teto de gastos

Ribamar Oliveira: Remanejar verbas para garantir investimentos

Saúde e educação sofrerão cortes neste ano

O ministro da Economia, Paulo Guedes, encontrou uma forma de atender ao desejo das alas militar e política do governo por mais investimentos em infraestrutura neste ano, sem furar o teto de gastos. A equipe econômica está finalizando um projeto de lei, que deverá ser enviado ao Congresso Nacional nos próximos dias, remanejando verbas orçamentárias no valor de até R$ 5 bilhões. A estratégia é reduzir as dotações de alguns setores, que não ainda não foram empenhadas, como as da saúde e da educação, e aumentar os investimentos.

Tudo será feito, segundo fonte credenciada ouvida pelo Valor, respeitando os gastos mínimos previstos na emenda constitucional 95/2016 para a saúde e a educação. O projeto de lei (PLN) em elaboração será submetido ao Congresso, que dará a última palavra. Está descartada, portanto, a edição de medida provisória abrindo crédito extraordinário para fugir do teto de gastos, como inicialmente foi pensado pelo ministro chefe da Casa Civil, Braga Netto, e pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.

As Secretarias de Orçamento Federal e do Tesouro Nacional estão fazendo levantamentos para identificar as áreas do governo que estão com “excesso” de verbas e que podem ser remanejadas para outros ministérios, particularmente o da Infraestrutura e o do Desenvolvimento Regional. As alas militar e política querem concluir investimentos em rodovias e em obras de combate à seca no Nordeste. Apenas as dotações que ainda não foram empenhadas poderão ser remanejadas. Ou seja, só aquelas para as quais o governo ainda não autorizou o gasto, que é a primeira fase da execução orçamentária.

A área de educação deverá perder recursos, pois a dotação para este setor está bem acima do mínimo constitucional, como informou a fonte do governo. A área da saúde também está bem acima, pois o governo destinou uma grande quantidade de recursos para o setor no combate aos efeitos da pandemia da covid-19, por meio de créditos extraordinários.

Outros setores do governo também poderão perder recursos. Em defesa de sua estratégia, o governo alega que, se as verbas não forem remanejadas, haverá um “empoçamento”, ou seja, mesmo que o gasto seja autorizado, o Ministério ou órgão não conseguirá gastar os recursos neste ano e o dinheiro ficará no caixa, sem uso. Até junho, o “empoçamento” já atingia R$ 31,1 bilhões. Desse total, o Ministério da Cidadania tinha R$ 8,1 bilhões, o Ministério da Saúde, 6,1 bilhões e o Ministério da Educação, R$ 3,9 bilhões.

Com a estratégia, a equipe econômica espera diminuir as pressões de ministros e aliados políticos contra o teto de gastos. Mas, certamente, enfrentará resistências da oposição ao governo no Congresso, pois deputados e senadores terão dificuldade, especialmente em ano eleitoral, em cortar verbas para a saúde e a educação, mesmo que seja para aumentar investimentos em áreas estratégicas.

Agora, o problema da área econômica é encontrar espaço dentro do Orçamento de 2021 para os investimentos. A proposta orçamentária ficou muito difícil de fechar, pois o teto de gastos foi reajustado em apenas 2,13%. As despesas discricionárias (investimento e custeio da máquina administrativa, exceto gasto com pessoal) ficarão abaixo de R$ 100 bilhões, de acordo com fontes do governo, ante um valor de R$ 120 bilhões previsto para este ano.

O governo só conseguirá fechar a proposta sem cortar ainda mais os investimentos se o Congresso adiar a derrubada do veto do presidente Jair Bolsonaro à desoneração da folha de salários de 17 setores da economia e se conseguir adiar algumas despesas para 2022, como é o caso do Censo Demográfico, feito pelo IBGE, previsto para o próximo ano.

No caso do veto à desoneração, os aliados do governo estão tentando adiar a decisão do Congresso para setembro, após o envio da proposta orçamentária no dia 31 de agosto, pois, nesse caso, caberá aos parlamentares dizer onde cortarão outras despesas para compensar esse gasto. A desoneração representa uma despesa para o Tesouro, submetida ao teto. Ele é obrigado, por lei, a compensar a Previdência Social pela perda de receita com a desoneração.

Inadimplência histórica
Neste mês, poderá ocorrer uma das maiores inadimplências de tributos federais da história, pois as empresas terão que pagar duas parcelas do PIS/Cofins (referentes a março e julho) e duas parcelas da contribuição patronal de 20% sobre a folha de salários ao INSS (referentes a março e julho).

Como todos se recordam, uma das medidas de combate aos efeitos da recessão econômica provocada pela pandemia foi o adiamento do pagamento de alguns tributos, o que é conhecido na área técnica como diferimento. O PIS/Cofins referente a março, que seria pago em abril, foi adiado para agosto, o mesmo acontecendo com a contribuição patronal ao INSS devida em março.

A medida representou um alívio naquele momento para as empresas, mas agora chegou o momento de pagar a conta. O Valor perguntou à Receita Federal se não teme um elevado grau de inadimplência em agosto, devido ao fato de que as empresas ainda estão em fase de recuperação e muitas delas não terão condições de pagar duas parcelas das três contribuições no mesmo mês.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a Receita disse que “diversos indicadores já apontam em direção a uma recuperação da economia”. Segundo ela, as vendas no Brasil no mês de junho mostraram o maior patamar do ano de 2020, pois tiveram um resultado 15,6% maior que o de maio deste ano e de 10,3% superior ao de junho de 2019. Além disso, observou, em junho, todas as regiões brasileiras mostraram recuperação no ritmo de vendas, tanto em valor como em quantidades de notas emitidas.

De qualquer forma, é uma aposta, cujo resultado saberemos mais adiante. O ideal talvez fosse encarar o problema e propor o pagamento parcelado dos atrasados.


Foto: Beto Barata\PR

Fernando Schüler: Governo sabe que a reforma não rende votos, mas ela é sua melhor chance de deixar um legado

Governo sabe que a reforma não rende votos, mas ela é sua melhor chance de deixar um legado

O documento lançado por um grupo de economistas, no início da semana, defendendo o teto de gastos e propondo “rebaixar o piso”, ou seja, reformas capazes de preservar e aprimorar o edifício de estabilização fiscal construído pelo país nos últimos anos, deveria ser lido e relido, em Brasília.

O argumento diz que, dada a atual trajetória fiscal, a preservação do teto de gastos é insustentável. O gasto obrigatório sobe a uma taxa superior à inflação, e tornará inviável o custeio da máquina pública logo ali adiante.

O mercado já precifica o problema. O sistema político é mais lento e aprecia um exercício de autoengano. Governo à frente. É pura ilusão pensar em um programa robusto de transferência de renda e uma agenda crível de investimento público sem encarar os temas difíceis do ajuste fiscal.

O problema é o governo se decidir a enviar ao Congresso a reforma administrativa. O tema está maduro. A pandemia escancarou a desigualdade entre o mundo protegido do alto funcionalismo público e o universo precário do emprego privado, que pagou sozinho a conta da debacle econômica.

As razões da reforma são autoevidentes. O Brasil gasta 13,5% do PIB com servidores e entrega serviços públicos de baixa qualidade. Sendo seus usuários fundamentalmente os mais pobres, a ineficiência do Estado funciona como um motor das desigualdades no país.

Resolver isso supõe um longo caminho de reformas e ninguém imagina que elas serão feitas na atual gestão federal. O que se espera é que o governo tenha a coragem de dar o primeiro passo. Em duas direções.

A primeira trata do RH do governo. Revisão das carreiras públicas, redução dos salários iniciais, flexibilização dos modelos de contratação, avaliação de desempenho e possibilidade de redução de jornada e vencimentos em situações de risco fiscal.

O segundo caminho distingue funções de Estado e serviços públicos concorrenciais (que vão da saúde até a gestão de parques). Diz que o governo deve se concentrar nas tarefas de regulação e deixar à sociedade e ao mercado a execução de serviços. Enquanto isto não andar, a ideia de melhorar a qualidade da entrega pública não passará muito de retórica.

Há sinais positivos no horizonte. Sou da época em que ainda se imaginava que o governo devia administrar aeroportos por se tratar de um setor estratégico. Hoje, precisamente por se reconhecer que eles são estratégicos chegou-se à conclusão de que o governo e sua burocracia não devem administrá-los.

A reforma é politicamente viável. Previsível seria vermos o chefe do Executivo pressionando o Parlamento a fazer a reforma, mas o que temos é o contrário. Rodrigo Maia “tentando convencer” o presidente a enviar o projeto.

O governo amplia sua base no Congresso e há uma frente parlamentar robusta tratando do tema. Quem patina é o governo. Em parte por falta de convicção, em parte por saber que o assunto lhe renderá mais uma montanha de detratores e nenhum voto.

Salim Mattar escreveu que o “establishment” feito de sindicatos, políticos e fornecedores forma uma barreira às privatizações. A pergunta é: algum dia foi diferente? As corporações sempre estiveram aí e a inércia do setor público sempre foi a mesma. Apesar disso reformas importantes foram feitas no passado recente.

O atual governo iniciou dizendo que encerraria o ciclo de governos sociais-democratas e faria tudo diferente. Talvez tenha acreditado no mito de que foi fácil fazer as privatizações dos anos 1990, que os leilões da Vale ou Embraer foram um passeio, o mesmo valendo para a reforma do Estado.

É bom que tenham descoberto que as coisas são mais difíceis, no Brasil, e que talvez a reforma administrativa seja a sua melhor chance, talvez a última, de deixar um legado.

Do contrário, nossos liberais-conservadores terão que reconhecer que, mesmo no terreno que propuseram como seu, fizeram pior do que os sociais-democratas dos anos 1990, cujo legado de reformas ainda é o melhor ponto de partida para as mudanças que o país precisa fazer.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


William Waack: Rumo ou deriva?

A excepcionalidade se parece à normalidade

Os brilhantes almirantes junto a Jair Bolsonaro podiam explicar ao capitão do Exército que um azimute constante em relação a um obstáculo (outro navio, por exemplo, que também está se movendo) vai dar em colisão. O presidente quer gastar para manter a popularidade, e está encantado com as vozes (do ministro do Desenvolvimento Regional, mas não só) que lhe dizem que estaria unindo o útil (reeleger-se) ao agradável (fazer o bem para pessoas ainda mais necessitadas

O obstáculo é o formidável rochedo fiscal, que está aumentando de tamanho. À medida que 2021 se aproxima, fica próximo do irresistível esse canto da sereia de que a excepcionalidade atual imposta pela calamidade pública podia ser esticada um pouquinho mais, só um pouquinho mais, só para algumas obras já orçadas, já iniciadas, necessárias até por razões humanitárias (como levar água para o Nordeste, por exemplo).

Sim, esse argumento procede, tem sólidos fundamentos num país miserável no qual metade da população nem esgoto tem. Sim, as circunstâncias da dupla crise de saúde e economia obrigam a mudar os cálculos (políticos, sobretudo), alteram prioridades (como reforma do Estado ou privatizações) e impõem gastar sem olhar para o fundo do cofre. Afinal, não é o que uma Angela Merkel está fazendo? Deixem os economistas debatendo entre si se esse “novo normal” jogou por terra tudo o que aprenderam na vida acadêmica, pautada ou não pela ortodoxia.

O problema no caso brasileiro, no qual Bolsonaro é uma expressão perfeita de mentalidades e atitudes generalizadas, é o conceito de excepcionalidade. Não há nada de novo no fato de a sociedade brasileira conviver com gastos públicos muito acima da capacidade do nosso espaço econômico de financiá-los. Ao contrário, é o que estamos fazendo há décadas. Também não é novidade alguma o fato de que nos acostumamos a acomodar interesses setoriais e regionais espalhando pela nação inteira os custos dessas acomodações – traduzindo: benefícios, renúncias, incentivos, proteções, privilégios, regimes especiais, a gritante diferença entre o emprego público e o privado.

Circulam no Congresso, e no Planalto, números dando conta de que mais da metade dos 60 milhões de brasileiros que recebem ajuda emergencial acredita que ela será permanente e que a quase totalidade dessas pessoas não está preparada para o momento em que essa ajuda cessar. Para montar já para o ano que vem um grande programa social para Bolsonaro chamar de seu o ministro da Economia, Paulo Guedes, precisa sentar com o Congresso e decidir no que mexer nos R$ 350 bilhões de isenções tributárias – ou seja, onde cortar nas “acomodações” tão ao gosto de nossa sociedade.

Com TCU, STF e o presidente da Câmara dos Deputados avisando que puxadinho no teto de gastos não passa, e que a abertura de créditos extraordinários via MP também não, é com o Centrão que Bolsonaro terá de se entender. O começo dessa relação parece auspicioso: as “novas” lideranças políticas abraçadas pelo presidente garantem a ele governabilidade e a agradável sensação de que o pior da crise ficou para trás, agora que vamos gastar. Convenientemente, ignora-se o fato de que o fisiologismo, que azeita o que for necessário em Brasília, é dono de insaciável apetite (o que isso tem de excepcional?).

Some-se a isto um fator subjetivo muito elucidativo quando se considera a rapidez com que nos acostumamos ao número de mortos na pandemia (um horror em escala mundial): é a de que estamos aparentemente confortáveis dentro da excepcionalidade. Esses tempos “excepcionais” se parecem tanto à normalidade, deixando de lado a chateação das máscaras e as escolas fechadas, com as crianças azucrinando em casa.

Na ponte de comando em Brasília, muitas vezes paralisada por tantas mãos do Executivo, Legislativo e Judiciário mexendo no leme, traçar um rumo é notoriamente uma questão de alta complexidade e mantê-lo também, ainda mais com um “skipper” errático. Que está correndo o risco de confundir rumo com deriva.


Fernando Exman: É necessário lembrar o óbvio sobre o teto

Disputa sobre o controle de gastos está longe de acabar

Viramos uma sociedade que não se espanta mais quando o presidente da República se vê compelido a convocar a imprensa para garantir, ao lado da cúpula do Legislativo, que respeitará a Constituição.

Na prática, esse é o substrato do que ocorreu na semana passada, quando o presidente Jair Bolsonaro chamou para uma reunião improvisada no Palácio da Alvorada o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ministros de Estado e líderes governistas no Congresso. A imprensa foi avisada que o presidente faria um pronunciamento após o encontro, organizado de última hora com o objetivo de acalmar o mercado e dissipar as dúvidas sobre a permanência no governo do ministro da Economia, Paulo Guedes.

Bolsonaro disse respeitar o teto de gastos e perseguir a responsabilidade fiscal. Guedes ouviu o que queria. O mercado decidiu acompanhar as cenas dos próximos capítulos.

Quem acabou se dando bem foi o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Convidado, o ministro Dias Toffoli tinha um problema de saúde e escapou da cena em que Bolsonaro teria que repetir mais uma vez o que tantas vezes já jurou ao tomar posse como deputado federal e ao assumir a Presidência da República.

Em todas essas ocasiões, o juramento exigido pela legislação não deixa margem para interpretações heterodoxas. “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil", afirmam em alto e bom som todas as autoridades recém-eleitas, antes de começarem a exercer seus respectivos mandatos.

Se o respeito à Constituição já é uma obrigação de qualquer cidadão, a inclusão dessas palavras nos termos de posse deveria servir para deixar ainda mais claro o compromisso e evitar maiores problemas.

Mas, nem sempre é assim. No caso de Bolsonaro, essa expectativa já havia sido frustrada quando ele participou de manifestações antidemocráticas em Brasília. O mesmo ocorreu quando declarou que "ordens absurdas" não deveriam ser cumpridas, após uma operação da Polícia Federal atingir seus aliados que estavam sendo investigados por suposto envolvimento na produção e no financiamento de “fake news”.

No caso do recente pronunciamento em frente ao Palácio da Alvorada, as discussões acabaram se concentrando no prestígio pessoal do ministro da Economia, que vem se esforçando para proteger as contas públicas do assédio da ala mais desenvolvimentista do governo. Ficou em segundo plano um ponto central do debate: o respeito ao teto de gastos é um mandamento constitucional que, até alcançar seu prazo de validade ou ser alterado por uma outra PEC, não deve depender da disposição pessoal das autoridades que estiverem à frente da máquina federal. Ele precisa ser devidamente observado ou o governo estará assumindo o risco de cometer uma irregularidade fiscal.

É bom ter isso no radar porque, apesar de uma aparente trégua entre as alas liberais e desenvolvimentistas do Executivo, esse debate não deve sair da pauta no curto prazo.

Existe, no Congresso, a percepção de que cedo ou tarde os ímpetos populistas do presidente novamente colocarão à prova a fé do ministro no liberalismo do governo. As apostas vão de potenciais pressões sobre a política de preços dos combustíveis a divergências mais profundas sobre a elaboração ou a execução do Orçamento.

Até o início da pandemia, as diferentes visões existentes dentro do governo não eram capazes de gerar maiores turbulências. A ala mais desenvolvimentista acreditava que o cenário pós-coronavírus poderia até gerar oportunidades para o Brasil.

A visão era que o país demonstrara comprometimento com sua solvência ao aprovar a reforma da Previdência. Com vários países colocando suas taxas de juros em patamares negativos, acrescentavam essas autoridades, a ampla carteira de obras de infraestrutura e as mudanças regulatórias empreendidas pela atual administração atrairiam investidores estrangeiros mesmo sem o país conseguir reconquistar o grau de investimento.

Havia um discurso praticamente unânime na defesa da redução de investimentos públicos e na aposta de um crescimento econômico lastreado no setor privado - uma retomada sustentável que garantisse a recuperação das finanças do Estado. Porém, o cenário mudou com o aprofundamento da crise e a proximidade do período eleitoral.

Está em curso uma reacomodação das forças internas do governo. A ala desenvolvimentista tenta convencer Bolsonaro de que a realização de obras públicas é a melhor e mais rápida solução para a geração de empregos.

Enquanto a equipe econômica tenta resistir, esse mesmo grupo tenta emplacar o discurso segundo o qual a ampliação de investimentos em obras de infraestrutura hídrica e habitação deve ser enquadrada como um esforço de combate à pandemia. Afinal, argumentam, esgoto, água encanada e moradia de qualidade são essenciais para melhorar as condições sanitárias de milhões de brasileiros. Será difícil convencer o Congresso e o Tribunal de Contas da União (TCU) de que essa tese não representa uma burla ao teto de gastos, mas ela começa a ter simpatia no Palácio do Planalto.

Há ainda outro movimento embrionário que demanda atenção. O presidente e alguns de seus auxiliares esboçam a acusação de que a reação do mercado às articulações para furar o teto é um movimento especulativo contra o Brasil. Bolsonaro chegou a pedir mais patriotismo do mercado, ignorando o fato de que parte considerável das operações da Bolsa de Valores é feita por investidores estrangeiros.

Ainda há tempo de evitar que se abandone de vez uma postura mais capaz de atrair investimentos privados. O Brasil dependerá deles para retomar o crescimento.


Vinicius Torres Freire: O teto tem de cair, mas não com a fritura de Guedes e gambiarras eleitoreiras

Limite de gastos precisa de reforma profunda, mas governismo tenta avacalhar

As feias necessidades politizaram de modo imediato e ruim a discussão do teto de gastos: a necessidade da pobreza ora atenuada pelos auxílios emergenciais e a necessidade eleitoreira de Jair Bolsonaro.

Não haverá Renda Brasil sem um talho fundo em outras despesas sociais ou implosão do teto; não haverá nem breve temporada de investimentos “em obras” sem gambiarra para burlar o limite de gastos.

Essa tensão, como é óbvio, resultou na tentativa de neutralizar ou fritar Paulo Guedes a fim de dar um jeitinho no teto. Em decorrência, surgiu uma campanha reativa de defesa do teto que é muito razoável até certo limite, que é o de impedir uma avacalhação politiqueira do limite constitucional de gastos federais. Daí em diante, o movimento pende para a sacralização do que é apenas uma regra pragmática.

No caso de Bolsonaro e de seus novos amigos, a politização vulgar é bem evidente. Guedes apenas não foi chutado para escanteio ou para fora do estádio porque até este governo parece perceber que derrubar o teto de modo muito descarado seria contraproducente. Ou seja, teria efeitos econômicos negativos imediatos.

Mas Bolsonaro e seus aliados continuam com um problema eleitoral. O teto continua com seus problemas congênitos —mais dia, menos dia, será inviável econômica, social e politicamente. Logo, é preciso impedir a avacalhação do limite de gastos e ao mesmo tempo pensar em como reformá-lo.

Tal reforma, no entanto, exigiria um governo com um programa sério, profundo, e capacidade de negociar acordos amplos. Seria necessária uma política em que tal negociação fosse possível, mas o debate político está entre a paralisia e a imundície avacalhada.

Para o bem ou para o mal, o teto fazia efeitos em câmera lenta. A ruína de estradas, hospitais e pesquisa progrediria de modo gradual, afora algum desabamento. O corte do auxílio emergencial pode ser explosivo, porém.

Bolsonaro terá seu Renda Brasil apenas se der cabo do abono salarial, benefício anual de até meio salário mínimo para uns 23 milhões de trabalhadores, se der cabo do seguro-desemprego sazonal para pescadores e se cancelar algumas concessões tributárias. Difícil.

Haverá obras extras em quantidade perceptível, mas muito insuficiente, apenas se a manobra fura-teto tiver sucesso, o que provocará efeitos colaterais negativos.

Em si mesmo, o teto é inviável, como se sabia desde 2016. Mesmo que se reajuste o salário mínimo apenas pela inflação, que os servidores não tenham nem correção da inflação, que venham cortes de salários, não haverá dinheiro para aumentar investimentos. O funcionamento do governo (verba de saúde, pesquisa, universidade etc.) estará comprometido, para dizer o mínimo.

Economistas como Fabio Giambiagi, Guilherme Tinoco ou Bráulio Borges, para citar apenas alguns, têm feito sugestões sérias de mudança. Derrubar o teto, sem mais, é suicídio; sacralizá-lo é erro, tentativa de abafar uma discussão inevitável ou um modo de não explicitar um projeto puro e simples de redução do tamanho do Estado.

Difícil imaginar mudança que não combine limite de despesas com servidores, grande aumento de eficiência, contenção de reajustes do mínimo e da Previdência, gasto adicional em renda mínima, aumento e redistribuição de carga tributária, mais dinheiro para investimento público e alguma regra nova de teto.

Nota-se, pois, o tamanho da revolução que seria uma mudança séria. A reviravolta dessas entranhas é necessária, no entanto.


Merval Pereira: O teto não é o limite

Uma após outra, as pesquisas de opinião vão mostrando que a popularidade do presidente Jair Bolsonaro cresce à medida que os efeitos do auxílio emergencial para enfrentamento da pandemia da Covid-19 vão se fazendo sentir nas classes e regiões menos favorecidas. E a boca fechada do presidente, que agora age em silêncio, também ajuda na melhoria de sua avaliação, evitando aquela sensação de vergonha alheia em seus apoiadores em outros estratos da população.

Ao mesmo tempo em que essa é uma boa notícia para o governo, o coloca em uma sinuca de bico, pois a continuidade desse auxílio de R$ 600 é esperada pelos que o recebem, mas também pela maioria da sociedade, como demonstra a pesquisa XP/Ipespe divulgada ontem que mostra que 70% da população são favoráveis à continuidade do programa, inclusive entre os que não têm acesso a ele.

Assim como o Datafolha já havia constatado, também a pesquisa XP/Ipesp confirma uma melhoria na avaliação do presidente, tendência que já havia sido detectada na pesquisa de julho.

O Ipesp registra os maiores níveis de aprovação ao presidente desde março de 2019, com os que consideram o governo ótimo ou bom saltando sete pontos percentuais, de 30% para 37%, enquanto os que consideram o governo ruim ou péssimo caíram de 45% para 37%, o menor índice desde agosto de 2019.

O movimento positivo para Bolsonaro é seguido por outros indicadores, segundo o Ipespe, como o aumento expressivo dos que têm expectativa positiva para o restante do mandato, que eram 33% e ganharam mais quatro pontos percentuais, reforçados pela queda dos pessimistas de sete pontos percentuais.

A percepção do eleitorado de que a economia está no caminho certo também aumentou, de 33% para 38%, o que pode dar ao ministro Paulo Guedes argumentos para confrontar-se com os “fura-tetos”, como ele chama seus colegas de ministério que querem aumentar os gastos públicos. Mas, como no Brasil a maioria não leva em conta o binômio causa-efeito, os mesmos que consideram que a economia está certa querem manter o auxílio emergencial que quebra as contas públicas.

Ajudou também a melhorar a avaliação do presidente o alívio da maior parte da população em relação à pandemia, (52%) que considera que o pior já passou, caindo o número dos que dizem estar com muito medo do surto (38% para 33%).

Novos dados da pesquisa Datafolha mostram um aumento da reprovação do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), consequência natural do crescimento da popularidade de Bolsonaro. Congresso e Supremo sempre foram obstáculos aos avanços dele contra a democracia e os direitos civis, e durante um tempo o puseram nas cordas.

Quando teimou em confrontar os demais poderes, recebeu muitas críticas e foi derrotado nas duas Casas. STF e Congresso são instituições, para os seguidores de Bolsonaro, prejudiciais e que o impedem de governar. Como o presidente virou o rei do Nordeste com o auxílio emergencial, é natural que seus inimigos sejam vistos com mais ressalva pelo eleitorado que o apóia.

Segundo a pesquisa do Ipesp, toda melhora na avaliação do governo vem dos estratos da população com renda familiar mensal de até 5 salários mínimos, população que concentra os que requisitaram o auxílio emergencial, benefício de R$ 600 pago pelo governo durante a pandemia.

Entre os mais pobres, com renda de até 2 salários mínimos, a aprovação foi de 28% para 34% e entre os que têm renda de 2 a 5 salários mínimos, de 32% para 44%. Bolsonaro conseguiu vender a ideia de que a culpa pelas 100 mil mortes é dos outros, especialmente os governadores, como mostra a pesquisa Datafolha que registra que 47% dos brasileiros consideram que o presidente não tem culpa por sermos o segundo país com maior número absoluto de mortes do mundo.

Com todos esses registros favoráveis, Bolsonaro está na mesma batida da campanha presidencial, quando viajava pelo país sendo recebido por multidões de correligionários nos aeroportos. Ontem foi a Sergipe, e os vídeos divulgados mostram um entusiasmo popular que parece confirmar as palavras de um dos líderes do centrão, Ciro Nogueira, que diz que Bolsonaro está substituindo Lula no imaginário do nordestino, devido ao seu jeito de “povão” e graças ao auxílio emergencial, do qual ele não irá abrir mão, mesmo com o perigo de furar o teto de gastos.


Luiz Carlos Trabuco Cappi: Teto de gastos é amortecedor da dívida

Respeitar o teto de gastos traz confiança à condução da economia

Entre as muitas consequências da pandemia, o Brasil se vê, hoje, com uma dívida interna de R$ 6,1 trilhões, que equivale a 85,5% do PIB. Há apenas um ano, a dívida era de 75,8% e, segundo estimativas, deve chegar a mais de 100% em 2022. Em patamar tão elevado, é natural que cause preocupação. Por uma razão: dívidas altas em sua maioria indicam a má administração de um governo que gasta sem responsabilidade e é obrigado a cobrir seus déficits com títulos públicos. No entanto, no caso brasileiro, quando se observa o desenrolar da pandemia, percebe-se que o governo fez bem em gastar. Foram expressivos os desembolsos para hospitais e instituições de saúde e milhões de brasileiros que perderam o emprego ou os meios de trabalho. Sem isso, a pandemia teria sido um desastre muito maior.

É certo que uma dívida interna alta produz distorções na economia. Absorve volume considerável de impostos para pagamento de juros em vez de destinar recursos para o bem-estar social e investimentos. Uma lacuna grave num país em que o setor público investe tão pouco.

Há outras considerações a respeito da dívida atual. Ela ocorre num momento em que os juros estão historicamente baixos. Por isso, a dívida, embora se aproxime dos 100% do PIB, não é explosiva. Além disso, o governo tem crédito para colocar os seus papéis no mercado.

Não há, também, risco de um ataque especulativo, como ocorreu em outros países. Estrangeiros detêm apenas 9,1% do total da dívida. Quanto à dívida externa, que foi o grande pesadelo durante a década de 1980, o País está bem, com reservas internacionais superiores ao que deve.

A dívida interna é um problema incontornável quando ela evolui a taxas crescentes e paga juros mais altos para sua rolagem. Não é o caso do Brasil. O governo tem se movimentado com prudência na administração da dinâmica da dívida, que cresce a um ritmo menor e a juros declinantes. É um movimento consistente e mostra um controle adequado sobre a evolução da dívida.

Apesar disso, uma dívida tão alta é preocupante e significará nos próximos anos um esforço considerável de contenção de despesas e aprovação de reformas estruturais. Ela surgiu de um déficit primário que encerrou 2019 na casa de 1,3% do PIB e pode chegar em 2020 a 12% do PIB ou mais.

A pandemia provavelmente será debelada: vacinas já estão em testes em todo o mundo, inclusive no Brasil. De forma que os custos emergenciais com a doença tendem a desaparecer com o tempo. Ainda assim, será preciso algum sacrifício para resolver o passivo deixado pela covid-19.

O governo tem instrumentos para resolver essa questão, e de forma consistente, buscando uma agenda de crescimento composta por reformas estruturantes, privatizações e concessões. É o melhor meio de cobrir o déficit.

Um dos principais instrumentos para controlar essa dívida é o mecanismo constitucional do teto de gastos. Por essa medida, os gastos de um ano devem acompanhar a inflação do ano anterior. É um dispositivo que funciona como amortecedor da dívida pública. Respeitar seu preceito traz confiança à condução da economia.

É, portanto, fundamental que governo e Congresso defendam e preservem seu cumprimento para sinalizar uma gestão realista em relação às contas nacionais. E que o Brasil é uma casa segura para investir.

A reforma tributária já deu um passo no Congresso. Resta a reforma administrativa (tão prometida e tão adiada), que reduza gastos e melhore a eficiência da máquina governamental. Privatizações e concessões são palavra de ordem da atual administração federal.

O desejável, nesse contexto de crise aguda que vivemos, é uma construção política, na qual cada grupo dialogue com a sociedade e dê sua cota de sacrifício, ao abrir mão de parte dos seus interesses imediatos em prol dos interesses gerais e de longo prazo do País.

*PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO.


Ricardo Noblat: Medo do impeachment contém ímpeto de Bolsonaro por mais gastos

No momento, é claro…

O que mais deixou Jair Bolsonaro furioso com o ministro Paulo Guedes, da Economia, foi Guedes ter dito em público que a pressão por mais gastos com obras de infraestrutura e o desrespeito à lei que limitou o crescimento de despesas poderiam provocar a abertura de um processo de impeachment contra ele.

Pois o ministro, em conversas reservadas com o presidente na semana passada, voltou a adverti-lo para o perigo se enveredar por tal caminho. O nervo exposto de Bolsonaro é justamente esse: ainda não contar com número seguro de votos confiáveis no Congresso para derrotar um pedido de impeachment.

Lembre-se do que aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff, insistiu Guedes com Bolsonaro. Para gastar mais ou para disfarçar gastos que já fizera, Dilma acabou pedalando a Lei de Responsabilidade Fiscal. Como, de resto, presidentes que a antecederam haviam feito. Deu no que deu.

Tudo bem que presidente com popularidade em alta dificilmente é alvo da abertura de um processo de impeachment. Dilma, e antes dela Fernando Collor, só começaram a cair quando a avaliação positiva dos seus governos oscilou entre 10% a 15%. A de Bolsonaro está longe disso, e sobe. Mas…

Bolsonaro tem cobrado pressa aos ministros que negociam o apoio do Centrão. Às favas todos os escrúpulos – adiante com o loteamento de cargos do governo. Foi ele mesmo que há uma semana bateu o martelo para a troca do líder do governo na Câmara. Saiu o Major Vitor Hugo (PSL-BA). Entrou…

Entrou uma figura com a cara do Centrão – o deputado Ricardo Barros (Progressista-PR), que já foi condenado a devolver dinheiro aos cofres públicos quando era prefeito de Maringá, apareceu na lista da Odebrecht como beneficiário de propina e foi denunciado por improbidade administrativa quando ministro da Saúde.

Tem ou não tem as credenciais necessárias para representar o Centrão junto ao governo e falar pelo governo na Câmara? Nada separa Barros de Bolsonaro. Os dois se conhecem há muito tempo. Bolsonaro já foi filiado a diversos partidos do Centrão. A tal da Nova Política, com a qual acenou, era de brincadeira.

Bolsonaro, hoje, embarca para Sergipe. E ainda esta semana deverá ir ao Rio Grande do Norte. Se tudo começou pelo Nordeste quando Pedro Álvares Cabral deu às costas da Bahia em 1500, por que Bolsonaro não poderá finalmente descobrir o Nordeste depois de tê-lo ignorado por tanto e tanto tempo?

Quanto a Guedes e a sua relutância em gastar além do que deve… Bolsonaro está deixando que ele se acostume com a ideia. Se não se acostumar, todas as vênias lhe serão feitas, mas o Brasil deve sempre estar acima de todos e só abaixo de Deus. E o futuro radiante do Brasil, segundo Bolsonaro, passa por sua reeleição.

E Antonio Palocci, hein? E Sérgio Moro, hein?

Só Lula e Bolsonaro têm o que comemorar

Sem mais nem menos, a seis dias do primeiro turno da eleição presidencial de 2018, o então juiz Sérgio Moro divulgou um anexo da delação do ex-ministro Antonio Palocci feita à Polícia Federal surpreendendo os procuradores da força tarefa da Operação Lavo Jato, em Curitiba, que a haviam recusado por falta de provas.

Sabe-se lá o quanto a divulgação do anexo fortaleceu à época a candidatura de Jair Bolsonaro que liderava as pesquisas de intenção de voto, mas certamente não a prejudicou, antes pelo contrário. Palocci acusava Lula de ter autorizado o loteamento de cargos na Petrobras com os partidos que apoiavam seu governo.

Dois dias depois da divulgação do anexo por Moro, uma procuradora perguntou aos colegas: “Vamos fazer uso da delação do Palocci?” Outro procurador respondeu: “O que Palocci trouxe parece que está no Google”. Um terceiro disse: “O acordo é um lixo, não fala nada de bom (pior que anexos Google)”.

Uma semana antes do anexo tornar-se público graças a Moro, um procurador havia escrito: “Russo [apelido do juiz] comentou que embora seja difícil provar, ele é o único que quebrou a ‘omertá’ petista”. Foi rebatido por uma procuradora: “Não só é impossível provar como é impossível extrair algo da delação dele”.

Bingo! Um relatório da própria Polícia Federal que, ontem, se tornou público, aponta que a delação premiada de Antonio Palocci era recheada de desinformação. “As afirmações foram desmentidas por todas testemunhas, declarantes e por outros colaboradores da Justiça”, concluiu o delegado Marcelo Feres Daher.

Nada restou de pé do que afirmou Palocci sobre um caixa de propinas para Lula administrado pelo banqueiro André Esteves, do BTG. Recentemente, o Supremo anulou outra acusação de Palocci: a de que Lula teria recebido 12,5 milhões de reais da Odebrecht para a compra de um novo terreno para seu instituto.

Os procuradores da Lava Jato acertaram ao considerar a delação de Palocci um pastel de vento. Moro ainda deve explicações por ter divulgado o anexo da delação às vésperas da eleição de 2018. Condenado a 18 anos de prisão, Palocci teve sua pena reduzida pela metade e a cumpre em sua casa com tornozeleira eletrônica.

O desmonte da delação de Palocci reforça o discurso do PT de que Lula é inocente, deixa Moro outra vez sujeito a críticas, e Bolsonaro por isso mesmo feliz.


Julianna Sofia: Não acreditem em Bolsonaro

Teto de gastos não será óbice a seus planos de reeleição

Não acreditem em Jair Bolsonaro. Nas 72 horas que sucederam a revoada do ninho liberal de Paulo Guedes (Economia), o presidente fez, por duas vezes, juras de amor ao teto de gastos —regra que limita o aumento das despesas públicas. Entre uma e outra declarações, deu uma fraquejada: "A ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema?".

Empunhar a bandeira do liberalismo, do Estado mínimo, das privatizações e da austeridade fiscal sempre foi ato mimetizante de Bolsonaro frente a Guedes para seduzir os donos do PIB. Nunca convenceu, quanto mais agora, que começa a colher os frutos da popularidade depois de R$ 500 bilhões despejados em ações contra a nefasta pandemia. Não há de ser o teto o óbice a seus planos de reeleição, por certo.

Não acreditem em Paulo Guedes. O ministro anuncia a debandada de auxiliares e a investida de colegas fura-teto como forma de pressionar o Palácio do Planalto a renovar os votos pela responsabilidade fiscal e evitar a "zona sombria" do impeachment. Ora, o mesmo Paulo Guedes tentou, em vão, recente operação Mandrake para destinar recursos do Fundeb para o Renda Brasil (novo Bolsa Família) e, assim, burlar o teto.

O mesmo Guedes trabalha para abrir um crédito extraordinário de R$ 5 bilhões para financiar obras de infraestrutura e adoçar a boca dos fura-teto. A manobra livra o governo das amarras impostas pelo limite de gastos. Um pecadilho contábil.

Nem revoada, nem teto mal-escorado, nem reforma do Estado adiada abalam a fé na gestão bolsonarista nutrida pelo mercado, que entoa um "me engana, que eu gosto" e segue a operar lucros. Com tibieza, empresários reagem, e o baile continua.

O eleitorado, remediado pelo auxílio emergencial e pelo crédito barato bancado pela viúva, nada vê: seja escândalo das rachadinhas, seja 100 mil mortes, seja enlace ao caciquismo político. Garante a Bolsonaro avanço expressivo em sua aprovação, segundo o Datafolha. Ao melhor estilo "perdoa-me por me traíres".


Míriam Leitão: A encenação no espelho d’água

A discussão em torno do teto de gastos não nasceu esta semana e não é um dilema criado pela pandemia. A ideia de que estava tudo indo bem e que a crise na saúde fez desandar a economia é falsa. Em setembro do ano passado, o presidente disse que o teto de gastos precisaria ser flexibilizado, do contrário, em dois ou três anos ele teria que apagar a luz de todos os quartéis. “É uma questão matemática”, concluiu. Ontem, ele apareceu com ministros, os presidentes das duas Casas do Congresso e garantiu que vai respeitar o teto. Até o espelho d’água do Alvorada entendeu que a cena foi montada para acalmar o ministro da Economia, Paulo Guedes, mas o presidente continua prisioneiro de sua indecisão.

Na época, em setembro de 2019, o ministro Paulo Guedes reclamou da declaração do presidente contra o teto, e ele recuou, mudando sua matemática. Disse que respeitaria o teto. Sua convicção, no entanto, não mudou. Tanto que nos meses seguintes engavetou a reforma administrativa, defendeu interesses corporativos, ignorou as propostas de emendas que mandou para o Congresso, não se mobilizou por projeto fiscal algum. Teve olhos apenas para as medidas que aumentavam o acesso às armas. Esta semana, mesmo em meio à pandemia, ele voltou às armas e justificou dizendo que é uma promessa de campanha.

A agenda da economia também foi promessa. Mas era artificial. Foi implantada em seu programa ocupando o vazio de ideias. Nesta crise, todos criam versões distantes da realidade. O ex-secretário Salim Mattar disse que está saindo porque não se acostumou com a burocracia de Brasília, e que os sindicatos, os corporativistas, a esquerda impedem a privatização. Tinha tudo isso no governo Fernando Henrique e ele privatizou. A verdade é que Mattar, apesar dos autoelogios sobre a sua capacidade administrativa, não foi um bom gestor. E, além disso, o presidente Jair Bolsonaro vetou a venda de algumas estatais e não se interessou por outras. No meio tempo, criou uma estatal.

No mercado, ontem, os ativos mostravam instabilidade. O Banco Central vendeu logo cedo US$ 500 milhões no mercado futuro para conter a elevação do dólar. O real já abriu sendo a moeda emergente que mais se desvalorizava. Os juros futuros — contratos negociados por investidores que tentam estimar a taxa básica de juros — bateram em 5,75% com vencimento em janeiro de 2025. Nos últimos três dias, houve aumento de 0,6 ponto percentual nessa taxa, o que significa que eles estão apostando em aumento na Selic no médio prazo. O Bradesco enviou relatório para alertar que mesmo com o cumprimento do teto de gastos a dívida pública permanecerá em 98% do PIB até 2025. Se ele for furado, e isso afetar o crescimento do país, a dívida poderia chegar a 110% no mesmo período. Houve um momento em que Nathan Blanche, da Tendências, disse à coluna que teria que haver uma reunião entre Bolsonaro com os dois presidentes do Congresso para fazer um pacto pela reforma. A reunião acabou acontecendo no fim da tarde. Quanto durará essa declaração conjunta? Menos que o tempo de um pregão.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, querem que alguma agenda ande no Congresso, mas no mesmo dia de ontem a mobilização no parlamento era em torno dos vetos do presidente. Maia falou no Alvorada na aprovação dos “gatilhos” que dariam possibilidade de gerir o orçamento. Ele se referia aos projetos de corte de certos gastos, como a suspensão de aumento de salário de funcionalismo, previstos na PEC emergencial. Havia uma proposta de iniciativa do Legislativo. O ministro da Economia preferiu ignorá-la e mandar sua própria proposta. Que está parada.

Os ministros gastadores dizem para o presidente que essa é a única forma de salvar o governo dele e melhorar sua popularidade. Paulo Guedes avisa que isso levará ao caos, às pedaladas, e que ele terá o mesmo destino da presidente Dilma. Bolsonaro tem medo de perder Paulo Guedes, mas não acredita na agenda dele. Gosta do que ouve dos ministros fura-teto, mas não quer ficar sem sua placa do Posto Ipiranga. Os erros de Guedes o enfraqueceram, a pandemia fortaleceu o argumento do aumento de gastos. Indeciso, Bolsonaro tem apenas um alvo: a reeleição em 2022.


Vinicius Torres Freire: Ganha força a ideia de gastar dinheiro da calamidade do vírus em obras públicas

Mais gente quer furar o teto de gastos

Há gente no Congresso querendo mesmo abrir uma claraboia no teto de gastos. Isto é, quer permitir que o governo federal gaste além do limite constitucional, pelo menos neste ano ou em 2021.

A despesa extra seria destinada a investimentos e autorizada por um remendo no Orçamento de Guerra, o gasto excepcional autorizado no período de calamidade, declarado por causa da epidemia e que deveria durar até o final deste 2020.

O objetivo da providência talvez imprevidente seria o de fazer esta economia arriada pegar no tranco, por meio de obras novas ou da reativação de canteiros parados, o que aumentaria as encomendas às empresas e criaria empregos.

Seria razoável rediscutir o teto de despesas federais, que desde 2016 não podem aumentar em termos reais (ou seja, apenas podem ser corrigidas pela inflação, anualmente).

Os termos dessa rendição, no entanto, são muito, muitíssimo, complicados. Não é algo que se possa fazer à matroca ou por meio de gambiarras. Do jeito que a coisa vai, há um grande risco de esculhambação, com efeitos impremeditados e contraproducentes graves.

Por ora, parece difícil que tal projeto prospere, mas a ideia está no ar como um aerossol de coronavírus, faz uma duas ou três semanas. Havia sido lançada de modo atabalhoado, confuso e mal explicado em abril deste ano, o tal “Plano Pró-Brasil”, abatido por Paulo Guedes no ato do seu lançamento.

Agora, é motivo de conversa de gente de vários partidos, em particular no centrão, e de ministros de Jair Bolsonaro.

Qual o problema de dar uma furadinha no teto de gastos, usando recursos do Orçamento de Guerra?

Um deputado argumenta que, dado o déficit previsto de mais de R$ 800 bilhões neste ano, gastar uns R$ 30 bilhões ou R$ 50 bilhões não faria diferença no rombo, seria um cisco em um olho vazado.

Pode ser. A depender do tamanho da gambiarra, os credores do governo podem achar que se trata do começo de uma grande amizade, da primeira porteira derrubada de um “liberou geral”.

E daí? Daí as taxas de juros de prazo mais longo sobem, o real se desvaloriza e o tiro sai pela culatra.

Segundo problema, mas não menos importante, não há projetos, planos e meios de controle para gastar direito tais dinheiros. Muitas obras não andam porque são tecnicamente mal projetadas. Desperdícios, roubanças e falta de critério e prioridade são frequentes. É possível que enfiem jabutis nos gastos de investimento (gastos correntes, como despesas com salários e outros contrabandos).

Seria conveniente que houvesse alguma agência de controle de investimentos.

É razoável dizer que a retomada econômica será lenta sem um tranco de investimento público (o PIB se arrasta desde o fim da recessão), entre outros problemas de uma estagnação longa, como a destruição ou a obsolescência de capital, físico e humano.

No entanto, dados o tamanho da dívida, do déficit, da composição do gasto público e sua má qualidade, é bem razoável também dizer que a mera abertura da porteira para gasto extra, ainda que investimento, não é capaz de reativar a economia.

Nosso buraco é fundo e a discussão de como sair deste desastre é enrolada. É razoável pensar em mais investimento público.

Uma discussão séria do problema, porém, envolve grandes remanejamentos de despesa, aumento de carga tributária, um plano realista de contenção da dívida pública (um teto esperto). Tudo isso depende de um novo acordo nacional, um debate difícil e profundo, orientado por um governo construtivo. Nada disso existe.


Ribamar Oliveira: O teto de gastos está por um fio

Governo precisa da PEC do “Orçamento de Guerra”

A sobrevivência do teto de gastos da União está na dependência de uma decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que anteontem se incorporou ao movimento do “#pagalogo”, no Twitter. Caberá a Gilmar conceder ou não, de forma monocrática, liminar ao pedido feito pela Advocacia-Geral da União (AGU) em ação contra a lei que ampliou, de um quarto do salário mínimo para meio salário mínimo, a renda familiar per capita das pessoas que terão direito a reivindicar o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Se Gilmar conceder a liminar, o governo ainda manterá a esperança de que, ao fim desse turbilhão de gastos para o combate aos efeitos do novo coronavírus na população e nas empresas, poderá sustentar o limite constitucional para o crescimento das despesas, previstos na emenda constitucional 95/2016. Se o ministro do STF negar a liminar, já será necessário começar a discutir uma alternativa para o teto de gastos, pois ele não conseguirá absorver a despesa adicional de cerca de R$ 21 bilhões por ano com a mudança do BPC.

No dia 23 de março, a AGU ingressou no Supremo com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra o projeto de lei 55 do Senado, que, depois de aprovado, foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. O veto foi derrubado, mas Bolsonaro negou-se a promulgá-lo, o que terminou sendo feito pelo vice-presidente do Senado, Antonio Anastasia.

O fato é que a mudança feita no BPC está em vigor (lei 13.981), as pessoas podem requerer os benefícios e o governo terá que atender, a menos que o ministro Gilmar Mendes conceda a liminar. Na ADPF 662, a AGU argumenta que o projeto infringiu uma série de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mas, principalmente, dois artigos da Constituição: o 195, parágrafo 5, e o 113 do ADCT. Em síntese, a AGU pede que o STF considere a mudança inconstitucional.

O projeto que criou a renda emergencial de R$ 600 dá nova redação à mudança no BPC. Mas, pela ótica dos argumentos apresentados pela ADPF da AGU, o governo continua achando que a alteração no BPC é inconstitucional. Por isso, existe uma grande expectativa para saber se o presidente Bolsonaro vai vetar os artigos que tratam do BPC, ao sancionar a lei da renda emergencial.

O governo se apega ao teto de gastos porque espera manter o controle das despesas obrigatórias, depois que a situação se normalizar, Mas o teto está por um fio.

Estratégia
Alguém da burocracia do Ministério da Economia alertou o ministro Paulo Guedes que, para pagar os R$ 600 aos trabalhadores informais, seria necessário alterar a Constituição. Como o governo trabalha com déficit primário em suas contas, a despesa com o auxílio emergencial terá que ser coberta com a emissão de títulos, ou seja, com o aumento da dívida pública.

A explicação apresentada ao ministro mostrou que o texto constitucional só permite que o governo faça operações de crédito em montante superior à despesa de capital (investimentos e amortizações da dívida) se elas forem autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais, com finalidade precisa, aprovados pelo Legislativo por maioria absoluta. Este princípio é conhecido como “regra de ouro” das finanças públicas.

O problema é que a despesa adicional para pagar os R$ 600 não pode ser aberta no Orçamento nem por crédito suplementar, nem por crédito especial, pois isso iria estourar o teto de gastos da União. Por isso, a estratégia do governo era abrir um crédito extraordinário ao Orçamento, que não entra no cálculo do limite de despesa.

Mas um crédito extraordinário não permite, no entanto, ao governo fazer as operações de crédito necessárias para pagar as despesas com os R$ 600. Seria necessário, explicou o burocrata, aprovar a PEC do chamado “Orçamento de Guerra”, que, entre outras medidas, suspenderá a obrigatoriedade de o governo cumprir a “regra de ouro” durante o estado de calamidade pública.

Argumentou-se, inclusive, que a infração a este dispositivo constitucional poderia ser motivo para um pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro. A área orçamentária e financeira do Ministério da Economia ainda é constituída, em grande medida, por técnicos que trabalhavam no governo na época do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, que caiu pela inobservância de regras legais e constitucionais na área fiscal.

Depois que o próprio ministro Paulo Guedes tomou a iniciativa de fazer consultas, que envolveu inclusive ouvir ministros do STF, de acordo com fontes, ficou claro que havia um certo preciosismo na avaliação do burocrata. O impedimento constitucional era aquele mesmo apontado, mas ele poderia ser contornado por uma “engenharia orçamentária e financeira”, que não seria, propriamente, uma novidade.

O custo do programa da renda emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais é estimado, em princípio, em R$ 50 bilhões. A solução encontrada para pagar de forma mais rápida foi a edição de uma medida provisória abrindo um crédito extraordinário de R$ 33 bilhões no Orçamento, que será custeado pelo superávit financeiro do Tesouro. Este é o montante de recursos livres que ainda resta na conta única do Tesouro. O restante do superávit financeiro é de recursos vinculados. Os R$ 17 bilhões que faltam serão obtidos com cancelamentos de outras despesas orçamentárias.

Posteriormente, o governo enviará um projeto de lei (PLN) pedindo autorização ao Congresso para fazer operações de crédito no montante de R$ 17 bilhões para recompor, por meio de crédito suplementar, as despesas que foram canceladas. Com o PLN, o governo estaria cumprindo a “regra de ouro”.

O PLN será aprovado com grande facilidade e de forma rápida, pelo que o Valor apurou em conversas com algumas lideranças políticas. O Congresso terá, no entanto, que aprovar a PEC do “Orçamento de Guerra”, pois será necessário suspender a obrigatoriedade de cumprir a “regra de ouro” durante o estado de calamidade social, uma vez que o governo ainda vai precisar gastar muito mais no combate ao novo coronavírus.