do direito â vida, à liberdade, a igualdade e a propriedade. Nos direitos sociais indica como direitos a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância, a assistência aos desempregados, etc. Os direitos acordados nela, ancoram o próprio desenho de programa e objetivo ideal de uma sociedade justa, nas instituições de um Estado democrático.

A realidade dos fatos impõe um processo de crítica dessa mesma realidade e agir para modificá-la. Dentro dessa utopia realista algumas reformas seriam necessárias no atual cenário: a) uma reforma política eleitoral; b) uma reforma trabalhista e sindical; c) uma reforma tributária federalista; d) uma reforma que elimine os gargalos da previdência social. São alguns elementos de uma utopia reformadora associado aos compromissos constitucionais de distribuição de riqueza que poderão obter um forte apoio social, plural e crítico. E, trabalhar para construir uma nova vontade política coletiva nos valores e ideais democráticos, para transformar a atual realidade brasileira.


*Gilvan Cavalcanti de Melo, editor do blog Democracia Política e novo Reformismo. É membro do diretório nacional do PPS