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Cristiano Romero: A reforma esquecida

Reformar Estado não é demonizar servidor público

No país das reformas que nunca são concluídas, a administrativa é inadiável. Na verdade, deveria ter sido feita antes mesmo da reforma previdenciária e, agora, deveria ser apreciada antes da reforma tributária, que atolou e cujo destino é o fracasso, uma vez que trata de interesses inconciliáveis da União com os demais entes da Federação, dos Estados mais ricos com os menos afortunados e do governo central (leia-se, o Fisco) com as empresas.

Sem que se reforme o Estado brasileiro, o gasto público continuará sendo alto e pouco efetivo. A carga tributária (em torno de 33% do PIB), uma das maiores dos países em desenvolvimento, terá que ser sempre elevada para bancar despesas crescentes - mesmo nesse patamar, a arrecadação não cobre desde 2014 nem sequer a despesa primária (conceito que não inclui o gasto com juros).

Sem reforma, os serviços públicos prestados à população, principalmente a mais pobre, serão sempre de baixa qualidade. A competitividade das empresas brasileiras face aos concorrentes internacionais estará sempre comprometida, o que é ruim para todos, porque isso gera menos riqueza, portanto, menos empregos, menos renda etc.

O Brasil tem um Estado caro e um serviço público de baixa qualidade. Isso torna irrefutável a necessidade de reforma. Tem algo errado e, sem demonização do funcionalismo público, a sociedade precisa acordar para o problema. Tome-se o caso da educação: apesar dos avanços ocorridos desde a promulgação da Constituição, em 1988, especialmente no que diz respeito à universalização do ensino básico, o gasto chegou a 6% do PIB, mas a qualidade não acompanhou.

O senador Antonio Anastasia (PSD-MG) criou, com a ajuda da colega Kátia Abreu (PP-TO) e do deputado Tiago Mitraud (Novo-MG), a Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa (FPMRA). Sem alarde, o grupo está dialogando com todas as partes envolvidas no tema, para formular um conjunto de projetos de lei, além de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), destinados a reformar profundamente a forma como o Estado brasileiro funciona.

A frente, presidida pelo deputado Mitraud, apresentrará as propostas em setembro. A estratégia de separar os projetos por assunto, em vez de colocar todos num só, é realista. É possível que alguns aspectos das mudanças tenham amplo apoio dos parlamentares e outros, menos. Para evitar tumulto e corrida por pedidos de aposentadoria, fato recorrente na tramitação de propostas que alteram direitos individuais e coletivos, Anastasia, que é funcionário público licenciado (professor de direito da UFMG), informa que a reforma não mexerá nos direitos adquiridos de quem já está no serviço público.

Pretende dialogar com o ministro Paulo Guedes.
Por incrível que pareça, o país andou para trás na área administrativa. Anastasia lembra que, entre 1938 e 1985, o governo federal teve um órgão central - o Dasp - para gerir todas as carreiras do serviço público. Era uma espécie de RH do serviço público. No início da Nova República, o Dasp foi extinto e a Constituição de 1988 acabou submetendo todas as carreiras debaixo o Regime Jurídico Único. Criou-se uma anomalia, cujo maior prejudicado, claro, é o usuário de serviços públicos.

Esse regime instituiu uma aberração - a isonomia salarial entre as diferentes carreiras do serviço público. O objetivo era evitar que os salários de determinadas carreiras se tornassem muito mais altos que o de outras. Ora, além de não fazer sentido, a regra criou em Brasília uma espécie de corrida ao ouro. Como não havia mais o Dasp, os funcionários dos diferentes órgãos fortaleceram seus sindicatos e foram à luta, ano a ano, em busca de vencimentos mais e de outras vantagens.

A maluquice ensejou a seguinte situação: nas disputas judiciais, diante da ausência do Dasp, quem representa a União é um funcionário público do mesmo órgão cujos servidores estão em litígio por mais salário e benefícios. O incentivo não poderia ser pior, logo, é fácil entender por que o funcionalismo goza de vencimentos e vantagens incomparáveis aos da média dos trabalhadores do setor privado.

Reformas institucionais
Os livros de história nos contam que a sociedade brasileira demanda, desde sempre, a realização de reformas institucionais para modernizar o país e destravar o crescimento econômico. Nos momentos em que houve ruptura institucional - 1930, 1937, 1964 - ou transição pacífica de regime (1985), a necessidade de promover reformas foi o motivo condutor (o “leitmotiv”) das mudanças.

Em 1930, a República proclamada havia 41 anos era manca. A elite política de apenas dois Estados (São Paulo e Minas Gerais), amparada por oligarquias rurais dos segmentos de café e pecuária, comandava o país. A Ilha de Vera Cruz, tão rica em possibilidades, padecia de atraso injustificável.

Não tinha mesmo como ser diferente: a era republicana nasceu de um golpe militar, entre outras razões, porque os barões do café e proprietários rurais em geral não engoliram a decisão (tardia, muito tardia) do imperador Dom Pedro II, tomada um ano antes, de abolir a escravidão. Além de não aceitarem o fim da infâmia com a qual convivemos durante 400 anos - e que se tornou, por essa razão, uma das principais características de nossa sociedade -, os fazendeiros queriam ser indenizados por ter perdido “patrimônio” (os escravos).

Transcorridas quatro décadas, a política do café com leite viveu seu ocaso e Getulio Vargas assumiu o poder, em 1930, por meio de uma “revolução”. O terreno era minado porque São Paulo, o Estado mais rico e principal sustentáculo da República Velha, não se aquietaria com facilidade. Getulio chegou ao poder com a promessa de implantar uma série de reformas, mas sua preocupação era uma só: evitar a tomada do poder por São Paulo. Em 1932, os paulistas tentaram tomar o poder, não deu certo e, desde então, jamais um getulista conseguiu triunfar eleitoralmemte no Estado.

Em 1937, por meio de um golpe militar dentro do golpe, Getulio instaura a ditadura do Estado Novo. Em 1945, cai, mas, o general (Eurico Dutra) que lhe apoiou oito anos antes ganha a eleição presidencial. Getulio vence o pleito seguinte e, como em 1930, promete realizar reformas que modernizem o país. Acuado pela oposição e por setores das Forças Armadas, faz o oposto do que seria uma reforma modernizante - a institucionalização do monopólio estatal do petróleo e a criação da Petrobras; na mesma época, havia apenas 25% das crianças nas escolas, mas reforma para lidar com esse problema ninguém fez.


O Globo: Relatório sobre opositores ‘é crime muito grave’, afirma Raul Jungmann

Para ele, este tipo de monitoramento é vedado pela lei, e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tem estrutura suficiente para produzir informações de qualidade

Vinicius Sassine, O Globo

BRASÍLIA — O ex-ministro Raul Jungmann afirma que a produção de um dossiê contra opositores do presidente Jair Bolsonaro é um “crime muito grave” e que é preciso identificar e punir a “cadeia de responsabilidade que está acima”. Para ele, este tipo de monitoramento é vedado pela lei, e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tem estrutura suficiente para produzir informações de qualidade.

Por que gasta-se mais com ações de inteligência e de segurança na Presidência da República, na sua visão?

Os protocolos de segurança presidencial elevam o nível de exigência. Numa tentativa de interpretação minha, no caso do presidente Bolsonaro, o fato de ter sofrido um atentado contra a vida dele efetivamente fez com que se ampliassem os dispositivos e o pessoal na área de segurança.

E com inteligência?

Há dois tipos de inteligência. Uma voltada a gerar informações para decisões, para o uso pelo presidente. Isto é feito pelo GSI, com o suporte da Abin. E há a inteligência policial. Isto está na própria lei do Sistema Brasileiro de Inteligência. O controle desta última é feito pelo Ministério Público Federal. Já a inteligência como suporte à tomada de decisão não tem a característica policial, portanto não pode monitorar grupos de pessoas, a não ser com autorização judicial. E está sob controle de comissão do Congresso.

Os dois tipos de inteligência são passíveis de controle.

Sim. O relatório da secretaria do Ministério da Justiça (de monitoramento de grupos antifascistas) só poderia ter ocorrido com autorização e controle judicial. A lei de criação da Abin, que é o órgão central do sistema, não permite monitoramento. Não há autorização. Eles não podem grampear, monitorar, nem com autorização judicial.

Quão grave é a elaboração desse relatório?

Um órgão de inteligência transgrediu a lei, cometeu um delito. É preciso identificar os responsáveis, em que nível houve essa ordem política. Esta ordem claramente atenta contra direitos e garantias constitucionais e, portanto, contra a própria democracia. É um crime muito grave. É preciso identificar a cadeia de responsabilidade. É algo que tem de ser exemplarmente identificado e punido. Preocupa por ter se dado dentro do aparato de Estado.

O presidente fez mudanças na Abin. Havia necessidade?

Não tenho em mãos a avaliação, mas acredito que a Abin, até o momento em que estivemos no governo, tinha uma estrutura. Dispõe de quadros qualificados e gera informações eficientes. Aquela estrutura era suficiente. O que é fundamental é que essa estrutura tem de estar sob o controle do Congresso, obedecer a lei e jamais se confundir com inteligência policial.


Vera Magalhães: Passando a boiada

Bolsonaro e seus soldados estão fazendo de bico fechado aquilo que alardearam com gravadores ligados na reunião dos círculos do inferno

Não se pode dizer que quem permaneceu no governo depois da dantesca reunião ministerial de 22 de abril não seguiu as ordens do chefe.

Escancarar a questão das armas, dar acesso a Jair Bolsonaro a relatórios de inteligência, criar um serviço de arapongagem paralelo e “passar a boiada” na desregulamentação ambiental prescindindo do Congresso. Foi tudo dito, sem medir as palavras. Está tudo sendo feito.

André Mendonça ganhou o lugar de Sérgio Moro pela sua lealdade ao presidente e agora terá de explicar ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso se e com que intenção mandou produzir dossiês sobre funcionários públicos, acadêmicos e sabe-se lá mais que supostos “adversários” do presidente.

Parlamentares como Alessandro Molon (PSB) e Randolfe Rodrigues (Rede) também acionam o STF e apresentam projetos de decreto legislativo para que Bolsonaro explique um decreto que mexe na estrutura da Abin e cria um Comitê de Inteligência Nacional destinado a planejar, coordenar e implementar ações de “enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”. Vago e amplo o suficiente para virar um SNI bolsonaresco.

O silêncio de Bolsonaro e seus malabarismos com emas e caixas de cloroquina deram a alguns incautos a impressão de que ele teria se moderado. O capitão e seus soldados, no entanto, estão apenas fazendo de bico fechado aquilo que alardearam com gravadores ligados na reunião dos círculos do inferno.

CONGRESSO
Sem Maia, plano de reeleição de Alcolumbre perde força

Rodrigo Maia (DEM-RJ) pode esperar a insistência de Davi Alcolumbre, seu correligionário e presidente do Congresso, para que embarquem juntos na tentativa de aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição para que possam se reeleger em fevereiro do ano que vem. Maia repetiu que não quer novo mandato (o quarto consecutivo) na segunda-feira no Roda Viva. Mas, diante de um pedido de Alcolumbre e diante de um apelo de que seria o único nome de “consenso” em partidos agora fragmentados, não faria esse “sacrifício”? Dividir o blocão pode ter sido uma jogada de mestre para não deixar nenhum nome ganhar musculatura.

NO PALANQUE
Eleição municipal será 'teste' do poder de voto do auxílio emergencial

Ninguém no Congresso ou mesmo no governo tem ilusões de que será possível simplesmente interromper o auxílio emergencial quando se encerrar a sua prorrogação, neste mês. Já se discutem novos valores e novas regras para a concessão de um valor decrescente, que ajude as famílias num momento em que a pandemia ainda come solta e a economia está longe de se recuperar.

Mas a principal razão a ditar a sobrevida da transferência de renda é político-eleitoral. Vitaminado após o “banho de povo” da ida ao Nordeste, Jair Bolsonaro não vai desmamar de uma vez esse novo eleitor potencial.

Quer testar o efeito do auxílio nas eleições municipais e seu potencial de beneficiar candidatos aliados do Planalto, para projetar o efeito que uma turbinada na transferência direta de recursos, seja pelo tal Renda Brasil ou como venha a se chamar o programa, pode ter em 2022, quando precisará de todo combustível que puder estocar para se reeleger.


Ricardo Noblat: Ministro da Justiça topa depor em segredo sobre servidores monitorados

Mendonça nada aprendeu com Tancredo Neves

André Mendonça, ministro da Justiça, não precisaria ter nascido em Minas Gerais para aprender com o ex-presidente Tancredo Neves o que ele dizia sobre segredos e conversas sigilosas. Uma vez, ao ouvir de um interlocutor que tinha um segredo, mas que só lhe contaria se ele prometesse guardar, Tancredo respondeu:

– Então não me conte. Se você, que é o dono do segredo, não consegue guardá-lo, imagine eu.

Outra vez, já candidato a presidente da República em 1984, cercado por jornalistas interessados em conversar com ele mesmo que fosse de maneira reservada e sob o compromisso de nada publicarem, Tancredo concordou, mas fez antes uma ressalva:

– E então, vamos conversar? Mas não em sigilo. Esta é a maneira mais rápida, eficiente e segura de se propagar por todo o país quem disse, o quê e onde.

É verdade que pelo menos uma vez, Tancredo convocou jornalistas em Brasília e advertiu-os de antemão: “Se o que lhes direi for publicado, nunca mais direi nada”. E contou que o então presidente João Figueiredo faria uma reforma ministerial para fortalecer a candidatura de Paulo Maluf à sua sucessão.

Em seguida, Tancredo disse quais ministros seriam demitidos, e deu o nome dos seus substitutos. Não havia redes sociais à época. No dia seguinte, sem citarem Tancredo, os jornais publicaram o que ouviram dele. Furioso com o vazamento da informação, Figueiredo desistiu da reforma. Era o que Tancredo queria.

Convidado a depor à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso sobre o monitoramento de servidores públicos federais da área de segurança que se declararam antifascistas, o ministro Mendonça, primeiro, recusou. O assunto, segundo ele, era extremamente sigiloso.

Pressionado, concordou em depor, e é o que fará na próxima sexta-feira à tarde em sessão virtual promovida por seu ministério. De suas casas, deputados e senadores poderão interrogá-lo à vontade. É claro, sob a condição de nada falarem depois sobre o que o Mendonça disse ou preferiu ocultar.

Façam suas apostas. Quantas horas depois começarão a circular nas redes sociais as confidências de Mendonça?

O bloco Unidos Contra a Lava Jato saúda o povo e pede passagem

Mais fortes são os interesses que cada um representa
O que une o senador Flávio Bolsonaro (Republicano), Lula (PT), o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), o deputado Rodrigo Maia (DEM) e o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal? Resposta: seu desapreço pela Operação Lava Jato.

No caso de alguns deles, desapreço é pouco – oposição visceral. Por múltiplas razões, algumas as mesmas, outras só parecidas. Cada um deles não é apenas cada um. Flávio, por exemplo, é ele, seu pai e os irmãos. Lula, o PT e parte da esquerda.

Maia é o Congresso quase todo. Pelo menos a maioria dos deputados e uma grande fatia dos senadores. Alckmin é o PSDB, cujas estrelas mais reluzentes se apagaram. Toffoli representa uma parcela expressiva dos tribunais superiores, mas não somente eles.

Flávio, o pai e os irmãos se elegeram pegando carona na Lava Jato e exaltando seu principal líder, o juiz Sergio Moro. Agora diz que integrantes da Lava Jato têm “interesse político ou financeiro”, como revela em entrevista publicada, hoje, pelo jornal O GLOBO.

Finalmente, o senador admite que Fabrício Queiroz, seu parceiro em negócios sujos, pagou várias de suas contas pessoais. E cobra do ministro Paulo Guedes, da Economia, mais dinheiro para financiar programas sociais e construir obras de infraestrutura.

Tudo, naturalmente, em benefício do pai, em campanha escancarada e permanente para obter um novo mandato em 2022 – mas essa é outra história. Flávio jura que a produtividade no Ministério da Justiça aumentou depois da saída de Moro.

Sua birra com a Lava Jato, que jamais havia manifestado, na verdade tem a ver com Moro, unicamente com Moro, ou preferencialmente com Moro. O ex-juiz e ex-ministro aspira suceder papai Bolsonaro, e isso é demais para o Zero UM.

Pulemos Lula e o PT. São conhecidos seus motivos para querer demolir a Lava Jato. Os de Alckmin e do PSDB, idem. A Lava Jato passou como uma motoniveladora sobre Alckmin, o senador José Serra, o deputado Aécio Neves, e quem mais do PSDB?

Sobrou João Doria, governador de São Paulo, que se dependesse de Bolsonaro teria sido igualmente triturado para não lhe fazer sombra à direita. Com que roupa, mas com que roupa Doria irá pedir votos para presidente? A imagem do PSDB foi para o esgoto.

É fato que os procuradores da Lava Jato de Curitiba tentaram investigar o presidente da Câmara dos Deputados sem dizer que o faziam. Mas não é por isso que Maia quer assistir ao enterro da Lava Jato. É porque a maioria dos seus liderados também quer.

Maia sonha em seguir presidindo a Câmara. O regimento interno não permite. Como não permite David Alcolumbre (DEM-AP) reeleger-se presidente do Senado. Flávio defende a reeleição de Alcolumbre porque ele tem colaborado com o governo.

Não defende a de Maia porque “ele tem embarricado” muitos projetos do governo. Mas, como ensinava o deputado Ulysses Guimarães, se há maioria no Congresso faz-se qualquer coisa, “menos homem virar mulher ou mulher virar homem”.

Ou até isso, hoje, poderia ser feito. O que importa é que ainda não se deve descartar a hipótese de Maia e Alcolumbre ser reeleitos. E, para tal, eles precisam agradar os eleitores, muitos alvos da Lava Jato e que culpam Moro pelo seu infortúnio.

Quem imaginou que uma frente tão ampla acabaria formada para desmontar a que já foi considerada a maior e mais bem-sucedida operação de combate à roubalheira no mundo? É o que se vê. Flávio, Lula, Alckmin, Maia, Toffoli, unidos jamais serão vencidos.


Merval Pereira: A orelha de Bolsonaro

A obsessão do presidente Jair Bolsonaro por informações dos serviços de inteligência faz com que se espalhe pela administração federal uma tendência à bisbilhotice que nos aproxima perigosamente de um estado policial.

Nada explica, a não ser esse ambiente, a existência de uma lista de funcionários públicos considerados “antifascistas”, isto é, opositores do governo, elaborada por uma tal de Secretaria de Operações Integradas (Seopi). Na maioria professores e policiais.

Além de implicitamente admitirem que são fascistas, os que organizaram a lista consideram que servidores públicos têm um dever de lealdade ao governo a que servem. Não é à toa que a Controladoria Geral da República editou recentemente uma norma técnica que proíbe servidores de usarem as redes sociais para críticas a medidas do governo.

Comentários que possam gerar “repercussão negativa à imagem e credibilidade à instituição” merecerão punição administrativa. Isso quer dizer que, além de estarem sujeitos a uma censura nas redes sociais que utilizam em nome pessoal, os funcionários públicos também não se sentirão seguros para utilizarem os canais internos de reclamação.

Esse clima de espionagem foi ampliado por um decreto editado na sexta-feira ampliando não apenas os quadros da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), mas o escopo de sua atuação com a criação de um Centro de Inteligência Nacional que reunirá os órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin).

Esses movimentos todos respondem à exigência do presidente Bolsonaro naquela fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de ter um sistema de informações que não o deixe desprotegido. Vai daí, ao que tudo indica, o ímpeto com que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, se jogou na guerra contra a Operação Lava-Jato, pretendendo centralizar em seu gabinete todas as informações que foram coletadas nos últimos cinco anos de investigações e denúncias.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello definiu bem a situação: compartilhamento tem que ter objeto específico, senão vira devassa. O jurista Joaquim Falcão, em live promovida pelo jornal Valor Econômico, chamou a atenção para o fato de que o governo Bolsonaro pretende neutralizar órgãos que têm autonomia funcional garantida pela Constituição, como o Ministério Público e a Polícia Federal que, por sinal, foi o primeiro a sofrer uma interferência direta do presidente da República que está sob investigação do Supremo.

Não tendo podido nomear o amigo de sua família, delegado Alexandre Ramagem, para a chefia da Polícia Federal, Bolsonaro trocou seu comando, provocando a saída de Sérgio Moro do ministério da Justiça, e agora ampliou as atribuições da Abin, aumentando o poder de Ramagem nesse universo, e na unificação dos serviços de informações do governo.

Esses movimentos só comprovam o acerto do STF ao barrar a transferência de dados das companhias telefônicas na integralidade para que o IBGE pudesse fazer pesquisas para o censo neste ano de pandemia. A relatora, ministra Rosa Weber, disse que a medida provisória “não apresenta mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida”.

Foi seguida por 10 dos 11 ministros do STF. O ministro Lewandowski chamou a atenção para o fato de que a maior ameaça ao regime democrático hoje é a crescente possibilidade de que governos autoritários, de qualquer tendência ideológica, tenham acesso a dados pessoais dos cidadãos. Escrevi aqui a favor desse compartilhamento, mas vejo hoje que fui ingênuo. Não estava em análise ali a idoneidade e seriedade do IBGE como instituição, mas um governo que não é confiável.

Há na Sicília uma caverna que o pintor Caravaggio denominou de Orelha de Dionisio, não apenas por seu formato, mas principalmente pela lenda que diz que o tirano Dionisio I de Siracusa usava a caverna como prisão política dos dissidentes e, devido à acústica perfeita, ficava sabendo dos planos dos opositores.

Bolsonaro tem no Palácio da Alvorada uma imensa escultura azul em forma de orelha, que será leiloada num gesto nobre pela primeira-dama Michelle em benefício de associações que cuidam de pessoas com problemas auditivos.

Talvez Freud explique.


Leandro Colon: Servidor público também precisa pagar a conta da crise

Governo propõe cortes no setor privado, mas há um silêncio sobre medidas para o funcionalismo

O Senado tem ao todo cinco funcionários no “serviço aeroportuário”. As remunerações partem de R$ 25 mil, segundo registros oficiais.

A atribuição deles é cuidar do planejamento das viagens das autoridades e de seus convidados que desembarcam no aeroporto de Brasília.

O serviço é subordinado à Polícia Legislativa do Senado, que fornece 19 servidores, com bons salários, para o “serviço de plenário e comissões”.

Outros 22 policiais legislativos trabalham na proteção do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Ao todo, a Casa tem cerca de seis mil funcionários de carreira e comissionados. Em tempos de sessões virtuais, com senadores votando de casa pela internet, e voos restritos, é inútil o “serviço aeroportuário”.

Assim como não há necessidade para 19 policiais cuidarem da segurança do plenário e das comissões, que estão inoperantes fisicamente.

Mas enquanto o governo federal propõe o corte de jornada e dos salários do setor privado para enfrentar a crise do coronavírus, há um silêncio sobre medidas que atinjam o bolso do funcionalismo público.

Os três Poderes —Executivo, Judiciário e Legislativo— não se mexem para buscar uma saída legal que corte na própria carne.

O presidente do STF, Dias Toffoli, por exemplo, tratou de acalmar a tropa da Justiça quando a hipótese de redução salarial foi aventada.

Reportagem publicada no domingo (12) na Folha mostra que haveria um caixa de R$ 6 bilhões se houvesse uma diminuição de 25% na jornada e nos salários por três meses na administração federal.

Somando os funcionalismos estadual e municipal, o valor subiria a R$ 36,8 bilhões, de acordo com estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Um dinheiro que poderia ir para o combate à pandemia.

Grande parte desses são servidores de carreira, que compõem uma elite com estabilidade trabalhista em meio a uma crise econômica que promete ser sem precedentes. Que ao menos então recebam menos por trabalhar menos nesse período.


Fernando Luiz Abrucio: O desmonte do serviço público

Visão do governo Bolsonaro sobre a reforma administrativa está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da cidadania

A democracia e o desenvolvimento dependem de um serviço público de qualidade e responsável perante a sociedade. Eis uma máxima da experiência internacional que abarca os países que combinam esses dois elementos. Mesmo com diferenças em alguns aspectos, vigora em todos eles um modelo baseado na profissionalização e responsabilização dos funcionários públicos. Se o Brasil almejar ser democrático e desenvolvido, precisa seguir esta trilha, o que vai significar fazer reformas em certas características da administração pública, sem que se perca o sentido nobre dessa função que, a despeito dos problemas existentes, tem sido essencial para melhorar a vida do país.

Mais uma vez, o Brasil realiza um daqueles debates estéreis baseados em visões dicotômicas de mundo. Não se deve nem defender um modelo meramente corporativista, e tampouco uma visão de que os funcionários públicos são uns parasitas. Qualquer ação nesse campo envolve um diagnóstico capaz de entender quais foram os avanços e os problemas que persistem.

Três elementos gerais podem ser destacados como marcas negativas na história do Estado brasileiro. O primeiro deles é o patrimonialismo. Esse fenômeno diz respeito à apropriação privada da coisa pública, podendo se manifestar na corrupção, na distribuição de empregos a amigos e parentes, bem como na criação de privilégios públicos a empresários ou categorias do funcionalismo público. A falta de transparência e de controles ajuda muito na manutenção desse modelo cartorial, que já se manifestou em governos de todos os espectros políticos, inclusive no atual, famoso por sua filhocracia.

A qualidade da gestão pública é outro tema relevante, envolvendo a capacidade de produzir melhores políticas públicas. Grande parte da máquina pública foi ineficiente ao longo da história, ao que se somava um sistema legal que aumentava os custos para a sociedade sem lhe dar os benefícios, como comprova a gigantesca legislação que procura regular todos os aspectos da vida dos cidadãos, favorecendo a pequena corrupção dos fiscais e os grupos que têm acesso privilegiado ao Estado.

Ter serviços públicos de qualidade não é, ressalte-se, apenas uma questão gerencial. Trata-se também de servir a quem mais precisa, num país cujas marcas da escravidão transformaram-se em desigualdade persistente no tempo. O problema é que a administração pública brasileira até 1988 não era para os pobres. Grande parte da população estava fora da escola e os hospitais só atendiam quem tinha carteira assinada.

O balanço das características gerais da administração pública tem como último elemento a democratização do Estado. Em poucas palavras, os cidadãos tinham pouco espaço para participar ou para fiscalizar as políticas públicas. E mesmo no caso de medidas embasadas por alguma modelagem técnica, prevalecia a tecnocracia, que decidia de cima para baixo e sem diálogo com a sociedade.
Mesmo com todos esses problemas, houve processos de modernização da gestão pública na trajetória do século XX, como a profissionalização iniciada por Vargas ou a criação de órgões extremamente inovadores e com grande impacto sobre os rumos do país, como a Embrapa, o Itamaraty e os escolas técnicas federais, para ficar só em alguns exemplos.

Além disso, houve importantes lideranças burocráticas que melhoraram o Estado em seu tempo, como foram os casos de Jesus Pereira Soares, Celso Furtado, Roberto Campos e Anisio Teixeira, novamente selecionando apenas alguns nomes de uma extensa lista que comprova que sem bons burocratas não há desenvolvimento e melhoria da sociedade.

Desde a Constituição de 1988, passando pela inovadora Reforma Bresser e ainda por uma série de inovações setoriais, a administração pública brasileira avançou bastante nos últimos 30 anos. Os serviços públicos chegaram aos cidadãos mais pobres, algo inédito na história do país. A palavra-chave aqui é universalização, no caso de escolas, de acesso à saúde, de renda básica para pessoas que vivem na pobreza, entre os principais direitos construídos a duras penas.

Claro que existe um longo caminho para melhorar a qualidade dos serviços públicos brasileiros. Só que não se pode esquecer que, sem ignorar os problemas, já há resultados em termos de indicadores sociais derivados dos novos equipamentos públicos, reduzindo a mortalidade infantil, aumentando a escolaridade e a expectativa de vida da população.

Parte disso veio de muitos funcionários públicos concursados, abnegados e anônimos, que garantem a vacinação da população ribeirinha da Amazônia e ensinam com prazer em áreas pobres e violentas, por vezes mudando a vida de crianças cujas famílias nunca sonharam em ter um filho com diploma.

A democratização completa esse ciclo de transformações da administração pública. Houve um avanço dos controles democráticos, por meio de conselhos de políticas públicas que se espalharam pelo país. Esse processo aproximou, em boa medida, os formuladores das políticas públicas dos reais beneficiários. Grupos que nunca tinham tido voz começaram a defender seus direitos - e efetivamente ganharam programas e acesso à dignidade cidadã.

Os avanços não mascaram os problemas da gestão pública do país. Um deles foi em grande medida resolvido no ano passado: o Brasil tinha um modelo de Previdência Pública completamente disparatado, muito distante do padrão existente nos países desenvolvidos. Certa vez, um especialista da Suécia, um país fortemente igualitário, me dissera num debate: “a Previdência Pública brasileira é uma homenagem à desigualdade”.

O capítulo da Previdência Pública ainda não acabou, porque falta resolvê-lo também nos Estados e, sobretudo, nos municípios. Há ainda uma agenda vinculada à questão dos recursos humanos que tem de ser enfrentada. Os salários iniciais das carreiras de Estado, especialmente no plano federal, são muito altos, com pouco avanço salarial ao longo de carreira, ao que se somam processos de promoção e benefícios por avaliações que são exemplos do pior corporativismo. Este caso não é só um problema fiscal, mas também de redução da motivação dos funcionários - se o rendimento inicial é próximo do final se reduz a disposição para melhorar - e de “accountability” perante a sociedade.

A ideia de avaliação e responsabilização do servidor público no Brasil ainda é uma quimera. O estágio probatório, cumprido nos primeiros anos de carreira, não serve para nada: nem para ensinar o novo funcionário nem para avaliar se ele deve continuar na administração pública. Depois disso, há pouquíssimas chances de servidores claramente incompetentes e inaptos serem demitidos. Na maior parte das democracias desenvolvidas, há processos muito bem estruturados de avaliação, com vários aspectos em questão (desempenho individual, coletivo, visão dos cidadãos, opinião dos pares etc.) e com grande direito de defesa para cada burocrata, e que levam regulamente à troca daqueles que não estão servindo bem à população. Isso é visto de forma natural e não como um escândalo e sequer como um “crime” do demitido.

Ao mesmo tempo que é preciso tornar a administração pública mais voltada para a melhoria do seu desempenho e para responder aos cidadãos, é igualmente necessário que as condições profissionais melhorem em parte do Estado brasileiro. Como mostram os rankings internacionais, professores ganham muito mal no Brasil. Faltam médicos nas áreas mais carentes do país. Funcionários do Incra, do Ibama e da Funai são cotidianamente ameaçados de morte, enquanto uma parcela de policiais militares brasileiros morre quando está fora do trabalho. Por isso, a precariedade precisa ser levada em conta quando se fala do funcionalismo em geral.

A fórmula ideal é ter um modelo de gestão pública que garanta a profissionalização do serviço público, combinando meritocracia e mecanismos de participação social, como também responsabilização e motivação dos servidores. Por esta razão, o que saiu até agora na imprensa sobre reforma administrativa, especialmente da discussão da Câmara, são temas importantes, mas que não abarcam todas as questões necessárias para a melhoria da administração pública.

Se é necessário, por um lado, racionalizar o funcionalismo federal, com excesso de carreiras e poucos estímulos ao aperfeiçoamento individual e coletivo, por outro lado tem de se reduzir o patrimonialismo indecente que ainda vigora na seleção para os altos cargos do Executivo. Várias dessas posições deveriam ter um comitê para avaliar os méritos dos indicados e processos de certificação que indicariam se aquela pessoa está apta à função. O uso desses mecanismos desfalcaria fortemente muitos dos ministérios do presidente Bolsonaro - em alguns casos, começando pelo próprio ministro.

Reformar a administração pública, ademais, é democratizar o Estado. Decerto que a saúde fiscal constitui um requisito para a boa gestão. Mas o serviço é do e para o público - daí vem a palavra. Sendo assim, as reformas necessárias no campo de recursos humanos não podem ser acompanhadas pela destruição dos conselhos de participação, nem pela redução dos gastos com saúde e educação, medidas que claramente estão na agenda atual do governo Bolsonaro, cuja visão está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da cidadania.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP


Luiz Carlos Azedo: Ataque a servidores tira Guedes da negociação da reforma administrativa

Depois de comparar servidores públicos a parasitas, ministro da Economia terá dificuldades para conduzir mudança nas regras do funcionalismo. Futuro da proposta vai depender da iniciativa e da capacidade de coordenação das lideranças no Congresso

Dificilmente a reforma administrativa será aprovada neste ano, se o ministro da Economia, Paulo Guedes, não sair de cena e deixar as negociações a cargo dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Já anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro, a reforma subiu no telhado por causa de uma declaração de Guedes comparando os servidores a parasitas, na Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio, que gerou muitos constrangimentos para os líderes governistas e pôs a oposição na ofensiva, com amplo apoio dos servidores públicos, que se sentiram agredidos. A alternativa será o Congresso formatar a proposta, sem Guedes à frente das negociações.

O ministro queimou a largada por causa da declaração bombástica, além de uma avaliação baluartista: “Acho que é a mais simples de aprovar porque não atinge os direitos atuais. Mas, se começar a turbinar um pouco mais, pode ser diferente”, disse. O eixo da proposta do governo é criar possibilidades de contratação de servidores além do Regime Jurídico Único (RJU), cuja marca é a estabilidade para todo o funcionalismo. Hoje, o funcionário que passa em concurso é contratado e ganha o direito à estabilidade tão logo acaba o estágio probatório, automaticamente.

A reforma foi anunciada pelo presidente Bolsonaro na semana passada, no Palácio do Planalto, de forma improvisada, num encontro com Guedes que não estava programado, mas foi transmitido ao vivo para as redes sociais. O ministro prometeu que o Brasil crescerá, em 2020, o dobro de 2019. O Produto Interno Bruto (PIB, soma dos bens e serviços produzidos) do ano passado somente será divulgado em março.

Penduricalhos
“O modelo antigo levou à corrupção na política e à estagnação na economia”, disse Guedes. O ministro prometeu diminuir impostos no Brasil, mas somente se as reformas estruturais prosseguirem. “Quando implementamos reformas, o que acontece é isso: com o tempo, os juros vão descendo, e impostos vão começar a cair também”, acrescentou. O ministro da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário, e o superintendente da Zona Franca de Manaus, Alfredo Menezes, também participaram da live, a convite do presidente.

O governo pretende acabar com “penduricalhos” e reajustes de salários retroativos. Guedes classifica como “penduricalhos” as promoções e progressões exclusivamente por tempo de serviço. A reforma também permite a contenção de gastos por dois anos em caso de crise financeira, com a proibição de realização de concursos e redução de 25% da jornada e do salário dos servidores. O ministro estima reduzir despesas obrigatórias em R$ 12 bilhões anualmente somente com a reforma administrativa.

Nas contas do Ministério da Economia, 11 Estados já gastam com pessoal mais que o limite de 60% da Receita Corrente Líquida (RCL) permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O governo pretende também punir os servidores que cometem infrações disciplinares, ao vedar a concessão de “aposentadoria compulsória” com vencimentos proporcionais, após desligamento do serviço público. Com a reforma, o servidor punido será desligado sem remuneração. A medida é considerada moralizante. Também se pretende uniformizar as férias de 30 dias para todos os servidores públicos brasileiros. Outra mudança será nos concursos. Quem passar vai ter que trabalhar mais tempo para ser efetivado. Nesse período, será submetido a avaliação de desempenho que pode resultar no seu desligamento.

Guedes, porém, turbinou a resistência dos servidores, cujas associações já estão pressionando os líderes do Congresso. Ao ofender o funcionalismo e criticar com veemência reajustes anuais de salários, privilégios e aposentadorias generosas, criou péssimo ambiente, justamente no momento em que o Palácio do Planalto prepara uma campanha publicitária para defender a reforma administrativa. A ideia é mostrar que o servidor onera a sociedade na entrada e na saída, porque se aposenta e continua bancado pelo contribuinte por mais 20 ou 30 anos. Essa despesa obrigatória existe somente porque a lei permite. É legal, porém, segundo Guedes, é imoral. No país, há 12 milhões de servidores públicos.

Tensão nas estradas
A queda de braço entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores por causa da cobrança do ICMS sobre os combustíveis é um jogo de empurra por causa da tabela de fretes dos transportes de carga e os aumentos de combustíveis causados pela alta do dólar. Para atender sua base política e evitar uma greve, Bolsonaro negociou com os caminhoneiros a manutenção do tabelamento do frete, a chamada Política de Preços Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas. O assunto, porém, está nas mãos do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux, que marcou o julgamento em plenário da questão para o próximo dia 19 de fevereiro. A maioria dos ministros deve votar pela inconstitucionalidade da tabela.

Na semana passada, Bolsonaro tentou responsabilizar os governadores pelos aumentos do diesel e da gasolina com o argumento de que Petrobras baixava os preços, mas a redução não chegava aos postos de combustíveis por causa do ICMS cobrado nos estados. Os governadores de Brasília, Ibaneis Rocha (MDB), e de São Paulo, João Doria (PSDB), reagiram duramente, com o argumento de que não poderiam abrir mão de receitas correntes e de que Bolsonaro estava sendo populista. O presidente da República retrucou e anunciou que reduziria a cobrança de tributos federais se os governadores adotassem o mesmo procedimento. A polêmica foi interpretada no Congresso como uma manobra de Bolsonaro para evitar desgastes caso o Supremo julgue inconstitucional a tabela de frete.

Safra de grãos
Relator do caso no Supremo, em agosto passado, Fux atendeu a um pedido da Advocacia-Geral da União e requereu a retirada de pauta do tema. O adiamento foi pedido com o argumento de que Bolsonaro negociava uma solução alternativa ao tabelamento com os caminhoneiros. A tabela com os preços mínimos para os fretes rodoviários foi estabelecida por uma medida provisória editada pelo então presidente Michel Temer, durante a greve dos caminhoneiros. A MP foi aprovada pelo Congresso Nacional, transformando-se na Lei nº 13.703. À época, candidato a presidente da Republica, Bolsonaro teve intensa participação nos bastidores da greve dos caminhoneiros.

A Confederação Nacional dos Transportes (CNT) nunca engoliu o tabelamento, pois as empresas de transporte de carga e de logística são contra a medida. Vander Costa, presidente da entidade, em nota,, cobrou do STF uma definição sobre o assunto. As transportadoras reclamaram que o preço do frete no Brasil “caiu demais”, reduzindo a remuneração dos serviços. Às vésperas do carnaval, em plena safra de grãos, com as chuvas criando dificuldades nas estradas, principalmente na região Sudeste, uma greve de caminhoneiros pode ter um impacto muito negativo na retomada do crescimento. Os caminhoneiros são muito organizados e cobram apoio de Bolsonaro à manutenção da tabela.


Vinicius Torres Freire: Próximo conflito - servidores federais

Sem cortar despesa com funcionários, teto de gastos e governo estouram em 2 anos

Nas próximas semanas, o governo começa um conflito sério com servidores federais e com todos os defensores de gastos obrigatórios mínimos com saúde e educação. Caso seja derrotado, é razoável esperar que o funcionamento da máquina do governo se torne inviável na virada de 2021 para 2022, no mais tardar.

“Inviável” significa não ter dinheiro para pagar despesas como serviços de tecnologia da informação dos quais dependem o funcionamento da Receita e do INSS, por exemplo, o que parece, na prática, impossível.

A alternativa seria dar cabo do teto de gastos, um enorme revertério, vetado pelo menos pela equipe econômica de Jair Bolsonaro.

O talho, portanto, teria de ser aprovado até o ano que vem, ano de eleição: mais conflito.

“Conflito” significa criar uma regra extra de contenção de despesas que implica, de um modo ou de outro, o corte de salários do funcionalismo, o que em tese inclui militares, Polícia Federal e professores das universidades federais, para citar apenas categorias politicamente sensíveis. A depender da regra de contenção que venha a ser aprovada, o corte de despesas com o funcionalismo pode durar anos seguidos.

Além disso, pretende-se dar fim da obrigação constitucional de gastar um mínimo em saúde e educação.

No caso estadual e municipal, a norma talvez seja relaxada: seria garantido um mínimo para a soma de gastos em saúde e educação, cabendo a cada Assembleia ou Câmara de Vereadores decidir a prioridade, o que é racional. Algumas cidades são obrigadas a fazer gastos inúteis ou de fantasia em escolas que não precisam mais de verba, enquanto postos de saúde não têm ultrassom ou gaze. Mas passemos, pois esta é a parte suave do ajuste.

Já existe uma regra para limitar o gasto com servidores caso a despesa estoure o teto de gastos, norma no entanto complexa e que, de qualquer maneira, chove no molhado: não evita o colapso. Tanto governo como a liderança do Congresso pretendem, pois, estipular um teto dentro do teto de gastos.

De quanto seria esse limite? O pessoal do governo diz que ainda não fechou a conta. Assim que a despesa corrente (que exclui investimentos) atingir uma certa porcentagem da receita, os talhos seriam amplos, gerais e irrestritos.

Pretende-se que este limite permita o talho o quanto antes, com certeza para 2021. Quanto mais baixo for o valor deste teto dentro do teto, por mais tempo o governo teria autorização para enxugar a despesa com servidores. Na conta mais radical, a lipoaspiração prosseguiria a perder de vista.

No Congresso, há um projeto nesta linha. O governo pretende mandar um projeto complementar, na semana que vem, como se sabe. É uma guerra a menos de dez meses da campanha eleitoral de 2020; é improvável que a mudança seja votada antes do final deste ano.

Note-se também que a discussão da reforma Previdenciária não acabou, apesar de aprovadas mudanças propostas pelo governo federal. Tramita ainda emenda constitucional que pode facilitar a adoção da reforma por estados e municípios e até uma ou outra emenda na reforma já aprovada.

Há quem acredite que a reforma do funcionalismo vai passar, assim como passou quase sem resistência a trabalhista e, mais suavemente do que se previa, a da Previdência.

É, pode ser. Isso quereria então dizer que as corporações do funcionalismo vão ficar quietas e que o Congresso vai continuar a votar planos de sucesso para o governo sem levar nada em troca.


Maria Clara R. M. do Prado: O Brasil dos privilégios não tem futuro

Servidores fazem parte de uma máquina que, de tão custosa, já nem consegue caber dentro de si mesma

Quando assumir a Presidência da República, em 1º de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro passará a governar um país com renda bruta e PIB per capita, em dólares correntes, inferiores aos de 2010. Também a poupança bruta, que já era baixa, caiu ainda mais, do nível de 18% do PIB em 2010/2011 para 14,5% do PIB em 2017, segundo dados do Banco Mundial.

A renda continua concentrada. Mais da metade, 56,1%, é repartida entre os 20% do espectro mais alto. Sobram 43,9% da renda para serem divididos entre os demais brasileiros. Bolsonaro vai herdar um país que insiste em desprezar as vantagens de ter um grande e atrativo mercado interno, chamariz para investimentos e garantia de desenvolvimento consolidado, para benefício de um grupo de pessoas que, além de absorver a maior parte da renda, tem acesso a outros privilégios.

Ao contrário do PIB, que pode variar para mais ou para menos em função de fatores sazonais, o padrão da distribuição da renda brasileira, forjado ao longo de séculos, é crônico. Está presente em praticamente todos os setores da atividade econômica e social do país. Na saúde, na educação, nas condições sanitárias e de habitação, e na previdência social.

Os cofres públicos são generosos não com a qualidade de serviços que deve ser prestada à população, mas com os servidores que são regiamente pagos sem critérios de meritocracia, sem controle de produtividade e muitas vezes com a ajuda de padrinhos políticos. Fazem parte de uma máquina que, de tão custosa, já nem consegue caber dentro de si mesma.

Neste país, ao contrário de outros, é muitíssimo mais vantajoso ser funcionário público do que empregado em empresa privada. Por funcionários públicos, deve-se entender todos os que trabalham nos governos federal, estadual e municipal, nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nas universidades federais e estaduais, na autarquias, enfim... todos cujos rendimentos do trabalho são pagos com o dinheiro da arrecadação de taxas e impostos.

Não há dúvida de que os desequilíbrios da previdência social precisam ser enfrentados o mais rapidamente possível, na busca de soluções duradouras, a começar pela reforma do sistema de previdência do funcionalismo público. É caro, discrepante e injusto. O peso nas contas públicas tem aumentado exponencialmente, a ponto de muitos governos estaduais não terem mais condições financeiras de arcar com os custos dos seus aposentados. Sem falar que sobra pouco para outras rubricas. O governo gasta com pessoal seis vezes mais do que com investimento público.

A raiz do problema está, claro, na elevada remuneração dos servidores públicos. Funciona como uma bola de neve crescente, culminando com as altas aposentadorias. Entre o ano 2000 e 2016 o custo com pessoal do governo federal aumentou, em média, 4% ao ano em termos reais. Vale lembrar que ninguém é demitido no setor público brasileiro, a menos em situações muito graves.

O próximo presidente precisa encarar os fortes lobbies dos grupos de pressão se quiser resolver de vez o déficit fiscal. Precisará de coragem e determinação para enviar ao Congresso propostas de emenda constitucional que prevejam, por exemplo, o desaparecimento da prerrogativa que tem hoje o Poder Judiciário de decidir sobre o nível dos próprios salários, além dos auxílios moradia, viagem, etc... Se quem arrecada é o Poder Executivo, só este tem condições de determinar a remuneração dos servidores (e aqui entram também os deputados e senadores) que cabe dentro do orçamento público.

Um estudo do FMI, realizado por Izabela Karpowicz e Mauricio Soto, mostra que a despesa com pessoal no Judiciário brasileiro é uma das mais altas do mundo, comparável à da Suíça. "O salário médio no Poder Judiciário é cinco vezes mais alto do que a média de salários do setor público e nove vezes mais alto do que a média salarial do setor privado", diz o estudo "Rightsizing Brazil's Public-Sector Wage Bill" (Dimensionando a conta do salário no setor público do Brasil), publicado em outubro.

Entre abril de 2004 e dezembro de 2015, os salários públicos em geral, no país, cresceram ao redor de 45% em termos reais, em média, enquanto que os salários do setor privado aumentaram em cerca de 25% em termos reais. Às implicações no perfil dos gastos da previdência social, soma-se a distorção na formação de preços do mercado de trabalho, além dos efeitos sobre a produtividade da economia brasileira.

Considerando idade, educação e gênero, o salário no setor público brasileiro é 30% mais alto, em média, do que no setor privado formal. "Essa marca está substancialmente acima da marca média de 9% para países relacionados no Estudo de Renda de Luxemburgo (Luxembourg Income Study, LIS, é um centro de dados transnacionais comparativos que atende a pesquisadores, estudiosos e governos)", diz o trabalho, indicando que a mão de obra com menos anos de educação no Brasil ganha em média, 50% a mais no setor público do que no privado.

Não bastasse isso, há ainda dentro do governo muitos governos. Cada ministério tem níveis salariais próprios, gerando deformidades para um mesmo tipo de atividade. O estudo cita o fato de um motorista no Ministério da Energia ganhar 30% a mais do que no resto do governo federal e o de uma operadora de telefonia do Ministério dos Transportes receber 53% a mais do que as telefonistas de outras áreas.

Com os votos que recebeu nas urnas, Bolsonaro tem obrigação de mudar a cara do setor público do país. O estudo do FMI sugere um corte de pelo menos 1% do PIB nas despesas com pessoal do governo federal para ajudar a enquadrar os números na lei do teto de gastos (PEC 241) até 2023. Representaria uma relevante quebra do paradigma histórico. No mais, o que se pode fazer é desejar aos leitores um Feliz 2019!


Julianna Sofia: Pacote de maldades para servidor pode gerar onda de greves

O governo de Michel Temer não quis ver o que analistas do mercado financeiro e economistas davam como favas contadas desde o início de 2017. Com a economia em marcha à ré e o excesso de desonerações tributárias, as receitas da União estavam superestimadas, e o cumprimento da meta de deficit fiscal de R$ 139 bilhões neste ano seria missão impossível.

O Palácio do Planalto tapou o sol com a peneira ao endossar, em meados de 2016, negociações salariais com o funcionalismo feitas pela gestão dilmista. Preferiu fechar os olhos para o impacto sobre o Tesouro a comprar briga com as corporações naquele momento. O discurso era que precisava honrar acordos, e os novos gastos caberiam na conta.

A gestão peemedebista parece não ver que é ilimitada a voracidade de sua base de apoio parlamentar. Não importam os cargos e os bilhões em emendas liberadas, haverá sempre uma pauta-bomba para ser jogada no colo do Executivo.

Assim, a medida provisória da reoneração e a do novo Refis —tão caras ao ajuste fiscal— podem virar pó nas mãos de aliados descontentes. Até mesmo a MP do Funrural, já repleta de benesses a ruralistas e de pesado custo, pode transmutar-se em algo pior no Congresso.

Por lá também não passa, e só Temer não enxerga, aumento de imposto para o andar de cima. Tributar lucros e dividendos ou elevar Imposto de Renda de quem ganham mais de R$ 20 mil, nem pensar.

Temer não anteviu que a tesoura afiada nas despesas poderia paralisar a máquina pública. Não previu sequer que a boa notícia da queda acelerada da inflação poderia frustrar as receitas federais neste ano.

Na segunda (14), o presidente deve anunciar rombos maiores nas contas de 2017 e 2018. Junto, um pacote de maldades para servidores: congelamento de salários, redução de vencimento inicial e corte em benefícios, como auxílio-moradia.

Já dá pra ver greve no horizonte.

* Julianna Sofia é jornalista, secretária de Redação da sucursal da Folha em Brasília.