stalinismo

Marcus Oliveira: As redes e a relativização do terror stalinista

As redes ampliaram decisivamente as dimensões da esfera pública. Com a individualização do acesso a distintas formas de publicação virtual, determinadas ideias, que contavam com pouca penetração nas mídias tradicionais, foram amplificadas pelo poder das redes. Nesse sentido, ainda que considerando as limitações dos algoritmos e a formação das bolhas virtuais, é possível afirmar um caráter democratizador das redes sociais. Todavia, esse processo de democratização é acompanhado pela emergência de discursos autoritários, relativismos e negacionismos de diversos matizes.

Giuliano Da Empoli

Conforme demonstrou o jornalista italiano Giuliano da Empoli, a engenharia do caos das redes sociais estimula a difusão desses discursos. Na medida em que as publicações adquirem relevância em virtude das reações do público, sejam elas de apoio ou rechaço, conteúdos radicais, tanto à esquerda quanto à direita, tendem a ocupar mais espaço dado ao amplo engajamento que recebem. Contraditoriamente, como nos demais processos de democratização, essa ampliação da esfera pública convive com vários espectros do autoritarismo.

Nesse cenário, a discussão em torno do stalinismo adquiriu certa relevância em virtude das publicações do historiador e comunicador Jones Manoel. Militante do PCB, Manoel, em entrevista concedida em setembro de 2020 à Folha de São Paulo, marca o anacronismo de uma parcela da esquerda que, incapaz de elaborar uma crítica consistente do passado, precisa tergiversar quanto as suas próprias tragédias. Embora não se assuma como stalinista, e até mesmo reconheça a existência do terror e dos gulags, Manoel opera uma defesa de Stalin que se desenvolve a partir de uma tentativa de separação ou compensação entre a violência e o que, em seus termos, seriam elementos emancipatórios contidos no regime.

Além de se desdobrar na relativização do terror stalinista, esse argumento compensatório ignora que não há regimes capazes se manterem exclusivamente por meio da força e que a constituição desses elementos emancipatórios são indissociáveis na produção dessa ordem política violenta e arbitrária. Na entrevista, ao ser indagado se os aspectos emancipatórios se sobrepunham ao terror, Manoel afirma que a análise histórica não deve estabelecer balanços entre pontos positivos e negativos, mas compreender a totalidade do fenômeno. Ao contrário disso, sua relativização do stalinismo parte precisamente da fragmentação do fenômeno, em uma tentativa de isolar seus termos como em uma equação matemática.

O blogueiro Jones Manoel e a figura de Josef Stalin

Embora pareça se desdobrar em uma crítica da violência política, essa argumentação termina por, contraditoriamente, reafirmar a necessidade da violência revolucionária. Ao se deparar com essa violência, Manoel tangencia novamente, afirmando a existência da violência burguesa, exercida sobretudo pelo imperialismo americano. Nessa comparação, torna-se evidente a legitimação que faz da violência revolucionária como contraponto necessário da violência capitalista.

Portanto, em última análise, a discussão não ocorre em torno da política, mas das possibilidades revolucionárias. Filiado ao PCB, que regularmente disputa as eleições com candidatos próprios ou por meio de alianças, Manoel invalida a democracia. Instrumento burguês por excelência, a democracia não poderia permitir a articulação dos interesses dos trabalhadores rumo ao socialismo. Nada além de ilusória, a democracia mascara a violência e a arbitrariedade do capitalismo. Nesse cenário, no qual a violência é inevitável, o terror stalinista, assim como as demais experiências autoritárias de esquerdas, se encontram justificados e legitimados de antemão.

Evidentemente, não se trata de defender a censura ou a retirada desses conteúdos das redes, mas de perceber como, por meio dessa ampliação da esfera pública impulsionada por essas mídias, posicionamentos autoritários e anacrônicos irrompem dos subterrâneos para, utilizando-se dos termos de Marx, disputar a política a partir daquilo que foi primeiro tragédia e agora é farsa.

É preciso, diante disso, cada vez mais ocupar as redes, difundindo os horizontes possíveis de uma outra esquerda que soube enfrentar seu passado e, por isso, busca encontrar seus caminhos em meio às desafiadoras e por vezes enigmáticas transformações que atravessamos mundialmente. Respirando ainda um ar rarefeito, falta fôlego para encarar esse percurso. Recuperá-lo, nessa perspectiva, significa abandonar o assalto aos céus e descer ao nível do mar, onde, no presente, é preciso criar os novos itinerários para essa modernidade.


Evandro Milet: 1984 - o manifesto do ódio

George Orwell escreveu 1984 em 1948 como uma descrição das forças que ameaçam a liberdade e da necessidade de resistir a elas. Não há como deixar de associar as situações extremas relatadas com as ameaças à democracia que aconteceram e acontecem em muitos países, à direita e à esquerda, em maior ou menor grau, assim como ele teve como inspiração o regime stalinista.

Orwell cria uma linguagem, a novilíngua(ou novafala em algumas traduções) com expressões que refletem o ambiente de repressão relatado. Em novilíngua, duplipensamento significa a capacidade precavida de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas, por exemplo, acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era o guardião da democracia. Nada estranho para quem se diz democrata e pede fechamento do Congresso, intervenção militar ou exalta ditaduras - aqui ou em Cuba. Ou governos que lançam programas pela manhã e os classificam como insanidade à tarde. Ou simpatizantes de autocracias com aparência democrática, os chamados iliberais.

Na história, o ato essencial do Partido no poder consiste em “usar o engodo consciente sem perder a firmeza de propósito que corresponde à total honestidade”, lembra as fakenews propagadas quase oficialmente; e milicianos e rachadinhas versus supostas estatísticas de honestidade seletiva. Ou governantes que se auto declaram " o mais honesto" depois de comandar o maior assalto aos cofres públicos.

No evento "Dois minutos de Ódio" que acontecem regularmente na história como preparativos para a "Semana do Ódio"( na história não aparece um gabinete dedicado a isso), todos são induzidos ao paroxismo de gritar slogans e atirar objetos nas teletelas que mostram os inimigos, teletelas que estão em todos os lugares vigiando todos. Em seguida gritam exaltações histéricas “G-I!…,G-I!…,G-I!…” quando aparece a figura do Grande Irmão, um grande mito. Nunca deixe de berrar junto com a multidão, só assim você estará em segurança, é a recomendação.

Os adeptos mais fanáticos do Partido eram os devoradores de slogans, os espiões amadores e os farejadores de ortodoxia que parecem figuras que circulam nas redes sociais e grupos de WhatsApp. A mulher de Winston, o personagem principal, era incapaz de formular um só pensamento que não fosse um slogan, assim como não havia uma imbecilidade que ela não engolisse se o partido assim o quisesse.

Em novilíngua, criminterrupção significa “a capacidade de parar, como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso ou pensamento-crime. O conceito inclui a capacidade de não entender analogias, de deixar de perceber erros lógicos, de compreender mal os argumentos mais simples, caso sejam antagônicos ao Partido, e de sentir-se entediado ou incomodado por toda sequência de raciocínio capaz de enveredar por um rumo errático”. Lembra debates no Facebook e a vigilância da cultura do cancelamento, que procura constranger quem manifesta opinião divergente. A heresia das heresias era o bom senso. 

Um conceito fundamental é a mutabilidade do passado. No Ministério da Verdade, o trabalho consiste em apagar sistematicamente as informações do passado que contrariam o presente, como metas não cumpridas, pedaladas ou vaporizando(cancelando, aniquilando) pessoas que passam a inimigas, talvez como dissidentes do Partido ou ex-ministros. Esses passam a ser despessoas, muitas torturadas no Ministério do Amor. Afinal, “quem controla o passado controla o futuro, quem controla o presente controla o passado” é lema do Partido.

A polícia das ideias mantém as teletelas em todos os lugares, capazes de perceber até um rostocrime(em novilíngua), que significa ostentar uma expressão inadequada em alguma situação como, talvez, duvidar de alguma proposta do governo e virar inimigo. Hoje uma postagem no Twitter ou Facebook pode causar o mesmo efeito.

Se você quer formar uma imagem do futuro, imagine uma bota pisoteando um rosto humano - para sempre, conclui O’Brien, o torturador de Winston, preso por pensamento-crime, depois de explicar a ideologia que move o Partido. 

Mesmo longe dessas situações extremas, é sempre bom estar antenado com assustadoras distopias na literatura. 

O mundo precisa resgatar as virtudes da tolerância e da empatia. O resultado das eleições americanas pode ser um ponto de inflexão na polarização nefasta que se espalhou também no Brasil.


Demétrio Magnoli: O stalinismo limpava a História de inimigos; no Brasil, ensaia-se eliminar os amigos, para protegê-los

 

The Commissar Vanishes (1997), de David King, é uma fascinante história da falsificação de fotografias e imagens artísticas na URSS. "A erradicação física dos oponentes de Stalin, pelas mãos da polícia secreta", escreveu King, referindo-se aos grandes expurgos dos anos 30, "foi celeramente seguida pela sua obliteração de todas as formas de existência pictórica". A ditadura stalinista limpava a História de seus inimigos.

No Brasil, hoje, inversamente, ensaia-se eliminar os amigos, a fim de protegê-los. É o que faz Mathias Alencastro, ao contar as aventuras da Odebrecht em Angola sem mencionar nenhuma vez o nome próprio Lula (Folha, 21/8).

Alencastro apoia-se na delação de Emilio Odebrecht para recordar a longevidade da parceria entre a Odebrecht e o cleptocrático ditador angolano José Eduardo dos Santos, iniciada nos anos 80, mas esquece-se do que confessou o mesmo delator sobre a singularidade do período iniciado em 2003. A diferença crucial pode ser sintetizada numa sigla de cinco letras que também foi suprimida de sua pintura: BNDES.

Angola representa 28% do total de financiamentos do BNDES para obras no exterior, ocupando o primeiro lugar, à frente da Venezuela (22%), da República Dominicana e da Argentina (16% cada). Dos R$ 14 bilhões destinados a Angola, a Odebrecht abocanhou 79%. Antes de 2003, porém, eram quase insignificantes os financiamentos públicos brasileiros para Angola –e, em geral, para obras no exterior.

A exclusão de Lula e do BNDES da obra do articulista é o pilar estrutural de uma tese, não um deslize informativo. A tese: a Odebrecht "era a ponte através da qual os governos brasileiros entravam em Angola, e não o contrário".

Se assim fosse, Angola deveria ganhar a distinção de mosca branca: Lula funcionou como "ponte" através da qual a Odebrecht expandiu seu império por terras da Venezuela, da República Dominicana, da Argentina, do Panamá, do Peru e de Cuba (em todos casos, à óbvia exceção de Cuba, onde dispensam-se marqueteiros, com auxílio do inefável João Santana). Mas Angola é só outra mosca preta, como atesta a confissão de Emilio Odebrecht.

Segundo seu depoimento, Emilio solicitou os bons ofícios de Lula para que a Odebrecht fosse favorecida em Angola. O patriarca também disse que, após a crise financeira de 2008/2009, quando desabaram as receitas petrolíferas angolanas, o BNDES tornou-se a única fonte significativa de recursos para a empresa no país africano.

De fato, em meados de 2010, o BNDES abriu nova linha de crédito destinada a obras em Angola, no valor de US$ 1 bilhão. As relações especiais entre Lula e José Eduardo dos Santos prosseguiram durante o governo Dilma. Em 7 de maio de 2014, os dois se reuniram no palácio presidencial, em Luanda.

O encontro realizou-se durante seminário organizado pelo Instituto Lula e pela Fundação José Eduardo dos Santos, a engrenagem montada para converter rendas petrolíferas angolanas em bens patrimoniais da família Santos.

A conexão angolana não beneficiou apenas a Odebrecht (e, provavelmente, a quadrilha Santos). Lula proferiu palestras em Angola em julho de 2011, um ano após a liberação dos créditos do BNDES, e maio de 2014, na véspera do encontro com Santos. As duas foram patrocinadas pela Odebrecht e, de acordo com Alexandrino Alencar, elo operacional entre Emilio e Lula, renderam um total direto de US$ 400 mil ao palestrante. Nas palavras de Alencar, "construímos juntos o programa de palestras como uma forma de remuneração do ex-presidente".

A erradicação narrativa de Lula serve, tanto quanto a obliteração pictórica dos inimigos de Stalin, a um exercício de revisionismo histórico. "Uma foto pode parecer esquisita, como resultado de retoques brutais", esclarece David King. A observação não vale exclusivamente para as pinceladas dos aerógrafos soviéticos.