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Francisco e o trabalho escravo: 'A esquerda deve tratar desses horizontes'

REVISTA IHU ON-LINE

Mario Tronti, um dos últimos intelectuais da esquerda italiana, desde sempre um espírito crítico, mas não destrutivo do universo político, lê assim a carta de Francisco: “Ele é o Papa dos últimos e devemos agradecer pelo seu apelo, mas quem o ouvirá? Eu sou cético porque sobre temas de trabalho se repetem muitas vezes as palavras rituais. A começar pela esquerda, que deveria tratar desses temas: não digo que não fale nada sobre isso, mas certamente não coloca a questão do trabalho no centro da sua atenção e da sua política”.

Nascido em 1931, ex-professor de Filosofia Política, um dos principais teóricos do marxismo operário, na esquerda Mario Tronti é um dos interlocutores naturais de um Papa como Francisco.

A entrevista com Mario Tronti é de Fabio Martini, publicada por La Stampa, 13-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista.

O Papa usou uma expressão forte que corre o risco de se dissipar na tagarelice cotidiana das mídias: escravidão, também em referência à indústria cultural. Parece-lhe adequada ou excessiva?
Ainda é impressionante ler sobre trabalhadores, na sua maioria imigrantes, que ganham 3 euros por hora, ficando 10 horas sob o sol. Sim, são formas de escravidão. Infelizmente, falar de trabalho escravo faz sentido nesta sociedade que em muitos aspectos é livre apenas na aparência.

Maggiani e o Papa refletem sobre o tema: vale a pena produzir beleza, isto é cultura, graças aos escravos?
Antigamente havia a cultura do trabalho, que atravessava os partidos da esquerda comunista e socialista, e os intelectuais trabalhavam em contato com o mundo do trabalho: hoje essa cultura não existe mais. É por isso que falta sensibilidade em relação a esses temas.

Francisco argumenta: “A caneta e o computador nos oferecem outra possibilidade: a de denunciar, de escrever até coisas incômodas para estimular as consciências”. Por que os holofotes se acendem intermitentemente sobre esses temas?
Estou impressionado com a sequência de mortes no trabalho que ocorrem diariamente e que se intensificam. Estamos diante de um dos fenômenos mais trágicos de nosso tempo. Um problema muito sério que deve ser colocado na ordem do dia. Vejo que o governo prometeu tratar mais a respeito e mesmo que o problema venha de longe, nunca se torna uma questão estratégica.

O Papa diz o que deveria dizer uma esquerda digna desse nome?
Francisco vem de lugares distantes do centro da civilização ocidental, depois de ter amadurecido em seu país de origem uma sensibilidade social que trouxe para Roma, no centro da Igreja, e representa uma grande oportunidade para todos.

Certas declarações do Papa parecem quase da esquerda revolucionária: não deveria bastar uma esquerda rigorosamente reformista?
esquerda? Eu diria de forma mais geral, toda a classe política fala sobre muitos problemas, nunca sobre o tema do trabalho. Muita gente morre ou se cansa demais e é até explorada: a esquerda deveria recomeçar a partir da defesa do trabalho, como tarefa central e não como uma de tantas, que certamente não devem ser esquecidas.

O partido que representa a esquerda está no governo ...
Certamente, o Ministro do Trabalho deveria lançar um grito mais alto e tomar as providências necessárias. O governo tem muitas coisas a fazer, mas nesse campo se pode tomar as iniciativas que forem necessárias. A começar por uma maior presença de fiscais do trabalho nas zonas de exploração selvagem.

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Fonte: IHU Online
http://www.ihu.unisinos.br/612031-francisco-e-o-trabalho-escravo-agradeco-ao-santo-padre-a-esquerda-deve-tratar-desses-horizontes-cruciais-entrevista-com-mario-tronti

*Título do texto original foi alterado para publicação no portal da FAP


Arnaldo Jordy: A vida que pouco vale

Passados dez anos da aprovação pela Assembleia Geral das Nações Unidas do Plano de Ação Mundial para combater o tráfico de pessoas, o problema parece ter se agravado no mundo todo, em decorrência das ondas migratórias que deslocam milhares de pessoas da África e do Oriente Médio em direção à Europa, e da Venezuela em direção a outros países da América do Sul, tornando essas pessoas vulneráveis à ação de exploradores do trabalho escravo e da prostituição, inclusive infantil, a mais cruel forma de exploração do trabalho jamais vista.

Por esse motivo, o secretário-geral da ONU, António Guterrez, fez um apelo esta semana, por ocasião da passagem do Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas, a 30 de julho, para que os governos adotem medidas coordenadas para combater essa violação dos direitos fundamentais das pessoas e que tem nas mulheres e crianças 71% das suas principais vítimas.

Em dezembro, um encontro internacional no Marrocos vai discutir o Pacto Global para Migração, uma tentativa de firmar regras a serem seguidas pelos países, para que haja um tratamento mais humano a essas pessoas que fogem das guerras e da fome e que estão sujeitas a serem tratadas como mercadoria ou mão de obra escrava. Por isso, a ONU pede que os países adotem medidas para identificar os migrantes que são propensos à exploração pelo tráfico de pessoas, e que passem a adotar mecanismos de proteção para essas pessoas, evitando que se degradem ainda mais os indicadores de tráfico de pessoas e exploração sexual no mundo.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 21 milhões em todo o mundo são vítimas de traficantes de pessoas, seja para o trabalho em condições degradantes e desumanas, tanto no campo, em fazendas, como costuma ocorrer com frequência no Pará e em outros estados brasileiros, quanto nos grandes centros urbanos, onde os migrantes são explorados como mão de obra barata em fabriquetas de confecções, que muitas vezes fornecem peças para grandes marcas de roupas.

É preciso também olhar para o que acontece dentro do nosso quintal, na nossa casa. Esta semana, uma reportagem de televisão mostrou que o problema das crianças balseiras persiste na região do Marajó, algo que tenho denunciado desde a CPI da Pedofilia na Assembleia Legislativa do Pará, em 2008, a partir de apelos feitos pelo bispo do Marajó, Dom Luiz Azcona, e irmã Henriqueta Cavalcante. Na ocasião, o relatório feito por mim apontou para uma estimativa de 100 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes no estado do Pará, em um período de cinco anos, de 2005 a 2009, dos quais 26 mil com algum tipo de registro. Em dois anos, a CPI da Pedofilia recebeu 843 denúncias, investigou 148 casos, visitou 47 municípios e obteve depoimentos de 173 pessoas, solicitando 46 prisões. Graças à CPI da Pedofilia, houve uma mobilização no Judiciário para enfrentar esses casos, dando visibilidade ao problema, que quase sempre ficava escondido sob o véu do poderio econômico.

Entendo que esse problema só será totalmente superado quando a região do Marajó, onde estão alguns dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do País, superar a miséria extrema que faz com que crianças sejam obrigadas a vender o corpo e troca de alimento. No entanto, podemos mitigar a situação reforçando a rede de proteção a essas crianças, além de alertar e informar a população de todas as maneiras possíveis. Nesse sentido, conquistamos um feito, com a ajuda dos governos do Estado e Federal, que foi equipar todos os Conselhos Tutelares de todos os municípios do Pará com carros, computadores e outros materiais, para que os conselheiros tutelares possam desenvolver seu trabalho, objetivo alcançado este ano, com muito esforço.

Esse é apenas um começo, cada cidadão deve fazer a sua parte, denunciando os casos que estão nas sombras e exigindo a punição dos culpados. Essa é uma luta de todos.

*Arnaldo Jordy é deputado federal pelo PPS-PA


Sérgio C. Buarque: Aposentadoria e liberdade

Embora extremamente relevante do ponto de vista fiscal, a discussão em torno da reforma da previdência, incluindo a idade mínima para aposentadoria, passa ao largo de uma questão de fundo: a distribuição entre tempo de trabalho (necessidade) e tempo livre (liberdade) na sociedade moderna. A aposentadoria é apenas o direito ao tempo livre remunerado que o trabalhador recebe após anos dedicados à labuta de várias horas por dia durante a sua vida produtiva. O trabalho ao longo da vida difere no tempo com as condições econômicas e políticas que definem a jornada de trabalho, sendo a aposentadoria o repouso no período que resta de vida ao trabalhador. No início da revolução industrial, quando o operário trabalhava 16 horas por dia em sete dias da semana, a expectativa de vida flutuava em torno de 35 anos, de modo que, mesmo que tivessem aposentadoria, conquista bem posterior aos anos iniciais do capitalismo, não tinham mais energia e saúde para, digamos, “gozar a vida”. Os trabalhadores praticamente não tinham tempo livre ao longo da vida e menos ainda depois da curta e prematura velhice.

Os grandes avanços tecnológicos ao longo de dois séculos do capitalismo levaram a uma redução continuada e significativa da jornada de trabalho; de mais de 100 horas semanais, no início da revolução industrial, chegamos às 44 horas atuais, e muitas categorias em vários países já trabalham apenas 40 ou, até mesmo, 35 horas semanais, na França. Mesmo sem considerar as férias remuneradas, o tempo médio de trabalho atual é menos da metade do que era despedido por um trabalhador no início de revolução industrial. Esta redução da jornada de trabalho, disponibilizando um maior tempo livre aos trabalhadores ao longo da vida, não teria sido possível sem o excepcional aumento da produtividade do trabalho decorrente das ondas de inovação tecnológica nos duzentos anos de história.

Mesmo com menos horas dedicadas ao esforço diário de produção, o trabalhador vem aumentando a produção e também a sua parcela no excedente (mais-valia relativa de Marx), com elevação do salário real, graças ao aumento excepcional da produtividade do trabalho. Esta redução da jornada de trabalho permitiu, por outro lado, a moderação do desemprego (desemprego tecnológico) que teria crescido a níveis insustentáveis do ponto de vista econômico, social e político. A combinação de crescimento da produção e declínio da jornada de trabalho permitiu que se ampliasse a absorção da oferta de mão de obra que acompanhava a expansão demográfica e o aumento da população em idade ativa. Em certa medida, o desemprego tecnológico é uma forma de tempo livre, compulsório e indesejável (por não ser remunerado, como a aposentadoria), que atingiria parte da classe trabalhadora não absorvida no mercado de trabalho.

Considerando a nova revolução tecnológica em curso (robotização, internet das coisas, indústria 4.0, impressoras 3D) e o desemprego decorrente, mesmo com a economia apresentando taxas médias de crescimento, não será um despropósito retomar a discussão sobre a diminuição da jornada semanal de trabalho. Mais gente trabalhando menos evita o desemprego tecnológico, ao mesmo tempo em que amplia o tempo livre de todos os trabalhadores e, portanto, a disponibilidade de horas semanais para as atividades lúdicas, intelectuais e culturais. É importante não esquecer, em todo caso, que a jornada de trabalho semanal é um conceito que vem perdendo importância para várias atividades produtivas e profissionais, por conta das profundas mudanças das relações de trabalho decorrentes das inovações tecnológicas.

Considerando a possibilidade real de redução do tempo de trabalho alocado pelos trabalhadores, a sociedade deve decidir sobre a forma de distribuição deste adicional de tempo livre. Durante a semana (jornada semanal), por dia, ao longo da vida, ou no restante de vida após uma idade considerada inativa? A aposentadoria é parte desta divisão entre os muitos anos de trabalho (com diferente jornada semanal) e o tempo de não trabalho (livre) das pessoas, supondo a perda de capacidade produtiva com o avanço da idade. Entretanto, uma redução significativa da jornada semanal de trabalho poderia ser compensada pela ampliação da vida ativa do trabalhador retardando, portanto, proporcionalmente a idade de aposentadoria.

Computando o tempo de trabalho ao longo de toda a vida do trabalhador, e não apenas por semana, pode-se combinar uma menor jornada com mais anos de trabalho. Se o tempo livre significa “aproveitar a vida” para além da necessidade (trabalho), não seria melhor ter mais tempo disponível na juventude, com menor jornada, mesmo que se tivesse que trabalhar ao longo de toda a vida? Em outras palavras, intensificar a redução da jornada de trabalho em troca de ampliação do tempo de trabalho, diluindo o tempo livre ao longo de toda a vida, em vez de jogar para o futuro, quando se alcançaria a aposentadoria. No limite, o trabalhador nem precisaria se aposentar, mas teria muito mais tempo livre ao longo da juventude e da idade adulta, quando estaria no auge das condições físicas e intelectuais para viver a vida.

* Sérgio C. Buarque é economista
Ano vi nº 264 - a semana na revista será? - 27.10.2017


Dorrit Harazim: Dona Pureza disse o essencial

O tamanho do retrocesso embutido na portaria do atual governo sobre trabalho análogo à escravidão é obsceno

Faz exatamente 20 anos que uma cabocla maranhense saiu de Bacabal, cidade-fornalha na divisa com o Pará, e desembarcou no inverno de Londres com apenas uma sacola de viagem comprada e equipada pela Pastoral da Terra de São Luiz. A bagagem continha produtos de higiene pessoal e roupa íntima. Um vestido de gala lhe seria presenteado na capital inglesa.

Em 54 anos de vida Pureza Lopes Loiola nunca havia saído da roça.

À sua espera no aeroporto de Heathrow estava um intérprete encarregado de traduzir a narrativa dessa brasileira que se alfabetizou aos 40 anos para ler a Bíblia e tentar achar o filho sumido nas entranhas do trabalho escravo rural brasileiro. O intérprete também ajudou a viajante a absorver aquele mundão novo para o qual ela havia sido catapultada sem querer.

Indicada pela Pastoral maranhense ao prêmio 1997 da Anti-Slavery International, entidade pioneira fundada na Inglaterra em 1839 para combater o tráfego de escravos no mundo, dona Pureza havia sido a vencedora. E para receber a homenagem foi preciso viajar.

A primeira perna até São Luís foi de ônibus. Dali embarcou num voo até Salvador, com troca de avião em Fortaleza e escalas no Recife e em Natal. Por último, a travessia noturna do Atlântico, rumo ao destino final desconhecido. Coisa de 32 horas entre a sua casa de tijolo sem reboco no setor mais desassistido de Bacabal, e um dos aeroportos mais pantagruélicos do mundo.

Como a homenageada nunca tinha viajado de avião, e estava sozinha, a Pastoral e os anfitriões ingleses trataram de informar as respectivas empresas aéreas sobre a presença a bordo de passageira tão especial.

Preocupação desnecessária. Evangélica de fé, dona Pureza tirou tudo de letra. Só se inquietou no voo de retorno ao Brasil quando o comandante saiu da cabine, foi trocar algumas gentilezas com a passageira e acabou comentando que também iria tirar um cochilo. “Ué”, pensou a viajante, “ele não deveria continuar a pilotar o avião?”

A entrega do prêmio da Anti-Slavery — chamada mãe de todas as ONGs por ser a mais antiga do mundo — é solene e envolve uma programação intensa. Além da cerimônia principal no Westminster Central Hall, há uma recepção black-tie, beneficente, no cultuado hotel Savoy, uma visita ao Parlamento, ao Foreign Office, uma dezena de entrevistas e palestras em ONGs de outros países europeus — o roteiro alemão, por exemplo, incluiu Göttingen, Bonn, Düsseldorf, Aachen, Colonia, Heidelberg, Freiburg e Stuttgart.

A maratona de quase um mês não intimidou a estreante em terra estrangeira. Mulher inteligente e perceptiva, anotou tudo que lhe pareceu extraordinário para contar na volta ao pessoal da Quadra L, Rua 3, na Vila São João. Em uma das fitas que gravou, ouve-se um chiado contínuo por vários minutos. “Tá ouvindo?”, perguntava a todos. “Isso aí é o trem passando embaixo do mar. Uma maravilha — a gente embarca na Inglaterra e sai na França!”

Foi em 1993 que o caçula dos cinco filhos de dona Pureza saiu de casa em busca de emprego e acabou “sumido”. Um irmão e dois primos da maranhense também já haviam sido tragados em algum garimpo, fazenda ou carvoaria, sem deixar rastro.

Dona Pureza então decidiu pôr o pé na estrada. Largou a carvoaria que lhe rendia uns trocados e começou a percorrer os entrepostos de trabalhadores rurais desempregados. Mostrava a foto do filho de 18 anos e ia perguntando se alguém tinha visto aquele jovem com três dedos do pé esquerdo atrofiados.

Ao longo de três anos peregrinou, seguindo pistas que davam em nada. Mas anotava tudo o que via e ouvia — nomes de fazendeiros, locais suspeitos, tudo. De um sobrinho conseguiu emprestado um gravador que escondia na roupa de evangélica. Passou a gravar suas conversas com agenciadores de trabalho escravo, peões amedrontados, fazendeiros que jamais suspeitariam daquela crente. Na Pastoral ela encontrou incentivo para encaminhar denúncias a Brasília, a persistir. Escreveu dezenas de cartas a autoridades federais.

Dos presidentes Itamar Franco e, depois, Fernando Henrique Cardoso recebeu exatamente a mesma resposta protocolar. Dos conterrâneos José e Roseana Sarney não pronuncia o nome pois sequer responderam. À época, pelas contas da Pastoral da Terra, o número de brasileiros que trabalhavam sob vigilância armada, sem salário e cortados do mundo, em regime de escravidão, chegava a 26 mil.

“Lá em Brasília não têm misericórdia. Quando sentam na cadeira , acham que são semideuses. O Congresso passa o tempo todo brigando por dinheiro em vez de olhar com mais piedade para o povo”.

Esta coluna evoca aqui parte da viagem feita com dona Pureza duas décadas atrás, para “Veja”, por ela continuar atual. O tamanho do retrocesso embutido na portaria 1.129/2017do atual governo é obsceno. Alterar as regras de combate ao trabalho escravo, ou análogo ao trabalho escravo, num país em que as operações de fiscalização estão em ponto morto (foram 189 uma década atrás, este ano despencaram para 49), os recursos para a inspeção viraram farinata, e os beneficiários de sempre deixarão de ser nomeados, se encaixa na avaliação da cabocla respeitada em Londres:

“Lá em Brasília não têm misericórdia. Quando sentam na cadeira, acham que são semideuses”.

* Dorrit Harazim é jornalista


Míriam Leitão: Viagem ao passado 

A sensação triste de “volta à quadra um” ocupou boa parte da semana passada a partir do momento em que surgiu no Ministério do Trabalho a portaria que redefinia o trabalho escravo e dava poderes de censura ao ministro. O presidente Temer admitiu na sexta-feira que pode fazer alterações e se o fizer será apenas para tirar algum bode da sala, porque o único destino correto dessa portaria é sua revogação.

O Brasil discutiu intensamente este assunto no começo dos anos 2000 e o resultado do debate, naquela época, foi a formação de um pacto nacional contra o crime. A fiscalização se aparelhou, empresas se comprometeram com o boicote econômico aos que estavam na lista suja e o país demonstrou querer, enfim, se atualizar. Um dos avanços foi superar a desculpa de que é preciso definir melhor o que é o crime, porque as avaliações dos fiscais seriam subjetivas.

Não há subjetividade quando se fala de trabalho análogo à escravidão. Basta ler o Código Penal, analisar os autos dos flagrantes dados pelos auditores do Ministério do Trabalho ou acompanhar a literatura que existe no mundo sobre o tema. O Código Penal inclui jornada exaustiva, trabalho degradante, servidão por dívida, trabalho forçado, restrição à locomoção como parte da lista de condições desumanas a serem erradicadas.

O ministro Gilmar Mendes falou de forma irônica e superficial sobre o assunto, dizendo que faz trabalho exaustivo mas não é um trabalhador escravo. Ninguém da elite o é. O ministro falou o que não devia, o que no caso dele já virou um pleonasmo.

Quando o Brasil debateu mais o assunto, na primeira década deste século, acompanhei em detalhes alguns casos envolvendo políticos que tiveram suas fazendas flagradas praticando o crime. O exdeputado Inocêncio Oliveira, que foi duas vezes presidente da Câmara, foi um desses. No processo do caso dele estava registrado o seguinte: “Que os trabalhadores não tinham conhecimento dos valores que seriam descontados de sua remuneração, os quais eram anotados em um caderno.” Na fazenda Caraíbas, no Maranhão, que era de sua propriedade à época, foram encontrados 53 piauienses em péssimas condições de trabalho. O flagrante foi em 2002. Um dos intermediários de mão de obra para o deputado disse que os trabalhadores foram contratados “mediante pagamento por produção, com desconto de despesas de alimentação, ferramentas ou botas; que os trabalhadores deveriam trabalhar na fazenda, sem dela poder se ausentar, enquanto a diferença entre o valor do seu salário e da sua dívida não fosse quitada”.

Condenado em duas instâncias, o então deputado conseguiu que o crime fosse “rebaixado”. Em vez de trabalho escravo virou “apenas” trabalho degradante. Quem pediu sua condenação foi a procuradora Raquel Dodge, e o procurador-geral Claudio Fonteles endossou o pedido. O antecessor de Fonteles, Geraldo Brindeiro, pediu que fosse arquivado porque não viu “dolo”.

Quando chegou ao Supremo, a ministra Ellen Grace considerou que não era trabalho escravo porque não havia “algemas”. Numa entrevista para mim, o deputado lavou as mãos: “Eu nem falava com esse pessoal. De vez em quando um me perguntava alguma coisa e eu dizia: ‘não sei quanto é não, pergunta lá.” O processo acabou arquivado no Supremo Tribunal Federal, em 2006.

Mesmo com retrocessos, o pacto foi se formando e houve um avanço quando as grandes redes de supermercados se comprometeram a não comprar de quem estivesse na lista suja ou tivesse entre seus fornecedores alguma dessas empresas. A lista passou a ser a grande arma na luta contra esse crime, por isso ela começou a ser combatida.

Um dos casos impressionantes, da época, foi o de uma fazenda, Gameleira, de um irmão do senador Armando Monteiro. Foi flagrada quatro vezes. Por fim, trocou o nome da firma. Monteiro sempre afirmou que nada tinha com os problemas do irmão, mas pelo menos uma vez foi ao Ministério do Trabalho defender os interesses fraternos.

Assim era o Brasil que se tentava deixar para trás no começo do século 21, mas que reapareceu semana passada. A portaria do ministro Ronaldo Nogueira teve o apoio de empresários da indústria, agricultura e construção civil. Assim é o Brasil.