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Revista online | Apoie mulheres

Kitty Lima*, especial para a revista Política Democrática online (44ª edição: junho/2022)

Precisamos incentivar mulheres a quererem entrar na vida política, tanto quanto é urgente apoiar aquelas que aceitam esse desafio. Afinal, uma democracia plena depende da presença equitativa de mulheres e homens na política, conforme afirma o Democracy Index da revista The Economist.

Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em maio de 2022, somos 80.468.657 eleitoras, o que equivale a quase 53% do total de eleitores do país. Na contramão disso, somos minoria absoluta nas cadeiras eletivas Brasil afora.

Conseguimos avanços importantes no que diz respeito à participação feminina na política. Algumas leis mais recentes contribuíram para isto. A começar pela Lei das Cotas, de 2009, que determina a obrigatoriedade de os partidos políticos terem, pelo menos, 30% de cada um dos sexos na sua composição de chapa. Soma-se a isso outras legislações que garantem recursos mínimos para eleições e campanhas de incentivo à participação e são essenciais para este avanço. 

No entanto, o Brasil segue numa situação bem ruim no Mapa da ONU de 2020, que trata sobre o tema. O país ocupa a posição 140 de 193. Quando falamos da presença feminina na Câmara dos Deputados, ficamos atrás inclusive de países como Singapura, China, Líbia, Nigéria e Arábia Saudita, por exemplo. Não preciso ir longe para ver essa realidade. Aqui, em Sergipe, por exemplo, ao longo dos seus quase 202 anos, nunca houve uma mulher eleita deputada federal.

São incontáveis os motivos para tais números negativos. Falta de preparo, desejo, vontade ou competência não estão entre esses motivos. Podemos começar falando do direito ao voto, que só foi assegurado a mulheres com quase um século de diferença em relação a homens. Poxa! Somente há pouco mais de 40 anos tivemos a primeira mulher eleita senadora da República do Brasil. 

Cito Mônica Sodré que, no TEDx São Paulo, foi cirúrgica ao elencar três motivos que tornam tão difícil o acesso das mulheres na carreira política. Dentre eles, devemos falar sobre o ensino nas escolas. É imperativo que os jovens, ainda na escola, tenham acesso à discussão sobre política e debatam o assunto. A escola precisa ser e entregar mais do que matéria de prova e/ou vestibular. Precisa haver formação política, mostrando o quanto é útil e necessária para as verdadeiras transformações na sociedade.

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Outro ponto importante, também citado por Mônica, é a ausência de referências femininas na política. Pare e pense comigo: pesquise no Google imagens e tente encontrar imagens predominantes de mulheres atuando nos espaços políticos e de poder. Você verá o quanto é difícil encontrar esse tipo de registro. É natural que, diante de tal cenário, o nosso subconsciente diga que “aquele não é nosso lugar”. Por isso, é tão urgente e importante que todas e todos nos unamos para reverter este mindset.

O terceiro, e não menos importante motivo citado por Mônica, aponta o direito de sermos quem quisermos ser. Independente do espaço que estejamos ocupando, sempre seremos “vítimas” de comentários e análises sobre a forma como nos vestimos, nos maquiamos e nos portamos diante de outras pessoas, especialmente diante de homens. Além de termos nossos corpos avaliados, esse tipo de julgamento, inevitavelmente, mina e desestimula a maioria das mulheres.

Não bastasse tanto, ainda somos expostas diuturnamente à violência (política) de gênero.  A pesquisa Mulheres na Política, realizada pelo DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a violência, referente às eleições de 2018 e 2020, mostra que as candidatas são mais discriminadas e desqualificadas pelo simples fato de serem mulheres.

Importante esclarecer que é considerada violência política de gênero “todo e qualquer ato com o objetivo de excluir a mulher do espaço político, impedir ou restringir seu acesso ou induzi-la a tomar decisões contrárias à vontade dela”. Isso pode acontecer a qualquer tempo da vida política.

Como mulher, jovem, mãe e parlamentar, posso afirmar que 10 a cada 10 mulheres que estão na política já foram violentadas por algum colega de parlamento ou algum outro cidadão. Incontáveis foram as vezes em que fui interrompida durante alguma fala minha. Lembro, quando ainda era vereadora, que ouvia, ao fundo do plenário, colega eleito latindo e tentando me desconcentrar ou desmerecer minha luta pelos animais.

Falar em animais, já não bastasse toda a dificuldade de ser mulher na política, no meu caso, ainda vivo o plus de defender uma bandeira relativamente nova no parlamento: os direitos dos animais.

Não é fácil. Preciso confessar. Talvez, se tivessem me dito que seria do jeito que é, eu não tivesse aceitado o desafio de ser candidata ainda em 2016, no ápice dos meus 27 anos e com um filho de 1 ano. Nada disso seria possível sem uma rede de apoio. Apoio de familiares, amigos e uma excelente equipe, que ficam com meu filho nas inúmeras vezes em que eu não posso. Que me ajuda a decifrar e percorrer cada trecho do labirinto político. Que, muitas vezes, não me deixa ter acesso a toda violência gratuita que chega pelas redes sociais.

O caminho é longo, mas já estamos nele e precisamos persistir na luta para aumentar a representatividade feminina na política. Esse caminho perpassa por cada mulher que podemos alcançar diretamente para mostrar a importância de participar das mesas de decisão. A sociedade civil, por meio de organizações não governamentais (ONGs), também é essencial. Assim como nós, pessoas já públicas e que estão nos espaços de poder, precisamos promover políticas públicas efetivas, que garantam recursos e dificultem as tão conhecidas candidaturas laranja. Desta forma, a sociedade evoluirá.

Sobre a autora

Priscilla Kitty Lima da Costa Pinto, conhecida como Kitty Lima, é natural de Aracaju (SE). Vegetariana desde os 5 anos e protetora dos animais desde então, fundou a ONG Anjos, há 10 anos, com o objetivo de salvar vidas de animais em sofrimento.

Em 2016, quase sem recursos, foi eleita vereadora de Aracaju com 4925 votos. Em sua atuação, chamou atenção da sociedade sergipana ao levantar pela primeira vez na história o debate do direito animal em Sergipe. Este fato a levou a ser eleita deputada estadual, em 2018, mantendo sua atuação imperativa em defesa dos animais e dos direitos da mulher e das minorias. 

** O artigo foi traduzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.

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The Economist: Brasil pode ter submarino nuclear antes da Austrália

Submarinos nucleares chamaram a atenção do mundo após acordo entre EUA, Reino Unido e Austrália

The Economist, O Estado de S.Paulo

Submarinos nucleares chamaram a atenção do mundo nas semanas recentes. Em 15 de setembro, Estados UnidosAustrália e Reino Unido anunciaram o pacto Aukus, destinado a ajudar a Austrália a construir submarinos nucleares, uma tecnologia militar tão potente que os EUA nunca haviam compartilhado com nenhum aliado, exceto pelos britânicos. Ainda assim, do outro lado do mundo em relação a Perth, onde as embarcações australianas poderão um dia ser aportadas, outra potência média tem aprimorado furtivamente a mesma tecnologia - e há muito mais tempo.

No complexo naval de Itaguaí, próximo ao Rio de Janeiro, e em outras instalações espalhadas pelo Brasil, centenas de engenheiros estão cuidadosamente projetando e juntando os componentes do Álvaro Alberto, um submarino que receberá o nome do ex-vice-almirante pioneiro no programa nuclear do País. Se tudo correr conforme os planos, a embarcação poderá ser batizada na Ilha da Madeira, em Itaguaí, no início da década de 2030, antes de a Austrália sentir o cheiro de seus submarinos. Isso faria do Brasil o primeiro país que não possui armas atômicas a operar um submarino nuclear.

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As Forças Armadas Brasileiras começaram a trabalhar seriamente com energia atômica na década de 1970, com o objetivo de um dia conseguir produzir armas nucleares. A Marinha liderou esse esforço, empregando centenas de membros da força em um programa secreto para centrifugar urânio - um processo que enriquece o elemento para uso em reatores (ou bombas) - e construir minirreatores que caberiam nos apertados cascos dos submarinos. Esse trabalho sobreviveu ao fim do regime militar, em 1985. Posteriormente, o programa titubeou por algum tempo, mas recebeu apoio entusiástico de Luiz Inácio Lula da Silva, que governou o Brasil de 2003 a 2010.

Desde então, o progresso foi lento, apesar de Jair Bolsonaro, o atual presidente do Brasil, ter comparecido à cerimônia que marcou a montagem inicial de um protótipo de reator em Iperó, 120 quilômetros a noroeste de São Paulo, em outubro de 2020. Um mês depois, a Marinha finalizou o projeto básico da embarcação. Grande parte disso se deve ao Naval Group, a empresa de defesa cuja maioria do capital é detida pelo governo francês, rejeitada pela Austrália com o anúncio do Aukus, o que provocou um incidente diplomático. Segundo o acordo que fez com Lula em 2008, o Naval Group assinou um contrato com a Odebrecht, um conglomerado empresarial que passou a ser sinônimo de corrupção, para vender ao Brasil avançados submarinos movidos a diesel e eletricidade.

Muitos consideram a busca do Brasil por submarinos nucleares um capricho quixotesco. Um diplomata estrangeiro afirmou ser uma “condescendência amalucada” com a expansão da era Lula. Autoridades brasileiras justificam o programa citando a “Amazônia Azul”, uma expressão cunhada pela Marinha que se refere à costa marítima de 8 mil quilômetros do País, às riquezas econômicas que jazem nesse mar e à importância de defendê-las. O Brasil afirma que sua plataforma continental lhe dá direito a um território marítimo além da zona econômica exclusiva de 200 milhas náuticas (370 quilômetros) estabelecida pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.

Ainda assim, uma das máquinas de guerra mais furtivas do mundo pode ser considerada um excesso para proteger pesca, vigiar plataformas petrolíferas e manter afastadas embarcações da Marinha argentina, que deixou de ser hostil faz tempo. Submarinos movidos a diesel e eletricidade, mais silenciosos em águas rasas e muito mais baratos de construir, seriam mais adequados para a defesa costeira. Uma razão para a sobrevivência do programa pode ser que ele tenha amigos poderosos. O ministro de Minas e Energia, por exemplo, é um ex-almirante que comandou a força submarina brasileira e coordenou o trabalho nuclear da Marinha. Bolsonaro, ele mesmo um ex-oficial do Exército, entupiu seu governo de militares e aumentou o orçamento das Forças Armadas este ano (o montante destinado aos submarinos encolheu 31%, em meio à ampla crise fiscal).

Fatores geopolíticos também operam. Os submarinos justificam a necessidade de dominar o ciclo completo de seu combustível - o processo de mineração, fragmentação e enriquecimento do combustível nuclear - e assim colocaram o Brasil “no limite entre ser ou não ser um Estado nuclear”, afirma Carlo Patti, autor de Brazil in the Global Nuclear Order (O Brasil na ordem nuclear global). Isso significa que o País seria capaz de enriquecer urânio a níveis bélicos caso escolhesse fazê-lo. Ambas as capacidades são fontes de “prestígio político e tecnológico”, afirma Patti.

Em grande parte pela mesma razão, essas capacidades inquietam os defensores da não proliferação nuclear. O Brasil já teve um programa secreto de armamentos. Em 2019, um filho de Bolsonaro, que é deputado federal (Eduardo), afirmou que o Brasil seria “levado mais a sério” se tivesse bombas nucleares. Enquanto a maioria dos países assinou o chamado Protocolo Adicional com a Agência Internacional de Energia Atômica, uma organização autônoma de vigilância nuclear, que permite inspeções mais rígidas nos países signatários, o Brasil há muito se recusa a firmar o acordo, alegando que Estados com armas nucleares não fizeram o suficiente para se desarmar.

Na prática, os submarinos não são grande causa de preocupação. O material nuclear brasileiro é monitorado por um pacto bilateral específico com a Argentina, firmado em 1991. E, ao contrário dos submarinos americanos e britânicos, que usam urânio enriquecido a porcentagens altas, como as usadas em bombas, o reator projetado pelo Brasil usará material enriquecido a níveis baixos, que precisaria ser mais centrifugado para objetivos nefastos. Oficiais da Marinha Brasileira estão dispostos a mostrar que seu programa nuclear é feito às claras e não gostariam de ser colocados no grupo dos párias nucleares, como o Irã. “Não estou preocupado”, afirma Togzhan Kassenova, especialista em não proliferação nuclear da Universidade Estadual de Nova York, em Albany.

O submarino nuclear é uma das mais sofisticadas e complexas máquinas de guerra que um país pode construir. O programa brasileiro já sobreviveu a governos militares e civis e a presidentes de esquerda e de direita. Sua sobrevivência deve muito a Lula, que pretende disputar as eleições presidenciais do próximo ano e aparece em pesquisas de intenção de voto 18 pontos porcentuais à frente de Bolsonaro.

“Esse projeto parece irreversível”, notou Kassenova e dois outros especialistas que visitaram o estaleiro de Itaguaí em 2018. Nenhum país abaixo da linha do Equador jamais possuiu nem operou um submarino nuclear. Brasil e Austrália agora competem para ser o primeiro. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,the-economist-brasil-pode-ter-submarino-nuclear-antes-da-australia,70003866675


Nelson de Sá: Economist e NYT começam a dar as costas para Moro

Juiz não foi imparcial, diz revista; 'nas últimas semanas, o lado sombrio foi exposto', diz artigo no jornal

No New York Times, Gaspard Estrada, da Sciences Po, de Paris, escreveu há três semanas sobre aquela que "foi vendida como a maior operação anticorrupção do mundo, mas se tornou o maior escândalo judicial da história".

Neste final de semana, voltou à carga com uma nova versão, contra "a corrupção do sistema judicial" no Brasil, publicando que "Sergio Moro e procuradores perverteram" instituições para agir acima da lei. "Moro usou métodos em flagrante violação do estado de direito. Como recompensa, recebeu o cargo de ministro da Justiça."

Em suma, "nas últimas semanas, o lado sombrio da Lava Jato foi exposto, desnudado, e se espalhou um profundo desencanto com a chamada justiça de Curitiba".

Na Economist desta semana, "o impulso anticorrupção se desfez pela politização da Justiça, de duas maneiras".

Primeiro, "Moro acabou não sendo imparcial. Ele condenou Lula por receber um apartamento na praia. Só que Lula não era o dono nem o usava". Segundo, "com Lula fora da corrida presidencial em 2018, Moro se tornou ministro da Justiça no governo de Jair Bolsonaro, o vencedor de extrema direita".

Aí "vazaram mensagens mostrando que Moro treinou Deltan Dallagnol, o promotor principal em Curitiba".[ x ]

BOLSONARO SEM TRUMP

South China Morning Post publicou artigo de Karin Costa Vazquez, especialista em Brics das universidades de Jindal, na Índia, e Fudan, na China, destacando que "a derrota de Trump deixa Bolsonaro reequilibrando as relações com EUA e China".

Ele não deve "mudar substancialmente com Pequim enquanto negocia" com o novo governo em Washington, mas "a longo prazo pode adotar abordagem mais matizada" com a China.

TRUMP COM FOX NEWS

CNN e MSNBC não transmitiram o primeiro discurso de Donald Trump na oposição, mas a Fox News o fez (acima), assim como seus concorrentes na direita, Newsmax e OAN.

Por outro lado, a Fox News destacou que só 55% dos entrevistados na conferência conservadora disseram que Trump é seu preferido para 2024. "Ele está perdendo força", sublinhou Karl Rove, comentarista da emissora e estrategista da ala republicana contrária ao ex-presidente.Nelson de Sá

*Jornalista, publica a coluna Toda Mídia e cobre imprensa e tecnologia


The Economist: Invasão do Capitólio é retrato de como Trump mudou o Partido Republicano

As cenas dantescas revelam como os republicanos ficaram reféns do presidente, e como será difícil se livrar de sua influência e dos extremistas em um futuro próximo

The Economist / O Estado de S. Paulo

O livro mais importante da era Donald Trump não foi Medo, de Bob Woodward, nem Fogo e Fúria, de Michael Wolff, nem qualquer um dos outros best-sellers que expuseram o circo da Casa Branca. Indiscutivelmente, o livro mais importante da era Trump foi a obra instigante de dois cientistas políticos de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, publicada um ano após a ascensão de Trump à presidência e intitulada Como as democracias morrem.

Depois de muitos anos pesquisando derrapagens democráticas no Leste Europeu e na América Latina, a dupla admitiu ter ficado surpresa ao voltar os olhos para seu próprio país: “Sentimos pavor (...) bem agora que estamos tentando nos tranquilizar, dizendo que as coisas não podem ser tão ruins assim por aqui”. A invasão do edifício do Capitólio em 6 de janeiro por milhares de seguidores de Trump brandindo tacos de beisebol e a bandeira dos confederadas mostrou que as coisas estão bem ruins, sim.

Convocados a Washington pelo presidente derrotado para protestar contra a sessão parlamentar que iria confirmar os resultados do colégio eleitoral, eles ocuparam o prédio por mais de quatro horas, obrigaram o vice-presidente Mike Pence e outros congressistas a fugir em busca de segurança e vandalizaram o escritório da presidente da Câmara dos Representantes.

Quatro pessoas morreram durante a violência, entre elas uma mulher baleada pela polícia. Jornalistas foram acossados e suas câmeras foram destruídas por delinquentes adeptos do Make America Great Again (MAGA) vestidos em trajes de camuflagem. Enquanto isso, Trump tuitava seu “amor” pelos insurgentes. “Pessoas muito especiais”, ele os chamou em um vídeo gravado na Casa Branca. Suas contas no Twitter e no Facebook foram suspensas pouco depois. Bombas caseiras foram encontradas perto das sedes dos partidos Republicano e Democrata.

Pode-se argumentar que a sessão do Senado interrompida pelos insurgentes seria ainda mais preocupante. Mais de dois terços dos membros republicanos da Câmara dos Representantes e mais de um quarto dos senadores republicanos estavam prestes a votar para magicamente reverter a derrota de Trump em vitória, rejeitando os votos do colégio eleitoral de um punhado de estados nos quais ele perdera.Naturalmente, com uma ladainha bem familiar aos golpistas, os parlamentares em questão alegavam que estavam tentando proteger a democracia, não a derrubar. Josh Hawley, do Missouri, que liderou a iniciativa no Senado, declarou que “as preocupações de milhões de eleitores quanto à integridade eleitoral merecem ser ouvidas”.

Aos 41 anos de idade, formado pela Universidade de Stanford e pela Escola de Direito de Yale, Hawley retocou sua própria imagem para se tornar um flagelo das elites sob o comando de Trump e, na quarta-feira, foi fotografado com o punho em riste diante da multidão MAGA pouco antes de os insurgentes romperem as barricadas.

A grande maioria dos eleitores republicanos que afirmam acreditar que Trump ganhou a reeleição em novembro não está respondendo a preocupações racionais. Se estivessem, deveriam ter se tranquilizado diante do número recorde de decisões judiciais, verificações de segurança e recontagens gerado pelos dois meses de esforços de Trump para reverter os resultados.

As sessenta e tantas contestações de sua equipe jurídica foram objeto de escárnio geral, até mesmo na Suprema Corte dos Estados Unidos. A equipe de segurança eleitoral de seu governo julgou que a votação foi “a mais segura da história americana”.

O Departamento de Justiça e seu ex-diretor, Bill Barr, até pouco tempo atrás leal a Trump, concluíram que não houve fraude significativa. Ainda assim, a crença de que Trump foi roubado se recrudesceu entre o eleitorado republicano. Uma pesquisa do YouGov encomendada pela Economist nesta semana apontou que 64% queriam que o Congresso revogasse o resultado da eleição em favor de Trump.

Para ilustrar a profundidade dessa ilusão, veja o sentimento entre os republicanos do Wisconsin, estado em que Biden venceu por 20.608 votos. Os advogados do presidente entraram com seis contestações judiciais ao resultado, até mesmo junto à Suprema Corte dos Estados Unidos. Eles também instigaram uma recontagem nos condados mais populosos do estado, Milwaukee e Dane, o que adicionou 87 votos à soma de Biden.

O senador republicano do Wisconsin, Ron Johnson, realizou uma investigação no comitê do Senado sobre as alegações de Trump; e posteriormente disse à Economist que não via razão para questionar os resultados em seu estado natal. No entanto, Terry Dittrich, presidente do Partido Republicano do Condado de Waukesha, o maior de Wisconsin, afirma que Trump venceu, que a eleição foi repleta de fraudes e que não conhece nenhum republicano que pense o contrário.Como evidência, o senador, profissional do setor imobiliário de 59 anos de idade, apresentou uma lista de preocupações quanto à votação, todas rejeitadas pelo procurador-geral do estado, entre elas o grande aumento na votação por correspondência, a qual Dittrich taxou de “absolutamente fraudulenta”.

Ele também mencionou o simples fato de Biden ter apresentado um desempenho digno de nota no frondoso condado de Waukesha, nos arredores de Milwaukee, exatamente como o democrata de fato teve nos ricos subúrbios brancos de todo o país. “Não tem absolutamente nenhuma possibilidade de Biden ter superado Barack Obama no condado de Waukesha pelos números que eles estão divulgando”, disse Dittrich. “Não vamos desistir disso. Não somos um bando de bebês chorões, nem de perdedores ressentidos. Somos cidadãos cumpridores da lei que só querem uma eleição limpa”.

William F. Buckley Junior, um dos arquitetos do movimento conservador moderno, chamou o conservadorismo de “política da realidade”. Agora parece justamente o contrário. A maioria dos eleitores republicanos aceitou a afirmação de Trump de que os democratas não podem ganhar legitimamente e de que a falta de provas de suas tramoias é prova de que houve alguma ocultação.

“É difícil imaginar um ato mais antidemocrático e anticonservador”, foi o veredito do sempre reticente Paul Ryan, ex-líder republicano na Câmara, sobre a decisão de tantos congressistas republicanos de apoiar essa ficção.

A votação final do Congresso, realizada depois que os insurgentes foram expulsos do Capitólio e que seus corredores foram vasculhados em busca de explosivos, certificou os resultados do colégio eleitoral, com objeções de 130 deputados republicanos e meia dúzia de senadores.

De sua parte, Ziblatt disse que vê essa manobra como um “ensaio geral” para um esforço republicano mais sério de derrubar alguma eleição, possibilidade que ele agora considera provável.

Há razões para esperar que essa previsão acabe se provando pessimista demais. Os republicanos que votaram para anular os resultados o fizeram de maneira imprudente e cínica, mas sabendo que não teriam sucesso. As autoridades republicanas que realmente poderiam ter mudado o resultado da eleição seguiram a Constituição.

Entre elas se encontra o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, objeto de uma campanha de intimidação e abuso por parte do presidente e seus comparsas. Esta semana, Raffensperger divulgou uma gravação na qual o presidente tentava convencê-lo a “encontrar 11.780 votos”, pouco antes do segundo turno das eleições para o Senado da Geórgia, em 5 de janeiro.

Os ataques de Trump contra Raffensperger e outras autoridades georgianas parecem não ter surtido nenhum efeito positivo para seu partido. Os candidatos democratas, Raphael Warnock e Jon Ossoff, venceram as duas disputas, dando a seu partido as primeiras cadeiras do estado no Senado em 20 anos, o controle do Senado e um governo unificado.No dia seguinte, Mitch McConnell, assim despojado de sua maioria no Senado, emitiu uma repreensão contundente contra Hawley e os demais. Derrubar os votos do colégio eleitoral “causaria danos à nossa república para sempre”, disse McConnell, que raras vezes é acusado de agir com base em princípios. Minutos depois, as “pessoas especiais” de Trump se lançaram à invasão do Capitólio - o que, por sua vez, encorajou os republicanos mais experientes a criticar o presidente de maneira mais direta do que jamais haviam ousado.

O senador Tom Cotton, do Arkansas, antigo defensor de Trump, disse que “já era hora” de ele “parar de enganar o povo americano”. Liz Cheney, a terceira na hierarquia republicana da Câmara, disse que “não há dúvidas” de que Trump “incitou a multidão”. Até mesmo alguns trumpistas mais ferrenhos se juntaram ao coro. Uma declaração notável feita pela Associação Nacional de Fabricantes, até então pró-Trump, pediu a Pence que considerasse invocar a 25ª Emenda para remover o presidente do cargo.

Ainda está longe de ser um repúdio generalizado a Trump por parte do establishment republicano. E, sem esse repúdio, é difícil imaginar que o presidente abrirá mão de sua força dentro do partido, o que daria a este a oportunidade de voltar a se comprometer com as normas democráticas.

No entanto, esse repúdio agora parece mais imaginável. As líderes de torcida do presidente na mídia conservadora, todas obcecadas por lei e ordem, talvez achem difícil ignorar as imagens do Capitólio invadido por delinquentes MAGA. Talvez tenham dificuldade até de atribuir a culpa à esquerda democrática (embora algumas já tenham tentado).

O americano médio, ainda que sob intensa polarização, não gosta de violência de turbas e preza pelos símbolos de sua democracia. Um comentarista lembrou a mudança no apoio da população aos republicanos em 1995, depois que Timothy McVeigh, integrante do tipo de milícia que diz amar a liberdade até então defendida pela direita, explodiu um prédio federal em Oklahoma, matando 168 pessoas. O paralelo é inexato, mas indica até que ponto Trump e suas tropas de choque parecem ter ultrapassado os limites.

Antes mesmo dos eventos desta semana, entre a maioria dos republicanos mais experientes parecia muito forte a convicção de que Trump manteria sua preeminência sobre o partido - um caso de síndrome de Estocolmo, talvez. “A base acha que Trump é um mártir”, disse um senador republicano. “Pelos próximos dois anos, talvez quatro, ele vai conseguir ferrar todo mundo nas primárias, sem levantar um dedo”. Isto pode se revelar correto.

Ainda assim, os eleitores querem um vencedor, e é por isso que Grover Cleveland foi o único presidente com mandato único a ter sido reeleito para o cargo, em 1892. E, depois que Trump deixar a Casa Branca e desaparecer da vista diária, mais e mais republicanos talvez comecem a enxergar aquilo que o mito da eleição roubada pretende ocultar: sua fraqueza eleitoral.

Os proponentes do mito citam os muitos novos eleitores que ele atraiu em novembro para explicar por que Trump não poderia ter perdido. Mas para tanto seria necessário fechar os olhos (como faz Dittrich) para o fato de que Biden atraiu muito mais gente. Em uma eleição que teve comparecimento recorde para ambos os partidos, o democrata ganhou os 6 milhões de eleitores que já haviam votado em algum candidato de outro partido por uma proporção de 2 para 1. E conquistou eleitores de primeira viagem pela mesma proporção.

Trump também impulsionou a maioria dos candidatos republicanos ao Congresso. Seu partido teve um ganho líquido de dez cadeiras na Câmara e quase manteve a maioria no Senado, mesmo que ele tenha perdido a disputa presidencial por uma margem considerável. Isto sugere que os republicanos podem ter um belo futuro pós-Trump.

Apesar de suas derrotas esta semana na Geórgia - estado cujo eleitorado jovem e plural há muito tem apresentado tendências democratas - a marca republicana não foi muito prejudicada pelos anos Trump. O partido também tem uma grande vantagem na toxicidade contra a esquerda democrática, sobre a qual seus candidatos falaram incessantemente durante a campanha, o que parece ter sido especialmente eficaz na conquista dos latinos.

Carlos Curbelo, ex-congressista do sul da Flórida, onde novos apoiadores latinos ajudaram o partido a ganhar duas cadeiras na Câmara, descreve esse avanço como “um grande processo, a coisa pela qual os republicanos estão mais animados”. Ele o considera um indicador do futuro ideal para o partido: uma coalizão multiétnica dedicada a fornecer soluções de mercado para os grandes problemas - como, por exemplo, a mudança climática - que a esquerda tende a lançar sobre os ombros do governo.

Estas são conjecturas razoáveis. Sublinham o fato de que a trajetória futura do partido ainda não está definida. Ninguém previu Trump em 2012. E o efeito perturbador de seu desprezo pelas verdades conservadoras provavelmente aumentou as possibilidades ideológicas da direita. A maioria de seus 16 oponentes nas primárias de 2016 repetia os mesmos slogans do reaganismo.

Uma disputa equivalente hoje poderia apresentar o conservadorismo pragmático do governador de Maryland, Larry Hogan, a sinofobia febril de Cotton e o populismo governamental do senador Marco Rubio, todos os quais, até certo ponto, foram moldados ou promovidos em resposta a Trump. Mas esse futuro pós-Trump mais feliz para o partido do presidente até agora é só uma possibilidade teórica.

A realidade do populismo de Trump não é o pensamento conservador heterodoxo - que produziu poucas políticas dignas de menção nos últimos quatro anos -, mas as fúrias dos populares que irromperam no Capitólio esta semana. E reprimi-los não será fácil, mesmo se Trump for embora. Na verdade, eles são anteriores ao presidente.

Movimentos populistas de base vêm emergindo na direita ao longo das décadas, por razões diferentes, mas com o compromisso característico de purgar o establishment conservador e a tendência de cair na paranoia e nas teorias da conspiração. A Ameaça Vermelha de Joseph McCarthy na década de 1950 deu lugar ao movimento de Barry Goldwater na década de 1960, ao reaganismo mais apresentável na década de 1970 e aos seguidores de Gingrich na década de 1990.

O padrão normal, observa o historiador da política Geoffrey Kabaservice, era que os insurgentes se levantavam, conquistavam o poder e então se acomodavam ao governo. Com isso, eles se tornavam o novo establishment e, por sua vez, eram também desafiados e derrotados. Mas, na última década, à medida que a insegurança econômica se cruzou com a polarização política e a aceleração da mudança cultural e demográfica, as ondas insurgentes de direita ficaram mais frequentes e mais radicais.

O Tea Party, que estourou no ano de 2010 em resposta a uma economia difícil e a Barack Obama, levou 87 conservadores radicais ao Congresso. Mas, uma vez ali dentro, eles não demonstraram nenhum interesse em se acomodar. Ao contrário, propagaram a conspiração racista quanto ao local de nascimento de Obama.

Atacaram o bipartidarismo, o governo em geral e até mesmo seus líderes partidários (expulsando o ex-presidente da Câmara, John Boehner, antigo seguidor de Gingrich). A paralisação do governo em 2013 e a campanha para “revogar e substituir” o Obamacare por absolutamente nada tiveram suas assinaturas.

Em vez de serem derrotados, eles se transformaram na multidão MAGA que desde então disseminou versões mais radicais de si mesma, como os ultra-trumpistas do QAnon, movimento comprometido com a missão de farejar círculos de pedófilos socialistas em Washington. “Desapareceu aquele velho padrão de avanço, consolidação, acomodação e renovação do conservadorismo”, escreve Kabaservice. “Em seu lugar se colocou uma coisa que parece #MAGAparaSempre”.

Esse processo também pode ser visto de perto em Wisconsin, onde a onda do Tea Party ajudou a levar ao poder, pelas mãos de Scott Walker, aquilo que a princípio parecia um novo e ousado experimento de governo conservador. No entanto, a base republicana do estado, incitada pela mídia conservadora, acabou se mostrando menos movida pelo sistema de vouchers escolares de Walker do que por uma hostilidade racial contra o outro lado.

Em um estado-pêndulo, até então conhecido por uma espécie de cortesia bipartidária, uma extrema manipulação dos distritos eleitorais perpetrada pelos republicanos em 2011 deu ao partido uma supermaioria na legislatura estadual. Isto desobrigou os republicanos do Wisconsin de falar aos eleitores indecisos, a tradicional força de moderação.

Eles aprovaram medidas de identificação de eleitores que diminuíram a participação de não brancos na diversa Milwaukee, ajudando Trump a ganhar o estado em 2016. Quando Walker e o procurador-geral do estado perderam as eleições em 2018, a legislatura aprovou leis para retirar os poderes de seus cargos antes que seus substitutos democratas pudessem assumir. Este foi um estudo de caso sobre o abandono dos republicanos de duas normas que Levitsky e Ziblatt consideram essenciais para uma democracia segura: tolerância e respeito mútuo.

Enquanto isso, a base republicana estava ficando mais radical. Os republicanos de Waukesha, até então um baluarte do reaganismo rico, foram transformados por um influxo de superfãs de Trump. Muitos são brancos da classe trabalhadora, sem nenhum vínculo anterior com o partido, que acham que Trump está em guerra contra o establishment corrupto de Washington.

Dittrich diz que esses eleitores agora respondem por 70% de seus membros. “Eles não reclamam de serem chamados de republicanos porque apoiam o presidente Trump”, diz ele. “Mas, se sentirem que o partido não está apoiando o presidente Trump, eles provavelmente não serão tão leais quanto os republicanos foram no passado”. Em setembro, a mãe de Kyle Rittenhouse - miliciano de 17 anos acusado de matar duas pessoas durante um protesto Black Lives Matter em Kenosha, Wisconsin, no mês anterior - participou de um jantar da organização Mulheres Republicanas do Condado de Waukesha. Ela foi ovacionada de pé.

Isto ilustra por que os eleitores republicanos podem, de fato, continuar excepcionalmente fiéis ao seu líder derrotado - e como será difícil trazê-los de volta à moderação, mesmo que não o façam.

Eles são uma nova base, dominada por homens brancos da classe trabalhadora que ouvem a raiva do presidente contra os establishments liberal e conservador como uma expressão de suas próprias frustrações em um país sob rápida mudança. Eles fazem o Tea Party parecer construtivo.

Trump introduziu na corrente conservadora dominante uma política de emoção e oposição estúpida, tão distante do comunismo quanto da filosofia de governo do reaganismo. “Se Reagan estivesse por aqui hoje, seria muito difícil convencer o Partido Republicano de que ele era um conservador ferrenho”, admite Dittrich sobre seu antigo herói. Por sua vez, o simpático presidente do partido afirma ter “ficado um pouco mais conservador”, uma evolução que ele acha difícil de explicar, embora a contraste com seu antigo entusiasmo pelo bipartidarismo.

É bem difícil imaginar a direita voltando deste estado fanático para o reaganismo moderado de Hogan, governador de Maryland. A ideia de Rubio - que é essencialmente manter os eleitores da classe trabalhadora a bordo de políticas econômicas populistas e, ao mesmo tempo, baixar o volume da mensagem cultural o suficiente para atrair de volta alguns suburbanos - pode ser mais promissora.

Ainda não se sabe se as políticas mais sérias desse populismo industrial diferem muito das da centro-esquerda, só despojadas de suas preocupações ambientais. Elas também não geraram quase nenhum entusiasmo entre o establishment pró-negócios do partido. Mas existe aí uma lógica política convincente. E está claro que quase qualquer trajetória que possa levar o Partido Republicano de volta ao governo, até mesmo o ressentimento cultural, deve ser bem-vinda.

McConnell e sua facção republicana deveriam ver a iminente possibilidade de cooperação com o governo Biden como uma oportunidade para este fim.

O presidente eleito é um veterano negociador do Senado, disposto a governar a partir do centro. E a estreita maioria democrata no Senado não dará ao seu partido outra opção a não ser tentar fazer exatamente isto.

O senso comum diz que McConnell, veterano da oposição desleal, não vai querer participar desse processo - assim como ele obstruiu o governo Obama. Mas, em retrospecto, talvez ele calcule que essa estratégia não funcionou muito bem para seu partido.

Essa dinâmica empurrou Obama para a esquerda e ajudou a alimentar a crescente fúria partidária da direita. O que, por sua vez, acabou gerando o Tea Party, Trump e a vergonhosa guinada antidemocrática entre os republicanos do Senado - à qual, é preciso reconhecer, McConnell se opôs firmemente.

É de se imaginar que ele e seus colegas republicanos machucados por Trump não queiram passar por tudo isso mais uma vez. Trabalhar com Biden para consertar alguns dos problemas mais graves do país seria um sinal de que eles de fato não querem. Tradução de Renato Prelorenzto


The Economist: A covid-19 veio para ficar e temos de nos adaptar

Não é que o mundo esteja enfrentando a segunda onda de contágios: ele nunca chegou a superar a primeira

É surpreendente a rapidez com que a pandemia se espalhou, apesar de todos os esforços para detê-la. Em 1.º de fevereiro, dia em que a covid-19 apareceu pela primeira vez na nossa capa, a Organização Mundial da Saúde contabilizou 2.115 novos casos. Em 28 de junho, a contagem diária alcançou 190 mil. Nesse dia, registrou-se a cada 90 minutos o mesmo número total de casos registrados até 1.º de fevereiro.

Não é que o mundo esteja enfrentando uma segunda onda: nunca chegou a superar a primeira. Sabe-se que cerca de 10 milhões de pessoas foram infectadas. Há casos registrados em praticamente todos os lugares (menos no Turcomenistão e na Coreia do Norte, além da Antártida). Para cada país onde o vírus parece controlado, como China, Taiwan e Vietnã, há muitos outros onde a doença avança com fúria, como na América Latina e no sul da Ásia. Outros países, entre eles os Estados Unidos, correm o risco de perder o controle. Outros ainda, sobretudo na África, estão na fase inicial da epidemia. A Europa se encontra em algum lugar nesse meio.

O pior ainda está por vir. Com base em pesquisas em 84 países, uma equipe do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) calcula que, para cada caso registrado, 12 não são notificados e, para cada duas mortes por covid-19 contabilizadas, 1/3 é atribuído a outras causas. Sem uma grande descoberta da medicina, o número total de casos chegará a algo entre 200 milhões e 600 milhões no segundo trimestre de 2021. Nesse ponto, entre 1,4 e 3,7 milhões de pessoas terão morrido. Mesmo assim, mais de 90% da população do mundo ainda estará vulnerável à infecção - e muito mais se a imunidade for apenas transitória.

O resultado de fato depende de como as sociedades gerenciam a doença. Você pode conter o vírus com três táticas: mudanças no comportamento; testagem, rastreamento e isolamento. E, se tudo isso falhar, lockdowns. Quanto menos um país testa - e muitos governos não conseguiram desenvolver capacidade de testagem suficiente -, mais tem de recorrer às outras duas táticas. A boa saúde pública não precisa ser cara. Dharavi, uma favela de 850 mil pessoas em Mumbai, reprimiu um surto.

Os tratamentos melhoraram, graças à pesquisa e à experiência com os cuidados dos pacientes. Embora ainda faltem meses para a vacinação em massa, na melhor das hipóteses, já estão disponíveis boas terapias. Sabe-se mais sobre como gerenciar a doença - não colocar as pessoas nos respiradores logo de cara, fornecer oxigênio mais cedo. A melhoria no tratamento ajuda a explicar por que a parcela de pacientes hospitalizados que precisaram de terapia intensiva no Reino Unido caiu de 12% no final de março para 4% no final de maio.

E as economias se adaptaram. Ainda estão sofrendo, é claro. O J.P. Morgan prevê que, nas 39 economias que o banco monitora, o declínio na primeira metade do ano será de cerca de 10% do PIB. Mas os trabalhadores presos no inferno do Zoom descobriram que podem fazer uma quantidade surpreendente do trabalho em casa. 

Agora que os lockdowns nacionais terminaram, os governos podem fazer arranjos mais razoáveis - proibindo, digamos, grandes reuniões em locais fechados e permitindo a reabertura de escolas e lojas. Às vezes, como aconteceu em alguns Estados americanos, as autoridades flexibilizam demais e precisam voltar atrás. 

O problema é que, sem cura ou vacina, a contenção depende de as pessoas aprenderem a mudar de comportamento. Depois do pânico inicial da covid-19, muitos estão ficando cansados e resistentes. As máscaras ajudam a evitar a doença, mas, na Europa e nos EUA, algumas pessoas se recusam a usá-las. A lavagem cuidadosa das mãos mata o vírus, mas quem ainda não recaiu nos velhos e maus hábitos? As festas são perigosas, mas os jovens confinados por meses já não estão nem aí. E mais importante: à medida que os meses se arrastam, as pessoas precisam ganhar algum dinheiro.

É difícil mudar as normas sociais. Basta olhar para a aids. Há décadas sabemos que podemos evitá-la com sexo seguro e agulhas limpas. Mesmo assim, em 2018, 1,7 milhão de pessoas se infectaram com o HIV. 

Mudanças de comportamento requerem que figuras confiáveis, nacionais e locais, tenham uma comunicação clara. Mas muitas pessoas não acreditam em seus políticos. Em países como EUA, Irã, Reino Unido, Rússia e Brasil, que têm os números de casos mais altos, presidentes e primeiros-ministros minimizaram a ameaça, acovardaram-se, deram maus conselhos ou ficaram mais preocupados com seu destino político do que com o país. Às vezes, fizeram tudo isso ao mesmo tempo.

A covid-19 veio para ficar, pelo menos por um tempo. Os vulneráveis terão medo de sair e a inovação desacelerará, criando uma economia que nunca chegará a atingir 100% de seu potencial. Muitas pessoas vão adoecer, algumas vão morrer. Talvez você tenha se cansado da pandemia. Mas ela não se cansou de você. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU 

© 2020 THE ECONOMIST NEWSPAPER 

LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. 

TRADUZIDO POR CLAUDIA BOZZO, 

PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO 

ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM 


The Economist: Jair Bolsonaro ameaça a democracia?

Desde que assumiu o governo, em janeiro do ano passado, muitos brasileiros temem o risco que ele representa

Em muitos fins de semana desde que a covid-19 chegou ao Brasil, os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro realizam manifestações em Brasília e São Paulo, para demandar a reabertura da economia, parcialmente submetida a um lockdown, o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso e o retorno do regime militar dos anos 1964/1985. Alguns estão armados. Em Brasília, Bolsonaro com frequência se junta a eles, distribuindo abraços e apertos de mão e desafiando as regras de saúde estabelecidas. Nem ele e nem as pessoas usam máscaras no rosto.

Desde que Bolsonaro, antigo capitão do Exército com ideias de direita, assumiu o governo, em janeiro de 2019, muitos brasileiros temem a ameaça que ele representa para a democracia. Alguns argumentam que as instituições do País são fortes o bastante para freá-lo. Na verdade, o presidente lotou o seu governo com oficiais militares. Mas eles são vistos como tendo uma influência moderadora e as manifestações são pequenas.

As tensões aumentaram nas últimas semanas. Bolsonaro se tornou mais ameaçador, ao se dirigir ao Congresso afirmando que “o tempo da vilania acabou, agora é o povo no poder”, e ao Poder Judiciário dizendo “acabou, porra!”. Alguns ministros militares, a começar pelo vice-presidente Hamilton Mourão, general aposentado, também fizeram ameaças veladas contra o STF, o Congresso e a mídia.

Em uma mensagem pelo WhatsApp vazada no mês passado, o ministro do STF Celso de Mello escreveu: “temos de resistir contra a destruição da ordem democrática para evitar o que ocorreu na República de Weimar “que foi derrubada por Hitler”. “A democracia brasileira está sob uma grave ameaça”, diz Oscar Vilhena Vieira, diretor da faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “O presidente não vem tentando apenas criar um conflito institucional, mas também estimulando grupos violentos”.

Deputado durante 28 anos, Bolsonaro nunca mostrou muito respeito pela democracia. E se tornou mais controvertido por duas razões. Em primeiro lugar, o STF iniciou investigações que o envolvem. Uma delas tem a ver com a destituição do diretor da Polícia Federal para proteger um dos seus filhos contra um processo, afirmam seus críticos.

E a outra se refere a apoiadores (incluindo dois filhos dele) suspeitos de orquestrarem acusações falsas e ameaças contra ministros do STF. A segunda razão é que Bolsonaro mostra pouca capacidade para governar. A pandemia amplificou isto. Sua recusa em apoiar os lockdowns e o distanciamento social contribuíram para agravar a propagação da covid-19, com o País registrando hoje quase 40 mil mortes, o terceiro número mais alto do mundo.

Ele vem perdendo apoio popular embora mantenha uma base de 30% de eleitores. Um sinal da sua fragilidade é que ele cada vez mais depende do Exército. Dez dos seus 22 ministros são militares e outros três mil ocupam cargos no governo. “Na verdade, temos um regime miliar”, disse um oficial aposentado. E isto representa um risco para as forças armadas e para a democracia. Bolsonaro tem exacerbado a divisão interna e a politização do Exército, cuja disciplina e hierarquia vêm se desgastando. Muitos oficiais de escalão inferior apoiam Bolsonaro nas redes sociais. Quatro generais com cargos no governo, dois no serviço ativo, têm mais poder do que o comandante das forças armadas, seu superior.

O Exército também coloca em sério risco a sua reputação. Está hoje à frente do ministério da Saúde (onde por um breve período tentou suspender as publicações de dados completos sobre a covid-19), da coordenação política e proteção do Amazonas. “Eles realmente acreditam que sabem como fazer as coisas”, diz um ex-oficial. Eles poderão aprender da maneira difícil, como durante a ditadura, que não sabem. Bolsonaro não parece forte o bastante para desencadear um golpe. Ele enfrenta oposição de muitos governadores.

Embora o vírus tenha temporariamente incapacitado o Congresso, Oscar Vilhena Vieira observa que o STF tem atuado de uma maneira inusitadamente unida. Entretanto, “a democracia pode desaparecer se você não tiver um homem forte”, alerta Matias Spektor, do Centro de Relações Internacionais da FGV. Se Bolsonaro acabar sofrendo um impeachment, Mourão o sucederá, trazendo o Exército para ainda mais perto do poder.

Uma outra ameaça, observa Spektor, é o esvaziamento das instituições democráticas por Bolsonaro, como também a instigação do conflito. Nomeou um procurador geral mais simpático a ele e tem influência sobre as forças de polícia estaduais, como também sobre a Polícia Federal. Uma batida policial silenciou o governador do Rio de Janeiro, que recentemente começou a criticá-lo. Os democratas brasileiros, seus adversários, começam a reunir uma oposição ao presidente. E estão certos em ficar alarmados. / Tradução de Terezinha Martino


Revista Veja: O Estado inteligente, entrevista com Adrian Wooldridge

Jornalista Adrian Wooldridge afirma que modelo de governo burocrático e inchado precisa ser repensado. A saída, diz ele, virá do uso intenso da tecnologia. Wooldridge foi um dos palestrantes do seminário internacional Desafios Políticos de um Mundo em Intensa Transformação, realizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) em parceira com o Instituto Teotônio Vilela nos dias 14 e 15 de setembro, em São Paulo.

Por Marcelo Sakate

A crise de credibilidade enfrentada por diferentes governos pelo mundo afora é resultado do esgotamento do modelo de Estado consolidado nas últimas décadas. O setor público não consegue corresponder plenamente a todas as suas atribuições, premido pelo excesso de gastos e pela necessidade de sustentar o bem-estar de uma população cada vez mais velha. A sobrevivência das democracias requer uma reformulação dos governos, levando em conta as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias — entre elas, a inteligência artificial. É disso que trata A Quarta Revolução — A Corrida Global para Reinventar o Estado, escrito pelo jornalista e historiador inglês Adrian Wooldridge, em parceria com o jornalista John Micklethwait. Wooldridge foi um dos palestrantes do seminário internacional Desafios Políticos de um Mundo em Intensa Transformação, realizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) em parceira com o Instituto Teotônio Vilela (ITV) nos dias 14 e 15 de setembro, em São Paulo. O livro foi publicado originalmente em 2014, antes, portanto, da vitória de Donald Trump e da decisão britânica de sair da União Europeia. Wooldridge, que é editor da revista The Economist e doutor em filosofia por Oxford, disse que está mais pessimista e que os acontecimentos recentes mostram que a quarta revolução do Estado é necessária para revigorar o apelo e a força da democracia. Ele falou a VEJA por telefone, de Londres.

O que é a quarta revolução?
É uma forma de usar o poder da tecnologia e do pensamento político moderno para disciplinar o Estado. Houve anteriormente três revoluções. Thomas Hobbes argumentou que o papel do Estado era proteger as pessoas da morte, da destruição ou da violência. Em meados do século XIX, os liberais diziam que o Estado tinha de garantir a liberdade das pessoas. Beatrice e Sidney Webb, no fim do século XIX, afirmaram que o Estado deveria providenciar o bem-estar das pessoas. Era uma resposta socialista. Houve mais tarde uma reação parcial com Margaret That­cher e Ronald Reagan, para os quais o Estado havia ficado grande demais, mas não foi propriamente uma revolução. Chegou a hora de uma quarta revolução. As atribuições do Estado precisam ser avaliadas. Parte da transformação reside no uso da tecnologia para aprimorar a qualidade da prestação de serviços de saúde e educação.

Qual deve ser o papel do Estado no mundo de hoje?
Precisamos de um Estado poderoso para fornecer serviços públicos, para evitar que as pessoas matem as outras, para preservar a ordem pública. O problema é que o Estado tende a se autoalimentar. Quanto maior o seu tamanho, mais indisciplinado ele fica. Presta serviços cada vez piores à população, até colapsar sob o próprio peso. É preciso usar a tecnologia moderna para aperfeiçoá-lo. Pode parecer banal dizer isso, mas, se voltarmos ao século XIX, houve um salto de produtividade graças ao uso de máquinas que substituíram trabalhos feitos a mão, com a Revolução Industrial e a Revolução Agrícola. Agora temos as bases de uma nova revolução com as máquinas inteligentes. Os computadores tendem a ser intensivos no uso de informações e de mão de obra. A produtividade na prestação de serviços pode crescer muito.

É possível dar exemplos do impacto da tecnologia nos serviços?
A saúde é um serviço muito caro. Mas máquinas, com sua inteligência artificial, poderão fazer esse serviço a distância, com o monitoramento de idosos em casa por meio de câmeras e do controle remoto de procedimentos. Será possível assistir a representações em 3D de palestras em universidades. Professores serão capazes de ensinar através de hologramas. Alunos de medicina começam a usar hologramas e outras tecnologias para aprender técnicas cirúrgicas. É apenas o começo. Em cinco anos, dado o ritmo de avanço de inteligência artificial, todas as áreas vão mudar radicalmente.

Em que países a quarta revolução já se tornou realidade?
Singapura é um exemplo poderoso. Era um país que veio do nada nos anos 1950. Um pântano, pobre, parte do império britânico. Tornou-se um dos Estados mais ricos do mundo. Isso por ser aberto para o comércio global, mas também por ter um governo extremamente eficiente. É um governo que vem sendo muito bom em atrair negócios, prover serviços e educar a população. O segundo exemplo são os países da Escandinávia, em particular a Suécia. Por um momento, pareceu que o Estado estava se tornando grande demais e muito ineficiente. Mas, a partir de meados da década de 90, os suecos souberam fazer reformas sérias que cortaram o tamanho do governo e injetaram princípios de mercado, de competição e autonomia. A China é outro exemplo. Era um país muito malgovernado, mas agora tem avançado. Vem fazendo reformas interessantes. O país está preparando as bases de um Estado poderoso. Há um núcleo do Partido Comunista cujas habilidades de gestão são impressionantes.

O seu livro foi lançado originalmente em 2014, mas já antecipava algumas questões que depois ficaram evidentes. O que mudou desde então?
O livro foi escrito em um momento de otimismo razoável. Um exemplo de país que ia muito bem em termos de governo e de reformas era o Reino Unido. Mas o Brexit, a saída britânica da União Europeia, tirou o apetite do governo por reformas. No livro, nós falamos que uma de nossas preocupações era que houvesse uma crise da democracia. Era uma referência a uma crise derivada de promessas exageradas, que criam na população expectativas que não podem ser atendidas. Nos anos 2000, a democracia parecia ser a onda do futuro. Todo mundo falava disso. Mas agora vemos que a democracia não está avançando como se esperava. A democracia está paralisada no Oriente Médio e enfrenta grandes desafios na Europa e nos Estados Unidos. A quarta revolução deveria consolidar o apelo e a força da democracia mundialmente, mas estou mais pessimista atualmente.

Por que países que historicamente lideraram o avanço do Estado agora estão enfrentando mais dificuldades?
Uma das coisas que chamam atenção nas democracias avançadas é a atuação dos grupos de interesse. Eles estão se tornando muito poderosos. Quanto mais avançado o país, mais poderosos são os grupos, porque são ainda mais profissionais. Veja o caso de Washington. Donald Trump é um presidente terrível. A Inglaterra também está assim. Foi um país pioneiro em reformas, mas está retrocedendo. Os britânicos testemunharam uma melhora dramática no desempenho dos alunos de Londres, que são em boa parte representantes de minorias. Isso tornou a sociedade menos desigual. Mas, infelizmente, por causa do Brexit, muita energia direcionada para reformas desapareceu. Trump e o Brexit estão fazendo muito estrago à ideia da nova revolução do Estado.

As pessoas pedem menos impostos e cobram mais serviços do Estado. Não são reivindicações incompatíveis?
O ex-presidente americano John Adams disse que todas as democracias acabam por cometer suicídio, porque as expectativas da população são muitas vezes incompatíveis com o que o Estado pode oferecer. Temos visto que governos estão ficando cada vez maiores e que os déficits fiscais também estão crescendo. Alguns Estados estão gastando recursos de que não dispõem. Outros estão com déficits estruturais. Uma das razões por trás da crise financeira de 2008 foram os gastos públicos desenfreados. Há duas coisas que precisam ser feitas. Uma delas é dispor de organizações tecnocratas que determinem regras em assuntos como as aposentadorias: o valor dos benefícios, a idade mínima, quem tem direito, quase tudo relacionado a esse assunto. Por um lado, o governo não poupa o suficiente; por outro, gasta demais com as aposentadorias. Isso pressiona o déficit cada vez mais. Em última instância, o país irá à bancarrota. A outra medida importante é devolver o poder de fazer escolhas de outra natureza a autoridades locais, como prefeitos e conselhos municipais. Isso terá o efeito de engajar as pessoas e ampliar a sua participação na política.

O senhor acredita que essas mudanças ocorrerão de forma gradual e negociada ou haverá uma ruptura?
Na maior parte dos casos, será necessária uma ação mais radical. As mudanças passadas foram introduzidas como resultado de crises, e o maior exemplo é, novamente, a Suécia do início da década de 90. O país estava em crise. Alguns bancos estavam colapsando. A inflação era elevada. Empreendedores abandonavam o país. A Suécia estava ficando sem recursos. Havia uma crise do setor público, e daí ocorreu uma ruptura. De modo geral, países que estão em boa situação não fazem as reformas de maneira tranquila, infelizmente. As pessoas esperam que a tempestade comece para providenciar o conserto.

Países como o Brasil nem chegaram a atingir na plenitude o estágio do Estado de bem-estar social. Eles estão condenados ao atraso?
A América Latina pode tirar proveito de tecnologias mais modernas. Os países da região também podem se beneficiar de todos os tipos de reforma que estão acontecendo ao redor do mundo. Antigamente, havia a noção de que as melhores ideias vinham essencialmente da Europa e dos Estados Unidos. Muitas das melhores ideias na área de saúde vêm da Índia, particularmente em termos de design e produção de equipamentos médicos. É uma inovação que se torna realidade por uma fração do custo que teria em países desenvolvidos. Há melhores condições para criar um Estado de bem-estar social hoje em dia do que no passado. Basta refletir sobre o modelo da Grã-Bretanha no início do século XX e que se expandiu fortemente depois da II Guerra. O governo ideal deveria ser dirigido por grandes estruturas burocráticas, parecidas com fábricas. Esse tipo de estrutura não é hoje o mais eficiente em prover serviços à população. Prestar serviços em níveis locais funciona melhor. Essa tarefa hoje é facilitada por celulares e computadores.

O senhor diz que ficou mais pessimista. O que podemos esperar para os próximos anos?
A democracia é a melhor entre todas as formas possíveis de governo, ainda que seja capaz de apresentar problemas de toda espécie, como promessas demais, muitas das quais descumpridas. Existe a corrupção. Mas a democracia é muito valiosa e precisamos reformá-la e protegê-la dela própria. Trump representa todos os medos que nós tivemos enquanto escrevíamos o livro, de uma forma maximizada. O populismo que ele incorpora está substituindo seu julgamento individual sobre a Constituição e o governo. É muito ruim que a maior economia do mundo, que é também a mais antiga democracia moderna, esteja nas mãos de um populista. Na Europa, a direita também está em ascensão. Por trás disso tudo está, infelizmente, a estagnação econômica. As pessoas ficam furiosas. Nesse estado, elas se tornam demagogas. E uma razão pela qual os países se encontram estagnados economicamente é que eles estão dispendendo demais com os gastos obrigatórios, sem investir o suficiente na economia produtiva. Tudo isso mostra que é preciso um novo rumo.

Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552