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Monica De Bolle: Guerra de atrito
Em um embate público — como uma guerra ou uma barganha política —, há sempre uma terceira parte envolvida que influencia o toma lá dá cá indiretamente
Em 2016, a polarização crescente pariu o Brexit e a vitória de Donald Trump. Em 2019, o nacionalismo deturpado responsável pela composição genética desses dois eventos transformou-se naquilo que estrategistas militares, matemáticos e economistas chamam de guerra de atrito. Dito de modo simples, a guerra de atrito é a tentativa de ganhar uma batalha — seja na esfera política, no âmbito da negociação privada, ou no campo militar — exaurindo o oponente por meio de um período prolongado de perda de recursos. Na esfera política, os recursos perdidos são o capital político e o apoio do eleitorado; nas negociações privadas, os recursos perdidos são geralmente financeiros; no campo militar, os recursos perdidos são armamentos e soldados. Sai “vitorioso” da guerra de atrito o lado que possui mais recursos ou que tem mais capacidade de aguentar as perdas prolongadas, contínuas e exageradas. Não é difícil construir cenários em que o lado “vitorioso” acaba amargando perdas maiores do que os ganhos de ter vencido a guerra.
Para entender o Brexit e a birra de Trump pelo muro que fechou partes do governo americano, é útil formular estrutura simples para reflexão. Em uma barganha privada, onde as partes envolvidas tentam obter concessões umas das outras, impasses são geralmente resolvidos com perdas e ganhos racionalmente distribuídos.
Em um embate público — como uma guerra ou uma barganha política —, há sempre uma terceira parte envolvida que influencia o toma lá dá cá indiretamente.
Esse terceiro participante é a população, ou o eleitorado. Considerando apenas o embate político, quando o eleitorado está mais alinhado ao centro ideológico, a batalha entre extremos acaba envolvendo concessões de ambas as partes, o que quebra eventuais impasses de forma mais rápida. Para os que conhecem a literatura técnica sobre o assunto, esse resultado é uma espécie de corolário do teorema do eleitor mediano — o teorema afirma que, se o eleitor mediano for representativo das posições ideológicas da população, prevalecerão medidas e agendas políticas mais ao centro. O centro é o local que abriga as concessões capazes de quebrar impasses.
Contudo, quando aumenta a polarização do eleitorado, o teorema do eleitor mediano vai para o espaço. Além disso, quando os eleitores e observadores da barganha política estão entrincheirados nos extremos ideológicos, eles tenderão a endurecer as posições daqueles que negociam diretamente, aumentando as chances de uma guerra de atrito. Sob essa espécie de formalização teórica meio simplória, é possível entender tanto as causas do Brexit e do shutdown americano quanto entender por que os impasses dos dois lados do oceano devem não só perdurar, mas acabar gerando perdas muito maiores do que se poderia conceber para todas as partes envolvidas direta e indiretamente.
Theresa May perdeu o voto sobre seu plano para o Brexit após dois anos de intensas negociações com os parceiros europeus porque os defensores e opositores da saída do Reino Unido da União Europeia (UE) não querem ceder milímetro para o outro lado. Como o plano de May necessita de inevitáveis concessões, foi veementemente rechaçado pelos engalfinhados na guerra de atrito, o que não isenta a primeira ministra de críticas a sua atuação. No embate entre a UE e a Grã-Bretanha, parece que a ilha tem mais a perder do que o continente, o que aumenta a chance de que em 29 de março, prazo estabelecido para o Brexit, o Reino Unido saia da UE desunido e sem acordo — o pior cenário para todos.
Algo semelhante ocorre aqui nos EUA. Trump esperneou e disse que sem financiamento para o muro não apoiará qualquer medida legislativa para reabrir o governo. Por outro lado, o Partido Democrata, que hoje lidera a Câmara, afirmou que o muro como medida de segurança para a fronteira não faz sentido e que portanto não dará a Trump nenhum tostão a mais do que já fora oferecido. Fortalecidos pelos eleitores de ambos os lados, estão dadas as condições para a guerra de atrito. Como acaba, ninguém sabe. Não é fácil saber qual o lado mais fraco nessa história. Contudo, é certo que o impasse prolongado seguirá uma espécie de princípio de Hemingway: os custos serão lineares e graduais e, subitamente, exponenciais e abruptos. Não é impensável que a economia americana em final de ciclo de expansão acabe sendo duramente atingida, levando consigo o resto do mundo. Araújos à parte, da última vez que conferi, o Brasil ainda fazia parte do resto do mundo.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
Bruno Boghossian: O abismo da política e o perigo dos governos zumbis
Trump e 'brexit' servem de alerta sobre os entraves às plataformas de campanha
O Reino Unido tem uma líder morta-viva, segundo a oposição. Theresa May continua no cargo de primeira-ministra, mas sofreu uma derrota humilhante em sua articulação para tirar o país da União Europeia. “Não há dúvida de que este é um governo zumbi”, disse Jeremy Corbyn, do Partido Trabalhista.
O impasse a que chegaram os britânicos e a paralisia provocada nos EUA pelo conflito sobre a construção do muro na fronteira com o México são exemplos práticos de choques de expectativas políticas.
May se tornou primeira-ministra depois da surpreendente votação a favor do “brexit”. Donald Trump ganhou tração entre os americanos com seu discurso anti-imigração. Os dois tomaram impulso nas urnas e tentaram um salto, mas havia um abismo entre a plataforma eleitoral e as medidas concretas.
Parecia decidido que o Reino Unido daria uma guinada em 2016, quando 51,9% dos eleitores decidiram que o país deveria deixar o bloco europeu. May assumiu o poder para implantar o processo de saída, mas não conseguiu entregar o produto.
Após dois anos de derrotas e embates com o Parlamento, a população se frustrou. Atualmente, 59% dos britânicos dizem que preferem ficar na UE, segundo pesquisa do YouGov.
Resultados eleitorais podem dar a governantes vitoriosos uma sensação prazerosa de onipotência, mas o duro trabalho de negociação e o próprio sistema de contrapesos da política costumam quebrar o encanto.
Trump emergiu da eleição como um líder improvável, mas popular. Agora, enfrenta a maior paralisia de serviços públicos da história dos EUA devido à recusa do Congresso em dar aval a uma de suas mais emblemáticas promessas de campanha: a construção do muro de US$ 5,7 bilhões entre o país e o México.
A vitória de Jair Bolsonaro foi comparada aos triunfos do “brexit” e de Trump, já que o brasileiro também explorou a plataforma de rejeição ao establishment para se eleger. Britânicos e americanos mostram que é preciso enfrentar o mundo da política.