Tribunal Penal Internacional

Líderes dos povos indígenas acusam Bolsonaro de genocídio em Haia

Organização apresenta hoje denúncia no tribunal penal, e vai pedir à Corte que enquadre Bolsonaro por ecocídio, nova tipificação de crime contra a humanidade

Daniel Biasetto / O Globo

RIO — Diante da morte de 1.162 indígenas de 163 povos durante a pandemia de Covid-19, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) vai apresentar hoje uma denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. O Brasil tem cerca de 850 mil índios espalhados por mais de 300 povos originários. O documento, de 148 páginas, a que O GLOBO teve acesso, acusa o presidente de genocídio e também de uma série de ações e omissões na gestão do meio ambiente. O texto sustenta que o desmantelamento das estruturas públicas de proteção socioambiental desencadeou invasões a terras indígenas, desmatamento e incêndios nos biomas.

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A entidade vai pedir ainda à Corte que enquadre Bolsonaro por ecocídio, nova tipificação de crime contra a humanidade, sobretudo contra o planeta e o meio ambiente. Nas páginas da denúncia, é feito um balanço de todas as vezes que, de acordo com a Apib, o presidente atentou ou causou danos diretos aos índios por decisões políticas e articulações fora do Congresso. As lideranças reuniram depoimentos e exemplos de incentivos explícitos do governo federal a invasões, ataques, garimpo e mineração em terras indígenas.

Após a apresentação da denúncia, o trâmite do processo se dá na Procuradoria do tribunal internacional, que vai analisar se abre ou não investigação contra Bolsonaro. Segundo o Estatuto de Roma, tratado que estabeleceu a criação do Tribunal Penal Internacional, os condenados por acusações semelhantes podem sofrer medidas cautelares e até prisões preventivas.

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“São fatos e depoimentos que comprovam o planejamento e a execução de uma política anti-indígena explícita, sistemática e intencional encabeçada pelo presidente Jair Bolsonaro, desde 1º de janeiro de 2019, primeiro dia de seu mandato presidencial”, diz o documento.

A Apib menciona que a inexistência de uma política de demarcação de terras indígenas é mais um indício do descaso de Bolsonaro.

— O que vimos durante toda a gestão do presidente Bolsonaro foi uma explícita recusa em demarcar novas terras. Ao mesmo tempo, projetos de lei, decretos e portarias tentavam legalizar as atividades ilícitas em território indígena, o que nos deixou sem a proteção garantida por lei — afirma o coordenador jurídico da Apib e um dos autores da denúncia, Luiz Eloy Terena.

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Revisora da ação apresentada pela Apib, a advogada Eloísa Machado, do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu), afirma que a denúncia tem elementos para defender o argumento de prática de crime de genocídio. Em 2019, a entidade já havia representado contra Bolsonaro junto à Comissão Arns, voltada para a defesa dos direitos humanos:

— O Tribunal Penal Internacional vai verificar se aquele estado ou agente de estado denunciado promove uma política direcionada contra um determinado grupo étnico — observa Eloísa, acrescentando que o artigo 6º do Estatuto de Roma prevê punição para “atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, seja por ofensas graves à integridade física ou mental dos membros do grupo; seja pela sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial”.

Procurada , a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) afirmou que não teve acesso à denúncia e, por isso, o presidente Bolsonaro não vai comentar.

Perseguição da Funai

Coordenadora-executiva da Apib, a liderança indígena Sônia Guajajara afirma que a denúncia apresentada hoje na Corte de Haia tenta chamar a atenção das autoridades internacionais já que os povos indígenas chegaram ao seu “limite” após perseguições, descasos, racismo, preconceito e negligência por parte de Bolsonaro. O relatório da Apib destaca seis etnias diretamente afetadas pela política de Bolsonaro. O povo Munduruki atingido por invasões, contaminação e morte; os Yanomami com a destruição de suas terras pelo garimpo; além do adoecimento dos Tikuna e dos Guarani-Mbya, Kaingang e Guarani Kaiowá, vítimas de conflitos, ataques e assassinatos.

—Não suportamos mais tanta dor. Durante a pandemia, assistimos à morte de dezenas de índios do povo Kokama, Xavante e o extermínio do último homem do povo Juma — enumera Sônia, fazendo menção à morte de Aruká Juma, ancião morto em decorrência do coronavírus em fevereiro.

Alvo de uma investigação da Polícia Federal em inquérito aberto a pedido da Fundação Nacional do Índio (Funai), Sônia afirma que o órgão teve seu papel deturpado pelo governo Bolsonaro e passou a perseguir e a criminalizar em vez de defender os interesses dos índios. Após recorrer à Justiça Federal, Sônia conseguiu arquivar a ação movida contra ela e contra o líder Almir Suruí:

— Eu temo muito pelo futuro dos povos indígenas, pois o prejuízo desses últimos dois anos e meio de governo Bolsonaro equivale a 50 anos de atraso e perda de direitos conquistados. Tenho medo que isso seja irreversível. Toda essa destruição ambiental que está sendo legalizada é muito perigosa não só para o Brasil como para todo o planeta.

Sônia destaca a negligência do governo no combate ao alto número de mortes dos indígenas durante a pandemia como um dos momentos de grande insegurança nas aldeias.Segundo ela, o governo chegou a ter durante o último ano quatro das cinco versões do plano contra a Covid-19 para as comunidades indígenas recusadas pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação que cobra medidas governamentais nas aldeias no Supremo Tribunal Federal.

— Isso não pode ser encarado como normal.


Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/lideres-dos-povos-indigenas-acusam-bolsonaro-de-genocidio-em-haia-25147066


Conrado Hübner Mendes: Aras é a antessala de Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional

Corte tem no procurador-geral a omissão de que precisa

Jurista leão de chácara é aquele que empresta vocabulário, gravata e biografia à violência. Não lhe falta vontade de servir e sujar as mãos. Regimes autocráticos alugam esse bando para organizar, sob o verniz do direito, a repressão e a mútua proteção. O lugar da profissão jurídica na história universal da infâmia política varia entre servidão e complacência. Descontadas as exceções.

Augusto Aras integra o bando servil. Enquanto colegas de governo abrem inquéritos sigilosos e interpelam quem machuca imagem do chefe, Aras fica na retaguarda: omite-se no que importa; exibe-se nas causas minúsculas; autoriza o chefe a falar boçalidades mesmo que alimente espiral da morte sob o signo da liberdade.

Na sua teoria de Estado, presidente tem liberdade de infectar, incitar violência e praticar charlatanismo da cura. Quando subprocuradores, no início da crise, representaram para que o PGR recomendasse ao presidente se abster de propagar mentira e desinformação, arquivou. Alegou liberdade de expressão e citou precedente aleatório do STF.

Também entendeu que a conta de Bolsonaro no Twitter é privada, uma zona franca da delinquência presidencial onde pode agredir a China, celebrar cloroquina e bloquear usuário; que o presidente não pode ser investigado por ameaça a jornalistas; que tem direito de se opor a medidas da política sanitária.

Aras não economiza no engavetamento de investigações criminais: contra Damares por agressão a governadores; contra Heleno por ameaça ao STF; contra Zambelli por tráfico de influência; contra Eduardo Bolsonaro por subversão da ordem política ao sugerir golpe.

Aras não só se omite. Quando age, tem um norte: contra a lei, inviabilizou que procuradores enviassem recomendações de praxe ao Ministério da Saúde; contra a lei, recomendou a membros do MPF que não cobrassem gestores da saúde em caso de "incerteza científica". Nem vamos falar de como desmontou forças-tarefa de combate à corrupção para concentrar em si arsenal de informações privadas com infinito potencial de intimidação.

Também faz blindagem processual de Bolsonaro: requisitou inquérito do porteiro que suscitou eventual elo entre família Bolsonaro e assassinato de Marielle; deu parecer contra as provas colhidas no inquérito das fake news no STF; contra a apreensão do celular presidencial; a favor de Flávio Bolsonaro em contradição com precedente do STF sobre foro privilegiado.

Não parou: pediu rejeição da denúncia por corrupção que ele mesmo havia oferecido contra Arthur Lira, após este se aliar a Bolsonaro; viabilizou processo relâmpago contra o inimigo Wilson Witzel, governador afastado do Rio; deu parecer contra estabelecimento de prazo para presidente da Câmara posicionar-se sobre pedidos de impeachment.

Poderia continuar, mas encerro a lista com a obstrução que promove diante das representações por crime comum de Bolsonaro. Sob pressão, escreveu que estaríamos na "antessala do estado de defesa". Não explicou a ameaça.

Diante da reação de outros procuradores e à representação criminal encaminhada contra ele mesmo ao Conselho Superior do MPF, resolveu "agir". Abriu inquérito contra prefeito de Manaus e governador do Amazonas. Abriu outro contra Pazuello, que nunca escondeu sua vocação de obedecer. Não incluiu quem manda em Pazuello e assegurou que só se investigue crime de prevaricação, nenhum outro mais grave contra saúde pública.

Aras não se deixa constranger pela submediocridade verbal e teatral que floreia seu colaboracionismo. Aderiu à hermenêutica declaratória, fraude interpretativa que atribui validade do argumento jurídico à autoridade de quem fala, faceta autoritária comum à magistocracia.

Aras é a antessala do fim do Ministério Público tal como desenhado pela Constituição de 1988. "A Constituição é o meu guia, a PGR não se move por interesses partidários." A Constituição-guia de Aras é a ditatorial de 1967. Ali, o PGR era empregado do presidente.

Se contra Bolsonaro cabe um impeachment Pró-Vida, contra Aras cabe um impeachment Pró-MP.

Afinal, PGR também pode cometer crimes de responsabilidade. Seu repertório de omissões é tão holístico que prejudica Jair onde menos se espera: é a prova que o Tribunal Penal Internacional exige de que instituições domésticas se omitem e liberam o presidente para o crime.

*Conrado Hübner Mendes é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.