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Cloves Silva: A busca infindável pelo fim do serviço público no Brasil

Em períodos de crise, a dependência dos serviços públicos pelos brasileiros aumenta significativamente. Mas as respostas do Governo e de congressistas vão no sentido oposto

Em um ano atípico, o Brasil foi mais uma vez colocado à prova. Para atravessar a crise sanitária que vivemos, foram necessários esforços não vistos até então. À medida em que a pandemia avançava, o Governo intensificou as falas sobre ajuste fiscal e reformas. Junto com o elevado número de casos e vidas perdidas, houve a tentativa de diminuir a efetividade do serviço público com propostas mal formuladas, sem demonstração de benefícios para a população e com a promessa de que as medidas irão proporcionar uma economia de recursos, porém sem apresentação de nenhum dado concreto.

Os governantes concentraram na reforma administrativa e na PEC Emergencial seus discursos de ajuste fiscal e, mais uma vez, ignoraram as reais necessidades da população. Em períodos de crise, a dependência dos serviços públicos pelos brasileiros aumenta significativamente. Mas as respostas do Governo e de congressistas vão no sentido oposto: prepararam a redução da jornada de trabalho dos servidores públicos, além da possibilidade de serem demitidos por critérios subjetivos, o que certamente causará uma diminuição na prestação do atendimento, prejudicando todos que dependem das ações do Estado para serviços básicos e essenciais.

O texto original da PEC Emergencial, defendido pelo Governo, mostra o descaso com todos que necessitam de serviços públicos, seja na esfera federal, estadual ou municipal. A prestação desse atendimento necessita de pessoas capacitadas. A proposta da PEC Emergencial tira isso da população, reduzindo em 25% a jornada de trabalho de servidores, impactando diretamente no atendimento.

Projeções do Movimento a Serviço do Brasil, divulgadas em novembro, indicam que só no setor judiciário 9 milhões de processos podem ficar sem solução em 2021 com a proposta original da PEC Emergencial. Seriam mais de 130.000 processos de violência contra a mulher sem solução, 130.000 vítimas ainda correndo riscos por parte de seus agressores e o Estado com menos poder de atendimento por decisão do Governo e de deputados. Esse efeito catastrófico seria distribuído por todos estados e municípios do país, com cortes em áreas como educação, saúde, segurança e justiça.

Seria mais uma atrocidade para os brasileiros, avalizada pelo Congresso Nacional, adorada pelo mercado financeiro e sentida na pele pelo povo, que é quem necessita diariamente de consultas e exames em hospitais, atendimento nas UPAs, professores nas escolas públicas, da justiça e segurança funcionando plenamente. O relatório da PEC Emergencial ainda não foi apresentado e ficou para 2021. Até o último instante é preciso acompanhar e pressionar para evitar o corte de 25% na jornada de trabalho do servidor público previsto na proposta.

Ao mesmo passo, outra proposta tramita no Congresso Nacional com um discurso que não condiz com a realidade: a reforma administrativa. O texto altera bases do setor público que impactam diretamente na vida de todos. A reforma administrativa amplia as formas de contratação de pessoal, com aumento das livres nomeações, em detrimento do ingresso através de concurso público, de tal maneira que os contratados sofrerão pressão constante de políticos e risco de demissão caso não sigam ordens. Caso aprovada, as indicações políticas ocorrerão livremente e os cargos poderão ser preenchidos por qualquer pessoa, mesmo que não tenham conhecimento técnico para tal. A medida abre um enorme portal para a corrupção e clientelismo de políticos.

A lei hoje prevê e cobra que os servidores sigam os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Com a reforma, esses pontos serão afetados diretamente, prejudicando a forma como a população é atendida e beneficiando interesses dos governos de plantão, sem desenvolver políticas de Estado.

Mais adequado que prosseguir nas mudanças previstas no texto da reforma administrativa e da PEC Emergencial, é promover o fortalecimento do Estado com a desburocratização de todos os setores, com integração, digitalização e segurança, para que o serviço seja desfrutado por toda a população, sem distinção de classe social, de forma mais ágil, eficiente, acessível e integral, implementando uma real governança digital.

Para sair da grave crise fiscal é preciso promover a reforma tributária de forma séria e coerente, protegendo os mais pobres, com a implementação de um sistema progressivo, justo e solidário, seguindo o princípio da capacidade contributiva, prevista na Constituição. A Fenafisco, em conjunto com economistas e outras entidades, elaborou o documento Tributar os super-ricos para reconstruir o país, que prevê uma reforma tributária no Brasil, focada nos 0,3% mais ricos e com potencial de arrecadar cerca de 3 trilhões de reais em dez anos.

O ano de 2020 exigiu muita mobilização social para sobreviver aos riscos da pandemia e enfrentar medidas seriamente questionáveis do Governo e de parlamentares. Para 2021, a expectativa é de que a mobilização continue em defesa da sociedade, que depende do serviço público em todos os momentos, principalmente nos de crise. Quando algo grave ocorre, o serviço público é que acolhe a população. É essencial que seja protegido e resguardado de mudanças que prejudiquem a todos, ainda mais no momento mais crítico vivido na história recente.

Cloves Silva é diretor da Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital)


Folha de S. Paulo: Negros são minoria no serviço público federal e ocupam apenas 15% de cargos mais altos

Salários de servidores brancos são mais elevados e disparidade é ainda maior no topo da hierarquia do funcionalismo

Bernardo Caram, Folha de S. Paulo

Observada no setor privado, a sub-representação de negros também marca a estrutura da administração pública. Dados do governo mostram que, embora sejam aproximadamente 55% da população, negros ocupam 35,6% dos postos no serviço público federal.

A disparidade fica ainda mais visível quando é feito o recorte por hierarquia de cargos e nível de escolaridade. Pretos e pardos ocupam apenas 15% das cadeiras mais altas.

O governo federal não deixa disponível para consulta pública estatísticas de pessoal com recorte por cor e raça. O dado detalhado mais recente, referente a 2018, foi compilado pela Enap (Escola Nacional de Administração Pública), vinculada ao Ministério da Economia.

No entanto, informações preliminares da pasta, que ainda não foram disponibilizadas ao público, indicam que o cenário pouco mudou de 2018 até agora.

Em outubro de 2020, entre os que fizeram a declaração, a parcela de servidores negros na administração federal ficou em 36,8%.

Mestre em desenvolvimento econômico e participante do Programa das Pessoas de Ascendência Africana do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, Clara Marinho Pereira, 36, faz parte dessa minoria.

Servidora federal desde 2013, com passagem pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, ela foi aprovada em novo concurso, em 2017, para assumir vaga de analista de Planejamento e Orçamento do Ministério da Economia.

"Nos lugares onde trabalho, eu sou a única ou uma das poucas pessoas negras. Isso é muito frequente. No meu departamento, por exemplo, eu sou a única mulher negra", disse.

"É uma realidade gritante, a despeito de nossos representantes máximos dizerem que não existe racismo no Brasil", afirmou.

Em seu último concurso, Pereira foi aprovada por meio da política de cotas. Em 2014, entrou em vigor no país a lei que reserva para negros 20% das vagas oferecidas em concursos públicos.

"As cotas são importantes, mas não suficientes. Elas foram aprovadas em 2014, mas justamente naquele ano começou a desaceleração econômica e o ritmo de contratações no serviço público diminuiu. É uma pena que as ações afirmativas no serviço público não tenham chegado antes", disse.

Segundo o levantamento da Enap, a disparidade salarial entre brancos e negros no serviço público caiu lentamente ao longo dos anos, mas ainda persiste.

Em 2018, dado mais recente, brancos e amarelos ganharam em média 14% a mais do que negros e indígenas.

Os números consideram os servidores que declararam sua raça ou cor. Do total de funcionários públicos, 11,9% não prestaram essa informação naquele ano.

Evoluir na formação escolar e acadêmica também gera mais benefícios para brancos no serviço público.

Entre os servidores com pós-graduação, mestrado ou doutorado, 42% dos brancos têm salário superior a R$ 12 mil. Com a mesma formação, apenas 28% dos negros têm remunerações superior a esse patamar.

Além da diferença salarial, quanto maior o nível de formação dos servidores, menor o número de negros que ocupam esses cargos.

Do total de funcionários públicos que estudaram até o ensino fundamental, normalmente ocupando cargos de nível mais baixo, 60,9% são negros e 31,2%, brancos. A partir do ensino médio a proporção se inverte, com tendência de ampliação da desvantagem para negros.

Pretos e partos são 50,5% dos servidores com ensino médio. Entre os que fizeram ensino superior, eles representam 31% do total. No grupo dos pós-graduados no serviço público, os negros são 29,7%.

Mesmo nos cargos comissionados de livre nomeação, o padrão da sub-representação também aparece.

Nas cadeiras de DAS (direção e assessoramento superior), que podem ser ocupadas por servidores ou pessoas de fora da administração, 29,6% dos funcionários são negros. Para os cargos DAS-6, o nível mais alto, a participação cai para 15%.

No recorte por órgão, o Ministério de Relações Exteriores tem a menor proporção de negros em seus quadros. Entre diplomatas, por exemplo, 5,9% se declaram pretos ou pardos.

"A diversidade no serviço público é condição para o melhor atendimento à sociedade. Não basta apenas aumentar a presença dos negros na base da pirâmide dos servidores. É preciso garantir que os mecanismos do racismo estrutural não limitem a progressão dos negros nas carreiras e a presença em cargos de decisão", disse Joyce Trindade, analista de diversidades do instituto República.org, que organiza a campanha "Onde estão os negros no serviço público?".

Dados reunidos pelo instituto República.org mostram que esse retrato não é exclusivo da administração federal. No município de São Paulo, os negros são 37% da população, mas ocupam 28,6% dos postos na prefeitura.

Em alguns órgãos, a presença de negros é ainda menor. Eles são 7,8% dos servidores na Procuradoria-Geral do município, por exemplo. Nas chefias de gabinete da prefeitura, estão em 10% dos postos.

De acordo com o instituto, São Paulo é a única capital do país a divulgar ativamente estatísticas de cor e raça de seus servidores.

Sobre os dados federais, o Ministério da Economia disse que está trabalhando para disponibilizar o recorte por cor e raça no painel estatístico de pessoal, sistema que apresenta um raio X do serviço público federal. A pasta não informou qual a previsão de data para o lançamento.

Trindade afirmou que a realidade racial no serviço público não é diferente da iniciativa privada. No entanto, ela disse acreditar que cabe ao Estado o papel de dar exemplo para um sistema do qual também é fiscalizador.

"Para cobrar o setor privado, o Estado e os poderes públicos devem ser espelhos daquilo que desejam para a sociedade", afirmou.