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Hélio Schwartsman: O país das carteiradas

Uma das explicações para o fracasso do Brasil é que ele é atávica e renitentemente corporativista

Uma das explicações para o fracasso do Brasil é que ele é atávica e renitentemente corporativista. Em vez de as pessoas se pensarem como cidadãs de uma República de iguais, veem-se (e agem) como membros de corporações que se julgam detentoras de direitos especiais.

Tanto o STF como o STJ enviaram à Fiocruz ofícios em que pediam a "reserva" de alguns milhares de doses de vacinas contra a Covid-19 para aplicação em seus servidores.

Mais espertos do que o grupo de promotores paulistas que tentara uma despudorada carteirada para a categoria furar a fila da imunização, os responsáveis pelos tribunais evitaram o uso de termos como "prioridade" e "preferência". Escreveram os ofícios de um jeito que ficava parecendo que receber as vacinas era uma espécie de sacrifício que as cortes fariam em prol da coletividade.

Felizmente, a Fiocruz, num raro exemplo de espírito republicano, rejeitou ambos os pedidos, enfatizando que toda a produção de vacinas será destinada ao Ministério da Saúde e que a fundação não estava reservando doses nem para seus próprios funcionários.Como já escrevi aqui, não há um critério único para organizar filas éticas. Pode-se dar a prioridade aos mais vulneráveis ou aos mais expostos ou ainda proceder a diferentes combinações dessas duas lógicas. Só o que não faz sentido, em termos éticos, é dar preferência a grupos específicos pelo fato de eles terem mais prestígio ou mais poder de influenciar. As duas mais altas cortes do país deveriam saber disso e dar o exemplo. Lamentavelmente, preferiram a carteirada envergonhada.

A crer nas ideias de economistas como Daron Acemoglu e James Robinson, o que distingue nações que fracassam das que dão certo é o desenho de suas instituições. Quando elas servem primordialmente a elites extrativistas, o país naufraga; quando são inclusivas, o desenvolvimento chega. O corporativismo está matando o Brasil.


Ricardo Noblat: Vacina pouca, minha toga primeiro

No país do “você sabe com quem está falando”...

O que você entenderia se recebesse do Supremo Tribunal Federal um ofício pedindo a reserva de vacinas para imunizar 7 mil servidores do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça?

Naturalmente, que o tribunal pretendia que do total de vacinas a serem entregues ao Ministério da Saúde para aplicação em massa nos brasileiros, 7 mil fossem destinadas aos seus servidores.

Não há outra leitura possível do ofício assinado por Edmundo Veras, diretor-geral do tribunal, enviado à Fundação Oswaldo Cruz, fabricante da vacina Oxford/AstraZeneca contra a Covid-19.

Veras argumenta no ofício que a vacinação dos servidores representará “uma forma de contribuir com o país em momento tão crítico, pois ajudará a acelerar o processo de imunização”.

Segundo o plano do Ministério da Saúde, primeiro serão vacinados trabalhadores da saúde, idosos, pessoas com comorbidades, profissionais de segurança, indígenas e quilombolas, por exemplo.

Se houver idosos e pessoas com comorbidades entre os servidores do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça, eles serão contemplados. Indígenas e quilombolas certamente não há.

“Nós vacinaremos todos os brasileiros de forma igualitária, de forma proporcional ao número de pessoas por Estado e de graça”, prometeu Eduardo Pazuello, general e ministro da Saúde.

O ofício era desnecessário. A não ser que ele quisesse sugerir o desejo dos ministros do tribunal e dos servidores de serem vacinados em primeiro lugar ou o mais rapidamente possível.

Veras nega que teve essa intenção. Ofício semelhante também foi remetido à fundação por Marcos Antonio Cavalcante, diretor-geral do Superior Tribunal de Justiça. Que o justificou assim:

– A intenção de compra de vacinas vem sendo manifestada por diversos órgãos públicos que realizam campanhas de imunização entre seus funcionários.

Resposta da fundação a Cavalcante: “Infelizmente, a Fiocruz não possui autonomia nem mesmo para dedicar parte da produção da vacina para a imunização de seus servidores e colaboradores”.


Elio Gaspari: O mundo inseguro das boquinhas de TI

Às 15h de terça-feira, o sistema de computadores do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi invadido, e os trabalhos da Corte só voltarão ao normal nesta semana

O episódio mostra que os computadores da Viúva continuam sendo administrados de forma leviana. No mundo das altas competências, no século passado o governo brasileiro já pagou o mico de ter um sistema de criptografia das embaixadas protegido por equipamentos de uma fábrica suíça que tinha um sócio oculto, a Central Intelligence Agency americana. No governo Dilma Rousseff, descobriu-se que algumas de suas comunicações também estavam grampeadas.

Não se sabe o propósito dos invasores do STJ, pois achar que o tribunal tem meios ou recursos para pagar um resgate não faz sentido. Sabe-se, contudo, que a rede oficial de informática está contaminada por dois vícios elementares, que nada tem a ver com altas competências. É pura incompetência. Em muitas áreas, quando muda o chefão, ele troca a equipe de tecnologia. Mesmo em áreas onde isso nem sempre acontece, os hierarcas usam seus endereço da rede oficial para tratar de assuntos pessoais. Nos Estados Unidos a secretária de Estado Hillary Clinton pagou caro por isso. Assuntos oficiais e comunicações pessoais são coisas diversas. Se essa banalidade não é respeitada, só se pode esperar que o sistema esteja bichado em outras trilhas.

Essa incompetência não acontece por causa da herança escravocrata. Ela é produto de uma indústria da boquinha em quase tudo que tem a ver com informática. Prova disso é que o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação armou uma licitação viciada de R$ 3 bilhões há mais de um ano, foi apanhado, cancelou a maracutaia, mas até hoje não explicou como o edital foi concebido.

Na compra de equipamentos, pode-se pegar o jabuti quando ele quer mandar 117 laptops para cada um dos 255 alunos de uma escola. Quando as contratações vão para escolha de operadores, manutenção e até mesmo programação entra-se num mundo complexo, atacado por amigos que têm conexões, mas não têm competência.

No caso da invasão das máquinas do STJ, surgiu um perigoso efeito colateral. Com um presidente que não confia nas urnas eletrônicas, mas até hoje não provou que tenha ocorrido fraude na sua eleição, estende-se o tapete vermelho para que terraplanistas comecem a alimentar conspirações em relação ao pleito de 2022. O STJ ainda estava fora do ar quando o capitão Bolsonaro voltou a defender o voto impresso. Logo ele, que tratava assuntos de Estado com o ministro Sergio Moro na sua conta privada.

Trump dividiu os republicanos

O calor que Donald Trump tomou no Arizona mostra que ele dividiu até os republicanos. No estado em que o Homem de Marlboro teve um rancho, os democratas elegeram para o Senado o ex-astronauta Mark Kelly. Ele é o marido de Gabrielle Giffords, a deputada que em 2011 foi baleada na cabeça por um maluco. (A bala atravessou seu crânio, mas ela recuperou parcialmente a fala e anda com bengala.)

Até a noite de sábado, Joe Biden liderava a eleição do Arizona. Fatores demográficos contribuíram para essa mudança no estado que produziu Barry Goldwater, o campeão do conservadorismo republicano nos anos 60 do século passado. Contudo, a grosseria megalômana de Donald Trump contribuiu para isso. Ele ofendeu o senador John McCain (1936-2018), um político respeitado pela biografia e pela decência. Filho de almirante e piloto de bombardeiro, McCain foi abatido no Vietnã, ralou seis anos de prisão e torturas em Hanoi e nunca recuperou completamente os movimentos dos braços. Candidato a presidente em 2008, perdeu para Barack Obama. Tendo contrariado Trump numa votação, tomou um dos insultos típicos do presidente: “Ele não é um herói, foi capturado”. (Trump nunca vestiu um uniforme.)

Quando McCain morreu, Trump ignorou-o e foi jogar golfe. Na campanha, o troco veio de Cindy, a viúva, herdeira da maior distribuidora da cerveja Anheuser-Busch no país. Em setembro ela apoiou Biden: “Somos republicanos, mas, acima de tudo, somos americanos.”

Trump não precisava ter sido grosseiro com McCain, mas sua natureza falou mais alto.

Médici, Geisel e Bolsonaro

Nenhum presidente brasileiro teve uma relação tão próxima com seu colega americano como o general Emílio Médici com Richard Nixon, a quem visitou em 1971. Quando Nixon se atolou no caso Watergate e acabou perdendo o cargo, Médici, fora do governo, não disse uma só palavra.

Nenhum presidente brasileiro detestava seu colega americano como Ernesto Geisel detestava Jimmy Carter. Enquanto esteve na Presidência, nunca disse uma palavra contra ele. Fora dela, recusou-se a encontrá-lo e não atendeu o telefone quando ele ligou para sua casa.

A bomba Wassef

De um advogado que conhece os processos relacionados com o Bolsonaro e suas “rachadinhas”, ao saber que seu colega Frederick Wassef tentou operar o depoimento da ex-assessora Luiza Souza Paes:

“Esse pessoal está chamando urubu de ‘meu louro’.”

Luiza Souza Paes mostrou ao Ministério Público os comprovantes de que, entre 2011 e 2017, o faz-tudo Fabrício Queiroz bicou cerca de R$ 160 mil do salário que recebia no gabinete de Flávio Bolsonaro.

A protelação tem nexo

Por mais que se façam trapalhadas no varejo com o processo das “rachadinhas” dos Bolsonaro, no atacado a manobra da defesa tem nexo e poderá dar certo.

Com 15 denunciados num processo de competência indefinida, é quase certo que não se chegue a uma sentença antes da eleição de 2022.

Tio Sam e Jeca Tatu

Relação especial é assim:

Neste ano, o Brasil importou 30 mil toneladas de soja dos Estados Unidos.

Pindorama é o maior exportador de soja do mundo.

Neste governo, os americanos foram dispensados de pedir visto de entrada no Brasil. Não passa pela cabeça dos Estados Unidos oferecer reciprocidade.

O presidente brasileiro torce pela reeleição de seu colega americano. Mesmo quando despejava dinheiro nas eleições de Pindorama, nenhum presidente americano fez declaração pública de apoio um candidato brasileiro.

Baker saiu de perto

Aos 90 anos, o texano James Baker, articulador da vitória eleitoral de George Bush na Corte Suprema contra Al Gore em 2000, afastou-se da teoria da eleição roubada antes mesmo do patético discurso de Donald Trump na quinta-feira.

Baker coordenou três campanhas presidenciais de republicanos, foi secretário do Tesouro e de Estado.

Trump e Napoleão

Quem viu o discurso de Trump deve se lembrar que em 1840, quando os restos mortais do Imperador saíram da ilha Santa Santa Helena para um mausoléu em Paris, num só hospício da cidade havia 14 pessoas garantindo que eram Napoleão Bonaparte.


Reinaldo Azevedo: STJ e STF inaugurarão a execução sumária na política? Fascistoides ganham!

Sob o pretexto de se combater a corrupção a ferro e fogo, o Brasil foi se tornando um país arreganhadamente despudorado.

Ficamos sabendo — e é fato — que o governo Bolsonaro intensifica seu lobby junto ao Superior Tribunal de Justiça para que a Corte Especial que vai avaliar o recurso da defesa de Wilson Witzel endosse o seu afastamento cautelar, imposto, monocraticamente, pelo ministro Benedito Gonçalves.

Atentem para uma questão importante: o problema não está apenas no fato de a decisão ser monocrática. Se o STF decidiu, em 2017, que um governador pode ser afastado sem prévia autorização da Assembleia — o que é um erro —, está mantida, no entanto, a exigência de que haja ao menos a aceitação da denúncia — o que tornaria o governador réu. E ele ainda não é réu porque nem sequer foi ouvido.

Não se constrói democracia sólida assim. O que se tem é bagunça.

A defesa recorreu, claro!, à Corte Especial do STJ contra a decisão. A coisa deve ser votada na quarta-feira. Até onde se sabe, vai endossar a decisão de Gonçalves. "Ah, aí a coisa não será mais monocrática, então!" Não resolve nada, minhas caras, meus caros! Um governador eleito diretamente está sendo retirado do cargo sem nem ainda ser réu; sem que o próprio STJ tenha apreciado a denúncia. E não se pode tomar o endosso a uma liminar como sinônimo de denúncia aceita.

Há algo de errado num país em que é mais fácil tirar do cargo um governador do que um deputado estadual.

Sim, um deputado estadual está submetido à jurisprudência do Supremo que vale para parlamentares federais: enquanto conservar o mandato, não pode ser submetido a medidas cautelares que impeçam o livre exercício do mandato sem a concordância da Assembleia. Que sentido faz impor a um governador uma sanção antecipada como essa?

A defesa também recorreu ao STF para derrubar a liminar. A decisão cabe ao presidente da Corte, Dias Toffoli. Ele deu 24 horas para o STJ se manifestar e depois igual prazo para a PGR — cuja resposta já sabemos. Vale dizer: só vai decidir depois da votação da Corte Especial, cujo resultado é conhecido de antemão.

Vamos ver o que fará Toffoli se a Corte Especial endossar a decisão de Benedito. Um caminho é considerar o recurso prejudicado porque o que se pedia era a derrubada de decisão monocrática, que monocrática não será mais. Nesse caso, a defesa de Witzel deverá voltar ao Supremo com outro recurso, cuja natureza precisa ser estudada.

Insista-se: o governador Wilson Witzel nem sequer foi denunciado. "E por que não se denuncia logo?" Porque se está ainda na fase da investigação. Não houve tempo.

Deixo aqui uma questão para reflexão: se, do concerto entre STJ e STF resultar uma decisão em que um governador de Estado pode ser afastado do cargo com base em declarações de um delator, sem nem ao menos ter sido ouvido e antes que tenha se tornado réu — já que não existe a denúncia —, então teremos as cortes superiores investindo no baguncismo.

Tanto pior quando se sabe que uma dessas cortes, o STJ, está sob o cerrado assédio do Poder Executivo.

Os dois tribunais vão inaugurar a fase da execução sumária para políticos?

Quem ganha?

Os fascistoides.


José Casado: O zagueiro do dinheiro vivo

Suas operações suspeitas ultrapassam R$ 1 bilhão

Ocupação: auxiliar de escritório. Remuneração: R$ 278.500 por mês. Isso significa R$ 3,3 milhões por ano de trabalho, e com direito a décimo terceiro salário.

Esse emprego existe mesmo. Está em Nova Iguaçu (RJ), lugar onde quatro em cada dez habitantes sobrevivem com até meio salário mínimo mensal (R$ 522).

Quem ganhou a posição foi Zé Carlos, zagueiro aposentado do Itaperuna F. C. Ele fez o gol dos sonhos de muitos na Associação de Ensino Superior (Sesni), mantenedora da Universidade Iguaçu (Unig). Cargo e remuneração do ex-jogador constam em documentos trabalhistas da associação, que se diz “filantrópica” e dedicada aos pobres.

O milionário auxiliar de escritório Zé Carlos na vida real é José Carlos de Melo, empresário que trafega entre os submundos da política carioca e das máfias da Baixada Fluminense, e até o mês passado controlava o caixa da Universidade Iguaçu.

Para o Ministério Público, ele foi o intermediário de estranhos negócios no governo Wilson Witzel. Suas operações suspeitas ultrapassam o “patamar de R$ 1 bilhão, grande parte em espécie”. Sua movimentação financeira supera a soma (R$ 950 milhões) das realizadas por 27 deputados e 545 assessores investigados por corrupção, rachadinhas e lavagem de dinheiro na Assembleia do Rio.

Ficou conhecido como o homem do dinheiro vivo. Patrocinou um mensalão carioca, pagando mesadas mensais a uma dezena de deputados estaduais —contou à polícia um ex-secretário do governo Witzel, que confessou ter recebido dele R$ 600 mil em dois pacotes. Até julho, Receita e Coaf haviam mapeado mais de 160 transações de Zé Carlos acima de R$ 100 mil. Todas em espécie, em agências bancárias de Nova Iguaçu e Itaperuna.

Facções se digladiam na luta pela hegemonia na Assembleia Legislativa. O prêmio é o lucro em facilidades contratuais no governo, estatais e prefeituras. No ex-zagueiro Zé Carlos, tem-se um retrato atualizado desses jogos de poder no submundo da “nova” política fluminense.


Merval Pereira: "Recesso democrático"

O afastamento do governador do Rio Wilson Witzel trouxe à tona uma discussão política da mais alta importância para a democracia brasileira, sobre a possibilidade de que o governo autoritário do presidente Bolsonaro esteja manobrando o Judiciário com o objetivo de controlá-lo politicamente.

Não seria a primeira vez que democracias aparentes camuflariam o autoritarismo em vigor. Considerar que o ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), tenha tomado a decisão cautelar para se posicionar como candidato à próxima vaga do Supremo é uma desinformação, pois ele já tem idade superior ao limite de 65 anos para ser indicado para o STF.

Também a decisão não foi ilegal, pois o Supremo deu ao STJ o poder de determinar medidas cautelares contra governadores, sem que seja preciso ouvir a Assembléia. Não é provável, portanto, que o recurso da defesa do governador ao STF seja analisado antes da decisão do plenário do STJ, que tem reunião marcada amanhã para provavelmente avalizar a decisão de Benedito Gonçalves.

O que se tem criticado é o cuidado que ele poderia ter tido de esperar uma decisão do plenário que o fortaleceria, pois afastar um governador é assunto político delicado. Se, eventualmente, o presidente do STF, Dias Toffoli, resolver desautorizar o ministro do STJ, pode haver um choque entre instâncias judiciais.

De qualquer forma, a sobrevida política de Witzel seria curta, pois dificilmente ele escapará do impeachment na Assembléia Legislativa, que deverá estar concluído nas duas ou três próximas semanas.

O vice-governador Claudio Castro, que ontem anunciou com euforia subserviente um telefonema de apoio que recebeu do senador Flavio Bolsonaro, assume muito fragilizado, porque também é investigado, e é possível que, no decorrer da investigação, ele também seja afastado. A interferência do filho do presidente, embora seja representante do Rio de Janeiro no Senado, acrescenta mais dúvidas sobre se o afastamento do governador não beneficiará diretamente o clã Bolsonaro.

O governador interino Claudio Castro escolherá o próximo procurador-chefe do Ministério Público Estadual, que comanda as investigações sobre a “rachadinha” no gabinete de Flávio quando era deputado estadual, comandada pelo notório Queiroz.

Mesmo que queira, porém, será muito difícil que influencie os procuradores estaduais para que indiquem um colega bolsonarista para o cargo numa lista tríplice obrigatória, de onde sairá o escolhido.Todas essas teorias de conspiração surgem porque vivemos tempos estranhos, em que diversas vezes vimos tentativas de contornar os limites legais para impor a vontade do Executivo.

Decisões judiciais discutíveis que beneficiaram a família Bolsonaro foram tomadas, constatamos cotidianamente a disputa entre dois ou três candidatos à vaga do Supremo para ver qual agrada mais o presidente. Essa situação fez com que o ministro do Supremo e vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Edson Fachin se pronunciasse duas vezes nos últimos dias contra o que chamou de “processo autoritário”.

Sem se referir diretamente a Bolsonaro, o ministro citou o livro “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt: “ (…) saber que é possível, sim, criar isso o que podemos chamar de endoautoritarismo, ou seja, manter-se um verniz democrático e, por dentro as instituições serem corroídas a tal ponto que o hospedeiro, que é a democracia, seja destruído pelo parasita, que é o autoritarismo”.

Fachin afirmou várias vezes que existe um “cavalo de Tróia” dentro da legalidade constitucional do Brasil, “que apresenta laços com milícias e organizações envolvidas com atividades ilícitas. Conduta de quem elogia ou se recusa a condenar ato de violência política no passado”.

Esse “recesso democrático” que estamos vivendo, de acordo com Fachin, também foi referido pelo ministro Luis Roberto Barroso, presidente do TSE e seu colega no Supremo, mas com uma visão mais otimista, embora diga que precisamos sempre ficar atentos: “Temos um presidente que defende a ditadura e a tortura, e ninguém defendeu solução diferente do respeito à liberdade constitucional. (…) A democracia brasileira tem sido bastante resiliente, embora constantemente atacada pelo próprio presidente”


Carlos Andreazza: O voto no lixo

A população fluminense elegeu um desconhecido

Quem se iludiu com o Wilson Witzel — a própria definição de estelionato eleitoral — iludiu-se não por falta de avisos. Era mais um gritante oportunista que usava a condição de juiz como chancela de autoridade moral superior para se alavancar; no caso, a cargo eletivo. O modelo desta suprema moralidade togada sendo, no Rio de Janeiro, Marcelo Bretas, aquele que tomou e tornou público, há três dias da eleição a governador, um depoimento sem provas — de um ex-secretário de Obras de Eduardo Paes — que interferiria no processo eleitoral e fulminaria de vez a candidatura do ex-prefeito.

Poucos reclamaram. Valia tudo, né? O justiçamento compensava. Afinal, não existiam santos; de modo que se justificava recorrer a atalhos para ceifar os que julgávamos corruptos. Era preciso mudar. Witzel foi o produto da mudança. Parabéns.

Encaixotada pela grande onda bolsonarista e afogada na correnteza antiliberal que criminalizara a atividade política, a população fluminense elegeu um desconhecido cuja fantasia de outsider combinava reacionarismo e lava-jatismo. Ninguém sabia quem era; e tampouco houve maiores preocupações sobre se teria competência para gerir um estado falido. Combatendo a corrupção — que ainda hoje se crê ser o maior problema do país —, tudo se resolveria.

Witzel vestia o espírito do tempo. Um autoritário — cujas ideias (sobre qualquer coisa que não a solução “mirar na cabecinha”) não eram conhecidas — alçado a governador porque batizado naquelas mesmas águas da antipolítica apregoada como nova política, que lavariam Bolsonaro. Witzel era o ex-juiz que renunciara à estabilidade para tomar o risco de consertar o Rio; não sem antes coadjuvar no comício da morte em que se quebraria placa com o nome de Marielle. Um braço forte, sem os vícios do sistema partidário (apesar de concorrer pelo partido do pastor Everaldo), intolerante com o crime organizado (embora fizesse campanha em área de milícia) e com a corrupção (mesmo próximo do empresário Mário Peixoto).

Tudo isso era público. Mas o desarranjo de nosso equilíbrio institucional — a profundidade da depressão política entre nós — convidava à aventura. A aventura ainda está no começo. Não mais, porém, para Witzel; vítima do jacobinismo que celebrou e sem o qual jamais teria chegado ao Guanabara. Vítima, sim, de uma aberração jurídica; infecção mais fraca, o ora governador afastado, da doença que necrosa a vida pública brasileira, afinal engolido — o ex-futuro presidente — pela moléstia de que tentou se descolar. Quis virar patologia à parte: já era.

Witzel é Witzel. Não há Witzel, contudo, que legitime afastamento preventivo de governante eleito assim como se deu contra Witzel. É inconstitucional. E inconstitucional seria qualquer que fosse o Witzel afastado — porque outros virão. Que não se tenha dúvida: outros virão, arrombada desde há muito a porteira da autocontenção judicial; o lava-jatismo presente como modus operandi mesmo onde a Lava-Jato é odiada. De forma que quem comemora essa canetada do ministro Benedito Gonçalves, do STJ, contra Witzel, mas reclamou dos atos personalistas de Alexandre de Moraes, bem menos graves, contra prerrogativas do presidente da República, que bote as barbas de molho. Essa lâmina, a gente só sabe a qual pescoço se destina na primeira descida. E não há estado de direito só quando é o nosso na reta.

É gravíssimo que se suspenda o exercício de mandato popular por meio de decisão monocrática, antes de o denunciado ser réu, e sem o aval do Legislativo — de resto quando em curso no Parlamento está um processo de impeachment contra o governador. Em que estado de degradação estará a separação entre Poderes quando um ministro de corte superior determina sozinho que um chefe do Executivo solte a caneta para cujo uso foi eleito?

A canetada monocrática pode revogar o voto?

Que tipo de cautelar é essa que impõe novo governante? E que grau de suspeição sobre o ato se pode levantar a propósito de tamanha interferência na dinâmica político-eleitoral de um estado? Afinal, como efeito, não será mais Witzel a indicar, por exemplo, o próximo procurador-geral de Justiça, essa figura-chave aos interesses de Flávio Bolsonaro na investigação por peculato contra si. E aí?

Essa zorra foi plantada pelo STF, convertido na própria matriz da insegurança jurídica no Brasil: uma corte constitucional cujas jurisprudências de ocasião — ditadas ao ritmo das circunstâncias — autorizaram que o Ministério Público se convertesse em polícia e que juízes país adentro criminalizassem a atividade política e, como justiceiros, avançassem sobre prerrogativas do Legislativo e do Executivo.

Aí está. Políticos — não importa quão vagabundos — escolhidos pelo eleitor, e com imunidades constitucionais previstas para protegê-los da sanha de interesses outros, de súbito trocados pela mão de um só magistrado. Aí está. Não mais sendo só do eleitor o direito de jogar o voto no lixo.


Juan Arias: O Brasil afunda tragicamente aos olhos do mundo como um novo Titanic político

País começa a ser um clássico no mundo de como morrem as democracias e de como suas instituições vão se deteriorando numa cadeia infernal

O que está acontecendo com o Brasil, que aparece aos olhos do mundo não como uma potência mundial, mas como um novo Titanic que cada dia vai rachando politicamente, com efeitos econômicos perversos que estão afogando os mais fracos?

A nova podridão que aparece no Rio de Janeiro, com novos e graves escândalos de corrupção política —que já envolvem quatro governadores consecutivos— e as ferozes intrigas de poder que vão surgindo, está colocando de joelhos um dos Estados mais importantes do país. Sua capital sempre foi uma vitrine mundial de beleza e um objeto de desejo do turismo global.

E tudo parece cada dia mais grave porque, das entranhas dos casos de corrupção, surge desta vez o roubo de dinheiro destinado à luta contra a epidemia. Mais do que uma onda de corrupção política e empresarial, tudo parece indicar que estamos diante de uma luta feroz com vistas às eleições presidenciais de 2022 e a uma possível reeleição de Bolsonaro.

Enquanto o chefe de Estado ameaça “dar porrada” na cara dos jornalistas que o interrogam sobre os supostos escândalos de sua família, em todo o país há uma luta entre os diferentes poderes, que agem cada dia mais pelas costas da sociedade em guerras internas.

Sempre foi dito que o Brasil, o quinto maior país do mundo, coração econômico da América Latina, estava destinado a exercer um papel importante entre as demais potências mundiais. Lá de fora olhavam com surpresa e admiração o desenvolvimento econômico e cultural do país, que foi ganhando a simpatia mundial.

Hoje o céu do astro brasileiro começa a escurecer. Parece mais um país abandonado à própria sorte, já que a corrupção e a pequenez de seus dirigentes evidenciam o câncer que o devora por dentro do poder, paralisando o ímpeto que começava a ter dentro e fora de suas fronteiras.

Em meio a essa guerra entre os poderes e às ameaças de golpes de Estado enquanto todas as instituições se deterioram, os graves e atávicos problemas que este país nunca soube resolver — como a violência, o racismo e a escandalosa distribuição de renda—, a cada sete horas uma mulher é assassinada. A maioria dessas mulheres são negras ou pardas.

O Brasil começa a ser um clássico no mundo de como morrem as democracias e de como suas instituições vão se deteriorando numa cadeia infernal.

E agora que o mundo inteiro está em emergência por causa da pandemia, e quando existe mais necessidade de que os poderes dos Estados sejam fortes e capazes de fazer frente à emergência, o Brasil vai afundando cada dia com a descoberta de novas tramas de poder e lutas internas.

Daí a urgência para que as forças da sociedade e da oposição —a um Governo cada vez mais atropelado pelas inoperâncias de seus governantes e suas mesquinhas ambições— sejam capazes de salvar um país cuja colaboração no xadrez mundial se torna cada dia mais importante dentro e fora do continente.

O Brasil não é outro país bananeiro da América do Sul. Tem vocação de influência na política global, cada vez mais envolvida no retrocesso dos valores de liberdade e defesa dos direitos humanos, no qual a pandemia está abrindo novas lacunas de exclusão.

O país precisa com urgência de uma Justiça menos politizada e de uma política menos judicializada, num cenário onde cada uma das instituições do Estado possa manter sua independência e agir para o bem de toda a comunidade. O que vemos hoje é um país cada vez mais sujeito a uma política com “p” minúsculo voltada a manter e ampliar seus privilégios, dando as costas a uma sociedade cada dia mais perplexa e desiludida.

Se um dia o mundo olhou até com inveja para o desenvolvimento econômico e social do Brasil, hoje o país corre o risco de se ver cada vez mais distante dos centros onde se forja o poder mundial. Uma mesa da qual o país se afasta devido à quebra de seus melhores valores, enquanto se desvanecem para os mais pobres as esperanças que os resgatavam de seu inferno de escravidões passadas.

Que os políticos e juízes, em vez de pensar em eleições e reeleições num puro jogo de poder, e em vez de trabalhar para conseguir mais privilégios que escandalizam as pessoas comuns, que têm que se sacrificar para poder comer, sejam capazes de uma renovação, algo que se torna mais urgente e vital cada dia que passa e a cada novo escândalo que surge de suas próprias entranhas.

O Brasil verdadeiro, o de suas tantas riquezas materiais e espirituais acumuladas através dos séculos, necessita hoje com urgência de novos líderes e estadistas que possam fazer renascer sua verdadeira identidade dos escombros de tanta indignidade institucional.


Eloísa Machado de Almeida: Decisão que afastou Witzel parece ter algo fora do lugar

Eleito em 2018, governador foi afastado do cargo por 180 dias em decisão de ministro do STJ

Ainda que o governador Wilson Witzel já tenha sido responsabilizado pelo Supremo Tribunal Federal pela condução de sua necropolítica durante a pandemia, com ordem para suspensão de operações policiais nas comunidades cariocas, que tenha contra si uma maioria sólida para um processo de impeachment e pululem indícios de corrupção com verbas de saúde, a decisão de seu afastamento preventivo como governador gerou desconforto.

A suspensão do exercício das funções públicas de Witzel por uma decisão monocrática de um ministro do Superior Tribunal de Justiça recolocou o tema sobre as imunidades constitucionais —e a forma com os tribunais a interpretam— no centro do debate jurídico e político do país.

A Constituição estabelece uma série de imunidades para detentores de cargos eletivos do Executivo e do Legislativo. São imunidades que procuram proteger a função relevante e representativa, impondo sobretudo limites mais severos à persecução criminal.

Parlamentares são invioláveis por suas palavras e votos, possuem foro por prerrogativa de função e não podem ser presos senão em flagrante de crime inafiançável, sendo tanto a prisão como o próprio processo criminal sujeitos à suspensão pelas Casas legislativas.

Para o cargo eletivo do Executivo, a Constituição é ainda mais exigente: a suspensão de mandato pela prática de crime comum se dá a partir de um duplo controle: a autorização prévia do Legislativo e o recebimento da denúncia pelo Judiciário.

As imunidades compõem uma série de controles judiciais e políticos que garantem não só estabilidade para o exercício da função como também reforçam a lógica da separação de Poderes. Mas não se trata apenas disso. A preservação do vínculo de representatividade entre eleitor e eleito é mais uma razão, talvez a maior delas, para a existência de imunidades a detentores de cargos eletivos.

A função é especialmente importante e protegida porque decorre de investidura vinda de voto.

As Constituições estaduais, na sua maior parte, reproduziram a mesma lógica da Constituição Federal: governadores só poderiam ser afastados do cargo com autorização prévia do Legislativo, seja no recebimento de denúncia por crime comum ou na hipótese de crime de responsabilidade.

Ainda que as regras constitucionais sejam consideravelmente claras, a interpretação dos tribunais tem sido vacilante quanto à sua extensão.

Nos últimos anos, foi ampliada a interpretação dada a flagrante de crime inafiançável para permitir a prisão de senador. Trata-se do caso Delcídio do Amaral, preso por decisão monocrática de Teori Zavascki, depois referendada em plenário.

Também recentemente, o Supremo passou por duas versões distintas de uma mesma questão jurídica: a possibilidade de afastamento da função pública como cautelar alternativa à prisão de parlamentares.

No caso Eduardo Cunha, a decisão monocrática também de Teori Zavascki, referendada depois em plenário, que suspendeu o exercício de suas funções, não passou por crivo da Câmara dos Deputados; logo depois, o Supremo decidiu que a decisão suspendendo mandato de Aécio Neves deveria ser analisada pelo Senado (que derrubou a decisão de afastamento).

Logo depois, o Supremo decidiu restringir a interpretação sobre foro por prerrogativa de função: crimes cometidos antes da diplomação e sem relação com mandato seriam investigados pelas instâncias ordinárias. Desde então, a decisão tem suscitado questões inéditas.

Juízes de primeira instância poderão determinar a prisão cautelar ou afastamento de deputados e senadores de suas funções? Poderão determinar busca em gabinetes parlamentares?

Recentemente, investigações contra José Serra (PSDB-SP) foram suspensas monocraticamente pelo presidente do STF, Dias Toffoli, pois as buscas determinadas por juízes de primeira instância poderiam afetar documentos relacionados ao atual mandato de senador.

Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), investigado no suposto esquema das “rachadinhas” antes de se tornar senador, teve foro garantido.

O Supremo também tem se debruçado sobre as imunidades de governadores.

Para o tribunal, o regime de responsabilidade criminal de governadores deve ser distinto do conferido a presidente da República.

Por isso, o Legislativo estadual não pode ser uma etapa prévia para a análise da denúncia criminal, e governadores podem ser presos, inclusive por atos estranhos ao mandato e no curso do mesmo. Também para o Supremo, se alguém com cargo eletivo pode ser preso, pode receber uma cautelar diversa da prisão, como o afastamento da função pública.

A interpretação restritiva significou o avanço do Judiciário sobre as imunidades parlamentares e foi amparada —e isso é inegável— por um sistema político agindo de forma nada republicana, não raras vezes usando as imunidades como anteparo para a prática criminosa. Traem a lei e seus representantes.

Mas a substituição de maus políticos através de decisões judiciais instáveis, sem colegialidade e sujeitas a maior politização, tampouco é um bom resultado.

É nessa trajetória cheia de idas e vindas que se insere o caso de Wilson Witzel: uma decisão monocrática provisória de um ministro do Superior Tribunal de Justiça suspendeu o exercício das funções de um governador eleito.

Mesmo não sendo uma decisão inédita, estando repleta de indícios de crimes de corrupção (frise-se, afetando as políticas de saúde durante uma pandemia) e referenciada por uma série de julgamentos recentes, algo parece fora de lugar.

Não à toa. Afinal, o sofisticado desenho constitucional de responsabilização por crimes comuns, no qual a suspensão do mandato só ocorre com chancela dos pares eleitos e, sua perda, após trânsito em julgado da sentença penal condenatória com avaliação de um tribunal colegiado, foi substituído pela decisão cautelar de um único juiz.

É como se foro por prerrogativa de função, que se caracteriza pela colegialidade, fosse extinto na marra: um juiz sozinho pode afastar um governador.

A cautelar de afastamento de função pública é uma alternativa à prisão. Porém aplicada a cargos eletivos parece esquecer um componente essencial dessa relação: a proteção que a Constituição dá ao voto.

*Eloísa Machado de Almeida, professora e coordenadora do Supremo em Pauta da FGV Direito SP


Celso Rocha de Barros: O presidente derrubou um governador?

É curioso que tanta gente no mundo da Justiça esteja tomando decisões claramente ilegais

Se o governador do Rio de Janeiro tiver caído por influência do presidente da República, a deterioração institucional brasileira deu um salto grande.

A decisão de afastar Witzel monocraticamente foi ilegal. Quem quiser saber por que, consulte o texto do professor Ricardo Mafei Rabelo Queiroz, da Faculdade de Direito da USP, no site da revista Piauí. É possível que a decisão do ministro Benedito Gonçalves, do STJ, não tenha sido uma tentativa de conseguir uma vaga no Supremo.

Mas é curioso que tanta gente no mundo da Justiça esteja tomando decisões claramente ilegais —a libertação de Queiroz, o dossiê contra os antifascistas, a perseguição a Hélio Schwartsman, o afastamento de Witzel —que coincidem perfeitamente com os interesses de Jair Bolsonaro, justamente o sujeito que vai decidir quem fica com a vaga no STF.

O afastamento de Witzel não é conveniente para Bolsonaro apenas porque o governador fluminense havia se tornado rival do presidente da República. No final deste ano, seja lá quem for o governador do Rio vai escolher o novo procurador-geral do Estado.

Como já noticiou a Folha, Bolsonaro quer influir nessa escolha para que o novo nome seja sensível aos interesses de seu esquema de corrupção familiar.

A escolha terá que ser feita dentro da lista tríplice, mas nada impede que os bolsonaristas inventem um candidato até lá e trabalhem por ele.

Se a decisão do STJ for um sintoma de aparelhamento da Justiça por Bolsonaro, pense bem no tamanho do que estamos discutindo.

Volte mentalmente até o dia da promulgação da Constituição de 1988 e tente explicar para Ulysses Guimarães que, 30 anos depois, o governador do Rio será afastado por decisão de um único ministro do STJ, com forte suspeita de que a coisa toda foi uma armação para resolver uns problemas do presidente da República com a polícia.

Depois disso, peça para o Doutor Diretas tentar adivinhar se, em 2020, o documento que ele acabou de aprovar ainda está vigente.

Longe de mim botar a mão no fogo pela honestidade de Wilson Witzel. Ele foi eleito com o apoio de Jair Bolsonaro. Ao contrário da família Flordelis, a família Bolsonaro nunca precisou do Google para achar “gente da barra pesada”. No mesmo dia do afastamento de Witzel, aliás, rodou o Pastor Everaldo, velho chapa de Bolsonaro que o batizou “simbolicamente” nas águas do rio Jordão.

Foi tudo encenação: Bolsonaro continuou católico. Everaldo também teria sido um dos responsáveis pela aproximação de Bolsonaro com o liberalismo econômico, e esse batismo tampouco parece ter sido lá muito para valer.

Mas para lidar com as acusações contra Witzel já existia o processo de impeachment, este sim, claramente previsto na Constituição e já em curso no Rio de Janeiro. Qual a necessidade de uma decisão que coloca as instituições sob suspeita?

É muito grave, mas, ao que parece, ninguém se importa. Pelo contrário, parte do mundo político vem tentando se reaproximar de Bolsonaro.

O exemplo de Witzel deveria servir-lhes de aviso: ser adotado como aliado por Bolsonaro é como ser adotado como marido pela deputada Flordelis.

Mesmo depois das repetidas tentativas de envenenamento, o establishment brasileiro parece disposto a ir com Bolsonaro para a casa de swing.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Eliane Cantanhêde: Legalidade sempre!

Afastamento de Witzel por decisão monocrática e sem ouvi-lo acende luz amarela entre governadores

O Ministério Público acertou ao investigar e descobrir maracutaias justamente na área de saúde no Rio de Janeiro, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) errou ao decidir monocraticamente o afastamento do governador Wilson Witzel por 180 dias, sem nem sequer ouvir o que ele tem a dizer sobre as acusações, feitas a partir de uma delação premiada. Combater a corrupção, sim, mas abrir um precedente perigoso contra governadores, não. Por isso, o julgamento de terça-feira no plenário do STJ é tão importante.

Desde sexta-feira, há intensa troca de telefonemas e mensagens entre governadores, para analisar a situação e a operação que pegou Witzel de jeito. Ninguém defende Witzel, até porque eles não viram o processo e não conhecem as provas, mas todos defendem ferrenhamente a legalidade. Que o MP investigue e faça o que tem de fazer e que a Justiça decida, julgue, puna. Mas um único ministro afastar um governador eleito? Sem dar a ele acesso às acusações? Sem ouvi-lo?

Se hoje é Witzel, amanhã pode ser qualquer um. Há motivos para a preocupação. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, a ministra Damares Alves disse, em bom e alto som, que estava tudo pronto para pedir a prisão de governadores e prefeitos. A deputada bolsonarista Carla Zambelli, do PSL, sabia de véspera das primeiras buscas e apreensões contra Witzel. O senador Flávio Bolsonaro avisou com antecedência que o vice-governador assumiria. Witzel lembrou que a subprocuradora-geral Lindôra Araújo é bolsonarista e amiga de Flávio. Amigo do meu inimigo é meu inimigo?

É um óbvio subterfúgio de réu que, sem resposta para os fatos, desqualifica acusadores. Mas serve de alerta para MP e Justiça serem milimetricamente rigorosos, sem abrir brechas ao acusado nem gerar desconfiança entre governadores. Uma coisa, legal, elogiável, é investigar roubalheiras e punir responsáveis. Outra é aproveitar erros de um governador para generalizar, jogar a opinião pública contra todos e criar ambiente para afastamentos, buscas e apreensões, até prisões.

Todo cuidado é pouco nessa hora, com o presidente Jair Bolsonaro em campanha e com tudo engatilhado para despejar sobre os governadores todas as culpas por 120 mil mortos, pandemia, economia, desemprego, queimadas, (falta de) educação. Bolsonaro vai posar de vítima, os governadores serão os réus. Bolsonaristas compram qualquer versão do “mito”. E os demais?

Witzel é uma das estrelas da “nova política” que invadiu governos estaduais e Congresso pelo PSL e PSC e na onda Bolsonaro. Nunca se ouvira falar num tal de Witzel e nem se sabia pronunciar o nome daquele juiz que caiu de paraquedas na eleição num dos três principais Estados do País, com direito a vídeo de apoio do general Augusto Heleno, um dos mentores da candidatura Bolsonaro.

O discurso de Witzel foi o mesmo que varou o País, com neófitos em Minas, DF, Norte, Sul, Centro-Oeste: Congresso, Supremo, política e políticos são uma porcaria, nós somos os bons, os salvadores da Pátria. Mas Witzel não é o único que sucumbe antes de completar dois anos de mandato. Aliás, como estão os processos contra Flávio Bolsonaro?

Por tudo isso e as provas que se acumulam, a repetição primária dos métodos do condenado Sérgio Cabral e a transformação de Helena Witzel na nova Adriana Ancelmo, os procuradores do Rio merecem aplausos, descortinando a corrupção, demolindo o discurso fraudulento. Mas não pode haver dúvidas quando Witzel se diz “massacrado politicamente”. Em vez de réu por corrupção, ele quer se passar por vítima do bolsonarismo. Se o STJ e o MP forem impecáveis, esse discurso não para em pé. Se não, o que é questão de justiça pode virar oportunismo político e ameaçar os governadores.


Vera Magalhães: Corrida da toga

Vale tudo em nome das cadeiras que vão vagar no Supremo Tribunal Federal

Com o protagonismo ainda maior adquirido pelo Supremo Tribunal Federal em tempos de revisão da Lava Jato e de freios nos arreganhos autoritários de Jair Bolsonaro, foi desencadeada uma bizarra corrida pelas duas cadeiras de ministros que vão vagar no intervalo de um ano. Vale tudo para demonstrar lealdade ao presidente e ser digno da canetada da sua Bic.

Pelo menos três atores têm sido pródigos em mostrar serviço na expectativa de serem premiados com a cobiçada toga. A briga pelos lugares dos “Mellos”, Celso e Marco Aurélio, tem produzido decisões em que o direito é torcido e retorcido, com graves consequências políticas e institucionais.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, nomeado por Bolsonaro ao arrepio da lista tríplice e à revelia dos seus pares, é um deles. A última da PGR sob seu comando foi produzida pelo seu vice, Humberto Jacques de Medeiros: o parecer favorável ao foro privilegiado retroativo para Flávio Bolsonaro no caso Fabrício Queiroz.

Medeiros também tem expectativas com a “corrida da toga”: se for Aras o agraciado agora em novembro, são grandes as chances de Bolsonaro designá-lo para o seu lugar.

O fundamento para aliviar a barra de Flávio contrasta com o que o próprio Medeiros usou em outra recente decisão polêmica: a de que requisitar documentos da Lava Jato de Curitiba. Agora ele argumentou que Flávio pode ter seu caso levado para o TJ do Rio porque a decisão do STF em contrário não era vinculante. Na outra, pegou um precedente aleatório para justificar a requisição de dados, sem evocar a necessidade de “aderência”. Um direito para cada ocasião.

Aras deu parecer contrário a buscas e apreensões contra bolsonaristas no inquérito do STF. Agora, no caso Wilson Witzel, o Ministério Público Federal pediu o afastamento de um governador e ele foi acatado por um ministro do STJ de forma monocrática.

Qual a linha da PGR? Depende da circunstância e do alvo?

O próprio STJ, aliás, virou palco auxiliar da corrida pela vaga no tribunal mais prestigiado. Basta lembrar do “canto do cisne” de João Otavio de Noronha na presidência da Corte: mandar Fabrício Queiroz para a prisão domiciliar por uma liminar no meio do recesso. Noronha é outro que tem a expectativa de ser agraciado por Bolsonaro.

Mais próximo do presidente está o ministro da Justiça, André Mendonça, que se transformou em tudo aquilo que Bolsonaro queria que Sérgio Moro fosse, mas o ex-juiz não quis.

A Advocacia-Geral da União, que ele chefiava antes, continua sendo uma subsidiária de sua linha de trabalho, e a pasta da Justiça virou um misto de advocacia particular do presidente e agência de espionagem de seus inimigos, em procedimento para o qual a maioria dos ministros do STF passou uma reprimenda, mas aliviou a barra do postulante a colega.

E aí há um aspecto importante: os 11 ministros do Supremo têm dado sinais ambíguos quanto à defesa da institucionalidade e aos freios necessários aos demais Poderes e a outros órgãos do sistema de Justiça.

Contêm o presidente, mas usam expedientes no mínimo duvidosos para isso. Repreendem os excessos da Lava Jato, mas seguem tomando decisões monocráticas que chocam a sociedade porque vão na contramão do esperado combate à impunidade. Defendem a liberdade de imprensa, mas abrem um precedente ao evocar a Lei de Segurança Nacional para punir ativistas – dando a senha para Mendonça fazer o mesmo com um jornalista.

O grau de degradação de todas as instâncias da vida nacional que Bolsonaro produziu com sua Presidência tóxica em um ano e 8 meses dará trabalho de corrigir. O sistema de Justiça não passará incólume a essa deliberada estratégia de destruição. Sob a complacência, quando não participação ativa, de muitos dos seus atores.