União Europeia

Clóvis Rossi: 'Brexit' é exemplo de quando o populismo machuca

Não há versão da saída da UE que aumente a prosperidade britânica

A Organização Mundial da Saúde bem que poderia promover uma campanha mundial de anúncios do tipo daqueles que aparecem nos maços de cigarro, para avisar que o populismo nacionalista faz mal à saúde. Faz mal à saúde mental, econômica, financeira, política, psíquica.

Há pelo menos meia dúzia de exemplos que podem ser mencionados, mas fico no mais espetacular do momento, que é a saída do Reino Unido da União Europeia.

O triunfo do “brexit” no plebiscito de 2016 foi atiçado por uma coleção de falsidades sobre as vantagens de deixar a comunidade de países europeus. Mexeram com os instintos nacionalistas.

Sempre achei que o exercício do direito de votar teria um efeito pedagógico. Quanto mais o cidadão vota, mais consciente ele fica e, portanto, faz escolhas mais sensatas. Aí, veio o “brexit” e, em seguida, a eleição de Trump e destruíram minha ingênua convicção.

Dois dos países que praticam o esporte democrático há mais tempo conseguiram cometer absurdos impensáveis.

No caso do Reino Unido, breve repasso aos males que esse ataque populista/nacionalista está provocando: na área política, a rejeição ao plano da primeira-ministra Theresa May para deixar a UE de maneira mais ou menos suave representou “uma monumental humilhação, um chocante repúdio de tudo o que a primeira-ministra trabalhou para alcançar e um completo colapso de sua estratégia”, como escreveu no Financial Times o colunista Robert Shrimsley.

Quando a chefe de governo sofre tal colapso, é óbvio que a política fica ferida de morte. Ainda assim, May sobreviveu a um voto de desconfiança, o que só faz aumentar o desarranjo generalizado.

Pior: não há saída sem traumas. Sair sem acordo “causaria turbulência para a economia, criaria barreiras para a cooperação em segurança [com os parceiros europeus] e prejudicaria a vida cotidiana das pessoas”. Quem o diz é a própria Theresa May (no discurso em que tentou infrutiferamente convencer o Parlamento a aprovar a sua proposta de saída).

Mesmo uma ruptura nos termos combinados entre May e a UE causaria perda de 3,9% na renda nacional no longo prazo, comparada com a permanência no bloco. Ou, como resume Philip Hammond, o responsável pelo Tesouro: não há versão da saída da UE que aumente a prosperidade britânica.

Resta a versão que é cada vez mais mencionada: um segundo plebiscito. Seria uma traição à democracia, ao rejeitar um resultado decidido pela maioria do eleitorado (maioria rasa, é verdade, mas maioria)?

O ex-primeiro-ministro John Major (aquele que substituiu a icônica Margaret Thatcher) acha que não: em artigo para o Sunday Times, Major lembra, primeiro, que apenas 37% dos britânicos votaram pela saída. Os restantes ou queriam ficar ou nem apareceram para votar.

Logo, não houve uma maioria que justificasse o salto no vazio.

Para Major, seria “moralmente condenável” a saída sem acordo: “O custo para nosso bem-estar nacional seria pesado e de longa duração. Pular de um penhasco nunca é um final feliz”.

Jonathan Freeland, no Guardian, vai mais ou menos na mesma linha ao dizer que o Parlamento britânico está “dando o espetáculo de um país perdido e à deriva”. O pior é que há outros países em que o populismo nacionalista pode levar à beira do penhasco. Preciso dizer quais?


Marcos Troyjo: Japão e União Europeia contra-atacam a desglobalização

Países acertam pacto de livre-comércio que atinge 600 milhões e um terço do PIB global

A dinâmica de desglobalização –crítica às democracias liberais, a um sistema internacional baseado em regras construídas multilateralmente e ao livre comércio– não começou com o ‘brexit’ ou a presidência de Donald Trump.

Já se podiam perceber seus movimentos no rescaldo das crises gêmeas de 2008 (subprimes) e 2011 (dívidas soberanas europeias).

Em meio às muitas disfuncionalidades da democracia, ganharam relevo autocracias como as de Rússia, China e Turquia.

O comércio multilateral sob o signo da OMC não ficou necessariamente mais justo. A ONU não se reformou, sobretudo em seu núcleo central de deliberação –o Conselho de Segurança.

Processos de cooperação regional, como Nafta, Mercosul e União Europeia, perderam velocidade e eficiência, e sua própria existência é posta em xeque.

A globalização profunda, que ganhou tração com o fim da Guerra Fria, vem sendo carcomida há pelo menos dez anos. Quando ‘brexit’ e Trump emergiram no local do acidente, muitas fraturas já se encontravam expostas. E a guerra comercial posta em marcha nas últimas semanas apenas amplia o potencial disruptivo.

Em meio a tantas nuvens escuras, que pairam especialmente sobre o comércio global, lançaram-se ontem alguns raios de luz. Japão e União Europeia assinaram nesta terça (17), em Tóquio, um importante tratado –o JEFTA, sigla em inglês para o acordo de livre comércio entre o país oriental e o bloco europeu.

Se ratificado, tal pacto abrangerá 600 milhões de pessoas que passarão a integrar o maior mercado comum do mundo, de onde se gera 1/3 do PIB global.

Há várias considerações a fazer sobre tal acontecimento. A atual onda de protecionismo precipitada pelos EUA de Trump funcionou, ao contrário do que se possa imaginar, como acelerador de tal acordo. Aliás, o mesmo pode se dizer do ‘brexit’, que acabou fornecendo um incentivo indireto a que os europeus abandonassem sua zona de inércia negociadora.

Objeto de minuciosas negociações havia quatro anos, o JEFTA tinha tudo para continuar sendo empurrado com a barriga ainda por muito tempo não fosse a pressão política em Bruxelas e Tóquio por boas notícias comerciais.

Esse quadro não pode passar desapercebido pelos negociadores do Mercosul, que portanto se deparam incidentalmente com a conjuntura europeia mais favorável a um acordo entre UE e o mercado sul-americano desde que os dois blocos iniciaram tratativas nesse sentido há quase vinte anos.

Importante também ressaltar que aquilo pactuado em Tóquio não pode ser considerado um acordo comercial de “última geração”. Trata-se essencialmente de um toma lá, dá cá de remoção de tarifas.

Os europeus, por exemplo, eliminam restrições tarifárias à importação de carros japoneses (Toyota, Nissan, Mazda e Suzuki festejam).

Já os japoneses liberalizam seu mercado agroalimentar (salvo o tradicional setor do arroz, é claro) e de bebidas, para alegria de conglomerados europeus como Danone, LVMH e Pernod Ricard.

Isso não significa que estamos de volta ao mundo de tarifas e quotas. A liderança do Japão em recolher os cacos do TPP depois do abandono dos EUA de Trump e recompô-los na forma do CPTPP (sigla em inglês para Acordo Abrangente e Progressivo para uma Parceria Transpacífico), que reúne onze países de Ásia, Oceania e América Latina, mostra como é possível fazer avanços em distintas frentes.

Com os europeus, o Japão passa a ter um acordo comercial mais tradicional. Com as nações do Pacífico sob a égide do TPP, um tratado mais moderno, que inclui dispositivos sobre regras do jogo compartilhadas em compras governamentais ou legislação ambiental e trabalhista.

É revelador também que, seja no tratado firmado ontem com Bruxelas, seja no acordo da Ásia-Pacífico, o Japão não se vê limitado –no escopo da negociação– a circunstâncias geográficas.

O objetivo de um comércio mais livre, complementado por parâmetros jurídicos comuns de competição e integração, mostra-se mais determinante do que a proximidade com seus vizinhos.

Japão e União Europeia, individualmente considerados, continuam a apresentar uma série de perfis protecionistas em seu comércio com outros parceiros. Isso se observa em particular no agronegócio, setor de enorme interesse para os países latino-americanos, que muito ganhariam se japoneses e europeus promovessem uma liberalização “horizontal” de seu mercado agrícola.

Ainda assim, é bom ver que neste cotidiano comercial tão conturbado, Japão e UE, com seu novo acordo, estão desferindo um contragolpe na desglobalização.

Marcos Troyjo é diplomata, economista e cientista social, é diretor do BRICLab da Universidade Columbia


Everardo Maciel: Incertezas e desafios da competição fiscal

Se tributo é meio para extração de renda da sociedade, em nome do interesse coletivo, não o cobrar, por ação deliberada do Estado, promove uma competição fiscal que pode vir a ser um importante instrumento na atração de investimentos privados, em desfavor, contudo, do princípio da neutralidade fiscal, que preconiza a minimização da interferência dos tributos na alocação de recursos.

A competição fiscal entre distintas jurisdições, entretanto, é tão antiga quanto a história dos impostos. Sempre prevaleceu o entendimento, por vezes falacioso, de que sem ela os investimentos não se concretizarão.

Para prevenir a competição predatória, são editadas regras, em leis internas ou convenções internacionais, com fixação de limites e requisitos para competição. Sua inobservância configura a guerra fiscal.

No Brasil, a guerra fiscal do ICMS parece caminhar na direção de um armistício, com a edição da Lei Complementar nº 160, de 7.08.2017, e sua regulamentação mediante convênios, celebrados pelos secretários estaduais de Fazenda.

Não foi a melhor solução, mas, nas circunstâncias, a possível, podendo ser aperfeiçoada no processo de implementação. Ao menos, já não se poderá falar mais em guerra fiscal do ICMS.

No plano internacional, a União Europeia (UE), no início de dezembro do ano passado, deflagrou a primeira ação concreta contra os chamados paraísos fiscais, ao incluir 17 países e dependências em uma lista negra (blacklist) e 47, em uma lista cinzenta (greylist).

No que se refere aos países e dependências incluídos na lista negra, os membros da UE ficaram autorizados a adotar contramedidas ou sanções retaliatórias e dissuasórias, inclusive a retenção de imposto na fonte (como já faz o Brasil, há muito tempo).

Já em relação aos que constam da lista cinzenta, foi estabelecido um prazo de um a dois anos, conforme o caso, para melhorar os padrões de transparência, promover a tributação justa, introduzir requisitos de substância e aplicar as medidas recomendadas pela OCDE, no contexto do BEPS (Base Erosion and Profit Shifting) – programa de integridade tributária chancelado pelo G-20.

A despeito de alvissareira, por constituir um passo inicial no enfrentamento dos paraísos fiscais, a iniciativa da UE é claudicante nos seguintes aspectos: a) o critério para qualificação dos paraísos fiscais não é objetivo, assumindo caráter impressionista, ainda que represente algum consenso; b) as contramedidas e sanções podem ser pouco eficazes, porque certamente não serão uniformes; c) as listas não contemplam conhecidos paraísos fiscais integrantes da UE, como: Irlanda, onde se encontram as sedes da Apple e Google, empresas com baixa disposição para pagar impostos, e que, por pouco, não recepcionou a brasileira Friboi; Luxemburgo, palco de recorrentes escândalos fiscais; Holanda, que adota um favorecido regime para holdings, e Malta.

Os paraísos fiscais, que concentram 1/6 da riqueza mundial, representam a mais grave enfermidade tributária da história. Um caso teratológico de competição nociva e concentração de renda.

As atividades das multinacionais em paraísos fiscais, segundo a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês), resultam em perdas anuais de US$ 100 bilhões para os países não desenvolvidos, o que corresponde a 1/3 de sua base potencial de imposto de renda corporativo.

Em contrataste com a leniência da UE, desde 1996, o Brasil adota critérios objetivos para definir paraísos fiscais e contramedidas específicas para compensar perdas de receitas.

Sou cético, todavia, quanto à eficácia das medidas que serão adotadas pelos países da UE, pois há uma clara indisposição para cooperar por parte dos Estados Unidos e do Reino Unido, justamente porque abrigam paraísos fiscais, como Samoa Americana, Guam, Cayman, Guernsey, Jersey, Ilha do Homem.

A despeito de não ser uma boa temporada para o multilateralismo, a única via para enfrentar o problema ainda é negociar um tratado.

* Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal

 


Revista Veja: O Estado inteligente, entrevista com Adrian Wooldridge

Jornalista Adrian Wooldridge afirma que modelo de governo burocrático e inchado precisa ser repensado. A saída, diz ele, virá do uso intenso da tecnologia. Wooldridge foi um dos palestrantes do seminário internacional Desafios Políticos de um Mundo em Intensa Transformação, realizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) em parceira com o Instituto Teotônio Vilela nos dias 14 e 15 de setembro, em São Paulo.

Por Marcelo Sakate

A crise de credibilidade enfrentada por diferentes governos pelo mundo afora é resultado do esgotamento do modelo de Estado consolidado nas últimas décadas. O setor público não consegue corresponder plenamente a todas as suas atribuições, premido pelo excesso de gastos e pela necessidade de sustentar o bem-estar de uma população cada vez mais velha. A sobrevivência das democracias requer uma reformulação dos governos, levando em conta as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias — entre elas, a inteligência artificial. É disso que trata A Quarta Revolução — A Corrida Global para Reinventar o Estado, escrito pelo jornalista e historiador inglês Adrian Wooldridge, em parceria com o jornalista John Micklethwait. Wooldridge foi um dos palestrantes do seminário internacional Desafios Políticos de um Mundo em Intensa Transformação, realizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) em parceira com o Instituto Teotônio Vilela (ITV) nos dias 14 e 15 de setembro, em São Paulo. O livro foi publicado originalmente em 2014, antes, portanto, da vitória de Donald Trump e da decisão britânica de sair da União Europeia. Wooldridge, que é editor da revista The Economist e doutor em filosofia por Oxford, disse que está mais pessimista e que os acontecimentos recentes mostram que a quarta revolução do Estado é necessária para revigorar o apelo e a força da democracia. Ele falou a VEJA por telefone, de Londres.

O que é a quarta revolução?
É uma forma de usar o poder da tecnologia e do pensamento político moderno para disciplinar o Estado. Houve anteriormente três revoluções. Thomas Hobbes argumentou que o papel do Estado era proteger as pessoas da morte, da destruição ou da violência. Em meados do século XIX, os liberais diziam que o Estado tinha de garantir a liberdade das pessoas. Beatrice e Sidney Webb, no fim do século XIX, afirmaram que o Estado deveria providenciar o bem-estar das pessoas. Era uma resposta socialista. Houve mais tarde uma reação parcial com Margaret That­cher e Ronald Reagan, para os quais o Estado havia ficado grande demais, mas não foi propriamente uma revolução. Chegou a hora de uma quarta revolução. As atribuições do Estado precisam ser avaliadas. Parte da transformação reside no uso da tecnologia para aprimorar a qualidade da prestação de serviços de saúde e educação.

Qual deve ser o papel do Estado no mundo de hoje?
Precisamos de um Estado poderoso para fornecer serviços públicos, para evitar que as pessoas matem as outras, para preservar a ordem pública. O problema é que o Estado tende a se autoalimentar. Quanto maior o seu tamanho, mais indisciplinado ele fica. Presta serviços cada vez piores à população, até colapsar sob o próprio peso. É preciso usar a tecnologia moderna para aperfeiçoá-lo. Pode parecer banal dizer isso, mas, se voltarmos ao século XIX, houve um salto de produtividade graças ao uso de máquinas que substituíram trabalhos feitos a mão, com a Revolução Industrial e a Revolução Agrícola. Agora temos as bases de uma nova revolução com as máquinas inteligentes. Os computadores tendem a ser intensivos no uso de informações e de mão de obra. A produtividade na prestação de serviços pode crescer muito.

É possível dar exemplos do impacto da tecnologia nos serviços?
A saúde é um serviço muito caro. Mas máquinas, com sua inteligência artificial, poderão fazer esse serviço a distância, com o monitoramento de idosos em casa por meio de câmeras e do controle remoto de procedimentos. Será possível assistir a representações em 3D de palestras em universidades. Professores serão capazes de ensinar através de hologramas. Alunos de medicina começam a usar hologramas e outras tecnologias para aprender técnicas cirúrgicas. É apenas o começo. Em cinco anos, dado o ritmo de avanço de inteligência artificial, todas as áreas vão mudar radicalmente.

Em que países a quarta revolução já se tornou realidade?
Singapura é um exemplo poderoso. Era um país que veio do nada nos anos 1950. Um pântano, pobre, parte do império britânico. Tornou-se um dos Estados mais ricos do mundo. Isso por ser aberto para o comércio global, mas também por ter um governo extremamente eficiente. É um governo que vem sendo muito bom em atrair negócios, prover serviços e educar a população. O segundo exemplo são os países da Escandinávia, em particular a Suécia. Por um momento, pareceu que o Estado estava se tornando grande demais e muito ineficiente. Mas, a partir de meados da década de 90, os suecos souberam fazer reformas sérias que cortaram o tamanho do governo e injetaram princípios de mercado, de competição e autonomia. A China é outro exemplo. Era um país muito malgovernado, mas agora tem avançado. Vem fazendo reformas interessantes. O país está preparando as bases de um Estado poderoso. Há um núcleo do Partido Comunista cujas habilidades de gestão são impressionantes.

O seu livro foi lançado originalmente em 2014, mas já antecipava algumas questões que depois ficaram evidentes. O que mudou desde então?
O livro foi escrito em um momento de otimismo razoável. Um exemplo de país que ia muito bem em termos de governo e de reformas era o Reino Unido. Mas o Brexit, a saída britânica da União Europeia, tirou o apetite do governo por reformas. No livro, nós falamos que uma de nossas preocupações era que houvesse uma crise da democracia. Era uma referência a uma crise derivada de promessas exageradas, que criam na população expectativas que não podem ser atendidas. Nos anos 2000, a democracia parecia ser a onda do futuro. Todo mundo falava disso. Mas agora vemos que a democracia não está avançando como se esperava. A democracia está paralisada no Oriente Médio e enfrenta grandes desafios na Europa e nos Estados Unidos. A quarta revolução deveria consolidar o apelo e a força da democracia mundialmente, mas estou mais pessimista atualmente.

Por que países que historicamente lideraram o avanço do Estado agora estão enfrentando mais dificuldades?
Uma das coisas que chamam atenção nas democracias avançadas é a atuação dos grupos de interesse. Eles estão se tornando muito poderosos. Quanto mais avançado o país, mais poderosos são os grupos, porque são ainda mais profissionais. Veja o caso de Washington. Donald Trump é um presidente terrível. A Inglaterra também está assim. Foi um país pioneiro em reformas, mas está retrocedendo. Os britânicos testemunharam uma melhora dramática no desempenho dos alunos de Londres, que são em boa parte representantes de minorias. Isso tornou a sociedade menos desigual. Mas, infelizmente, por causa do Brexit, muita energia direcionada para reformas desapareceu. Trump e o Brexit estão fazendo muito estrago à ideia da nova revolução do Estado.

As pessoas pedem menos impostos e cobram mais serviços do Estado. Não são reivindicações incompatíveis?
O ex-presidente americano John Adams disse que todas as democracias acabam por cometer suicídio, porque as expectativas da população são muitas vezes incompatíveis com o que o Estado pode oferecer. Temos visto que governos estão ficando cada vez maiores e que os déficits fiscais também estão crescendo. Alguns Estados estão gastando recursos de que não dispõem. Outros estão com déficits estruturais. Uma das razões por trás da crise financeira de 2008 foram os gastos públicos desenfreados. Há duas coisas que precisam ser feitas. Uma delas é dispor de organizações tecnocratas que determinem regras em assuntos como as aposentadorias: o valor dos benefícios, a idade mínima, quem tem direito, quase tudo relacionado a esse assunto. Por um lado, o governo não poupa o suficiente; por outro, gasta demais com as aposentadorias. Isso pressiona o déficit cada vez mais. Em última instância, o país irá à bancarrota. A outra medida importante é devolver o poder de fazer escolhas de outra natureza a autoridades locais, como prefeitos e conselhos municipais. Isso terá o efeito de engajar as pessoas e ampliar a sua participação na política.

O senhor acredita que essas mudanças ocorrerão de forma gradual e negociada ou haverá uma ruptura?
Na maior parte dos casos, será necessária uma ação mais radical. As mudanças passadas foram introduzidas como resultado de crises, e o maior exemplo é, novamente, a Suécia do início da década de 90. O país estava em crise. Alguns bancos estavam colapsando. A inflação era elevada. Empreendedores abandonavam o país. A Suécia estava ficando sem recursos. Havia uma crise do setor público, e daí ocorreu uma ruptura. De modo geral, países que estão em boa situação não fazem as reformas de maneira tranquila, infelizmente. As pessoas esperam que a tempestade comece para providenciar o conserto.

Países como o Brasil nem chegaram a atingir na plenitude o estágio do Estado de bem-estar social. Eles estão condenados ao atraso?
A América Latina pode tirar proveito de tecnologias mais modernas. Os países da região também podem se beneficiar de todos os tipos de reforma que estão acontecendo ao redor do mundo. Antigamente, havia a noção de que as melhores ideias vinham essencialmente da Europa e dos Estados Unidos. Muitas das melhores ideias na área de saúde vêm da Índia, particularmente em termos de design e produção de equipamentos médicos. É uma inovação que se torna realidade por uma fração do custo que teria em países desenvolvidos. Há melhores condições para criar um Estado de bem-estar social hoje em dia do que no passado. Basta refletir sobre o modelo da Grã-Bretanha no início do século XX e que se expandiu fortemente depois da II Guerra. O governo ideal deveria ser dirigido por grandes estruturas burocráticas, parecidas com fábricas. Esse tipo de estrutura não é hoje o mais eficiente em prover serviços à população. Prestar serviços em níveis locais funciona melhor. Essa tarefa hoje é facilitada por celulares e computadores.

O senhor diz que ficou mais pessimista. O que podemos esperar para os próximos anos?
A democracia é a melhor entre todas as formas possíveis de governo, ainda que seja capaz de apresentar problemas de toda espécie, como promessas demais, muitas das quais descumpridas. Existe a corrupção. Mas a democracia é muito valiosa e precisamos reformá-la e protegê-la dela própria. Trump representa todos os medos que nós tivemos enquanto escrevíamos o livro, de uma forma maximizada. O populismo que ele incorpora está substituindo seu julgamento individual sobre a Constituição e o governo. É muito ruim que a maior economia do mundo, que é também a mais antiga democracia moderna, esteja nas mãos de um populista. Na Europa, a direita também está em ascensão. Por trás disso tudo está, infelizmente, a estagnação econômica. As pessoas ficam furiosas. Nesse estado, elas se tornam demagogas. E uma razão pela qual os países se encontram estagnados economicamente é que eles estão dispendendo demais com os gastos obrigatórios, sem investir o suficiente na economia produtiva. Tudo isso mostra que é preciso um novo rumo.

Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552

 


Cristovam Buarque: E agora, Merkel?

A chegada de um partido xenófobo e conservador ao Parlamento é prova de que até mesmo uma líder como ela não consegue atrair a população inteira para um projeto democrático e humanitarista

A vitória do partido da chanceler Angela Merkel mostra que ela é a grande líder no mundo em transformação de hoje. Mostra também que o eleitor alemão não recusa sua política econômica responsável e sua generosidade nas relações com os imigrantes. Mas a redução no número de eleitores em seu partido e o crescimento da bancada neonazista, ganhando direito a participar do Parlamento, apontam para o esgotamento das bandeiras e do partido de Frau Merkel.

Com o crescimento da imigração para a Europa, com rebeliões de países contra a Comunidade Econômica Europeia, o desemprego crescente, crises econômicas, esgotamento das finanças estatais e corte em gastos sociais, cada vez será mais difícil reeleger a proposta que Merkel simboliza. Ela própria reconheceu isso, ao dizer que o eleitorado deu um recado, e seu partido precisa rever suas posições para recuperar eleitores perdidos.

Com essa fala, mostrou sua grandeza, pois no lugar de só lamentar o crescimento da direita, admitiu que a vitória do adversário decorreu de erros dela própria e de seu partido. O que acontece na Alemanha não é muito diferente do resto do mundo democrático.

Tudo indica uma tendência ao crescimento da preferência do eleitor por posições xenófobas e conservadoras, que no Brasil se manifestam com o crescimento de candidatura com propostas claramente autoritárias, manifestações de militares a favor de uma possível intervenção e com a forte rejeição da população contra os políticos.

É provável que no futuro Frau Merkel tenha pouca chance de eleger propostas moderadas e solidárias. Possivelmente serão crescentes as resistências à sua coalizão, se não for capaz de apresentar soluções para um novo modelo civilizatório, sustentável e humanitário, e de sensibilizar a opinião pública a favor de um novo pensamento e nova filosofia social.

Há quase 40 anos, os alemães comemoram o bom funcionamento da economia e aceitam pagar um imposto para permitir a redução da desigualdade social com a Alemanha Oriental. Nos últimos dois anos, a Alemanha de Angela Merkel vem estendendo a mão aos imigrantes que atravessam o Mediterrâneo, recebendo quase um milhão de refugiados.

O eleitor deu aval a essa postura, mas a chegada de um partido xenófobo e conservador ao Parlamento é prova de que até mesmo uma líder como ela não consegue atrair a população inteira para um projeto democrático e humanitarista. Nos próximos anos, as forças progressistas do resto do mundo precisarão perceber que a população alemã votou por uma economia eficiente, usando socialmente os recursos obtidos pela economia, mas sem interferir na sua sustentação e equilíbrio.

A Alemanha é um exemplo do compromisso com a eficiência e com o equilíbrio fiscal como forma de garantir fundos para os investimentos sociais com sustentabilidade. Fica o alerta para que as forças progressistas de cada país reconheçam que não estão convencendo a população de suas propostas e, em consequência, iniciando a marcha para alternativas autoritárias e conservadoras conduzirem o país. (O Globo – 30/09/2017)

 


O Estado de São Paulo: A vitória de Macron

A ampla vitória do presidente da França, Emmanuel Macron, nas eleições legislativas, nas quais seu partido A República Em Marcha (REM) obteve folgada maioria na Assembleia Nacional é importante não apenas porque lhe dá condições de aprovar as reformas que propõe na economia e na política.

A ampla vitória do presidente da França, Emmanuel Macron, nas eleições legislativas, nas quais seu partido A República Em Marcha (REM) obteve folgada maioria na Assembleia Nacional – ainda maior quando somada à bancada de seu partido aliado, o Movimento Democrático (MoDem) – é importante não apenas porque lhe dá condições de aprovar as reformas que propõe na economia e na política. Ela muda em profundidade o panorama político do país e tem repercussões que vão além de suas fronteiras, na medida em que fortalece a União Europeia (UE), abalada pela saída do Reino Unido.

No curto período de um ano, Macron, ex-ministro da Economia de François Hollande, que bateu recorde de impopularidade, elegeu-se presidente, transformou seu novo partido no maior do país, com 308 deputados num total de 577 da Assembleia, que se sobrepõe hoje às tradicionais forças de direita (Os Republicanos e seus aliados), com 131 eleitos, e esquerda (Partido Socialista e aliados), com 31 eleitos, que dominaram a política francesa por mais de 40 anos.

Um conjunto de circunstâncias favoráveis permitiu essa ampla renovação dos quadros políticos: dois terços da Assembleia, com a chegada de um grande número de jovens e de mulheres (158), boa parte dos quais estreando na política. Tudo indica que a crise de representatividade, que atinge vários países de todos os continentes, está sendo resolvida ali rapidamente e sem maiores abalos.

O ponto fraco, logo apontado pelos adversários de Macron, foi a alta taxa de abstenção, de 56,6%. Taxa que já vinha crescendo no país e agora ultrapassou a metade do eleitorado. Em primeiro lugar, é evidente que o problema afeta tanto Macron como todos os que se opõem a ele. Em segundo lugar, o primeiro-ministro, Edouard Philippe, se apressou não apenas a comemorar a vitória como a reconhecer, certamente levando em conta a abstenção, que o governo não recebeu um cheque em branco.

A oposição, tanto a da extrema direita da Frente Nacional – que conta com o apoio de boa parte dos trabalhadores – como a da extrema esquerda da França Insubmissa, promete ir às ruas para se opor à reforma trabalhista. Segundo Macron, as regras atuais são ultrapassadas e atrapalham a retomada da economia e na prática colaboram para o desemprego, porque impõem altos custos às empresas. Embora governo e centrais sindicais reconheçam que as negociações serão difíceis, a ampla maioria parlamentar de que Macron dispõe permite a aprovação fácil da reforma na Assembleia e fortalece sua posição tanto nesses entendimentos como no enfrentamento nas manifestações, prometidas tão logo foram anunciados os resultados das eleições.

No plano político, o caso das mudanças propostas por Macron é diferente. Além de ser igualmente fácil sua aprovação pela Assembleia, não encontram maior resistência na oposição. Tanto a referente à moralização como a alteração parcial do sistema eleitoral. O ponto forte da primeira é o fim do nepotismo por parte de deputados. Ele foi o ponto central do escândalo que fez o candidato da direita, François Fillon – emprego da mulher e dos filhos como assessores, com altos salários –, perder a eleição para presidente, antes dada como certa. A segunda é a introdução no sistema eleitoral de uma dose de voto proporcional, hoje inteiramente distrital. Essa é uma mudança que interessa à extrema direita e à extrema esquerda.

No plano externo, a retomada da economia francesa, estagnada há muitos anos e com uma taxa de desemprego de 10% da força de trabalho, é julgada importante também pela UE, a começar pela Alemanha. A aliança com a Alemanha, considerada o motor da UE desde o início, não pode funcionar a contento com a França na situação em que se encontra.

O tempo dirá se Macron saberá enfrentar o desafio das transformações que prometeu e da esperança que despertou. A mudança no panorama político que já operou e a folgada maioria parlamentar que acaba de obter são passos da maior importância, mas só eles não bastam.

 

Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-vitoria-de-macron,70001849874

 


Cristovam Buarque: Assassinato do futuro

Na mesma semana do plebiscito que tirou o Reino Unido da União Europeia, conhecido como Brexit, uma pesquisa feita pelo professor Júlio Jacobo Waiselfisz, coordenador do Programa de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), mostrou que no Brasil são assassinadas 29 crianças por dia, mais de dez mil por ano. Estes dois fatos representam o desprezo pelo futuro.

O Brexit é uma preferência pelo passado; a morte de crianças é nossa Braxit, um assassinato de portadores do nosso futuro. Há décadas, o Brasil faz sua Braxit, sem plebiscito, discretamente, por decisões ou missões silenciosas de seus políticos.

Raras decisões de um povo geraram tantos debates quanto o chamado Brexit. Talvez sejam necessárias décadas para termos pleno conhecimento das consequências desta decisão: ética, o fechamento daquele país aos imigrantes que buscam abrigo contra a pobreza e as guerras em seus países; econômica, perda de investimento e vantagens comerciais; política, isolamento de uma população de 65 milhões de habitantes diante de uma comunidade de 510 milhões; cultural, pela perda da oxigenação promovida pela convivência entre povos; histórica, isolamento em um tempo de inevitável marcha a integração e globalização.

Mas já é possível dizer que foi uma opção da maioria dos britânicos pelo passado. O perfil etário dos eleitores demonstra: 63% com mais de 60 anos votaram pela saída; 73% com menos de 30 anos votaram pela permanência. O futuro queria permanecer; o passado, sair.

A surpresa do voto dos britânicos não surpreende o Brasil. Há décadas, optamos por sair do futuro, preferindo ficar presos ao passado. Nossos investimentos, nossas estruturas não têm preferência pelo futuro, são usados sobretudo para pagar erros e dívidas do passado. Gastamos R$ 500 bilhões por ano com a Previdência e R$ 300 bilhões com a Educação. A maioria dos aposentados ainda recebe menos do que o necessário para atender todas as suas necessidades, mesmo assim, considerando o valor per capita, o passado recebe quase duas vezes mais do que recebe o futuro.

Em 2013, o setor público brasileiro fez um sacrifício fiscal de R$ 2 bilhões somente para promover a venda de automóveis; e de R$ 1,6 bilhões com incentivos fiscais para inovação tecnológica nas empresas. Em 2015, pagamos R$ 502 bilhões de juros por dívidas financeiras contraídas no passado e investimos apenas R$ 68,5 bilhões na construção de infraestrutura econômica no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Gastamos mais com o passado do que com o futuro.

No dia seguinte ao Brexit, os eleitores do Reino Unido iniciaram o movimento por um Brain, uma reunificação com a União Europeia, mas o Brasil continua sem ao menos perceber nossa clara opção por fugir do futuro, nem se propondo a incorporar-se ao futuro: nosso Brain. Para tanto, são necessárias diversas reformas, mas sobretudo cuidar da educação das crianças. Nosso Brain quer dizer cuidar do cérebro de cada criança. (O Globo – 09/07/2016)


Fonte: www.pps.org.br