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Rebeca Andrade, a exceção em um país que desvaloriza o esporte

Ginasta que conquistou ouro e prata na Olimpíada de Tóquio e virou representante do Brasil no encerramento dos Jogos se consagrou graças a treinadores engajados e a um projeto público eficaz

Felipe Betim / El País

As lembranças de quem viu a ginasta Rebeca Andrade dar seus primeiros saltos são de uma menina “sempre alegre”, de “uma criança muito feliz” que não sofria as oscilações de humor que muitos atletas acabam passando. “O que vimos nos últimos dias é o jeito dela. Sempre foi natural, não é forçado”, explica Oscar Fagundes de Oliveira Júnior, de 56 anos, professor de ginástica artística de Rebeca em 2009. “Ela acabava de almoçar e ficava brincando aqui, nunca parava”, completa. Mas por traz dessa leveza que deu a Rebeca a medalha de ouro no salto e a prata no individual nos Jogos Olímpicos de Tóquio está uma história de muito esforço pessoal e superação, marcas de um país desigual e com poucas oportunidades, mas também de uma política pública que funcionou e guiou a ginasta até o pódio.

Nascida em Guarulhos, Rebeca é uma dos sete filhos de Rosa Santos, que trabalhava de empregada doméstica e os criou sozinha. Quando tinha seis anos, foi levada por uma tia ao ginásio municipal Bonifácio Cardoso, onde a Prefeitura de Guarulhos possui um programa voltado para a formação de novos ginastas. “Cida trabalhava aqui na cozinha e havia trazido Rebeca para brincar. Mas pediu que eu desse uma olhada nela porque achava que tinha jeito”, recorda Mônica Barroso dos Anjos, de 49 anos, técnica da equipe de ginástica de Guarulhos e árbitra internacional. Era o período de inscrição para teste de novos atletas. Mônica logo viu futuro na menina “magra e forte, com a musculatura já definida”. Pediu para ela correr, ir para a barra, dar estrelinha... Era “a futura Daiane dos Santos”.PUBLICIDADE  

Rebeca então passou a fazer parte do programa de Iniciação Esportiva da Prefeitura, que atende gratuitamente cerca de 5.000 jovens entre 6 e 17 anos em diversas modalidades. E Mônica tornou-se a primeira treinadora da “Daianinha de Guarulhos“, que teve de mudar o horário da escola para se adaptar à rotina de treinamento. Foi assim no primeiro ano e meio, até que a pequena, aos 8 anos, fosse encaminhada para a equipe de alto rendimento.

Os treinadores Oscar Fagundes de Oliveira Júnior (à dir.) e Monica Barroso dos Anjos, ambos professores de Rebeca Andrade, além do servidor público Marcos Camargo (à esq.), da área de esporte da Prefeitura de Guarulhos. Foto: TONI PIRES

A família se mobilizou para fazer o sonho da ginasta acontecer. Como morava em um bairro afastado do ginásio, Mônica conta que um dos irmãos de Rebeca andava com ela por cerca de duas horas até o local dos treinos e ficava esperando até o fim. Depois, comprou uma bicicleta para levá-la. Traços de um país em que a população mais pobre precisa fazer um esforço extraordinário para agarrar as poucas oportunidades disponíveis. “A mãe foi um fator chave na vida dela. Essa dificuldade de classe faz com que as pessoas superem esses desafios e isso foi muito importante na vida da Rebeca”, explica o técnico Oscar, conhecido apenas como Júnior.

Rebeca ainda contou com o apoio irrestrito de professores engajados, como o próprio Júnior, que a acompanhou em Cuba para um torneio pan-americano, e Mônica. Em determinado momento, quando já estava na equipe de alto rendimento, os professores começaram a se revezar para levar e trazer a menina de casa. Depois, passou a morar na casa da professora Ana Cecília durante a semana. “Pra facilitar a vida dela, ela dormia na Ana, tomava café, ia pra escola, almoçava aqui no ginásio, treinava à tarde e voltava pra casa da Ana para dormir”, recorda Mônica. “A gente sempre fez isso, com o apoio financeiro da Prefeitura. Eu mesma já tive ginastas morando na minha casa. Às vezes elas têm muito potencial e é necessário”, acrescenta a professora.

O Brasil possui algumas ilhas de excelência no esporte, como o vôlei, o futebol, o judô, a vela ou, mais recentemente, o boxe, o skate e a própria ginástica artística. Mas a rotina de muitos atletas brasileiros, diante das políticas públicas ainda tímidas, é de ter que superar a falta de apoio técnico e de patrocínio, público ou privado. Foi assim com o surfista e campeão olímpico Ítalo Ferreira quando ele pegava suas primeiras ondas numa tampa de isopor, em Baía Formosa (RN). Foi também assim com Darlan Romani, do arremesso de peso. Durante a pandemia, ele perdeu patrocínio, ficou sem técnico e sem área pra treinar, precisando apelar para um terreno baldio. Contraiu hérnia e covid-19 nesse período, mas ainda assim ficou em 4º lugar na Olimpíada de Tóquio.

O contraste com os Estados Unidos, um país continental como o Brasil e um dos maiores medalhistas de todos os tempos, fica evidente em algumas situações. Nestes Jogos Olímpicos, mesmo após a estrela Simone Biles ficar de fora de provas de ginástica artística, o país ainda assim conseguiu medalha de ouro no individual geral e no solo, a prata no salto e na geral por equipes, e bronze nas barras assimétricas e na trave. Não precisou se apoiar em sua principal ginasta para conquistar medalhas em todas as categorias da ginástica artística feminina. “O que falta é o Brasil ter um um olhar mais específico para o esporte do país. Quando vejo um quadro de 50 medalhas para os Estados Unidos e 10 para o Brasil, vejo política pública acontecendo lá”, argumenta o servidor público Marcos Camargo, de 51 anos, chefe da divisão técnica de esporte da Prefeitura de Guarulhos.

Apesar de todas essas questões, Rebeca e seus treinadores mostram que é possível alcançar o pódio com investimento ao longo de muitos anos. “O Brasil é muito rico em material humano”, afirma a treinadora Mônica, de Guarulhos. O imenso ginásio municipal Bonifácio Cardoso, aonde trabalha, é um dos mais bem equipados do país e celeiro de ginastas, professores e árbitros da ginástica artística. Ele é fruto de um projeto idealizado em 1979 pela professora Rose Cerqueira e foi ganhando músculo nos anos seguintes, em várias gestões de vários partidos políticos, culminando na construção do ginásio em 1992. Hoje são sete treinadores concursados, mas há também um intercâmbio constante de professores de outros lugares e países. Por exemplo, por 10 anos o técnico russo Wladimir Cheiko ajudou a formar o trabalho de excelência que é feito ali. Também passou por lá, entre 2006 e 2009, o professor Francisco Porath Neto, o Chico, técnico de Rebeca até hoje. Foi ele quem levou a ginasta para a Curitiba em 2010 e, um ano depois, ao Flamengo para alçar voos mais altos.

Ginásio de Ginástica Bonifácio Cardoso, da Prefeitura de Guarulhos, onde Rebeca Andrade começou ainda criança sua trajetória no esporte. Foto: TONI PIRES

“Com esse potencial, imagina se o país inteiro conseguisse fazer esse trabalho. Seríamos uma potência, brigaríamos com os Estados Unidos, a Rússia e a China tranquilamente”, afirma Mônica. Ela explica que Rebeca virou um ícone, mas que o trabalho feito ali deu oportunidade para muitas outras crianças que seguiram outras carreiras dentro da ginástica. A própria treinadora é um exemplo disso, já que entrou como aluna aos 12 anos. Outro exemplo é Marcos Goto, técnico do ginasta Arthur Zanetti, ouro em Londres 2012 e prata na Rio 2016 nas argolas. “Não é só esporte de alto rendimento, essas meninas e meninos vão ter outros caminhos, e isso foi fomentado aqui dentro”, explica a professora. “O esporte vira um meio para que tenham uma vida melhor no futuro. Isso é política pública.”

Além de oferecer e manter essa estrutura, a Prefeitura ainda paga cerca de 40.000 reais em taxas federativas e confederativas da ginástica artística. Dentro deste valor estão taxa de anuidade, filiação de atletas e técnicos novos, renovação de carteirinhas, arbitragem, premiação, renovação de técnicos e atletas antigos e inscrição individual e por equipe às competições. A gestão municipal ainda concede 90 bolsas de estudo em universidades para seus atletas. A ginástica artística é o carro-chefe do programa de Iniciação Esportiva, mas ainda há modalidades como futsal, vôlei, basquete, futebol, handebol e natação, entre outras.

Com o duplo pódio em Tóquio, o ginásio vem recebendo uma enxurrada de busca por vagas. “Agora tem esse fenômeno Rebeca, mas, olhando para trás, parece que foi tudo tão natural e que passou tão rápido”, afirma o técnico Júnior. Sentados no tablado por onde Rebeca passou, ele e Mônica recordam de alguns momentos de sua trajetória. “Aqui no ginásio acontecem muitos treinos ao mesmo tempo. Na hora de perfilar as meninas para começar o aquecimento, cadê a Rebeca? Estava lá na outra ponta olhando as meninas fazendo séries de solo com coreografia”, conta Mônica. “E ela lá dançando. Isso era quase todo dia. Essa menina ficava com os olhos brilhando e eu pensava ‘ela deve estar se imaginando num campeonato, numa Olimpíada’”. Rebeca agora deixa Tóquio duplamente consagrada, com o nome escrito na história do esporte e escolhida para representar o país na cerimônia de encerramento dos Jogos deste domingo. “É um sonho”, declarou, antes de sua temporária despedida dos holofotes.


Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/esportes/jogos-olimpicos/2021-08-08/rebeca-andrade-a-excecao-em-um-pais-que-desvaloriza-o-esporte-e-triunfou-por-meio-de-uma-politica-eficaz.html