Uruguai

Alon Feuerwerker: Cone Sul

O recrudescimento da Covid-19 no Cone Sul do continente (leia) produz problemas não apenas sanitários, mas também políticos. No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro está às voltas com uma CPI. Na Argentina, o prefeito da capital rebelou-se contra as novas medidas restritivas de Alberto Fernández (leia). E no Uruguai acabou a lua de mel com o recém-eleito Luis Alberto Lacalle Pou (leia).

Os três países são governados por distintas correntes políticas. Grosso modo, e com todas as relativizações possíveis, direita no Brasil e esquerda na Argentina. No Uruguai, o que hoje em dia seria aqui chamado de centro. Também foram três modelos diferentes de combate ao vírus. Respectivamente, isolamentos sociais descentralizados (Brasil), tentativa de lockdown nacional (Argentina) e "modelo sueco" (Uruguai).

Uma hipótese para o repique regional é o espalhamento da variante de Manaus, mais contagiosa, disseminada com a ajuda das porosidades fronteiriças do continente. A isso certamente se juntam uma certa desorganização estatal e a ausência da desejável (pelo menos em pandemias) disciplina social encontrada nos países que vêm melhor conseguindo enfrentar o desafio.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Rogério Furquim Werneck: Brasil e Uruguai

Não há espaço para autoengano. No combate à pandemia, nosso país está levando um baile dos uruguaios

Dia 16 de julho, os uruguaios comemorarão 70 anos de sua lendária vitória sobre o Brasil na final da Copa de 1950, perante 199 mil torcedores que abarrotavam o recém-inaugurado Maracanã. Nas décadas seguintes, o Brasil encantaria o mundo com seu futebol, sagrando-se tricampeão mundial, em 1970, e penta, em 2002. Para nós brasileiros, contudo, não importa de que idade, o Maracanazo de 1950 continuou entravado na garganta. Uma amargura mal resolvida que, depois de tantos anos, teima em nos assombrar cada vez que, mesmo como franca favorita, a seleção brasileira enfrenta a uruguaia. Coisas do futebol.

Mas os uruguaios têm agora outra razão incomparavelmente mais importante para comemorar: seu desempenho espetacular no macabro torneio mundial de combate à pandemia. Num momento em que o Brasil já acumula mais de 55 mil mortes decorrentes da Covid-19, o Uruguai registra não mais que 26. Isso mesmo, 26 mortes.

Há que ter em conta, claro, que o Brasil, com 211,7 milhões de habitantes, tem uma população 60 vezes maior que seu vizinho de 3,5 milhões de habitantes. O razoável, portanto, é que a letalidade da Covid-19 nos dois países seja recalculada por milhão de habitantes. No Brasil, a pandemia já trouxe 259,8 mortes por milhão de habitantes. No Uruguai, 7,4 mortes.

A comparação é acachapante. Com base nessa métrica, o desempenho do Brasil no combate à pandemia mostra-se mais de 35 vezes pior do que o do Uruguai. É bom notar que não se trata de comparação com Nova Zelândia, Austrália, Cingapura ou Japão. E, sim, com outro país sul-americano, limítrofe, com o qual temos tanto em comum.

Não faltará quem alegue que, sendo o Uruguai um país pequeno, menos desigual, com população mais educada, melhores condições de saneamento básico e um sistema de saúde mais eficaz, não é surpreendente que venha tendo mais sucesso no combate à pandemia.

Tudo isso, claro, pode e deve ser levado em conta. E talvez pudesse explicar que o desempenho do Brasil fosse, digamos, dez vezes pior. Mas o que os dados mostram, vale repetir, é que nossa performance foi, por enquanto, mais de 35 vezes pior.

Não há espaço para autoengano. No combate à pandemia, o Brasil está levando um baile do Uruguai. A comparação deixa exposta a extensão da trágica lambança que estamos aprontando. E, também, a extraordinária competência com que os uruguaios souberam se mobilizar para combater a Covid-19.

Tal como no Brasil, o Uruguai vem padecendo de inegável polarização política. Mais civilizada do que a que se vê por aqui, mas, ainda assim, acirrada. No segundo turno da eleição presidencial do final do ano passado, Luis Lacalle Pou, à frente de uma coalizão de centro direita, ganhou com 50,8% dos votos válidos, contra 49,2% do candidato de centro esquerda.

Mal empossado em 1º de março, com um discurso de conciliação nacional, o novo presidente se viu às voltas com a chegada da pandemia ao Uruguai. Mas a polarização política não impediu que, extraindo lições corretas dos erros e acertos de países que já haviam sido colhidos pela pandemia, os uruguaios articulassem um combate concertado e extremamente eficaz à Covid-19.

Em contraste com o negacionismo sarcástico e eleitoreiro de um presidente entregue ao obscurantismo sanitário, em Brasília, o que se viu em Montevidéu foi um governo respaldado por assessoria científica de excelente nível e firmemente empenhado em liderar o país no combate à pandemia, com entrevistas coletivas diárias na televisão, em que se revezavam ministros e o próprio presidente da República.

Sem recurso a medidas compulsórias de distanciamento social, o novo presidente soube apelar para o espírito cívico dos uruguaios para conseguir que o país aderisse em massa a longo esforço voluntário de confinamento.


El País: Uruguai avança em reforma do Exército que não cicatriza a ferida dos direitos humanos

Nova lei militar revogará a legislação atual, adotada em plena ditadura, com mudanças no sistema de promoções e uma redução no número de oficiais

Governo e oposição avançam em sua tentativa de mudança da doutrina militar no Uruguai com um projeto de lei que ganhou força e prioridade depois da crise que provocou a destituição do ministro da Defesa, de dois comandantes em chefe e de 6 dos 15 generais do país. As revelações das atas de vários julgamentos militares realizados no ano passado mostraram que, na democracia, os altos escalões encobrem e justificam os excessos cometidos durante a ditadura (1973-1985). O novo texto legal, porém, não fecha a ferida dos direitos humanos causada por más práticas de militares, que têm abalado o país nos últimos tempos.

A nova lei militar revogará a legislação atual, adotada em plena ditadura, com mudanças no sistema de promoções e uma redução no número de oficiais. Também está previsto o aumento das exigências para entrar na carreira militar e uma redefinição das tarefas e da doutrina das Forças Armadas. Os Tribunais de Honra (a Justiça militar) poderiam desaparecer ou ser reformados, com ênfase em que qualquer ato criminoso seja submetido à Justiça comum.

Esses tribunais militares e suas atas, vazadas para o jornalista Leonardo Haberkorn, provocaram um antes e um depois no tortuoso caminho do esclarecimento das violações dos direitos humanos durante a ditadura. O resumo de audiências realizadas no ano passado conteve, pela primeira vez, confissões de dois conhecidos ex-repressores, que narraram como jogaram um militante tupamaro em um rio e deram alguns detalhes sobre o desaparecimento de María Claudia García de Gelman, nora do poeta argentino Juan Gelman. A repercussão dessas informações foi enorme: até então, os militares tinham mantido silêncio absoluto sobre os cerca de 200 casos de desaparecidos durante o regime. Um pacto tão fechado que, em algumas ocasiões, levou inocentes à prisão, sem que ninguém falasse nada.

Apesar das confissões dos militares, o tribunal considerou que os investigados não tinham atentado contra a honra da instituição, exceto por ter permitido que seu silêncio causasse a condenação de outro militar, que passou três anos preso. Dois comandantes em chefe e o júri justificaram o que ocorreu e puseram em evidência como oficiais que durante a ditadura eram apenas crianças reproduziam o discurso de seus predecessores.

A tempestade das últimas semanas, no entanto, deixou um panorama sem mudanças para os parentes dos desaparecidos. Assim como Macarena Gelman − que nasceu enquanto sua mãe estava encarcerada no Uruguai −, a argentina María Claudia García foi entregue para em adoção assim que nasceu e só ficou sabendo sua verdadeira identidade no ano 2000. No Brasil, também há caso de crianças entregues para a adoção pelos militares. Os restos mortais do pai de María, Marcelo Ariel Gelman (filho do poeta), foram encontrados no país vizinho. Mas Macarena continua sem saber o destino de sua mãe biológica: “Estamos no mesmo ponto de 20 anos atrás”, diz a mulher, apontando, entretanto, como um fato sem precedentes a destituição de toda a cúpula militar.

Nas atas vazadas, o ex-militar Jorge Silveira narra a busca dos “ossinhos” realizada por María Claudia García em uma operação confusa num complexo militar, o Batalhão 14, onde na democracia foram feitas escavações infrutíferas. “A informação que surge agora sobre o paradeiro de minha mãe não pode ser confirmada nem descartada, os dados não são totalmente novos, talvez tenham sido acrescentados detalhes, mas só aumentam a crueldade, sem esclarecer onde estão seus restos. Talvez a novidade seja que veio à luz, com maior clareza, o fato de que seus assassinos têm essa informação, sempre a tiveram. No entanto, não vou esperar que eles falem, continuarei exigindo uma investigação efetiva, profissionalizada e completa”, afirma Macarena Gelman. Como mostra o caso Gelman, no Uruguai ainda há uma dívida em todas as etapas da solução para a questão dos direitos humanos: verdade, justiça, indenização, memória e história.

Depois de ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado uruguaio reconheceu sua responsabilidade no desaparecimento do casal Gelman e o roubo da identidade de sua filha. Um relatório de cinco volumes estabeleceu a memória do que aconteceu durante a repressão, documentos que algum dia serão parte da História.

Pouco a pouco, a Justiça tem julgado alguns crimes, apesar do caminho errático que tem deixado sem efeito a lei de prescrição aprovada nos primeiros anos da democracia. A verdade continua sendo a grande ausente do processo uruguaio, sem que se saiba se os últimos acontecimentos começaram efetivamente a quebrar o pacto de silêncio dos militares.


Resgatar o Mercosul

Bloco perdeu o rumo no começo do século 21 com a ascensão do populismo

Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, fundadores originais do Mercosul, têm hoje uma chance preciosa de salvá-lo do atoleiro, revigorá-lo e conduzi-lo de volta à sua missão original – integrar os quatro países do Cone Sul, torná-los mais produtivos e inseri-los de forma competitiva, em conjunto, na economia global. Criado há 25 anos, o Mercosul perdeu o rumo no começo do século 21 com a ascensão do populismo em seus dois integrantes de maior peso. A longa série de erros e desmandos conduziu à crise atual, com o governo venezuelano tentando exercer uma presidência contestada pela maioria dos pares. Há razões muito sólidas para a contestação e até para a suspensão da Venezuela, por evidentes violações da cláusula democrática. Mas a solução formal desse problema será insuficiente, se o Mercosul continuar sujeito aos entraves criados pela associação desastrosa do petismo com o kirchnerismo.

Os novos governos do Brasil e da Argentina têm mostrado interesse em objetivos muito mais ambiciosos para o bloco. A tarefa mais urgente seria concluir a negociação de um acordo de cooperação e de livre-comércio com a União Europeia, iniciada nos anos 90 e emperrada há muito tempo.

Depois de tanto tempo, e com novos desafios internos e externos, o bloco europeu pode ter mudado sua lista de prioridades, mas para os sul-americanos o esforço é mais importante do que nunca. Fundado em 1991 e com sua estrutura básica definida em 1994, o Mercosul só concluiu cinco acordos extrarregionais, quase todos com mercados de limitada relevância para o bloco.

Foram fechados acordos de livre-comércio com Israel, Palestina e Egito. O primeiro está vigente, os outros dependem de ratificação. Foram negociados acordos de preferências tarifárias com Índia (vigente) e com a União Aduaneira da África Austral (Sacu). Além disso, foram estabelecidos diálogos econômico-comerciais com Austrália e Nova Zelândia, Canadá, China, Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA) e Japão. Foram também firmados entendimentos de complementação econômica com países sul-americanos e com o México. Enquanto isso, multiplicaram-se em todo o mundo os acordos bilaterais e inter-regionais, com o Mercosul sempre distante.

A maior parte das negociações do bloco foi subordinada a políticas de integração Sul-Sul, com pouquíssimo pragmatismo. Os maiores parceiros ditos emergentes – como Rússia, China e África do Sul – sempre estiveram mais empenhados em ampliar o comércio com os mercados mais desenvolvidos.

A China tornou-se o maior mercado para exportações brasileiras, mas numa relação semicolonial. Mais de 80% das vendas do Brasil para a China são de matérias-primas. O resto é formado principalmente por semimanufaturados e por uma parcela minúscula de manufaturados.

A Rússia, durante anos, concedeu cotas para carnes provenientes da Europa e dos Estados Unidos, negando seguidamente esse benefício ao Brasil. Mesmo com vendas extracotas, os brasileiros têm sido grandes fornecedores do mercado russo, mas só conseguem esse resultado porque a pecuária nacional é competitiva. O governo petista, guiado por uma notória incompetência na diplomacia comercial, sempre tratou russos e chineses como parceiros estratégicos, mas sempre sem reciprocidade.

As economias mais dinâmicas da América Latina têm acordos de livre-comércio com os Estados Unidos. O Mercosul continua fora desse clube, porque os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner torpedearam em 2003 e 2004 a negociação da Área de Livre-Comércio das Américas (Alca). México e Canadá já formavam uma associação comercial com seu maior vizinho. Os demais entraram no jogo por meio de negociações separadas, com os governos do Brasil e da Argentina recusando-se, tolamente, a intervir no processo.

Não se recupera o tempo perdido. Mas pode-se evitar novo desperdício de oportunidades. Esta é uma excelente oportunidade para isso.


Fonte: opiniao.estadao.com.br