Simon Schwartzman

Simon Schwartzman: A eleição de Biden e o futuro da extrema direita

Há uma boa chance de que o radicalismo volte para os rincões de onde nunca deveria ter saído

Com a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais americanas, a grande pergunta para os Estados Unidos, que interessa também ao Brasil e a muitos outros países, é se o radicalismo de extrema direita de Donald Trump, Jair Bolsonaro e semelhantes é um fenômeno passageiro, que começa a se esvair, ou se, ao contrário, é o novo governo democrata que é passageiro. Foi esse o tema de recente seminário organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso com a jornalista e escritora Anne Applebaum, autora de O Crepúsculo da Democracia, que deve ser publicado no Brasil proximamente.

O que caracteriza o radicalismo de extrema direita, assim como o de extrema esquerda, não são os valores e preferências de seus proponentes – mais ou menos a favor do mercado, de políticas sociais, dos direitos, e os costumes que defendem –, mas o ataque que fazem às normas e às instituições do Estado de Direito, que regulam os processos de disputa eleitoral, colocam limites no poder dos governantes e garantem as liberdades individuais. É o respeito a essas normas e instituições, e não o eventual apoio popular, que distingue os regimes democráticos dos autoritários em suas diferentes versões. Hitler e Mussolini, passando por Perón, Hugo Chávez, Tayyip Erdogan e Viktor Orbán são exemplos de governantes que chegaram ao governo com apoio popular e abusaram do poder para destruir as instituições que os elegeram.

Foi esse o caminho buscado por Trump ao negar a validade das eleições que perdeu e jogar seus militantes contra o Congresso. E tem sido esse também o caminho buscado por Bolsonaro ao tentar jogar as Forças Armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, quando eles anda pareciam independentes, e ameaçar desde já não reconhecer os resultados de uma futura eleição da qual eventualmente saia derrotado.

Impressiona, ao ver essa lista de governantes autoritários, a facilidade com que conseguem, uma vez eleitos, destruir as instituições democráticas e permanecer no poder, graças não só ao apoio popular, mas também ao beneplácito de muitos intelectuais e líderes políticos, empresariais e institucionais que não têm problema em jogar seus escrúpulos às favas em nome de seus interesses práticos mais imediatos. É um cinismo generalizado que percorre de cima a baixo a sociedade e afeta não só os valores mais abstratos do Estado de Direito e da democracia, mas coisas muito mais concretas, como a tolerância à corrupção, à discriminação social e à violência. Isso talvez se explique pela noção, dada como óbvia pelos economistas, de que o ser humano vive e atua em função não de princípios, mas de seus interesses egoístas, ou, como diria Thomas Hobbes, um dos fundadores da ciência política, de que, deixado à solta, o homem é o lobo do homem.

Se isso é assim, o fenômeno anormal que precisa ser explicado não é o surgimento e a permanência dos regimes autoritários, mas a existência e a persistência de regimes democráticos. Não basta dizer que os regimes democráticos são moralmente superiores aos autoritários, quando, para muitos, essa superioridade é demasiado abstrata e distante de seus interesses do dia a dia. É preciso também ver se, e em que medida, o Estado de Direito e os regimes democráticos também podem trazer benefícios práticos para a população que os tornem mais interessantes do que os autoritários. Com raras exceções, basta comparar as sociedades democráticas com as autoritárias para ver como são muito mais vantajosas. Nelas as pessoas vivem sem medo de dizer o que pensam e de ser oprimidas e achacadas pelos governantes; com a liberdade de se organizar e empreender e a confiança nas regras de funcionamento dos mercados, a economia floresce e é distribuída de forma mais igualitária; as instituições são preservadas, as políticas públicas de saúde, educação e meio ambiente são conduzidas pelas pessoas mais competentes e os conflitos de interesses, em vez de serem disputas sangrentas e sem limites, se resolvem de forma civilizada, segundo “regras do jogo” que todo mundo respeita.

Mas as democracias são imperfeitas, nem sempre conseguem cumprir o que prometem e padecem da “tragédia dos comuns”, que acontece sempre que os interesses individuais de curto prazo prevalecem sobre os interesses gerais de longo prazo. Por isso elas não ocorrem de forma natural, mas precisam ser construídas por elites capazes de pensar no longo prazo, obter apoio para suas ideias e mostrar resultados práticos de curto prazo, que possam fazer a ponte entre os interesses individuais e o interesse coletivo.

Se Biden for capaz de, ao mesmo tempo, restabelecer as normas básicas da democracia americana e lidar com os problemas de curto prazo da epidemia e da recessão econômica, há uma boa chance de que o radicalismo de direita americano volte para os rincões de onde nunca deveria ter saído. Da mesma forma, no Brasil o futuro depende da capacidade da parte sã que ainda resta de nosso sistema político, econômico e institucional de apontar para uma alternativa ética, também construtiva, ao bolsonarismo.

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS


Simon Schwartzman: Dançando por Biden

Na eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos jovens

Vendo as imagens do povo dançando nas praças, festejando a derrota de Donald Trump, mais do que a vitória de Joe Biden, é inevitável comparar com 12 anos atrás, quando da eleição de Barack Obama. Tal como agora, Obama derrotou um presidente medíocre e inescrupuloso, que jogou o país numa guerra insensata no Iraque e deixou a economia afundar. Havia a sensação de que algo realmente novo e importante estava acontecendo nos Estados Unidos, com impacto em todo o mundo. Obama era negro, mas foi eleito com a bandeira de uma sociedade pós-racial. Era um intelectual com fortes valores humanistas, que projetava uma política internacional de respeito e consideração para diferentes culturas. No ano seguinte ganhou o Prêmio Nobel da Paz, não pelo que já tinha feito, mas pelo que prometia. Sua eleição parecia indicar que os Estados Unidos, finalmente, haviam rompido as barreira do racismo, do isolacionismo e do descaso com as políticas sociais.

Oito anos depois, sem ter conseguido fazer tudo o que prometia, era normal que Obama não conseguisse fazer seu sucessor. Mas a eleição de Trump não foi uma simples alternância de poder, mas uma indicação de que a nova era anunciada pela eleição de Obama era, em grande parte, uma ilusão, e que coisas piores estavam por vir. Ao tomar de assalto o Partido Republicano, Trump capitalizou uma forte corrente de preconceitos raciais, anti-intelectuais e de xenofobia que pareciam ter sido postos à margem da sociedade americana e subitamente mostraram suas garras. Com ele, a mentira sistemática das fake news, a prevalência descarada dos interesses comerciais privados sobre o interesse público, o desmonte das instituições governamentais e sua ocupação por bajuladores, o racismo, a xenofobia e todos os preconceitos que antes não se manifestavam se tornaram “normais”. O passo seguinte, inevitável, era o ataque às instituições mais centrais do sistema democrático, culminando, agora, com o próprio sistema eleitoral.

A vitória de Biden mostra que nem tudo está perdido, mas deixa um gosto amargo, porque a “onda azul” foi menor do que se esperava e Biden provavelmente terá ainda menos condições de cumprir o que promete do que Obama, tanto pela oposição sistemática que receberá como por um contexto internacional menos favorável, com a ascensão inevitável da China. A democracia americana sobreviverá, mas longe do vigor que a era de Obama parecia prenunciar. A História americana recente é semelhante à de muitos outros países, incluído o Brasil, de surgimento de lideranças radicais que conseguem forte apoio popular e partem para o assalto às instituições democráticas, e da dificuldade dos partidos moderados de prevalecerem. O que explica a força desses movimentos antidemocráticos e a fragilidade das democracias?

A pergunta, na verdade, deve ser posta ao contrário, porque a democracia é uma flor frágil, e é quase um milagre que tenha sobrevivido em tantos lugares até aqui. Em livro recente, O Ocaso da Democracia, a jornalista americana Anne Applebaum, casada com Radosław Sikorski, também jornalista e político de destaque dos governos democráticos da Polônia, conta a história da conversão à extrema direita de muitos de seus amigos e colegas que, como os dois, haviam se engajado na oposição ao stalinismo e na esperança de uma nova era democrática para a Europa e os Estados Unidos, e viram em seu lugar surgir os regimes de Jarosław Kaczynski na Polônia, Viktor Orbán na Hungria e Donald Trump nos Estados Unidos. Cada história é diferente, combinando em diversas doses oportunismo, ambição e impaciência com a lentidão dos regimes democráticos em produzir os resultados esperados. Mas existem problemas mais gerais. A ideia de que a democracia, combinada com a valorização do mérito e da economia aberta e competitiva, é a melhor forma de governo perde força quando ela se torna disfuncional, com muitas pessoas se sentindo excluídas de seus benefícios. E a democracia não consegue dar respostas aos anseios das pessoas por identidade pessoal, comunitária ou nacional. Ao se opor ao surgimento da extrema direita, a oposição liberal, nos Estados Unidos e outras partes, ao invés de tentar reconstruir o consenso nacional ao redor dos valores democráticos e do interesse comum, muitas vezes dá prioridade às políticas de identidade de grupos minoritários e setores marginalizados e discriminados, reduzindo ainda mais o espaço para a democracia consensual.

A democracia, para sobreviver, precisa de lideranças capazes de interpretar o interesse geral, de instituições capazes de resistir aos assaltos dos tiranos de plantão, e de uma população capaz de entender que a política é mais do que a expressão de suas ansiedades e frustrações. Na eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos eleitores mais jovens.

Anne Applebaum também termina seu livro falando de uma nova geração que busca novos caminhos, além das políticas exauridas da democracia complacente e da extrema direita enlouquecida. O futuro é incerto, mas há esperança.

*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências


Simon Schwartzman: A tentação de Goebbels

Devem nos preocupar os que não se importam com meios para chegar a seus fins políticos

Em 1934 o jovem Luís Simões Lopes, chefe de gabinete de Getúlio Vargas e mais tarde criador do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) e da Fundação Getúlio Vargas, vai a Berlim, fica fascinado com o Ministério de Propaganda de Goebbels e manda uma carta entusiasmada para o presidente dizendo que o Brasil precisava de algo parecido. “O que mais me impressionou em Berlim”, escreve, “foi a propaganda sistemática, metodizada do governo e do sistema de governo nacional-socialista. Não há em toda a Alemanha uma só pessoa que não sinta diretamente o contato do nazismo ou de Hitler, seja pela fotografia, pelo rádio, pelo cinema, através da imprensa alemã, pelos líderes nazis, pelas organizações do partido...”.

A carta expressa dúvida sobre a obsessão nazista com a grande conspiração dos judeus para dominar o mundo (“parece-me que através do capitalismo seria mais fácil”), mas é só um detalhe: “A organização do Ministério da Propaganda fascina tanto que eu me permito sugerir a criação de uma miniatura dele no Brasil.

Evidentemente, não temos recursos para manter um órgão igual ao alemão (...), mas podemos adaptar a organização alemã dotando o país de um instrumento de progresso moral e material formidável. A Alemanha, além de outras todas, leva-nos a vantagem de ter um governo praticamente ditatorial”.

“Com todos os tropeços que se nos deparam, devemos ensaiar a adoção dos métodos modernos de administração, de órgãos de ação pronta e eficaz, experimentados em outros países.”

Depois de detalhar as áreas de atividade do ministério, a carta continua dizendo que “a antiga nobreza é contra Hitler, que acabou na Alemanha com as castas”, e “a democratização é um fato. Os ‘dancings’, cinemas etc., que eram frequentados pela elite, estão hoje repletos de povo, que vive satisfeito e distraído, esquecido da política”.

Num apêndice há um resumo das principais áreas de atuação do Ministério da Propaganda: são dez itens, começando com questões gerais da vida social e política, combatendo os adversários dentro e fora do país e controlando todos os meios de propaganda e publicação, da arte e de cultura, e culminando com a organização de manifestações oficiais, festas nacionais, feriados e o hino nacional.

Estávamos em 1934, ano em que uma nova Constituição foi promulgada, com a promessa de marcar uma nova eleição em 1938. Dois anos antes São Paulo havia se insurgido contra o governo central e a nova Constituição foi, sobretudo, uma tentativa de conciliação de Vargas com as elites paulistas, que durou até a implantação da ditadura, em 1937.

Não é por acaso que essa carta tenha sido repassada por Getúlio para Gustavo Capanema, Ministro da Educação, em cujo arquivo se encontra. Na visão de Getúlio, e do próprio Capanema, caberia a esse ministério, em aliança com a Igreja conservadora, administrar o uso do rádio, do cinema, das artes, dos currículos escolares e de grandes eventos cívicos, como os grandes desfiles e o canto orfeônico, mobilizando o povo a favor da Nação, tal como entendida pelo governo.

Ao longo dos anos, o ministério fez o que pôde para cumprir esse papel, ao mesmo tempo que acenava para os intelectuais com a proteção ao patrimônio histórico e a convivência com os modernistas, Em 1939, desistindo do Ministério da Educação, que chegou a ser prometido a Plínio Salgado, Vargas finalmente segue a sugestão de Simões Lopes e cria o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a versão cabocla do ministério de Goebbels. Basta ler os objetivos do DIP no seu decreto de criação para ver que foram praticamente copiados do resumo feito cinco anos antes por Simões Lopes.

Simões Lopes e Getúlio Vargas compartilhavam a ideia de que a democracia representativa era um modelo político fracassado, que precisava ser substituído por regimes que fizessem uso de todos os meios para modernizar a sociedade e instaurar a verdadeira democracia, que para eles significava deixar o povo “satisfeito e distraído”. O que diferenciava o regime de Vargas dos fascismos europeus era que ele via a mobilização ideológica como ameaça, e por isso mesmo se desfez de seus aliados integralistas logo após o golpe de 1937.

Coisas como antissemitismo, nacionalismo, religião, normas constitucionais, direitos humanos, arte, literatura, todo esse mundo de valores e princípios, certos ou errados, eram meras conveniências que podiam ou não ser usadas para conseguir o que importava: a administração “moderna”, a capacidade de ação “pronta e eficaz” e o esperado progresso “moral e material”.

É possível que hoje, como nos anos 1930, a grande tentação de Goebbels não seja tanto a ideologia grotesca do nazismo, com o antissemitismo assassino, o nacionalismo doentio, o anti-intelectualismo e o culto macabro da morte e da violência, mas, sobretudo, a indiferença ética e moral dos que colocam seus objetivos políticos, com boas ou más intenções, acima de tudo e não se importam com os meios para chegar a seus fins.

É isso que nos deve preocupar mais.

* Simon Schwartzman é sociólogo e membro da Academia Brasileira de Ciências