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Sergio Lamucci: Os riscos da acomodação

O que se passa em áreas como educação, saúde, ambiente e relações exteriores está longe de ser normal

Com a atitude menos beligerante de Jair Bolsonaro desde junho e o aumento recente da popularidade do presidente, os graves equívocos e retrocessos do governo em diversas áreas começam a ficar em segundo plano. As políticas para setores como educação, saúde, ambiente, relações exteriores e cultura continuam preocupantes, mas esses temas têm perdido destaque, num momento em que a discussão se concentra nos contornos da política fiscal de 2021 e na formatação do Renda Brasil, um programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família. A iniciativa deve ser lançada depois do fim do auxílio emergencial - o principal fator por trás da melhora da aprovação de Bolsonaro.

O futuro do teto de gastos e o desenho de um programa como o Renda Brasil são assuntos sem dúvida importantes, que terão papel relevante na definição da segunda metade do atual governo. No entanto, além do impacto negativo de curto prazo, as políticas para áreas como educação, saúde e ambiente terão grande influência nas perspectivas de longo prazo do país, e o que se vê nesses segmentos é grave.

A educação, por exemplo, será decisiva para o país enfrentar o problema crônico da baixa produtividade. A saída do inacreditável Abraham Weintraub do ministério foi uma boa notícia, mas Milton Ribeiro, o novo ministro, ainda não deixou claro qual será a sua orientação para a área. Ribeiro não deverá buscar o confronto ideológico aberto e sem sentido como fazia Weintraub, mas por ora não há indicações de que ele vai concentrar esforços em temas cruciais, como os problemas de aprendizagem na educação básica. Com mais de um ano e meio de governo, o ministério segue sem norte numa área em que o Brasil não pode perder tempo, dada a péssima qualidade do ensino na maior parte do país.

A falta de rumos é ainda mais clara no Ministério da Saúde. Depois de substituir Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich ficou menos de um mês como ministro, tendo pedido demissão em 15 de maio. No meio da pandemia, a pasta é tocada por um interino que não é da área, o general Eduardo Pazuello. Bolsonaro minimizou o tempo todo a gravidade da covid-19, defendendo o uso da cloroquina, um medicamento sem eficácia comprovada para combater a doença.

O país já registra quase 115 mil mortes pela covid-19, número que poderia ser menor se houvesse uma maior coordenação das autoridades dos três níveis de governo. Isso não existiu principalmente devido à atitude de Bolsonaro de não dar importância ao problema e pressionar o tempo todo pela reabertura da economia. Há sinais de redução da quantidade de óbitos, mas eles ainda permanecem em nível elevado.

No ambiente, a situação é crítica. De agosto de 2019 a julho de 2020, o desmatamento na Amazônia cresceu 33,3% em relação aos 12 meses anteriores. Empresários e investidores do Brasil e do exterior têm mostrado descontentamento com a política ambiental brasileira, pedindo ao governo que combata as queimadas na floresta, como na carta enviada por CEOs de grandes empresas ao vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal.

Além dos efeitos desastrosos sobre o ambiente em si, essa política pode afetar as exportações do agronegócio e afastar parte do investimento estrangeiro do país, num quadro em que empresas e fundos exibem preocupação cada vez maior com a sustentabilidade. Há também o risco para acordos comerciais, como o fechado entre o Mercosul e a União Europeia (UE). Na sexta-feira, foi a vez de a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, manifestar dúvidas sobre o acerto, dada a situação da Amazônia.

Na visão do governo brasileiro, a Alemanha seria um dos países europeus que teriam uma visão mais favorável ao acordo, que encontra oposição mais forte em nações como a França e a Holanda, por exemplo. Agora, a própria Angela Merkel indicou ter resistências ao tema.

A política externa é outra fonte de problemas. O alinhamento automático de Bolsonaro ao governo de Donald Trump pode ser prejudicial ao país. Se o democrata Joe Biden ganhar as eleições deste ano nos Estados Unidos, o Brasil deverá ter dificuldades no relacionamento com a nova administração americana. A política ambiental brasileira, por exemplo, seria vista com maus olhos por um governo comandado por Biden.

Os conflitos gratuitos com a China também são preocupantes. Entrar em confronto com o principal destino das exportações brasileiras não é obviamente uma estratégia das mais inteligentes.

Além dessas quatro áreas, há problemas graves nas políticas do governo para a cultura e para minorias. Esse inventário aponta para questões conhecidas, mas que parecem atrair hoje menos atenção, ainda que sigam preocupantes.

Bolsonaro passou a evitar os confrontos quase diários que marcaram grande parte de seu governo, embora ontem tenha tido uma recaída, ao atacar um repórter de “O Globo”, ao ser perguntado sobre depósitos feitos por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro (ler mais em Presidente ataca repórter por pergunta sobre Queiroz). De todo modo, sem o presidente entrar em conflito frequente com o Judiciário e o Legislativo e com a imprensa, parece haver uma acomodação quanto a políticas do governo que causam problemas para o país em áreas sensíveis. E, com o auxílio emergencial de R$ 600, a popularidade do presidente voltou a melhorar.

Nesse cenário, as discussões têm se concentrado principalmente no futuro do teto de gastos e no novo programa de transferência de renda. São temas de fato muito relevantes - a política fiscal a partir de 2021 será essencial para a sustentabilidade das contas públicas e para o crescimento, enquanto o Renda Brasil poderá ser uma nova etapa das políticas sociais num país extremamente desigual, nos dois casos com grande impacto sobre as eleições presidenciais de 2022.

O que se passa na educação, saúde, ambiente e relações exteriores, porém, está longe de ser normal. Dar menos atenção ao que ocorre nessas áreas tem e terá um custo elevado para o país.


Sergio Lamucci: O teto e as armadilhas das contas públicas

Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, mas uma atitude rígida demais pode paralisar serviços públicos, sem enfrentar a expansão dos gastos obrigatórios

O cenário para as contas públicas em 2021 está marcado por incertezas. Há pressão para mudanças no teto de gastos, o mecanismo que limita o crescimento de despesas não financeiras da União. O movimento vem tanto de fora quanto de dentro do governo, como lembra Ricardo Ribeiro, analista político da MCM Consultores. Para ele, “a flexibilização do teto não é certa, embora a probabilidade seja crescente”.

O desejo de políticos e ministros fora da equipe econômica de destinar mais recursos para obras públicas e para programas sociais alimenta a pressão. Além disso, há também os problemas causados pelo desenho do teto e por uma correção muito baixa do limite de despesas para 2021.

A situação fiscal é delicada. Com o aumento de despesas para combater os efeitos da pandemia e a perda de receitas devido ao tombo da atividade, a dívida bruta subirá neste ano para a casa de 95% do PIB, tendo partido de 75,8% do PIB em 2019, um nível que já era muito mais elevado do que o da média dos emergentes.

Para grande parte dos especialistas em contas públicas, é preciso começar um processo de ajuste fiscal mais forte já em 2021. Sem isso, argumentam, os juros baixos não vão se sustentar. O risco país pode subir, o câmbio pode se desvalorizar muito e os juros futuros podem aumentar, tornando inviável manter baixa a Selic. Cumprir o teto seria decisivo para reforçar o compromisso fiscal.

No meio político, porém, crescem as pressões pela flexibilização. Em entrevista para “O Globo”, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, defendeu mais investimentos em infraestrutura básica, principalmente no Norte e no Nordeste. Para Ribeiro, da MCM, “levar água, saneamento e moradia ao Nordeste e engordar o Bolsa Família, transformando-o no Renda Brasil, são argumentos poderosos a favor dos apelos” destinados ao ministro da Economia, Paulo Guedes, por Marinho e pelo senador Flavio Bolsonaro - em entrevista a “O Globo”, o filho do presidente disse “Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas ações [obras paradas] que têm impacto social e na infraestrutura

Para Ribeiro, “a pressão pelo ‘dinheirinho’ adicional é crescente e tende a ficar mais volumosa quando, ao fim de agosto, o projeto de lei orçamentária da União for enviado ao Congresso”. O envio da proposta “provocará, muito provavelmente, uma chiadeira generalizada no Congresso e dentro do governo, pois o aperto orçamentário de 2021 ficará escancarado”, diz ele. “Há evidente apoio político à ideia, dentro e fora do governo. E se Jair Bolsonaro fosse totalmente avesso à ideia já teria enquadrado Rogério Marinho”, escreve Ribeiro, observando, porém, que “Paulo Guedes, Rodrigo Maia [o presidente da Câmara dos Deputados] e o receio da reação negativa do mercado ainda são barreiras poderosas à flexibilização”.

A pressão, como se vê, não é pequena. Além disso, problemas do teto colaboram para o questionamento do mecanismo. A regra tem méritos, tendo sido fundamental para melhorar as expectativas quanto à trajetória das contas públicas de longo prazo. Ele permitiu um ajuste gradual, sem que fosse necessário uma consolidação fiscal abrupta. Mas o teto também tem defeitos. O principal problema fiscal do país é a rigidez do Orçamento, marcado pelo crescimento contínuo de despesas obrigatórias, como aposentadorias e gastos de pessoal. O governo tem liberdade para manejar menos de 10% dos gastos. A reforma da Previdência reduz o ritmo de expansão dos gastos com aposentadorias, mas não o interrompe. Também é crucial enfrentar a elevação das despesas de pessoal.

Na emenda do teto, estão previstos gatilhos a serem acionados em caso de descumprimento do mecanismo, com medidas que impedem reajuste dos salários dos servidores e restringem a criação de cargos, por exemplo. A questão é que, por um erro de redação, não se consegue acioná-los. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) não pode conter despesas que ultrapassem os limites do teto, como lembra Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI). Os gatilhos não podem entrar em vigor pelo envio de um projeto que preveja o estouro do teto, ainda que isso leve à elaboração de um orçamento irrealista, com um corte muito expressivo de despesas discricionárias (como custeio da máquina e investimentos).

Para 2021, o teto aumentará apenas 2,13%, porque essa foi a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) nos 12 meses até junho de 2020. Para cumpri-lo, será necessário espremer mais os gastos discricionários. O problema é que essas despesas poderão ficar abaixo do limite que compromete o funcionamento da máquina pública, estimado em R$ 89,9 bilhões pela IFI. Com isso, pode haver uma paralisação de atividades do setor público, além de um corte ainda mais drástico dos investimentos, sem a adoção de medidas verdadeiramente necessárias para controlar a expansão de despesas obrigatórias, como os gastos com pessoal.

Para Salto, é preciso encontrar uma saída para descumprir o teto e fazer com que os gatilhos sejam acionados, preservando a regra. Há dois anos, o governo Michel Temer, em conversas com o Tribunal de Contas da União (TCU), chegou a uma saída para o descumprimento da “regra de ouro”, que impede a emissão de dívida para pagar despesas correntes. “Esse precedente permite imaginar uma saída similar para o teto que possibilite não jogar no lixo os gatilhos ali previstos”, diz ele. Salto estima que acionar os gatilhos previstos na emenda do teto garantiria um ajuste de algo como 0,5 ponto percentual do PIB em dois anos, “dando tempo e fôlego para o Executivo e o Congresso encontrarem uma solução definitiva”. Para ele, “o essencial é ter claro que o problema do crescimento da despesa continua posto e precisará ser sanado”.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial do governo contempla o disparo dos gatilhos no caso de descumprimento da “regra de ouro”, mas a aprovação demandaria tempo e capital político, num momento em que as discussões tendem a se concentrar na reforma tributária.

Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, colocando em xeque os juros baixos. Uma atitude rígida demais, porém, pode paralisar serviços públicos essenciais e jogar o investimento para níveis ainda mais baixos, sem que o crescimento das despesas obrigatórias seja de fato enfrentado. Escapar dessas armadilhas será crucial para garantir a sustentabilidade fiscal e permitir a recuperação da atividade, num país que registra desde 2014 um desempenho econômico horroroso.


Sergio Lamucci: O espaço para a queda dos juros

Capacidade ociosa na economia é enorme e inflação é baixíssima, evidenciando a fraqueza da atividade

O tombo da economia brasileira neste ano tende a ser menor que os 8% a 10% que chegaram a ser estimados pelos mais pessimistas, mas o grau de ociosidade e a inflação baixíssima evidenciam a fraqueza da atividade. Ainda que os piores cenários para o PIB em 2020 não se concretizem, a perspectiva do fim do auxílio emergencial e o momento delicado no mercado de trabalho apontam para o risco de uma situação mais difícil para a economia nos últimos meses do ano. Nesse quadro, economistas como Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro, defendem cortes adicionais dos juros, mesmo com a Selic em 2,25% ao ano.

No segundo trimestre, a ociosidade na economia atingiu níveis recordes, segundo Elisa Andrade, Claudio Considera e Juliana Trece, pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). No período, o hiato do produto, uma medida da capacidade ociosa, ficou negativo em 14,1%, de longe o pior número da série iniciada no fim de 1982.

Na sexta-feira, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - 15 (IPCA-15) de julho voltou a surpreender para baixo, como destaca relatório do departamento econômico do ASA Investments, comandado por Kawall. Para a equipe do ASA, isso reforça “a leitura bastante benigna da dinâmica de preços”, em especial dos núcleos, medidas que buscam reduzir ou eliminar a influência dos itens mais voláteis.

Ao analisar a trajetória da inflação, os economistas do ASA observam que “o choque causado pela pandemia ainda reverbera sobre a dinâmica de curto prazo”. Primeiro, teve grande impacto sobre os preços administrados, principalmente os combustíveis, e sobre os serviços que oscilam mais, como passagens aéreas. Na direção contrária, as cotações de alimentos ficaram mais pressionadas, refletindo “a rápida mudança de hábitos de consumo, na esteira das medidas de restrição à mobilidade como forma de combate ao espalhamento da doença”. Essa tendência se observou especialmente entre março e maio. Num segundo momento, houve recomposição de parte dos preços administrados e resistência dos alimentos.

“Acreditávamos que o maior impacto deflacionário sobre os núcleos de inflação ficaria restrito aos meses de abril e maio. Contudo, a queda dos serviços exposta no IPCA-15 indica que a distensão do mercado de trabalho terá efeito prolongado sobre os preços”, diz o relatório do ASA, que reduziu a projeção para o IPCA de 2020 de 1,7% para 1,6%, muito abaixo da meta de 4%. Para 2021, a estimativa é de 2,7%, número bem inferior ao alvo do ano que vem, de 3,75%.

Para a equipe de Kawall, pode haver surpresas adicionais nas medidas de núcleo, “com a deterioração do mercado de trabalho afetando outros setores, levando a assimetria negativa para a nossa projeção de queda esperada para o PIB em 2020, atualmente em 5,8%, e para a expansão projetada em 2021, de 2,8%”. Ou seja, a economia pode ter um resultado pior do que o esperado.

O comportamento do mercado de trabalho é um sinal negativo para as perspectivas para a atividade. Com base nos números do período de 28 de junho a 4 de julho, nota-se uma “aceleração da queda da população ocupada nas últimas duas semanas, após tendência que parecia sinalizar estabilização”, dizem os economistas do ASA, referindo-se às informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Covid, do IBGE. “De fato, na última semana de junho e primeira semana de julho, teria havido uma redução de 2,1 milhões de pessoas ocupadas, queda bastante relevante frente à dinâmica mais recente”, aponta o relatório, observando que a relação entre a população ocupada e a população em idade para trabalhar recuou ainda mais, caindo para 48,1%.

Para completar, há o fim do auxílio emergencial de R$ 600. Na visão do ASA, existe o risco de um “degrau de renda” ao fim do programa, na passagem de agosto para setembro. É uma ameaça “bastante relevante para a dinâmica da atividade à frente, e não há sinal, até o momento, de recomposição da população ocupada que possa sugerir diminuição desse risco”, segundo os economistas. Para o ASA, a combinação de um cenário benigno para a inflação e os riscos para a atividade econômica mais à frente indicam a necessidade de continuar com o atual ciclo de queda dos juros - a instituição estima que a taxa Selic atinja 1% ao ano no começo de 2021.

Kawall espera um corte de 0,25 ponto percentual na reunião de agosto do Comitê de Política Monetária (Copom), seguido por outras quatro reduções na mesma magnitude. Seguir uma estratégia diferente implicaria perseguir uma meta de inflação menor, com o risco de desancorar a inflação para baixo da meta, avalia o ASA.

Um ponto importante é se o financiamento do setor público impõe limites aos cortes da Selic. Em texto sobre o assunto, Kawall diz não ver uma ameaça à queda dos juros devido a esse fator. “Com a redução do juro, os bancos aumentaram sua absorção de títulos [públicos], compensando a migração da pessoa física em direção ao risco e a menor participação do estrangeiro”, aponta ele. Kawall observa que a “estratégia do Tesouro tem sido cautelosa, com uso mais frequente de seu caixa, na expectativa de redução de risco no mercado (influenciado pelo alto déficit programado para este ano, devido ao combate à pandemia), com as operações compromissadas [venda de títulos com compromisso de recompra] financiando, na prática, o gasto mais elevado de 2020”. Segundo ele, no curto prazo há sinais de aumento da demanda por títulos de renda fixa, um “potencial porto seguro à poupança precaucional gerada pela crise”.

Kawall reconhece que a situação está “muito longe de ser confortável” e exige a continuidade do esforço de reformas e o compromisso com o teto de gastos, mas não vê evidências da existência de um nível mínimo para a Selic derivado da necessidade de rolagem da dívida interna.

A economia está machucada pelo choque causado pela pandemia, e os efeitos serão sentidos por um bom tempo. Juros bem mais baixos ajudam a estimular a atividade, contribuem para uma dinâmica mais favorável da dívida pública e aliviam a situação financeira de famílias e empresas. Para que as taxas sigam em níveis modestos, será preciso indicar a continuidade do ajuste fiscal, de preferência evitando ao mesmo tempo um cavalo de pau muito forte nas contas públicas em 2021. Não é obviamente uma tarefa fácil, mas é uma combinação que, se alcançada, tornará a saída da crise menos dolorosa.


Sergio Lamucci: O difícil equilíbrio da política fiscal

Dívida elevada e economia anêmica complicam cenário

A condução da política fiscal terá grandes desafios já neste semestre, mas especialmente no ano que vem. O país deve terminar 2020 com uma dívida bruta na casa de 95% do PIB, o que aponta para a necessidade de retomada do ajuste das contas públicas. Ao mesmo tempo, uma contração fiscal muito forte pode ter consequências negativas para a economia, num cenário em que ainda não se sabe como famílias e empresas reagirão no pós-pandemia.

Se o governo não indicar um caminho crível de consolidação das contas públicas, as expectativas sobre a trajetória fiscal podem se deteriorar, elevando o risco país e os juros futuros. Com isso, a manutenção da Selic em níveis baixos por um longo período pode entrar em xeque. No entanto, um ajuste fiscal muito abrupto pode minar a recuperação da economia, o que seria péssimo para o mercado de trabalho e para a própria dinâmica da dívida pública.

Em post publicado na semana passada no blog do Fundo Monetário Internacional (FMI), o diretor do departamento de Assuntos Fiscais, Vitor Gaspar, e a economista-chefe da instituição, Gita Gopinath, afirmam que a política fiscal terá que continuar a ser flexível e a apoiar a economia até que uma saída segura e duradoura da crise esteja assegurada. “Embora a trajetória da dívida pública possa subir adicionalmente num cenário adverso, uma retração fiscal prematura representa um risco ainda maior de tirar a recuperação dos trilhos, com maiores custos fiscais futuros”, escrevem os economistas do FMI.

A necessidade de manter o apoio fiscal é clara, mas a questão é como os países podem financiá-lo sem que a dívida se torne insustentável, apontam Gaspar e Gita. Eles observam que a expectativa de que o custo de empréstimo dos governos permaneça baixo por um longo tempo ajuda nessa tarefa, mas dizem cautela é aconselhável. Há uma grande diversidade de níveis de endividamento e de capacidade de financiamento entre os países, lembram eles.

A dívida bruta brasileira vai subir quase 20 pontos percentuais neste ano, para cerca de 95% do PIB, em função das medidas de combate à doença e da perda de receita. Já o endividamento médio dos emergentes em 2020 deve ficar em 63% do PIB, estima o FMI. Esses números sugerem que o Brasil tem pouquíssimo espaço de manobra fiscal. Ao mesmo tempo, um tranco exagerado na política fiscal pode prejudicar a recuperação pós-pandemia. Como vai se comportar o consumidor depois do fim do auxílio emergencial e com uma situação difícil no mercado de trabalho? Ainda que o governo implemente neste ano um programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família, ele deve ter uma dimensão menor que o atual benefício. O valor tende a ser mais baixo que os atuais R$ 600, e concentrado numa fatia menor da população.

Também é difícil acreditar numa recuperação rápida do investimento privado. As empresas têm enorme capacidade ociosa e o nível de incerteza deve seguir elevado. Há o risco de uma reaceleração dos casos e mortes pela covid-19 e o governo de Jair Bolsonaro é uma grande fonte de instabilidade.

Em relatório do J.P. Morgan da semana passada, intitulado “Desta vez é diferente”, os economistas Nora Szentivanyi e Jahangir Aziz dizem que, nesta crise, é mais provável os emergentes melhorarem a dinâmica de médio prazo da dívida dando apoio ao crescimento do que por meio de uma rápida consolidação fiscal. Diferentemente de outras crises que costumam atingir esses países, a turbulência atual não foi causada por estímulo à demanda e superaquecimento, segundo eles.

Com isso, restaurar a confiança dos investidores com medidas como um forte ajuste fiscal e corrigir excessos passados pela reestruturação de balanços não seriam “precondições para a retomada”. Apertar as contas públicas para lidar com temores de instabilidade pode ser um tiro pela culatra se prejudicar o crescimento de médio prazo, dizem os economistas. No relatório, os dois fazem cinco simulações para a trajetória da dívida de 22 países emergentes, entre eles o Brasil.

Segundo o exercício, o baixo crescimento leva a dívida a subir muito mais do que déficits fiscais elevados. Na simulação em que o rombo primário (exclui gastos com juros) é maior do que o previamente estimado em 3 pontos percentuais do PIB em 2020, 2 pontos em 2021 e 1 ponto em 2022, a dívida brasileira fica 2,9 pontos do PIB maior do que no cenário-base para o indicador, em que atinge 99% do PIB em 2029. Na hipótese de um crescimento nominal do PIB 2 pontos percentuais abaixo do projetado de 2022 em diante, o endividamento bruto do Brasil ficaria 17,4 pontos maior.

O exercício tem limitações, obviamente, considerando as mesmas hipóteses para todos os países. Além disso, um quadro fiscal pior pode implicar em menor crescimento, se isso levar a um aumento dos juros e a uma forte desvalorização do câmbio.

A novidade do relatório é menos apontar para os riscos de uma consolidação fiscal muito rápida, uma vez que diversos economistas advertem para esse risco. O incomum é um estudo de um grande banco alertar para os potenciais problemas de um ajuste muito severo em países emergentes. Esse tipo de percepção pode indicar que uma consolidação fiscal mais gradual tem chance de ser recebida sem grande desconforto pelos investidores.

O difícil é como chegar a esse equilíbrio. Os economistas do J.P. Morgan afirmam que, como boa parte da deterioração fiscal ainda está por vir, manter a calma dos mercados requer das autoridades dos países emergentes o compromisso com uma âncora fiscal crível de médio prazo e com a volta aos arranjos de política fiscal e monetária anteriores à crise.

Em 2021, há uma possibilidade considerável de rompimento do teto de gastos. As despesas da União poderão subir apenas R$ 31 bilhões, pelo critério de correção que segue a inflação em 12 meses até junho do ano anterior. Para que o limite seja respeitado, será preciso cortar muito as despesas discricionárias, como investimentos e as de custeio da máquina pública, que já estão no talo. Isso tende aumentar a pressão para alguma flexibilização do teto.

O momento é delicado para a mudança, porque o mecanismo ancora as expectativas fiscais de longo prazo, ainda que tenha problemas. Mas um aumento tão modesto das despesas em 2021 pode levar a mudanças. Se elas ocorrerem, é fundamental que haja regras rigorosas para conter gastos como salários dos servidores, já previstos nos gatilhos caso o teto seja rompido. Isso indicaria o compromisso fiscal, ao mesmo tempo em que se permitiria um ajuste mais gradual, o que pode ser desejável em resposta a uma crise tão complexa.


Sergio Lamucci: O derretimento da demanda privada

Garantir uma trajetória fiscal sustentável será essencial para manter os juros em níveis baixos, um trunfo decisivo para a retomada

O primeiro semestre chega ao fim com a certeza de que 2020 vai registrar o maior tombo do Produto Interno Bruto (PIB) da história brasileira, e com muitas dúvidas sobre as perspectivas de recuperação da atividade. Há grande incerteza sobre a reação de famílias e empresas, muitas das quais vão sair machucadas da crise, num cenário marcado pela resposta desastrosa do governo federal à pandemia da covid-19 e pelo relaxamento prematuro do isolamento social por vários Estados e municípios. Além disso, o cenário político segue outra fonte de incerteza.

As medidas para combater os efeitos da doença levarão a uma forte piora das contas públicas, necessária num quadro de forte retração da economia, mas que terá de ser enfrentada a partir do ano que vem. O déficit primário deve superar 10% do PIB, e a dívida bruta tende a encostar em 100% do PIB. Será preciso retomar o ajuste fiscal a partir de 2021, obviamente não de modo abrupto, mas de maneira a indicar a sustentabilidade das contas públicas. Com isso, os juros poderão continuar baixos, o que será essencial para estimular a demanda e facilitar a dinâmica do endividamento do setor público e do setor privado, como ressalta o economista-chefe da corretora Tullett Prebon, Fernando Montero.

Em suas análises, Montero tem afirmado que o baque na economia não decorre tanto da perda de rendas na pandemia que, “ao contrário, são mais que substituídas por despesas e transferências públicas financiadas com endividamento público”. Segundo ele, “foi a propensão ao gasto privado - o consumo e o investimento - que derreteu, antes que sua renda”. É claro que há muitos casos de perda de renda durante a crise, mas Montero avalia que o tamanho total da expansão de despesas e transferências é superior a essa queda. “Haverá aumento no endividamento líquido de parte da sociedade, que gastará mais que sua renda. Mas haverá outra parte que gastará menos.”

Montero considera que o aumento do déficit primário (não inclui gastos com juros) vai injetar mais dinheiro na economia do que a crise vai subtrair. Segundo ele, o déficit primário do setor público consolidado deverá sair de R$ 64 bilhões nos 12 meses até março para cerca de R$ 800 bilhões nos 12 meses até dezembro. “Isso comporta de abril a dezembro de 2020 uma piora de R$ 736 bilhões em relação a esses meses de 2019”, observa ele. “Esse é o adicional de gastos e transferências líquidas de rendas públicas no remanescente deste ano.” No mesmo período, o PIB nominal deverá cair R$ 373 bilhões. Com isso, a política fiscal injetará R$ 736 bilhões a mais de gastos e rendas líquidas nos três últimos trimestres de 2020 em relação a 2019, num PIB nominal que cairá algo como metade disso.

Para Montero, “a retração não é um problema primordialmente de oferta, que derruba a renda dos trabalhadores, levando consigo o seu consumo; fosse isso, os programas emergenciais resolveriam”. Economia, diz ele, é circulação. “No pós-pandemia, o que a política econômica precisa retomar é a propensão a gastar.”

Essa conjuntura não vai registrar apenas a maior queda histórica do PIB, mas também a maior e mais rápida piora fiscal, escreve Montero. “A combinação diz respeito a uma quebra na demanda privada interna a todas as luzes atroz. A economia vai demorar a recuperar essa demanda privada e, pior, precisará fazê-lo com a retirada desse fortíssimo estímulo fiscal.” Esse é o tamanho do desafio, que não pode prescindir do ajuste das contas públicas a partir de 2021, segundo Montero. “Mas é precisamente esse vento de frente, vindo da necessidade de ancorar o fiscal, que abre o espaço e a necessidade de continuar testando os limites da política monetária”, acrescenta. Ele vê espaço para os juros, hoje em 2,25% ao ano, caírem para 1,5%. E, para que as taxas sigam em níveis baixos, será preciso retirar os estímulos fiscais.

Na visão de Montero, o melhor retrato para o resultado primário está nas contas do secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, cuja estimativa de um corte contratado de despesas em 2021, “em obediência ao teto de gastos, deve já alcançar os R$ 400 bilhões”. Para sair do buraco, serão necessárias políticas agressivas de juros e de crédito, assim como a retomada da agenda de reformas, avalia ele. “À medida que as âncoras fiscais se sustentem, o espaço e a necessidade para menos juros crescem muito”, diz Montero, reiterando que “a política monetária poderá não ser a condição suficiente, mas será absolutamente a condição necessária”. Para ele, estratégias alternativas de retomada que questionem essas âncoras fiscais, hoje resumidas especialmente no teto de gastos, precisariam compensar os impactos das incertezas sobre a curva de juros e o risco-país, o que exigiria “promessas de multiplicadores fiscais poderosíssimos, difíceis de enxergar”. Ou seja, aumentos de despesas públicas teriam que provocar um efeito muito forte sobre a economia para contrabalançar os impactos negativos sobre os juros futuros e os prêmios de risco.

A saída da crise será complicada, a começar pelo fato de a reabertura precoce da economia poder levar ao recrudescimento da doença, exigindo a adoção de novas medidas rigorosas de isolamento mais à frente. O desemprego deve subir com força e muitas empresas de menor porte tendem a quebrar, por não conseguir acesso ao crédito.

Tornar permanente o auxílio emergencial de R$ 600 por mês é insustentável, mas ele deve ser estendido por alguns meses com valores menores, e há discussões para a adoção de um programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família, uma medida bem-vinda. Seria importante financiá-lo com o fim de subsídios e com a tributação maior da renda dos mais ricos, mas não é uma tarefa politicamente simples.

A política fiscal não terá como ser expansionista em 2021. O teto de gastos, que limita o crescimento das despesas da União, é um mecanismo que pode ser aperfeiçoado, mas mexer nele agora traz riscos que podem ser contraproducentes. O investimento público caiu para níveis muito baixos, que não cobrem nem a depreciação do estoque de capital do setor público. É importante encontrar espaço para aumentá-lo, enfrentando a rigidez dos gastos obrigatórios, como os de pessoal. Mas o investimento público não vai crescer com força de uma hora para outra, por causa da dificuldade de execução de projetos pelo setor público e dos limites do orçamento. Garantir uma trajetória sustentável para as contas públicas será essencial para manter os juros em níveis baixos, um trunfo decisivo para a retomada, ainda que não seja suficiente, como diz Montero.


Sergio Lamucci: O desolador cenário para o consumo

Situação do mercado de trabalho é muito complicada e nível de endividamento é elevado, uma combinação negativa para o principal componente do PIB pelo lado da demanda

O ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda sonha com uma recuperação em “V” da economia brasileira, passado o impacto mais forte da pandemia, mas a aposta nessa trajetória exige grandes doses de otimismo. As perspectivas para o investimento são muito negativas, num país em que o combate à pandemia é desorganizado, há uma grave crise política e existe enorme capacidade ociosa. Além disso, o consumo das famílias vai sofrer muito, tendo um cenário extremamente complicado pela frente. O panorama para o mercado de trabalho é preocupante e os consumidores deverão sair ainda mais endividados do quadro atual.

Em resumo, o consumo privado, com peso de dois terços no PIB pelo lado da demanda, não deverá ser o motor da retomada, o que tampouco tende a ocorrer com o investimento. A política fiscal atuará neste ano de modo contracíclico, com expansão de gastos e de crédito dos bancos públicos, atenuando em alguma medida o tombo do PIB, mas a situação difícil das contas públicas é um grande obstáculo para as despesas governamentais sustentarem a atividade.

O setor externo pode trazer algumas boas notícias, com as exportações de produtos agrícolas em alta e o efeito do câmbio desvalorizado. As vendas externas, porém, têm um peso relativamente pequeno no PIB.

Na sexta-feira, ao comentar as possíveis trajetórias para a economia brasileira, Guedes disse que ainda prefere “trabalhar com o ‘V’”: Segundo ele, “pode ser um ‘V’ meio torto, caiu rápido e vai subir um pouco mais devagar, mas ainda é um ‘V’”. Até mesmo essa retomada mais suave, porém, parece hoje pouco factível.

No primeiro trimestre, o PIB recuou 1,5% em relação ao trimestre anterior, puxado pela queda de 2% do consumo das famílias. As medidas de isolamento social começaram a vigorar apenas a partir de meados de março, e mesmo assim o impacto foi forte.

No segundo trimestre, o efeito das iniciativas de confinamento será obviamente muito mais intenso, especialmente nos meses de abril e maio. As previsões apontam para uma retração do PIB no segundo trimestre na casa de 10% ou mais na comparação com o trimestre anterior.

Além disso, os números do mercado de trabalho mostram uma situação especialmente preocupante. De fevereiro a abril, houve perda de quase 5 milhões de empregos na comparação com os três meses encerrados em janeiro. A taxa de desemprego nos três meses até abril ficou em 12,6%, e o número só não foi muito maior porque muitos trabalhadores deixaram de procurar ou não conseguiram buscar emprego, devido ao efeito do distanciamento social. Se a população economicamente ativa (PEA, quem está ocupado ou em busca de ocupação) tivesse se mantido no nível de fevereiro, a taxa de desemprego seria de 15,9%, como dizem os economistas do Safra.

Os analistas do banco observam que, na série com ajuste sazonal, a desocupação subiu de 11,6% nos três meses até março para 12% nos três meses até abril, com recuo de 3,4% da população ocupada.

“Analisando esse movimento por tipo de ocupação, observamos uma forte queda nos empregos sem carteira assinada, mas também vemos retração no emprego com carteira. As demais ocupações, que incluem trabalhadores domésticos, também foram severamente afetadas. Por outro lado, o emprego no setor público apresentou elevação pelo segundo mês consecutivo”, afirma o relatório do Safra.

O resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua indica que os rendimentos nominais se elevaram, mas o aumento se deveu “principalmente ao fato de que boa parte das pessoas que estão entrando no mercado de trabalho ou que continuam estáveis em seu emprego possuem capacidade de fazer ‘home office’ e, logo, trabalham em empregos mais qualificados e melhor remunerados”, notam os economistas do banco. Desse modo, “o salário médio se elevou principalmente devido a um aumento na desigualdade do mercado de trabalho”, dizem eles, acrescentando que a massa salarial teve forte contração, devido à queda do nível de ocupação. “O cenário que acabamos de descrever ilustra o forte impacto que a pandemia terá sobre o PIB no segundo trimestre de 2020”, resume o Safra. “Entretanto, mesmo após o final da quarentena nas principais cidades, o mercado de trabalho deve permanecer enfraquecido por alguns meses, com impacto direto sobre o consumo.”

Para completar, há 8,2 milhões de trabalhadores que tiveram acordos de suspensão do contrato de trabalho ou de redução de salário e de jornada. Esses empregos por ora foram preservados, mas com queda expressiva de rendimento em muitos casos.

Uma medida que ajuda a contrabalançar em parte a perda de renda é o auxílio emergencial de R$ 600. O benefício deve ser estendido por mais algum tempo, mas possivelmente com um valor mais baixo, dado o custo elevado. Mesmo se for adotado um programa permanente de transferência de renda mais ambicioso, o quadro para o consumo deverá continuar pouco animador.

O cenário para o endividamento também não é favorável. No fim do primeiro trimestre, as dívidas das famílias correspondiam a 45,9% da renda acumulada em 12 meses, o nível mais alto da série iniciada em 2005, de acordo com números do Banco Central (BC). Como efeito da recessão recente, houve redução do nível de endividamento de abril de 2015 até dezembro de 2017, mas as famílias haviam começado a tomar novos empréstimos e financiamentos, num quadro de retomada da atividade, ainda que vagarosa. Com a perspectiva de juros baixos por um longo tempo e de melhora da confiança, esse processo poderia ser sustentável. A crise causada pela covid-19, contudo, mina esse processo, pegando os consumidores com um endividamento já elevado, que deve aumentar, e o mercado de trabalho em situação adversa, uma combinação obviamente desfavorável para o consumo.

Por fim, o combate frouxo à pandemia e os seguidos confrontos políticos causados pelo presidente Jair Bolsonaro afetam o consumo. Se o efeito mais evidente desse cenário de incerteza se dá sobre o investimento, um ambiente de indefinição como o atual também contribui para tornar o consumidor mais cauteloso. O país, desse modo, deve ter um ano marcado por queda recorde do PIB - talvez de 8% - e uma recuperação vagarosa.


Sergio Lamucci: A máquina de produzir incertezas

Fonte de conflitos, Bolsonaro contribui para manter a incerteza elevada, prejudicando a economia, que pode encolher 5% ou mais neste ano

A pandemia da covid-19 fez a incerteza disparar no Brasil e no mundo, com os indicadores criados para medir o grau de indefinição na economia superando em muito recordes anteriores. A combinação de uma crise de saúde com a paralisação da atividade global provocou um choque de imprevisibilidade sem precedentes.

Por aqui, soma-se a esse cenário os conflitos e ruídos causados pelo presidente Jair Bolsonaro, uma máquina de produzir incertezas desde o início de sua gestão. É um fator de peso a conspirar contra a recuperação da economia quando houver o abrandamento das medidas de isolamento social. Níveis elevados de incerteza atrapalham especialmente o investimento, que depende de um horizonte previsível.

O Indicador de Incerteza da Economia (IIE) da Fundação Getulio Vargas (FGV) alcançou em abril 210,5 pontos, o nível mais alto da série. Em dois meses, subiu mais de 95 pontos. Antes dos recordes de março e abril, o patamar máximo anterior, de 136,8 pontos, tinha sido atingido em setembro de 2015, mês em que a agência de classificação de risco Standard and Poor’s (S&P) tirou o grau de investimento do Brasil.

A imprevisibilidade também superou marcas históricas no exterior. O índice de incerteza de política econômica dos EUA bateu o recorde em março, ao atingir 425,9 pontos, bem acima dos 284,1 pontos do pico anterior, de janeiro de 2019. Em abril, o indicador cedeu um pouco, mas seguiu elevadíssimo, em 400,7 pontos. O índice foi criado em 2011 por Nicholas Bloom, da Universidade Stanford, Steven Davis, da Universidade de Chicago, e Scott Baker, da Universidade Northwestern. Estudiosos do tema, os três mostram em seus trabalhos a influência da imprevisibilidade sobre o investimento, a produção e o emprego. Eles desenvolveram indicadores para mais de 20 países, entre eles o Brasil, baseados na varredura de notícias na imprensa relacionadas à incerteza econômica. O IIE da FGV,, por sua vez, tem dois componentes. O de mídia, com peso de 80%, se baseia na frequência de notícias com menção à incerteza em meios de comunicação impressos e on-line. O de expectativa busca medir a indefinição relacionada a previsões do mercado em relação a câmbio, juros e inflação, com peso de 20%.

No mês passado, Bloom, Davis, Baker e Stephen Terry, da Universidade de Boston, publicaram um estudo sobre a incerteza provocada pela pandemia. Segundo eles, a doença criou um enorme choque de imprevisibilidade, maior do que o associado à crise financeira de 2008 e 2009 e mais próximo em magnitude ao que ocorreu durante a Grande Depressão de 1929 a 1933. Para avaliar esse aumento maciço da incerteza em tempo real, eles usaram medidas de volatilidade no mercado de ações, de incerteza econômica baseada em notícias da imprensa e respostas a pesquisas sobre a percepção do tema pelas empresas. O exercício indica uma contração do PIB dos EUA de 9% no segundo trimestre em relação ao mesmo período do ano passado, atingindo uma retração máxima de 11% nessa base de comparação no quarto trimestre de 2020. Mais da metade desse tombo se deve à incerteza econômica induzida pela doença, de acordo com eles.

Para atenuar os efeitos negativos do choque sobre a economia, bancos centrais e governos têm adotado medidas para garantir a liquidez dos mercados e ajudar consumidores e empresas, que sofrem com a abrupta queda de renda e de receita. Essa estratégia, se bem sucedida, terá um papel relevante para reduzir a incerteza e contribuir para a recuperação da economia quando o isolamento for relaxado. É difícil, porém, acreditar numa retomada rápida. É provável que famílias e empresas sigam cautelosas, num cenário em que medidas de confinamento poderão ser retomadas de modo intermitente, a depender do grau de contágio.

No Brasil, o auxílio emergencial de R$ 600 para informais começou a ser pago, mas há reclamações de trabalhadores que em tese têm direito ao benefício e não o receberam. O maior problema, contudo, é fazer o crédito chegar em maior volume e com maior fluidez a micro e pequenas empresas. Depois da hesitação inicial, a equipe econômica tem buscado agir, mas ainda há correções a serem feitas. Há ainda a importante atuação do Banco Central (BC), reduzindo os juros e provendo liquidez, por exemplo.

Quem joga contra e aumenta a incerteza é Bolsonaro. No meio da pandemia, ele minimiza a gravidade da doença e faz seguidos apelos para o abrandamento da quarentena, contrariando a recomendação da maior parte dos especialistas e a decisão de muitos governadores e prefeitos. Para completar, trocou o ministro da Saúde durante a crise sanitária. O rompimento com Sergio Moro, que pediu demissão do governo, provocou uma grave crise política. Há ainda os constantes atritos com o Congresso e o Judiciário. Fonte de conflitos, Bolsonaro contribui para manter a incerteza elevada, prejudicando a economia, que pode encolher 5% ou mais neste ano. Isso aumenta a probabilidade de uma recuperação lenta depois que a quarentena for relaxada.


Sergio Lamucci: Incertezas crescentes nublam cenário de 2020

Com a grande incerteza no cenário externo, é fundamental que o governo e a equipe econômica deixem de produzir ruídos, evitando criar mais instabilidade

As perspectivas para a economia brasileira se turvaram no fim deste primeiro trimestre, devido às incertezas no cenário global e no quadro doméstico. A epidemia de coronavírus, ao que parece, terá um efeito mais forte e um pouco mais longo sobre a economia mundial, o que tem provocado grande volatilidade e aversão ao risco nos mercados internacionais. No front interno, a atividade mostra fraqueza maior do que se esperava e o clima político segue conturbado, com o governo Jair Bolsonaro causando conflitos frequentes, desnecessários e preocupantes com os outros Poderes, em especial o Congresso. Há dúvidas sobre o andamento das reformas, num momento em que o ministro da Economia, Paulo Guedes, contribui para elevar as incertezas, ao demorar para definir a sua proposta de mudança do sistema tributário e ao dar declarações confusas sobre o câmbio, por exemplo.

Nesse ambiente, murcharam as expectativas de que o Brasil poderia ter um crescimento um pouco mais forte neste ano, na casa de 2% a 2,5%. Muitas estimativas já caíram para a casa de 1,5%, apesar dos juros baixos, do aumento do crédito e da retomada gradual do mercado de trabalho, embora ainda haja quem aposte numa expansão perto de 2%.

A incerteza elevada atrapalha em especial as decisões de investimento. Num quadro indefinido, marcado ainda por grande ociosidade, muitas empresas preferem esperar para investir em projetos de modernização e ampliação da capacidade produtiva. Além disso, o capital externo fica mais arredio.

O quadro internacional ficou muito mais incerto depois da eclosão da epidemia de coronavírus. Para os economistas do Barclays, “o cenário para a economia global se deteriorou significativamente”, à medida que a doença se espalha rapidamente pelo mundo. A ideia inicial era de que o fenômeno seria principalmente um problema chinês e asiático, restrito em grande parte ao primeiro trimestre. Agora, a avaliação é que haverá uma desaceleração mais longa e mais profunda, escrevem os economistas Christian Keller e Fabrice Montagné. Com a disseminação do vírus, especialmente na Europa e nos EUA, a economia global enfrenta um choque duplo de oferta e de demanda mais demorado e mais intenso.

Para eles, considerando que a doença siga os padrões históricos de outras epidemias, a expectativa é de uma recuperação relativamente forte da atividade ao redor do mundo na segunda metade de 2020, apoiada por respostas de política econômica, tanto monetárias quanto fiscais. Essas medidas podem atenuar o choque de demanda e, principalmente, evitar o contágio financeiro generalizado. Ainda assim, o crescimento global neste ano ficaria em 2,7%, abaixo dos 3,2% do ano passado e próximo aos 2,5% que o Fundo Monetário Internacional (FMI) considera como recessão, dizem Keller e Montagné.

Projeções econômicas num cenário como esse têm obviamente um grau de incerteza muito elevado. É extremamente difícil avaliar como a epidemia vai evoluir, qual será o impacto sobre a economia global e como será o efeito sobre os mercados internacionais. Apesar disso, ganha força a avaliação de que a atividade global tende a sofrer mais e por mais tempo. Para piorar, a semana começa com o tombo das cotações do petróleo, devido à guerra de preços promovida pela Arábia Saudita.

Esse ambiente externo adverso e incerto tem levado os economistas a reduzirem as estimativas de crescimento para a economia brasileira em 2020, aliado ao desempenho mais fraco da atividade por aqui nos últimos meses. O Safra, por exemplo, cortou na sexta-feira a projeção para 2,1% para 1,6%, atualizando a “perspectiva para incorporar o novo cenário global e também os dados mais recentes” sobre a economia brasileira, como os do PIB do quarto trimestre de 2019. Na visão do banco, esses números sugerem “uma recuperação frágil” do Brasil.

Para complicar o cenário, existem as incertezas no quadro doméstico. Há os conflitos do governo com os outros poderes, por exemplo. No sábado, Bolsonaro pediu que a população participe dos protestos marcados para o dia 15. Em várias convocações para o ato feitas nas redes sociais, há um tom de forte hostilidade ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Esses conflitos ocorrem quando há grande expectativa em relação ao andamento da agenda de reformas. Depois da aprovação da reformada da Previdência, o governo enviou três Propostas de Emenda à Constituição (PEC) ao parlamento - a emergencial, a do pacto federativo e a dos fundos. Entre outros pontos, há medidas para enfrentar a rigidez das despesas obrigatórias, como os salários do funcionalismo, um ponto importante para consolidar o ajuste das contas públicas, mas os projetos são muito amplos e têm pontos controversos, dificultando a sua aprovação.

Além disso, a equipe econômica demora a definir a sua proposta para a reforma tributária, num ambiente em que parece haver um clima mais favorável à mudança do sistema de impostos. Um dos pontos que atrapalham é o desejo de Guedes de criar um tributo sobre transações financeiras, nos moldes da extinta CPMF, para compensar a desoneração da folha de salários das empresas. A medida conta com a oposição de figuras importantes do Congresso, como o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o próprio Bolsonaro já mostrou diversas vezes antipatia à ideia.

Na quinta-feira passada Guedes afirmou a empresários na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) que deve enviar a proposta de reforma tributária ao Congresso nesta semana. A ver, já que o envio da proposta foi prometido para a semana seguinte várias vezes, o que também ocorreu com a reforma administrativa.

Guedes também colabora para aumentar a incerteza ao falar de modo confuso sobre o câmbio. Na quinta-feira, o ministro disse que o câmbio é flutuante, que o dólar pode ir a R$ 5 se ele fizer muita besteira e que quem quiser remeter recursos para fora do país, que os remeta. Ao se manifestar de modo desencontrado sobre um assunto da alçada do Banco Central (BC), o ministro contribui para criar mais volatilidade.

Num momento de grande incerteza no cenário externo, é fundamental que o governo e a equipe econômica deixem de produzir ruídos e conflitos, evitando criar mais instabilidade.

Se isso não ocorrer, a recuperação vai continuar a passos lentos, com o risco de mais um ano de crescimento pífio, próximo ao pouco mais de 1% dos últimos três anos.

*Sergio Lamucci é editor de Brasil


Sergio Lamucci: Um mundo cada vez mais endividado

Com juros baixos, dívida global deve continuar a crescer

Num mundo marcado juros extremamente baixos, o endividamento global atinge níveis cada vez mais elevados. No terceiro trimestre de 2019, a dívida de famílias, governos, empresas não-financeiras e bancos dos principais países desenvolvidos e emergentes alcançou o recorde de US$ 253 trilhões, o equivalente a 322% do PIB, de acordo com números do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês). A expectativa é de que o endividamento siga em alta em 2020, batendo em US$ 257 trilhões no primeiro trimestre, impulsionado pelos juros baixos e por condições financeiras relaxadas, apontam os analistas do IIF.

Por enquanto, não há temores de problemas imediatos relacionados a esses níveis globais de endividamento, mas eventuais aumentos dos juros ou movimentos mais expressivos de moedas podem causar estresse nos mercados, como destacou o presidente do IIF, Tim Adams, ao repórter Daniel Rittner, do Valor, em entrevista no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na semana passada. Como parte das dívidas das empresas está denominada em divisas estrangeiras, pode haver estragos em caso de desvalorizações cambiais fortes e abruptas.

Um estudo recente de economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) trata do endividamento público em cenários de juros baixos e em que frequentemente é negativa a diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento da economia. O relatório recomenda às autoridades cautela quanto a níveis elevados de dívida, mesmo quando o custo de tomar dinheiro emprestado é baixo.

Publicado neste mês, o estudo “Dívida não é livre”, dos economistas do FMI Marialuz Moreno Badia, Paulo Medas, Pranav Gupta e Yuan Xiang, conclui que a dívida pública “é o mais importante preditor de crises”. Acima de determinados níveis de endividamento, a probabilidade de problemas aumenta fortemente, a despeito a diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento.

“A nossa análise também revela que as interações entre a dívida pública com a inflação e os desequilíbrios externos podem ser tão importantes quanto os níveis de endividamento”, afirmam os autores, que identificaram 418 episódios de crises fiscais em 188 países, no período de 1980 a 2016.

Para economias desenvolvidas, a chance de uma crise aumenta significativamente se a dívida externa atinge a casa de 70% do PIB. Para países emergentes, a probabilidade estimada de um problema fica relativamente estável para patamares de endividamento externo abaixo de 30% do PIB, mas sobe fortemente acima dessa fronteira, dizem os economistas do FMI. No caso do Brasil, a dívida externa pública está na casa de 10% do PIB, e o país ainda é credor externo líquido (ou seja, os ativos em moeda estrangeira, como as reservas, superam os passivos).

“Esses resultados, embora não necessariamente impliquem causalidade, mostram que os governos devem ser cautelosos em relação à dívida pública elevada, mesmo quando os custos de empréstimo parecem baixos”, reiteram os economistas do FMI. O ponto, segundo eles, é que “as dinâmicas das crises são altamente não-lineares” e, no momento em que a diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento passar a ser um sinal de alerta, as autoridades podem estar desprevenidas. “Essas conclusões não significam que reduzir a dívida é sempre a prescrição adequada. Há claramente casos em que o uso do endividamento para propósitos contracíclicos, para aumentar o investimento público ou para enfrentar outras necessidades estruturais é desejável”, afirmam os autores do estudo, ressaltando, contudo, que a evidência apresentada por eles indica que a dívida pública não é isenta de problemas.

O texto menciona a avaliação feita em 2019 por Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, de que “a dívida pública pode não ter custo fiscal”, num ambiente em que a taxa de juros tende a ficar abaixo da taxa de crescimento por longos períodos. O argumento ganha força no debate num cenário de juros baixos, quando não negativos. Mas o relatório, como fica claro, não vê com bons olhos a análise benigna de Blanchard e alguns outros analistas sobre o endividamento público, mesmo num quadro de juros ínfimos.

No Brasil, a dívida de famílias e empresas não-financeiras voltou a subir na comparação com o PIB nos últimos trimestres, após um período de redução de endividamento provocada pela grave recessão do segundo trimestre de 2014 ao quarto trimestre de 2016, mostram os números do IIF. No terceiro trimestre de 2019, a dívida das famílias equivalia a 28,7% do PIB e a das empresas não-financeiras, a 42,9% do PIB.

Com a recuperação da economia, a tendência é que os débitos de pessoas físicas e jurídicas continuem a crescer. Com juros mais baixos e um crescimento maior, o processo pode ser saudável, num quadro de melhora das perspectivas para a renda dos consumidores e para a receita das empresas.

Já a dívida pública brasileira, depois do enorme salto ocorrido a partir de 2014, tem crescido a um ritmo mais fraco, e pode começar a cair nos próximos anos, especialmente devido à Selic menor, mas também pela expectativa mais favorável para o PIB. O indicador, que fechou 2013 em 51,5% do PIB, atingiu 77,7% do PIB em novembro de 2019.

Estimativas como as do Tesouro Nacional apontam para uma estabilização da dívida bruta na casa de 78% do PIB e uma redução lenta nos anos seguintes, uma trajetória bem mais otimista que a projetada na virada de 2018 para 2019, por exemplo.

Ainda assim, o endividamento brasileiro é bem superior ao da média dos emergentes, um pouco inferior a 54% do PIB, segundo projeções do FMI. Nesse quadro, é importante que o Brasil faça um esforço fiscal para reduzir o indicador um pouco mais rapidamente nos próximos anos, o que exigirá a geração de resultados primários positivos (receitas menos despesas, exceto gastos com juros). A boa notícia é que não terão que ser tão altos como no passado, de 2,5% a 3% do PIB, pois superávits menores deverão ser suficientes para diminuir a relação entre a dívida e o PIB, desde que os juros de fato permaneçam baixos e o crescimento seja um pouco mais forte.


Sergio Lamucci: A produtividade continua a decepcionar

Agropecuária é o único setor a mostrar ganhos de eficiência

A retomada cíclica da economia brasileira ganha força, e um crescimento na casa de 2,5% em 2020 parece plausível. Com o impulso dos juros baixos, da melhora do mercado de trabalho e do aumento do crédito, a atividade deve avançar a um ritmo mais firme, com perspectivas favoráveis para o consumo das famílias e, em menor medida, para o investimento.

Do lado da produtividade, porém, as notícias continuam desanimadoras, um sinal preocupante para a capacidade de o país crescer a taxas mais elevadas no longo prazo. Números do Instituto de Economia Brasileira da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) mostram queda da produtividade do trabalho nos três primeiros trimestres de 2019, com desempenho muito ruim da indústria e dos serviços - a exceção é a agropecuária, o segmento que tem grandes ganhos de eficiência, mas uma participação pequena no PIB.

Na Carta do Ibre deste mês, o diretor do instituto, Luiz Guilherme Schymura, nota que o comportamento setorial mostra um padrão “parecido no curto e no longo prazo”. Em 2019, a produtividade do trabalho na indústria e nos serviços caiu nos três primeiros trimestres na comparação com os mesmos períodos do ano anterior, enquanto a da agropecuária subiu no primeiro e no terceiro, quando teve um salto de 4,6%. No intervalo de julho a setembro, a da indústria caiu 0,7% e a dos serviços, 1,3%. Entre 1995 e 2018, o resultado da indústria é muito decepcionante: uma queda de 5%. Nesses 23 anos, a de serviços avançou raquíticos 6%. A da agropecuária aumentou 358%.

Depois da saída de uma recessão cavalar, que fez o PIB encolher 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016, era de se esperar uma recuperação com avanço da produtividade. Em geral, há enorme ociosidade nas empresas, muitas das quais reduziram custos para enfrentar o período de vacas magras. Não é, porém, o que tem ocorrido. A produtividade do trabalho agregada aumentou 1,2% em 2017, ficou quase estagnada em 2018, ao subir 0,1%, e deve ter caído 0,7% em 2019, segundo as projeções do Ibre/FGV.

“A razão pela qual a produtividade está recuando é simples: o nível de emprego, sempre medido pelas horas trabalhadas, está crescendo mais do que o PIB”, diz Schymura. “O valor agregado na economia - variável próxima do PIB, mas que exclui impostos e subsídios - cresceu em 2017, 2018 e 2019 a taxas muito parecidas, de respectivamente 1,3%, 1,3% e 1,2% (números quase idênticos aos do próprio PIB). Mas o total de horas trabalhadas na economia teve um crescimento ascendente, de 0,1%, 1,3% e 1,9%, respectivamente, naqueles três anos”. Isso quer dizer que “a produtividade cresceu em 2017 (produziu-se mais com praticamente a mesma quantidade de trabalho), ficou estável em 2018 (trabalho e valor agregado avançaram juntos) e caiu em 2019, com a expansão do fator trabalho superando a do valor agregado por 0,7 ponto porcentual”, escreve Schymura. Os números de 2019 são projeções.

Citando o economista Fernando Veloso, responsável pelo Observatório da Produtividade do Ibre/FGV ao lado de Silvia Matos, Schymura diz que a geração de empregos está próxima do que se registrava no período anterior à recessão de 2014 a 2016. O ponto é que as horas trabalhadas a mais não têm se convertido em aumento significativo da produção. Isso ocorre porque os empregos criados “situam-se, em média, em setores e atividades muito pouco produtivos”. Segundo Schymura, a baixa produtividade se deve ao fato de que grande parte deles está no setor informal, em média quatro vezes menos produtivos que os do segmento formal.

Nas contas do Ibre/FGV, o aumento da informalidade contribuiu com mais da metade do recuo de 4,3% da produtividade do trabalho no Brasil desde o fim de 2014. “Esse impacto foi especialmente expressivo em segmentos intensivos em mão de obra e com a característica de alta informalidade, como construção e transportes” aponta ele.

É possível que o avanço do emprego informal e a queda da produtividade sejam transitórios, associados às características da retomada do mercado de trabalho, avalia Veloso. Nessa hipótese, depois da recessão, a criação de vagas começa por vínculos informais e é seguida pela aceleração das contratações formais, à medida que a economia ganha força - as vagas com carteira assinada inclusive têm crescido mais nos últimos meses.

Veloso, porém, mostra algum ceticismo em relação a essa possibilidade. Ele menciona um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apontando que elevações do desemprego em geral ocorrem simultaneamente ao aumento da informalidade, em especial do trabalho por conta própria. A alta da desocupação e da informalidade entre 2014 e 2016 corresponde ao padrão esperado, segundo ele. No entanto, a informalidade continuou a crescer em 2018 e 2019, num momento em que a taxa de desemprego já tinha começado a recuar.

Para ele, esse padrão discrepante do crescimento da informalidade com queda de desemprego acende um “sinal amarelo”, indicando a possibilidade de o fenômeno ter uma característica mais duradoura. Não há uma explicação cabal para isso, diz Veloso. O estudo do Ipea sugere um traço mais estrutural, ligado à terceirização e à chamada “economia dos aplicativos”, como Uber, iFood e Rappi.

Veloso vê outro fator importante afetando negativamente a produtividade - a incerteza elevada. O Indicador de Incerteza da Economia (IEE-Br) da FGV, por exemplo, encerrou 2019 em 112,4 pontos, um número ainda alto, acima do nível neutro de 100 pontos. Num cenário incerto, empresários tendem a adiar investimentos e contratações formais.

A aprovação da reforma da Previdência e a recuperação da atividade contribuem para reduzir a incerteza, por melhorar a percepção sobre as contas públicas e sobre a demanda futura. Isso deve dar mais confiança aos empresários para investir e contratar mais trabalhadores com carteira assinada, o que deve ter um impacto positivo sobre a produtividade.

A tarefa de tornar a economia mais produtiva, no entanto, passa por um conjunto enorme de medidas, como reforma tributária, abertura comercial, avanços na educação e investimentos em infraestrutura. Sem isso, a produtividade continuará fraca e o país, depois de crescer por alguns poucos anos em cima da ociosidade existente, terá dificuldades para avançar a taxas mais expressivas.


Sergio Lamucci: Juro baixo é o grande trunfo para 2020

Com mais crescimento e uma trajetória mais benigna para a dívida, a percepção de risco melhora, tornando o cenário mais favorável para o investimento no país

A forte queda dos juros e a expectativa de que a Selic ficará baixa por longo período melhoraram consideravelmente o cenário para a recuperação cíclica e para a dinâmica das contas públicas no Brasil.

Mesmo se o Banco Central (BC) não cortar mais a taxa básica em 2020 e a mantiver em 4,5% ao ano ao longo do ano que vem, um juro real (descontada a inflação) pouco acima de zero deverá ter efeito importante sobre a atividade, contribuindo também para reduzir as despesas financeiras do setor público. Com mais crescimento e uma trajetória mais benigna para a dívida, a percepção de risco melhora, tornando o cenário mais favorável para o investimento no país.

Um avanço mais firme do PIB de modo sustentado vai depender do aumento da produtividade, mas o quadro de juros baixos deve sustentar a retomada cíclica, ainda que seja importante uma queda expressiva das taxas cobradas em empréstimos e financiamentos. Juros menores tendem a permitir um crescimento do PIB acima de 2% por algum tempo, desde que não haja uma piora acentuada no cenário externo e o governo não crie incertezas e problemas desnecessários, como na relação com o Congresso.

Para o ano que vem, o Bradesco prevê uma expansão da economia de 2,5%, uma aceleração em relação ao 1,2% esperado para este ano, amparada no nível baixos dos juros e na recuperação do mercado de trabalho. “As melhores condições financeiras, com juros em patamar historicamente baixo, favorecerão os setores ligados a crédito, como o automotivo, as indústrias de eletrônicos e de bens de capital, construção residencial e infraestrutura”, aponta o banco, em relatório.

Além disso, a recuperação do mercado de trabalho deve ganhar força, com o aumento da formalização - em novembro, o país criou quase 100 mil vagas com carteira assinada, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Foi o oitavo mês seguido de geração de vagas formais, e o melhor resultado para novembro desde 2010. “Isso deve adicionar maior dinamismo ao consumo das famílias e impactar positivamente o comércio varejista, os serviços prestados às famílias e o sistema de saúde privado”, dizem os economistas do Bradesco, que também veem “um cenário favorável para todo o complexo carnes, a exploração de petróleo e a mineração, em dinâmicas setoriais próprias”.

Os juros baixos também devem estimular o investimento por parte das empresas, avalia o Bradesco. A confiança empresarial tem melhorado e está em curso um processo de redução das incertezas. “As exportações devem se manter em baixo patamar, mas a demanda interna deve compensar”, diz o banco, para quem “os aportes seguirão concentrados em modernização e automação, ainda mais se considerarmos o elevado nível de ociosidade em alguns segmentos”.

À medida que a indústria cresça com mais força, porém, o excesso de capacidade se reduzirá, aponta o Bradesco. Desse modo, há uma expectativa de que a retomada seja puxada pelo consumo das famílias e pelo investimento, ainda que a ociosidade elevada freie apostas em projetos de ampliação da capacidade produtiva, pelo menos num primeiro momento.

O economista-chefe do Bradesco, Fernando Honorato, diz que, em evento recente promovido pelo banco em Nova York, ficou claro que o investidor estrangeiro “quer ver crescimento”. Essa é a grande prioridade do capital externo, segundo ele. Se confirmadas as previsões para 2020, o Brasil será uma das principais economias do mundo a registrar uma aceleração mais expressiva do crescimento no ano que vem. Isso pode atrair recursos estrangeiros para a bolsa, cuja alta em 2019 foi puxada por dinheiro local, e para projetos de infraestrutura e outros setores da economia, diz Honorato. Muitos investidores externos permanecem reticentes em relação ao país devido ao desempenho fraco da economia nos últimos anos.

Os juros baixos também melhoraram significativamente as perspectivas para a trajetória da dívida pública. A mudança fica clara nas projeções para a dívida bruta do Santander, por exemplo. Em 2015, o banco via o endividamento bruto atingindo o pico de 91,7% do PIB em 2023. Na estimativa feita em 2017, o indicador alcançaria 88,7% do PIB também em 2023. Hoje, o banco acredita que o pico será de 77,8% do PIB, nível em que a dívida bruta baterá em 2021.

Em resumo, o indicador, um dos principais termômetros de solvência das contas públicas de um país, deverá subir menos que se esperava há alguns anos, além de atingir o seu nível máximo um pouco antes.

O economista Rodolfo Margato, do Santander, ressalta o papel dos juros mais baixos para a melhora das projeções. Também pesam a expectativa de um crescimento um pouco mais forte e as devoluções dos recursos do BNDES ao Tesouro, de acordo com ele. Isso ajuda a abater o estoque da dívida bruta, que deve fechar 2019 em 76,8% do PIB, nas projeções do banco.

Num quadro de elevado desemprego e inflação sob controle, os juros tendem a ficar baixos por um bom tempo. O Santander espera que a taxa recue dos atuais 4,5% para 4% no começo do ano que vem, enquanto o Bradesco acredita que a Selic cairá para 4,25%. Nos dois casos, a expectativa é que os juros não vão subir ao longo de 2020. A aprovação da reforma da Previdência e o teto de gastos também foram importantes para a queda da taxa nos últimos anos, por melhorar a sustentabilidade das contas públicas no longo prazo.

Para que os juros sigam em níveis baixos de modo duradouro é fundamental continuar com a agenda fiscal, diz Honorato, para quem é importante a aprovação de medidas que tornem viável o cumprimento do teto, o mecanismo que limita a expansão das despesas não financeiras da União. Também é preciso adotar iniciativas do lado da oferta, para aumentar a produtividade e, com isso, a capacidade de o país crescer a taxas mais elevadas, segundo ele. Margato diz que o ajuste das contas públicas não está completo, sendo necessário aprovar medidas que controlem a expansão dos gastos obrigatórios.

Depois de três anos de crescimento pífio, a economia entra em 2020 com a expectativa de expansão mais forte e uma situação fiscal mais favorável. Se o ambiente internacional não azedar e o governo não for uma fonte de incertezas e ruídos, o PIB parece caminhar de fato para uma expansão no ano que vem superior a 2%, nada brilhante, mas algo que não ocorre desde 2013.


Sergio Lamucci: Os efeitos de um crescimento mais forte

PIB mais forte pode deixar erros do governo em segundo plano

A recuperação da economia brasileira enfim ganha fôlego, com vários analistas apostando num crescimento acima de 2% em 2020 - Bradesco e Credit Suisse, por exemplo, projetam expansão de 2,5% no ano que vem. O grande destaque pelo lado da demanda deverá ser o consumo das famílias, mas também há sinais de um desempenho melhor do investimento, ainda que não se espere um resultado exuberante. São boas notícias para um país com 12,4 milhões de desempregados, que viu o Produto Interno Bruto (PIB) afundar 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016 e depois avançar a uma taxa pouco superior a 1% por três anos seguidos. A expansão do crédito, a queda forte dos juros e a redução das incertezas sobre a sustentabilidade das contas públicas, com a aprovação da reforma da Previdência, formam um quadro mais favorável para a aceleração da atividade.

Essa perspectiva de melhora é sem dúvida bem-vinda, mas não deveria ofuscar os problemas na orientação do governo Jair Bolsonaro em áreas como educação, ambiente e relações exteriores -e por vezes na própria economia. A falta de rumo na educação, por exemplo, é um obstáculo para o país conseguir melhorar a qualidade do capital humano e, com isso, a produtividade. Em vez de definir diretrizes claras para dar prioridade à educação básica, o ministro Abraham Weintraub perde tempo em polêmicas estéreis.

Já o descaso com o ambiente, evidenciado na expansão do desmatamento e nas declarações de Bolsonaro e do ministro Ricardo Salles, pode afugentar investimentos de empresas e fundos estrangeiros, além de dificultar a aprovação de acordos comerciais.
Marcada pelo alinhamento incondicional aos EUA, a política externa, por sua vez, não tem dado resultados, como ficou evidente mais uma vez no anúncio feito pelo presidente Donald Trump na semana passada, de que vai retomar a sobretaxa sobre o aço e o alumínio brasileiros. A estratégia de confronto com o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, tampouco é útil aos interesses brasileiros, uma vez que o país vizinho é um grande comprador de produtos manufaturados.

Além de serem preocupantes em si mesmas, as políticas para essas áreas cruciais podem comprometer o próprio crescimento do país, ainda que não imediatamente. Num ambiente de recuperação mais forte da economia, contudo, esses e outros problemas do governo podem passar a incomodar menos. “São temas que mexem com setores importantes e organizados. Sempre haverá uma reação”, avalia Ricardo Ribeiro, analista político da MCM Consultores Associados. “Para o pessoal dos negócios”, porém, os erros e deslizes tendem a ser “tolerados se a economia andar. Para o grosso da população, também”, diz ele.

Se a economia engrenar e finalmente superar para valer o patamar de 1% de crescimento registrado nos últimos três anos, as bizarrices, as excentricidades e os arroubos autoritários - alguns apenas retóricos, outros efetivos - do governo Bolsonaro tendem a ficar em segundo plano”, avalia Ribeiro, em nota.

“É certo que algo em torno de 2,5% de crescimento, patamar para o qual convergem as expectativas para 2020, pode não ser suficiente para melhorar de maneira acentuada a sensação de bem-estar do conjunto da população”, observa Ribeiro. “O desemprego continuará elevado e os novos empregos podem ser precários e de baixa remuneração. Entretanto, quanto maior o crescimento, maior tende a ser a boa vontade da população em relação ao governo.”

Para Ribeiro, fatores como “o pouco caso do governo com o meio ambiente, a declaração do ministro da Educação a respeito da alegada existência de extensas plantações de maconha em universidades federais, os ataques de Bolsonaro a determinados empresas da mídia e a proteção a outras, as menções levianas ao AI-5 feitas por gente de dentro ou próxima ao governo, entre outras atitudes polêmicas, ofendem setores importantes da sociedade. Mas, para a maioria da população, tendem a ser toleradas ou esquecidas se a economia enfim passar a crescer em ritmo mais acentuado”.

Há obviamente incertezas em relação ao crescimento no ano que vem, mas o cenário econômico sugere que uma expansão superior a 2% em 2020 não parece excesso de otimismo. O resultado do PIB do terceiro trimestre, com alta de 0,6% sobre o trimestre anterior, mostrou uma economia crescendo a um ritmo um pouco superior ao que a maior parte dos economistas esperava. No quarto trimestre, há sinais que apontam para uma atividade mais forte, um período em que haverá o efeito mais significativo da liberação dos recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). A indústria teve um bom desempenho em outubro e tudo indica que o varejo teve um bom mês de vendas em novembro, com as promoções da Black Friday. Além disso, houve redução da incerteza e aumento da confiança empresarial no mês passado, segundo a Fundação Getulio Vargas.

Por fim, a criação de empregos formais nos últimos meses aponta um ritmo um pouco mais firme, de acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).

Com a perspectiva de redução adicional dos juros básicos, de 5% para 4,5% ao ano ou até menos, e a avaliação dominante de que a Selic ficará baixa por um período considerável, a atividade ganhará um relevante impulso monetário. É verdade que há fontes de incerteza, como o ambiente externo, caracterizado pela desaceleração da economia global, num quadro de guerra comercial entre EUA e China. Outro foco de indefinição pode vir do próprio governo, se houver problemas para fazer avançar a agenda de reformas no Congresso.

Segundo o economista-chefe do Credit Suisse, Leonardo Fonseca, basta a economia manter o ritmo de alta de 0,5% a 0,6% - registrado no segundo e no terceiro trimestre deste ano em relação ao anterior - que o PIB crescerá 2,5% em 2020. Se concretizado, esse quadro ajudará a dar mais gás à recuperação em curso do mercado de trabalho.

Para Ribeiro, “o impacto de boas notícias na economia sobre o estado de espírito dos agentes econômicos tende a ser maior neste momento, após anos de recessão e crescimento pífio”. Nesse cenário, pode haver maior tolerância em relação a políticas problemáticas do governo em áreas como educação, ambiente e relações exteriores, o que seria algo preocupante.