segunda onda

Alon Feuerwerker: Segunda, terceira

Depois da segunda onda vem a terceira? Isso aconteceu, por exemplo, na Gripe Espanhola. E ali a mais mortífera foi a segunda. Agora, a Europa parece às voltas com o recrudescimento das infecções pelo SARS-CoV-2, uma terceira onda que preocupa as autoridades sanitárias (leia).

Também porque o ritmo da vacinação no Velho Continente deu uma engasgada, por causa das dúvidas sobre a vacina de preferência deles, a Oxford/AstraZeneca. Houve relatos de complicações após a administração, ela foi interrompida em diversos países mas agora parece que vai ser retomada.

Lá, como cá, a disputa se dá em torno de apertar e estender, ou não, as medidas de isolamento social. Mas ali preservou-se um grau bom de coordenação entre governos e países. Se acertarem, a chance de todos acertarem juntos é grande. Igualmente se errarem.

Por aqui, a turbulência federativa vai firme. Um exemplo insólito é a divergência entre o governador de São Paulo e o prefeito da capital, aliados e ambos do mesmo partido, sobre o feriado prolongado que a prefeitura determinou (leia). E assim caminha o Brasil. Tomara que a vacinação acelere logo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Pablo Ortellado: Eles em nós

A editora Record acaba de lançar o novo livro de Idelber Avelar, “Eles em nós”, que busca interpretar os acontecimentos recentes da política brasileira com os instrumentos da análise retórica.

O maior mérito da obra é examinar os processos políticos recentes, reconstruindo cuidadosamente os acontecimentos, de uma perspectiva razoavelmente distanciada. A posição política do autor, que vem da esquerda, mas se afasta dela, confere rara equidistância para tratar criticamente as administrações petistas e o governo Bolsonaro.

A principal limitação do livro é justamente o que seria a sua virtude: o uso de categorias da retórica para explicar os processos políticos. Avelar tem larga experiência como comentador político, mas preferiu se apoiar em sua especialidade, como professor de Literatura, para se lançar neste projeto de interpretação do Brasil contemporâneo. Os conceitos da retórica às vezes dificultam, em vez de ajudar a esclarecer as questões.

Avelar usa, por exemplo, o conceito de oximoro (figura de linguagem que combina palavras de sentido oposto) para tratar das contradições do lulismo. Mostra que, enquanto Lula criticava os ruralistas, tinha Blairo Maggi como interlocutor; enquanto atacava os meios de comunicação, ampliava as verbas de publicidade do governo.

A análise dessas contradições é perspicaz, mas o recurso à figura do oximoro não as ilumina. Lula não empregava expressões antinômicas, mas adotava uma postura ideológica junto à militância, contraditada por seu pragmatismo como presidente. Se se debruçasse sobre o conceito de “governo em disputa”, reivindicado pela militância petista, talvez pudesse entender melhor o fenômeno.

Avelar caracteriza essa ambivalência como uma forma de administração dos antagonismos sociais. E é essa forma de gerenciar os conflitos que teria implodido com os protestos de junho de 2013. A incapacidade do sistema político de entender e dar resposta à revolta teria criado as condições para a emergência de Bolsonaro, cuja radicalidade antissistêmica daria uma expressão de ultradireita aos antagonismos represados.

O último capítulo do livro trata da ascensão de Bolsonaro. Avelar explica sua candidatura a presidente por meio de uma aliança entre o agronegócio, o punitivismo policial e judiciário e o evangelismo cristão. A coalizão teria, no ativismo de internet, uma espécie de vanguarda digital e seria sacramentada pelo compromisso liberal de Paulo Guedes.

A enumeração das forças políticas que apoiam Bolsonaro é bem ponderada, mas a sugestão de que Bolsonaro tenha costurado uma coalizão política é pouco amparada em evidências. Tudo indica que Bolsonaro lançou sua candidatura de maneira aventureira e foi ganhando o apoio desses setores à medida que se popularizava.

As explicações de Avelar nem sempre são persuasivas, mas o livro tem o mérito de fazer as perguntas certas. Entender como passamos do impulso libertário de junho de 2013 para o pesadelo autoritário de 2018 segue sendo um dos grandes desafios da inteligência brasileira.


Marco Aurélio Nogueira: Impotência e ação democrática

Dois fatores travam a situação nacional: a impossibilidade de se ter gente protestando nas ruas e a falta de voz firme dos políticos.

Há uma sensação de impotência solta no ar. Faltam governo, coordenação, vacinação. Sobram ofensas presidenciais, mortes, medo, desolação. 

Parte da sociedade bate panelas e protesta nas redes. Outra parte, aplaude o presidente. Difícil dimensionar o peso de cada pedaço, mas a percepção é que Bolsonaro está encurralado e perdendo apoios. Precisa enfrentar a pandemia de algum modo, pois sem isso não haverá recuperação econômica, sua pedra mágica para sobreviver no cargo. Precisa também encobrir os crimes cometidos, em série, pela família. A mansão do filho mais velho, senador da República, é o problema mais recente. Mas não é o único. Há uma montanha de lixo tóxico pronta para desabar sobre o presidente que, acossado pela covid, pelas mortes assustadoras, pela crise econômica, não mostra capacidade de resposta. 

Na verdade, nunca mostrou capacidade de resposta. Com isso, facilitou o avanço da crise. O vírus se alimentou dessa incapacidade.

Daí sua recusa em assumir qualquer responsabilidade. Não é só expressão de uma ignorância fanática. É receio de ter de responder pelo que não fez quando devia e tinha condições de fazer. Joga a culpa nos outros. Até o vírus está sendo acusado de contribuir para revelar o que já se anunciava em 2018: Bolsonaro não preside, não governa, porque não tem preparo, porque se cercou de um bando de paspalhos tão despreparados quanto ele e porque tem um cálculo político voltado exclusivamente para sua sobrevivência, quer dizer, sua reeleição. 

Cada bobagem que fala, cada agressão que comete, cada mentira que conta, é parte de uma operação dedicada a ocultar sua incompetência, sua desonestidade, seu cinismo frio e criminoso. 

Analistas, pesquisadores, formadores de opinião, lideranças democráticas têm falado isso desde que a desgraça começou a tomar forma no Brasil. As coisas só foram piorando. O presidente não irá mudar: não tem como nem sabe fazer isso, está com o corpo amarrado a sua própria biografia. 

As coisas pioraram também para Bolsonaro. Hoje ele se movimenta com mais dificuldade, o ringue em que atua está menor, as cordas chegam a lhe bater no peito, as pernas pesam. A imagem é de uma fera acuada, suando, babando, adrenalina fora de controle. O sonho da reeleição está mais distante, porque o desgaste da pessoa acompanha a crise: quanto mais a desgraça avança, mais fraco fica o presidente. Ele posa de bam-bam-bam, mas está tremendo nas bases, com aquele travo amargo na boca, atarantado.

Dois fatores ainda lhe fornecem oxigênio: a impossibilidade de se ter gente protestando nas ruas e a falta de voz firme dos políticos.

Chega a constranger que não se tenha no Brasil uma reação política compatível com o tamanho do buraco em que estamos. Onde estão nossas lideranças, os chefes de partido, os políticos realistas, os que são tidos como guias geniais, os que dizem morar no coração do Brasil profundo? Por que não se manifestam, por que não se articulam, por que não conversam com a população para que ela entenda a situação, por que não se engajam numa campanha política de imunização, ou seja, em favor das vacinas e do uso crítico da razão? 

Com o avanço da vacinação, os protestos voltarão às ruas. É esperar para ver. Produzirão pressão, criarão esperança e desejo de mudar, massas se formarão. Irão se contrapor aos fanáticos que vêm no presidente o “mito” redentor. Modificarão a correlação de forças. 

Já quanto aos políticos democráticos, seu silêncio reverbera com a força de um trovão, chega a ensurdecer. Dizem que alguns são ativos nas redes, falam diariamente com seus fiéis. Outros dão entrevistas ou fazem discursos, nos quais repetem as mesmas obviedades de sempre, justas, mas inócuas. Pode ser, mas nada disso vira opinião pública, não se materializa em uma alternativa ao que existe, nem sequer no plano discursivo. Não acossa quem precisa ser acossado.  

Estarão eles estarrecidos, assustados com a ignomínia presidencial? Ou estarão cegos pelos próprios cálculos, convencidos de que o silêncio poderá dar-lhes a musculatura de que julgam necessitar para avançar em 2022? Ou se protegem nas sendas da moderação, da temperança, da prudência, certos de que o mais importante é não atrapalhar a luta contra a pandemia? 

Mas como, se a luta contra a pandemia só será vitoriosa com a remoção do entulho político que impede a gestão sanitária eficiente? 

Estamos mal parados, o tempo corre contra nós. A exigência de ação precisa nos contagiar e fazer com que os democratas se movimentem. 


Ascânio Seleme: Na casa da tua mãe

A frase foi usada por Bolsonaro, em agenda em Uberlândia (MG), para falar sobre "idiota que pede compra de vacina"

Jair, onde você absorveu tanta arrogância? Onde você iniciou o processo involutivo que o transformou no indivíduo tosco que deixa o Brasil atônito? Foi na casa da tua mãe.

Onde você emburreceu tanto e virou esse indivíduo desconectado do mundo civilizado? Onde você encontrou tanta gente obtusa como você para reunir ao seu redor? Foi na casa da tua mãe.

Onde você teve seu caráter desviado de forma tão radical que alcança até mesmo todos os zeros que você criou? Foi na casa da tua mãe.

Capitão, onde você construiu toda a perversidade que escorre em suas veias e baba da sua boca? Onde você foi encontrar tanto ódio que se percebe claramente no seu olhar e na sua risada sádica? Foi na casa da tua mãe.

Onde foi concebido este espírito antidemocrático que o domina de maneira irrevogável e que ameaça um país inteiro? Foi na casa da tua mãe.

Onde o seu coração de pedra foi lapidado, ou dilapidado? Onde foi que o endureceram de tal forma que a empatia não consegue penetrar? Foi na casa da tua mãe.

Diga, onde talharam e envernizaram esta sua lustrosa cara de pau? Onde você aprendeu a mentir tanto, Jair? Foi na casa da tua mãe.

Onde mesmo foi que te ensinaram que chorar por seus mortos é frescura e mimimi?

Onde foi que você descobriu que os corajosos enfrentam o vírus e saem às ruas? Na casa da tua mãe.

Onde você aprendeu a roubar, a desviar dinheiro público para comer gente? Teria sido no mesmo lugar em que você ensinou seus filhos a fazer rachadinhas? Foi na casa da tua mãe.

Jair, onde você se tornou homofóbico e misógino? Onde começou a entender que mulher é filha da fraqueza e gay deve levar porrada? Foi na casa da tua mãe.

Conte onde foi que você descobriu que o Brasil é um país de maricas? Foi na casa da tua mãe.

E onde você percebeu que há excessos de direitos no Brasil? Foi na casa da tua mãe.

Capitão, onde você se afastou da luz e mergulhou nas trevas? Onde você aprendeu que torturar e matar fazem parte da vida? Foi na casa da tua mãe.

Onde te ensinaram que a ditadura errou por torturar e não matar? Aposto que foi no mesmo lugar onde você ouviu que os porões deveriam ter fuzilado 30 mil corruptos e erraram por não matar Fernando Henrique Cardoso. Foi na casa da tua mãe.

Diga, onde você entendeu que Pinochet, o mais sanguinário ditador latino americano, devia ter matado mais gente? Foi no mesmo lugar em que você passou a idolatrar o torturador Brilhante Ustra? Foi na casa da tua mãe.

Onde foi, Jair, que você descobriu que fazer cocô dia sim, dia não, melhora o meio ambiente? Que comer menos resolve o problema das queimadas? Foi na casa da tua mãe.

Explique, onde você percebeu que trabalho infantil, de meninos e meninas com menos de dez anos de idade, não prejudica em nada as crianças? Foi na casa da tua mãe.

Conte, onde foi mesmo que te disseram que é uma grande mentira falar que tem gente passando fome no Brasil? Que isso só acontece em outros países? Foi na casa da tua mãe.

Onde te ensinaram que é correto beneficiar filhos, como os zeros que você tem, quando se exerce cargo público, capitão? Foi na casa da tua mãe.

Finalmente, onde foi mesmo que você virou este monstro que assombra o país e espanta o mundo? Foi na casa da tua mãe.

Nosso Rio 1

Para conseguir fazer algumas poucas restrições na cidade contra o coronavírus, o prefeito Eduardo Paes teve de enfrentar os membros do comitê científico que ele mesmo montou quando tomou posse e do qual participam os ex-ministros da Saúde José Gomes Temporão e José Agenor Álvares da Silva. “O comitê mandou manter tudo do jeito que está”, disse o prefeito um dia antes de anunciar as novas medidas. “Estou enfrentando os cientistas”, explicou Paes, referindo-se ao comitê, no dia em que saíram as medidas.

Nosso Rio 2

De acordo com o prefeito, o comitê só recomendaria medidas se houvesse “alguma tendência de alta” de episódios, o que não era o caso, segundo Paes. O secretário de Saúde, Daniel Soranz, garantiu que 15 dias antes de qualquer medida se saberia que os casos estariam aumentando em razão de eventos de gripe verificados nas UPAs. Disse também que não havia razão para fechar ou reduzir o tempo de funcionamento de estabelecimentos comerciais porque “o Rio é a cidade com a segunda menor taxa de ocupação hospitalar do país, atrás apenas de Aracaju”.

Nosso Rio 3

Aliás, alguém consegue explicar por que bares e restaurantes podem ficar abertos até às 17h? Significa que o cidadão pode se contaminar à vontade de dia, mas de noite não? E as praias, por que ambulantes e quiosqueiros estão proibidos e os bacanas não? Não vale dizer que sem ambulantes vendendo água de coco os bacanas saem logo da areia. Se for essa a explicação, significa que a estes é dada a chance de se infectar por uma ou duas horas, e nada mais?

Nosso Rio 4

O secretário Soranz disse que o número de infectados no Rio não aumentou tanto nos dois primeiros meses do ano, que os registros do Consórcio de Veículos de Imprensa não refletem a realidade. “Os números foram represados na gestão de Marcelo Crivella”, afirmou o secretário. E mais. Ele acrescentou que o ex-prefeito fechou praias e parques, como o Campo de Santana, para economizar com gastos de manutenção.

Ah, Bittar

O senador Márcio Bittar (MDB-AC) lamentou muito não ter conseguido garfar dinheiro de Saúde e Educação no seu texto da PEC Emergencial. Ele foi obrigado a desistir de acabar com as vinculações obrigatórias das duas áreas por falta de apoio da maioria dos senadores. Bittar disse que queria uma PEC “mais robusta, com mais itens”, mas se viu forçado a desidratar a proposta. Sorte do Brasil e dos brasileiros.

Conta outra

Querem criminalizar a política, dizem os que tentam defender deputados e senadores de malfeitos. Estes normalmente ganham as causas nos tribunais superiores quase sempre por tecnicalidades. Não estamos defendendo a corrupção, mas a legalidade. Porque hoje é o parlamentar que está sendo condenado com estes erros processuais, amanhã pode ser você.

Casa do zero

Você conhece alguém que tenha 39 anos, que trabalha há apenas 20 anos com remuneração mensal variando de R$ 15 mil a R$ 28 mil ao longo dos anos, que tem dois filhos em idade escolar e que conseguiu reunir dinheiro suficiente para comprar uma casa de R$ 6 milhões? Pois é. Eu também não.

Faz sentido

O nome do condomínio da nova mansão do Zero das Rachadinhas em Brasília é perfeito. Chama-se “Ouro Branco”, que pode significar tanto riqueza quanto chocolate. Nas duas modalidades o Zerinho abunda.

Custo zero

“Geralmente quando se fala em famílias na política, são famílias enroladas em atos de corrupção. A minha família é limpa na política”. A frase é de Jair Bolsonaro, pronunciada na entrevista que deu na bancada do Jornal Nacional na campanha eleitoral de 2018. A imagem mostra o cara de pau com um ar de seriedade que nunca mais se viu. Lembrar não custa nada.

No crea em brujas

A fabulosa Bia Kicis tem prometido miragens aos deputados. Na tentativa de viabilizar sua candidatura para presidir a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, diz que vai ser democrática e respeitará as diferenças. Tem bobo que acredita. Como se ela fosse de fato capaz de cumprir a promessa, apesar de democracia não ser parte da sua natureza. Há também os aliados de Artur Lira que defendem a candidatura de Kicis para não atrapalhar outros entendimentos partidários. Bobagem. O que se quer é controlar toda a agenda da Casa.

Enquanto isso

E a oposição por onde anda? Por que não vemos mobilização articulada contra o monstro. Na quinta-feira, enquanto Jair Bolsonaro falava em chororô e mimimi, os próceres deputados Paulo Pimenta e Paulo Teixeira, do PT, convocaram a imprensa para uma importante comunicação: denunciaram a Lava Jata e pediram a punição do procurador Deltan Dallagnol.

Lula e FHC

E por que não vemos uma ação coordenada dos ex-presidentes? Tirando Collor, que já se aliou ao capitão, claro, caberia muito bem uma manifestação dos demais em favor da vida e da democracia, sugere o autor e roteirista George Moura. Uma ação conjunta de Sarney, Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer pode não dar em nada, mas mostraria que os ex-líderes do país repudiam esse amontoado de agressões de Bolsonaro.

Intervenção

Os bolsonaristas mais atrasados, Jair em primeiríssimo lugar, que imaginavam que o Brasil sofreria uma ocupação de países ricos em razão das riquezas da Amazônia, podem acabar surpreendidos com uma intervenção global para sanear o país e salvar o mundo.


Adriana Fernandes: Quem vai disparar as medidas de socorro e apertar o botão de guerra?

Saúde e Economia caminham em passos distintos, enquanto o colapso do sistema de saúde de Manaus atinge o resto do País

Na briga insana contra as medidas de isolamento social para frear a pandemia, Jair Bolsonaro repete a toda hora que a economia e a saúde “andam juntas”. No seu governo, essas duas áreas, porém, não se conversam.

Não se tem notícia de nenhuma reunião de cúpula dos Ministérios da Economia e da Saúde – Paulo Guedes e Eduardo Pazuello – para a organização de uma estratégia conjunta, a não ser por repasse de dinheiro. Nenhum encontro sequer dos “generais” de Bolsonaro num gabinete de guerra, de crise.

Saúde e Economia caminham em passos distintos enquanto o cenário mais catastrófico do início do ano se confirmou: a disseminação do colapso do sistema de saúde de Manaus para o resto do País. Tudo ao mesmo tempo.

Vírus avançando, com famílias inteiras contraindo a doença, UTIs lotadas, retrocesso na retomada econômica, alta volatilidade dos mercados e desconfiança dos investidores em relação ao que vai acontecer com o Brasil. A paciência deles com o País indo embora. 

É a tempestade perfeita, que ocorre quando um evento ruim é drasticamente agravado pela ocorrência de uma rara combinação de circunstâncias que se transforma em um desastre sem proporções.

É bem verdade que vão dizer no governo que a coluna está equivocada. Que em março do ano passado foi criado um comitê de crise para a supervisão e monitoramento dos impactos da covid-19. Que o comitê já publicou uma série de resoluções com ações para o enfrentamento e está em pleno funcionamento. Que o comitê está atuando conjuntamente e tem uma lista de medidas para provar isso. Que está dando tudo certo e dentro do previsto.

Oficialmente, o discurso é o de que Guedes e Pazuello mantêm diálogos constantes e frequentes em relação às medidas para o enfrentamento da pandemia no Brasil, o que não traria a necessidade de encontros presenciais.

Quem viu essa tropa em ação reunida? O Ministério da Economia diz que faz a sua parte com o repasse de dinheiro e o Ministério da Saúde faz a dele cobrando os recursos que estão em falta.

No domingo passado, Bolsonaro postou nas suas redes sociais uma foto enfileirado ao lado dos presidentes Arthur Lira (Câmara), Rodrigo Pacheco (Senado), e os ministros Walter Braga Neto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Guedes e Pazuello. O assunto oficial: vacina e a PEC do auxílio emergencial.

O tema de maior interesse foi outro: mostrar que Bolsonaro fez a sua parte repassando recursos para os Estados no ano passado. Tudo isso para desmontar o aperto nas restrições que estão sendo tomadas pelos governadores e prefeitos e que a disponibilidade de caixa dos Estados e municípios fechou 2020 em patamar 70% maior do que um ano antes.

Isso demonstra que ter mais dinheiro não basta. A prova disso é que o governo já pagou R$ 524 bilhões em medidas emergenciais e o Brasil está no topo entre os países com pior situação na pandemia.

Depois da cloroquina e do tratamento precoce, a prova de energia gasta fora do lugar é o envio de uma comitiva a Israel para conhecer o spray para o combate da covid-19.

Mas nunca mandaram uma comitiva de peso – de alto nível – atrás de vacina. Por que não Guedes e Pazuello juntos numa comitiva? A equipe econômica pode e deveria ter se engajado mais nessa cobrança e articulação da diplomacia, pois tem seus canais particulares de diálogo internacional e instrumentos outros econômicos. A compra de vacina é uma guerra internacional e se deve disputá-la com todas as armas possíveis.

Com o temor de uma desorganização econômica, Guedes repete que o Brasil precisa de vacina. Mas não temos vacina. Com lucidez, disse que a guerra sem fim não vai chegar a nenhum lugar. Guedes conta para o presidente? O pior temor de Bolsonaro ao se lançar contra o combate duro da pandemia, o desastre econômico, pode acabar se concretizando.

O ministro já falou diversas vezes que aguardaria o sinal de Pazuello para disparar as medidas de socorro e acionar o botão da calamidade. No fim de janeiro, afirmou que o governo poderia retomar os programas de socorro, caso houvesse o entendimento de que o número de mortes por covid-19 continuará acima de mil por dia com a vacinação atrasada. Nessa situação, seria declarado novamente “estado de guerra”.

Infelizmente, esse é o quadro de hoje no Brasil. Quem aperta o botão?


Miguel Reale Júnior: Presidente de cemitério

O Ministério Público, a Câmara e o Senado precisam cumprir o dever de salvar o País

Em que momento a considerável parcela da população que ainda acorre às aglomerações ilícitas provocadas pelo presidente vai se dar conta de estar, em crença fanática, a louvar um perverso para quem o medo da morte por asfixia é “mimimi”? Até quando o Brasil será conduzido pelo quarto cavaleiro do apocalipse?

Bolsonaro não é presidente para administrar o País, mas tão só para se reeleger em 2022, seu único interesse, mesmo que venha a ser apenas presidente do cemitério. Jamais assumiu a liderança do enfrentamento da covid-19, preocupado só em atribuir a crise econômica e a perda de empregos a governadores e prefeitos, para se livrar dessa responsabilidade e angariar votos.

Bolsonaro, absolutamente indiferente ao crescente número de mortos, muitos sem oxigênio ou nos corredores por falta de leitos em UTIs, passeia pelo País sem máscara, promovendo aglomerações, nunca se compungindo diante da dor ou visitando algum hospital. Somente mandou sequazes invadir hospitais para flagrar ser mentira sua superlotação!

Continuamente conspirou contra a importância da vacina, cuja pressa em obtê-la ridicularizou, proclamando mentirosamente haver efeitos colaterais nocivos, desorientando a população.

Os obstáculos ao combate ao vírus não se limitaram aos maus exemplos. Deixou de adquirir, em julho, vacinas Coronavac e da Pfizer, impôs vetos de verbas e ignorou a cooperação com Estados e municípios na precaução e reação contra a doença, como ressalta estudo realizado pela Universidade de São Paulo, por meio do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública, em conjunto com a Conectas Direitos Humanos (Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil, em https://www.conectas.org/publicacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-3).

Esse estudo revelou a existência de uma “estratégia institucional de propagação do vírus”, entendendo ser “razoável afirmar que muitas pessoas teriam hoje” a mãe, o pai, irmãos e filhos vivos “caso não houvesse esse projeto institucional”. Conclui-se, então, não haver tão só incompetência e negligência, mas “empenho em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”.

A comprovar tal conclusão, verifica-se que, de R$ 24 bilhões disponíveis no Orçamento para compra de vacinas, apenas R$ 2 bilhões foram gastos em 2020 (Folha de S.Paulo, 1.º/3, pág. A13). Tão grave quanto isso foi o corte de financiamento de leitos de UTI nos Estados para atendimento a pacientes com covid-19, que o STF acaba de mandar seja realizado (Estado, 1.º/3, A12).

Ao pôr a ambição política acima da proteção da saúde de seu povo, Bolsonaro revela egocentrismo incompatível com a permanência como primeiro mandatário, pois brasileiros foram lançados, por sua insensibilidade, na tragédia que a OMS reconhece estar instalada entre nós.

Quatro ex-ministros da Saúde clamam por um governo de salvação nacional ou pela criação de um gabinete de crise que dirija e coordene o enfrentamento da pandemia, sob o risco de afundarmos definitivamente na desgraça. Como fazer?

Há meio breve, justo e correto, já aventado antes por vários juristas. Ao Ministério Público, que tem por missão a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais, entre eles o da saúde, cumpre promover, em face desses fatos, ação penal por crimes contra a saúde pública e contra a paz pública, o primeiro previsto no artigo 268 do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.

Ademais, ao estimular a população a se aglomerar, não usar máscara e não se vacinar, o presidente incita-a a praticar o crime acima mencionado, configurando-se, então, o delito do artigo 286 do Código Penal: “Incitar, publicamente, a prática de crime”. Ou seja, compele a se infringir determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa.

Há, evidentemente, dois desafios: 1) fazer o procurador Aras sair de seu imobilismo, sendo essencial a pressão da sociedade e de colegas procuradores; e 2) a Câmara dos Deputados, ciente da gravidade do momento, aceitar a denúncia, afastando o presidente, para o vice, em governo de união nacional, atuar em prol da salvação de nossa gente.

Outra forma seria a assunção da condução da área da Saúde pelo Congresso Nacional, via CPI ou promovendo o impeachment do ministro (artigo 14 da Lei n.º 1.079/50), cabendo ao novo titular da pasta atuar em conjugação com secretários de Saúde dos Estados.

A sociedade civil organizada, hoje silente, deve se manifestar por via de suas inúmeras entidades, exigindo que Ministério Público (competente, sim, para processar o presidente, como o fez contra Temer), Câmara dos Deputados e Senado cumpram o dever de salvar o País. Mexa-se, Brasil!

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Bolívar Lamounier: Temos um governo genocida?

Bolsonaro não tem estatura para isso. Sinais de insanidade já dá – e não são poucos

Disseminar um vocábulo raramente usado no Brasil, como genocídio, é uma proeza. Jair Bolsonaro conseguiu, hoje tal vocábulo aparece nas redes sociais praticamente todo dia.

É certo que o termo é empregado para xingar o próprio Bolsonaro. Muita gente se vale dele para afirmar que o Brasil tem atualmente um presidente genocida. Dito assim, mesmo reconhecendo que algo há de verdade, devemos convir que se trata de um enorme exagero. Bolsonaro não tem estatura para carregar um peso desses. O que ele tem feito, dia sim e outro também, é sabotar o trabalho dos agentes de saúde no combate à covid-19, atrapalhando ação dos governadores e prefeitos, formando aglomerações e até criticando o uso de máscaras.

Lá atrás, em sua fase mais cômica, aventurou-se na charlatanice médica, receitando remédios que liquidariam o coronavírus num abrir e fechar de olhos. Hoje, parece-me inegável que ele é culpado por uma parcela dos 260 mil óbitos já registrados, mas não tenho, e penso que ninguém tem, como estimar a quanto monta tal parcela. Cabe, portanto, a suposição de que ele tem responsabilidade por certo número de mortes, mas daí a designá-lo como genocida vai uma longa distância.

Onde tem fumaça, tem fogo. A questão é séria e deve ser debatida, mas sem partir de cara para o exagero. Genocídio, como já sugeri, é uma coisa muito maior. Briga de cachorro grande. Se nossa intenção é compreendê-la e chegar a uma avaliação plausível do papel de Jair Bolsonaro, é indispensável começar pelo começo. Pelo conceito e por alguns exemplos históricos.

O termo baseia-se em dois componentes fundamentais. O primeiro, uma matança em larga escala, a intenção de exterminar todo um povo ou toda uma etnia, não necessariamente porque ela tenha feito alguma coisa, mas pelo simples fato de que ela existe, extermínio a ser conduzido com o máximo concebível de atrocidade. Segundo, tal matança compõe-se de ações conscientes, uma ordem premeditada e levada a cabo por um governo, um partido ou um órgão qualquer que tenha poder para tanto.

Historicamente, a ideia (mas não necessariamente o termo) genocídio remonta à Revolução Francesa e, especificamente, à guerra da Vendeia. Católica e monarquista, uma parte dos habitantes daquela província francesa reagiu violentamente à execução do rei Luís XVI, em fevereiro de 1793. No transcurso de dois anos, o confronto evoluiu para a guerra civil, levando os comandantes militares da revolução (o chamado Comitê de Salvação Pública, Robespierre à frente) a recorrer indiscriminadamente ao terror. Esse é o tempo das noyades (afogamentos coletivos, principalmente de mulheres e crianças, no rio Loire). O confisco de alimentos, a fim de sujeitar a população à morte pela fome.

Nesse quadro de absoluta insanidade, o nome que logo vem à mente é o de Jean-Baptiste Carrier, organizador do “trabalho de campo”, o mais demente dos dementes que chegaram ao poder com a revolução. A ideia passou a ser aniquilar toda a população daquela região. Gracchus Babeuf, autor da primeira narrativa circunstanciada dos fatos, deu-lhe o expressivo título de A guerra na Vendeia e o sistema de despopulação.

Stalin provavelmente não conhecia os detalhes do que ocorrera na França, mas levou a cabo com intensidade ainda maior o projeto de “matar por inanição”, vale dizer, de fome, como forma sistemática de terror, imposto à Ucrânia no inverno de 1932-33. Confisco geral de todos os alimentos, levando à morte pelo menos 3 milhões de indivíduos, muitos deles até a prática do canibalismo. Em ucraniano, o termo Homolodor significa exatamente isso, matar por inanição, e é o título de um magnífico filme ucraniano disponível no YouTube. Mas, como sabemos, a insanidade sempre pode aumentar.

A partir de 1942, trens lotados de judeus, ciganos e outras etnias começaram a ser descarregados na estação de Birkenau, na Polônia. Os passageiros (se assim os podemos chamar) passavam por uma triagem, sendo os mais fortes mandados para o trabalho forçado e os fracos, doentes, bem como as mulheres e crianças, para as câmaras de gás e os fornos crematórios. O saldo é bem conhecido: o Holocausto, no qual pereceram cerca de 6 milhões de judeus.

Carreguei bastante nas tintas para sublinhar o que afirmei no início: Bolsonaro é, se tanto, uma partícula minúscula na história dos genocídios. Dá-se, entretanto, que os conceitos precisam ser repensados à medida que as instituições humanas e a História avançam.

No século 18, bastava um salto para se passar de A a Z: de uma relativa normalidade para o terror. No século 21, com o País afundando numa pandemia terrível, um presidente que entretém seus convidados do almoço com gracejos e ataca a imprensa no preciso momento em que ela cumpre o seu dever, informando que chegamos aos 260 mil mortos, por certo não chegou ao Z, mas já saiu do A. Quando coloca seu interesse eleitoral a léguas do interesse público, deu mais alguns passos. Sinais de insanidade já está dando – e não são poucos.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


El País: Na corrida contra o colapso da covid-19, abrir leitos é a única e precária arma dos Estados

Levantamento feito pelo EL PAÍS com as secretarias estaduais da Saúde indica que não há plano B para evitar sobrecarga no sistema. Já faltam equipes médicas em alguns locais. “As ampliações são finitas”, diz Paraná. “Vai ter paciente no corredor ”, diz secretário de São Paulo

Afonso Benites, Aiuri Rebello, Diogo Magri, Felipe Betim, Gil Alessi, Joana Oliveira, Naira Hofmeister, Steffanie Schmidtb, do El País

“Estamos em guerra”, definiu o secretário da Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn, nesta sexta-feira na habitual coletiva de imprensa feita pelo Governo João Doria desde o início da pandemia de coronavírus há um ano. O tom de urgência poderia ser interpretado apenas como uma hipérbole política, mas o cenário do qual o Brasil se avizinha está próximo de uma batalha decisiva, na qual o vírus tem se saído vencedor. A situação do país é crítica em praticamente todos os Estados ao mesmo tempo, o que impõe uma dificuldade adicional, já que a possibilidade de socorro entre fronteiras se torna mais remota. Sem um comando unificado do Governo Federal, gerido por um presidente que classifica a emergência sanitária como “mimimi”, governos das 27 unidades federativas tentam implementar medidas de restrição de circulação vistas como ineficazes por especialistas, temendo o desgaste político e financeiro de um rígido lockdown, e apostam em uma arma que logo se tornará finita: a criação de novos leitos para acomodar cada vez mais doentes. Levantamento feito pelo EL PAÍS mostra que em ao menos 17 Estados, a taxa de ocupação de UTIs para covid-19 supera os 80%, como já havia indicado um boletim da Fiocruz desta semana. Em dez deles, já passa de 90%. E em dois, de 100%.

“Vamos continuar abrindo leitos e vagas dentro dos hospitais. Abriremos em qualquer local destes hospitais, sejam nos anfiteatros, nos ambulatórios, sejam nos corredores”, desabafou Gorinchteyn na coletiva desta sexta. “Vai ter paciente no corredor. O que nós não queremos é paciente desassistido”, afirmou ele. São Paulo nesta semana teve seu maior número de mortes por covid-19 desde o início da pandemia: 468, na última terça-feira. Há quase 1.000 pedidos de internação no Estado todos os dias, o que sobrecarregou a rede como nunca antes na crise. Mesmo com um acréscimo de 152% no número de leitos SUS (de 3.500, em 31 de março, para os atuais 8.839), a taxa de ocupação chega a 78,5% nas UTIs e a 60,9% nos leitos de enfermaria. E, apesar da relutância de Doria inicial, o Estado acabou voltando à fase mais rígida das restrições: apenas atividades essenciais poderão funcionar pelas próximas duas semanas, a partir deste sábado.

No Paraná, outro gestor também usou a coletiva de imprensa, na semana passada, para desabafar sobre a situação de seu Estado. “Nem se os leitos fossem infinitos” haveria capacidade de atendimento, disse Vinicius Filipak, diretor de Gestão em Saúde da Secretaria (Sesa). O Estado decretou toque de recolher, permitindo apenas serviços essenciais entre 20h e 5h, e chegou a dispersar com bombas de gás lacrimogêneo pessoas que desrespeitaram a ordem de deixar as ruas. Até esta quinta-feira, o Paraná mantinha 96% de suas UTIs de adultos para covid-19 ocupadas. Em janeiro, entre 40 e 45 pessoas esperavam diariamente por uma vaga de enfermaria ou de UTI em hospitais paranaenses. Na semana passada, este número passou para 500 pacientes. Na última terça-feira, 2 de março, chegou a 699. “Evidentemente todos os leitos estão além da capacidade máxima ofertada pelo Estado, mas os esforços estão sendo mantidos”, explicou ao EL PAÍS a pasta da Saúde, que em seguida falou sobre as limitações de seguir abrindo mais vagas em hospitais. “As ampliações de atendimento são finitas e não devem, de forma alguma, servir como argumento para deixar de se cuidar. As medidas de prevenção devem continuar sendo seguidas, estamos chegando cada vez mais no limite”, argumentou.

A região Sul é uma das afetadas atualmente pelo colapso hospitalar. Com mais de 96% de ocupação de seus leitos de UTI, Santa Catarina começou a transferir pacientes para o Espírito Santo na última quarta-feira, 3 de março, e prevê a ativação de mais 200 leitos. O Rio Grande do Sul, que possui uma taxa 101,9% de ocupação de leitos públicos e privados de UTI, prevê abrir mais 40 vagas de Unidades de Terapia Intensiva para covid-19 no Estado. Os postos de saúde do Estado passaram a funcionar em horários estendidos, inclusive aos finais de semana, para desafogar hospitais. O Estado também reativou um cadastro de voluntários, na tentativa de contratar mais profissionais de saúde, e determinou que todos os hospitais ofereçam 50% dos leitos clínicos a pacientes com covid-19.

Há Estados, entretanto, que sequer trabalham com a possibilidade de colapso em suas redes de saúde, como explicitou Pernambuco ao EL PAÍS. Na quarta-feira, quando 92% de suas UTIs para covid-19 do SUS estavam ocupadas, o Governo pernambucano afirmou que mitigaria a crise com a contratação “nas próximas semanas” de mais 300 leitos de enfermaria e 150 leitos de UTI. No Rio Grande do Norte a situação é igualmente grave, com uma taxa de ocupação também superior a 92%.

Em entrevista ao EL PAÍS na quarta-feira, o médico e neurocientista Miguel Nicolelis já havia alertado sobre os limites da estratégia de seguir abrindo mais leitos. Em primeiro lugar, existe uma escassez de médicos e de enfermeiros. Além disso, explicou, “a velocidade de crescimento do vírus é exponencialmente mais veloz que a capacidade de criar, equipar e por gente no leito de UTI”. Nos cálculos de Nicolelis, é possível que o número de mortes registradas diariamente chegue a 3.000 nas próximas semanas.

Centro-Oeste

O Centro-Oeste se encontra em situação similar ao Sul, com seus quatro Estados com a ocupação de suas UTIs para covid-19 superior a 90% ou beirando esta taxa. Goiás, que já superou a marca de 96%, prevê ampliar a rede de atendimentos e suspender as chamadas cirurgias eletivas —medida também tomada pela Prefeitura de São Paulo nesta semana. O Distrito Federal, com uma de ocupação de 91,2%, avalia a abertura de dois hospitais de campanha com 200 leitos —o que o Estado de São Paulo também afirmou nesta sexta que fará. O Mato Grosso, com 88% de ocupação de UTIs do SUS, diz que não pode estimar até quando haverá vagas “pois o avanço da doença depende do comportamento da população em relação ao vírus”. A Secretaria da Saúde destacou a abertura de 90 vagas nos últimos 23 dias e o decreto de novas medidas de restrição à circulação. Por fim, o Mato Grosso do Sul não respondeu às tentativas de contato da reportagem. De acordo com o boletim epidemiológico do dia 4 de março, 94% das UTIs do SUS para covid-19 estavam ocupadas, enquanto na rede privada a cifra era de 89%.

Colapso no Norte

A situação segue bastante preocupante região Norte. Acre e Rondônia já atingiram 100% de ocupação de leitos de UTI. O Amapá, que tem 86% de ocupação, estima que em uma semana também não tenha mais vagas. No Amazonas, onde a falta de oxigênio chocou o mundo no mês de janeiro e que conseguiu transferir pacientes para outros Estados, a ocupação de UTIs voltada ao novo coronavírus ainda é alta: 80%. Já o Estado de Roraima registra 79% de lotação para esse tipo de leito e trabalha com a possibilidade utilização de 120 do Hospital Estadual de Retaguarda, além de requisitar os existentes na rede privada.

Em Rondônia, onde não há mais vagas em UTI e 86,3% dos leitos clínicos estão ocupados, o Estado tem registrado alta nos casos de contaminação pela covid-19 desde novembro de 2020. Desde janeiro, o número de óbitos aumentou 61,8% sendo que, no último mês, 630 pessoas morrem no Estado em decorrência do novo coronavírus. Desde o início da pandemia já são 2.944 óbitos registrados. Entre as medidas que vem sendo adotadas pelo Governo do Estado estão o “incentivo ao uso racional dos recursos e equipamentos para evitar a escassez”, incluindo o oxigênio e a transferência de pacientes para outros Estados.

No Acre, onde também não mais vagas para UTI Covid-19, já foram registrados 1.030 óbitos desde o início da pandemia. A marca de mais de 1.000 mortos, que foi atingida na segunda-feira, 1º de março, resultou em decreto de luto oficial por três dias pelo governador Gladson Cameli —que também foi diagnosticado com covid-19 na mesma data e faz acompanhamento médico em casa.

No Acre, embora os leitos clínicos para o coronavírus registrem uma taxa de 88,6% de ocupação e o Estado admita que não há possibilidade de transferência de pacientes, o funcionamento de setores não essenciais foi flexibilizado no dia 1 de março, liberando a abertura do comércio com 20% da capacidade. “Como outros Estados estão com o mesmo quadro de limite assistencial, só podemos recorrer ao Ministério da Saúde e/ou ajuda de outros países em melhor situação, que podem fazer doações. Não temos como transferir pacientes, pois nos demais Estados não existem vagas”, afirma o Governo em nota.

No extremo Norte do país, o Amapá prevê atingir capacidade máxima de vagas em leitos em sete dias, segundo divulgação do Governo do Estado. O Estado registrou aumento de 7,2% nas mortes nos últimos 30 dias: foram 77 óbitos em uma população de 861.773 habitantes.

Embora o número de internados com o coronavírus tenha apresentado queda de 47,8% no mês de fevereiro em relação a janeiro, quando o Amazonas registrou o colapso da rede pública e a falta de oxigênio, a taxa de ocupação de leitos UTI e clínicos para covid-19 ainda é alta: 88% e 70%, respectivamente. Mais de 2.500 pessoas morreram nos últimos 30 dias, mesmo período em que o Governo do Estado tem flexibilizado, paulatinamente, o funcionamento de serviços não essenciais no Estado. Atualmente há autorização para funcionamento de comércio e shoppings de 9h às 15h até sábado e da indústria por 24h, observada a restrição de circulação de pessoas de 19h às 06h.

No caso do Tocantins, a Secretaria da Saúde se limitou a dizer que “alguns pacientes” aguardam leitos de UTI em hospitais ou UPAs por causa do pico pandêmico. Também disse que não pode especificar a taxa de ocupação de leitos “visto que o número é flutuante e se altera a todo instante”. Na página web indicada pela pasta, constam apenas os números de pessoas hospitalizadas com covid-19 —um total de 430 na manhã desta sexta-feira— em hospitais públicos e privados. De acordo com o boletim da Fiocruz, a ocupação no Estado chegou a 86% no dia 1º de março. A pasta ainda garantiu, sem especificar cifras, que o Governo está contratando vagas em hospitais privados e abrindo mais leitos públicos.

Medidas de restrição pouco eficazes

Nenhum dos Estados consultados pelo EL PAÍS fez referência a novas medidas de restrição mais duras. Especialistas consultados são unânimes em dizer que a contenção da crise passa por um lockdown nacional, que também reduziria viagens interestaduais, por exemplo, e que as medidas até agora apresentadas são insuficientes. Além da falta de colaboração do presidente Jair Bolsonaro, que faz chacota das medidas de isolamento, o Brasil ainda enfrenta um cenário com vacinação lenta e incerta e a circulação de novas variantes do vírus potencialmente mais contagiosas e fatais.

No Estado do Rio, a ocupação das UTIs para covid-19 está em 66% e é uma das baixas do Sudeste. Na capital Rio de Janeiro, porém, a ocupação de toda a rede SUS já ultrapassou os 75% —nas unidades próprias do município chega a 88%. Ainda assim, o prefeito Eduardo Paes foi pouco duro nas medidas decretadas na quinta-feira, 4 de março. Entre elas, está a proibição de permanência de pessoas em vias e áreas públicas das 23h às 5h. Também foi decretado que bares, lanchonetes e restaurantes devem fechar, para atendimento presencial, a partir das 17h. Esses estabelecimentos só poderão funcionar das 6h às 17h, podendo atender a um número máximo de clientes correspondente a 40% de sua capacidade instalada.

Medidas similares a um toque de recolher tem sido a solução encontrada por governadores para evitar o lockdown. O Estado de São Paulo chegou a decretar o chamado “toque de restrições” entre 23h e 5h e ignorou a recomendação dos especialistas por medidas mais duras. Mas, na prática, o que mudou foi a adoção de um aumento na fiscalização de festas e aglomerações. Durou poucos dias. Na quarta-feira, o governador voltou a colocar o Estado em fase vermelha, o que significa que somente comércios e serviços essenciais poderão seguir funcionando a partir de sábado.

Na Bahia, onde a taxa de ocupação de leitos de UTI para covid-19 já superou 84%, o governador Rui Costa (PT) decretou um toque de recolher mais rígido até o dia 31 de março, de 20h às 5h. Durante esse período só será permitida a circulação nas vias públicas de pessoas procurando serviços de saúde ou farmácia. A urgência deverá ser comprovada. Na região metropolitana de Salvador, onde a situação é mais grave, somente os serviços essenciais estão autorizados a funcionar. A circulação de transporte público também foi suspensa entre 20h30 e 5h, até pelo menos 8 de março.

Na colapso já instalado ou que se avizinha, o pesadelo do gestores é que a falta de leitos afetará todos os atendimentos, não apenas o de pacientes com covid-19. “Em um cenário catastrófico, uma pessoa que precisar de um hospital não será atendida. No Sírio-Libanês, estamos batalhando para manter os leitos destinados aos pacientes cardiopatas e oncológicos”, conta Felipe Duarte, gerente de práticas médicas do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, um dos principais da rede privada brasileira.


Ricardo Noblat: Bolsonaro descumpre a Constituição que jurou respeitar

Comportamento criminoso

Jair Messias Bolsonaro tem o direito de comportar-se como um suicida diante da pandemia que matou mais de 182 mil pessoas no Brasil desde março último. A vida é sua e ele faz com ela o que quiser. Mas nem ele e nem ninguém tem o direito de pôr em risco a vida alheia por não dar valor à sua ou porque se julga imortal.

Direito à opinião todo mundo tem. Bolsonaro e seus devotos de raiz, por exemplo, acreditam que a Covid-19 é um vírus criado em laboratório e posto a circular pelo mundo para servir aos interesses geopolíticos da China. Direito a fatos ninguém tem. Fatos são verdades provadas, comprovadas e inquestionáveis.

Repete o presidente que sua saúde é de atleta. De fato, foi de atleta quando ele se destacava nos quartéis por correr a grande velocidade. Ganhou várias provas. Há registros no seu prontuário. Quanto a gozar ainda de saúde de atleta, não passa de opinião. Nunca mais deu provas disso. Foi vítima do coronavírus.

Somente ontem, em três ocasiões, protagonizou atos contra a vida – dos outros, diga-se. O primeiro ao reunir-se com milhares de produtores e de vendedores de frutas e legumes em São Paulo, quase todos sem máscaras, ele também. O segundo, outra vez sem máscara, ao visitar Sílvio Santos, um idoso de 90 anos de idade.

O terceiro foi o mais escandaloso. Bolsonaro aconselhou Eduardo Pazuello, doublé de general e de ministro da Saúde, a fazer uma campanha nacional de propaganda alertando os brasileiros para o perigo de se vacinarem. Desta vez não se referiu diretamente à vacina da China. Haveria perigo de morte em tomar qualquer uma.

Sua conduta não foi quase criminosa. Foi inteiramente criminosa. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão técnico do governo agora contaminado pelo vírus ideológico, existe para testar e conferir a eficácia de remédios e de vacinas. Sem o seu aval, nenhum produto médico é liberado para uso em massa.

Desacreditar a Anvisa, e é isso o que está em curso, e tocar horror nas pessoas para que elas fujam de vacinas que estão sendo aplicadas largamente em outros países, é atentar contra a vida coletiva. Haverá crime maior do que esse? E logo praticado por um presidente que ao tomar posse jurou cumprir a Constituição?

Diz o artigo 5º do Capítulo 1 da Constituição em vigor: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Inviolabilidade do direito à vida!

O que isso significa? Que na atual legislação brasileira “o direito à vida é tido como o alicerce para a prerrogativa jurídica da pessoa, motivo pelo qual o Estado tem por dever resguardar a vida humana, desde a concepção até a morte. Diante de sua importância o direito à vida é uma cláusula pétrea.”

E o que é uma cláusula pétrea? “É um artigo da Constituição que não pode ser alterado. Pétrea é um adjetivo para aquilo que é como pedra, imutável e perpétuo. Uma cláusula pétrea é, portanto, um dispositivo do texto constitucional que é estabelecido como regra e que não pode sofrer nenhuma mudança.”

Por quanto tempo mais o país assistirá inerte o presidente da República afrontar a lei? Não se trata de opinião que ele desrespeita a vida, é um fato que se sucede à vista de todos e quase que diariamente. Se apesar disso nada acontece, a Constituição então serve para quê?


Carlos Andreazza: A torcida de Bolsonaro

O governo torce pela segunda onda

O governo de Jair Bolsonaro é muito ruim, do que deriva um país paralisado, anestesiado, suscetível a qualquer desvio-isca de atenção, de súbito chocado com a revelação, surpresa só na terra dos incautos, de que a tal moderação do vice-presidente — fã do torturador Ustra e para quem não haveria racismo no Brasil — nunca passou de cálculo político por meio do qual se distinguir do presidente e seduzir as manchetes.

Mourão, um descartável, carona de chapa a ser trocado por qualquer Kassab, é a frustração possível — a falsa — num país que vegeta e que, portanto, habituou-se a ver um general da ativa como cavalo para que o único ministro da Saúde possível a Bolsonaro exercesse o cargo: o próprio Bolsonaro.

Para que não se pense que o misto de submissão e incompetência de Pazuello seja exceção no forte apache, veja-se o caso do titular da Casa Civil, de loas tão cantadas por haver liderado uma intervenção federal no Rio de Janeiro cujas escolhas, por efeitos práticos para segurança, só resultaram em que as milícias tivessem tranquilidade para se expandir sobre territórios do tráfico enfraquecido.

Um país paralisado, que só agora descobre que a presença de militares no governo, pelo menos esses que lá estão, uma coleção de ajudantes de ordens de Sílvio Frota, jamais significou qualidade de gestão e compromisso com a democracia. Nada teremos aprendido com o general Villas Bôas e sua tentativa de intimidar o Supremo em 2018.

Este péssimo governo é eficientíssimo em promover a dilapidação das instituições republicanas — e que não pensem os do alto-comando que estarão livres as suas armas.

Um país paralisado por um governo muito ruim, que envelheceu rapidamente, que vai cansado antes mesmo da metade, e cuja política econômica, outrora ao menos voluntarista, nem mais chega a oferecer trombadas — o que pressuporia a ocorrência de algum movimento. Não há movimento. Só desculpa. Um país paralisado de todo. Condição em que já estava quando a peste baixou sobre nós.

Ao contrário da propaganda feiticeira liberal-guedista, que tenta imputar efeitos retroativos ao vírus, o Brasil já tinha travado quando a pandemia se impôs; daí por que, findo o estoque de iniciativas herdadas de Temer, até Rogério Marinho e seus tarcísios, os que ainda andavam, passaram a inaugurar qualquer meia dúzia de quilômetros de asfalto. O blá-blá-blá das reformas — que não avançam (desde 2019) porque projeto não há — sendo apenas a face mais visível de uma administração que vai perdida; e que tem como símbolo um Ministério da Economia inchado e engessado, entregue a um marqueteiro, notável palestrante, tão pretensioso quanto inexperiente em gestão pública, cuja credibilidade erodida se afere nos já inexpressivos impactos de suas bravatas.

É mirando o castelo de cera de Guedes, diante do qual o bolinho de areia de Braga Netto parecerá engenharia de estadista, que se capta o melhor retrato deste governo; o que tem, à frente da pasta em que se empilharam as maiores responsabilidades, um poderoso ex-ministro em atividade.

O governo Bolsonaro é hoje o auxílio emergencial. E só. Um programa de natureza provisória, que lhe caiu ao colo para se tornar ao mesmo tempo dependência e constituição; donde pouca dúvida deveria restar sobre a prorrogação da assistência para além de dezembro. Esta será a agenda, a que garante a existência do governo, daqui até o final do ano: assegurar a rolagem do auxílio adiante, até que se desembaracem as eleições na Câmara e no Senado, em seguida ao que teremos, ao custo do teto de gastos, e com CPMF, o novo Bolsa Família.

Tudo será mais fácil se houver a segunda onda do vírus entre nós — gatilho para a extensão do orçamento de guerra. Havendo dinheiro, serão mais dois anos de campanha eleitoral legitimada pelo combate à pandemia.

O governo Bolsonaro não tem corpo para a normalidade. É como a segurança institucional ofertada por general Heleno. Nem projeto nem competência para executar. Para existir, precisa do ambiente de exceção, gerado artificialmente pela forja de conflitos e teorias da conspiração, ou imposto por um evento como a pandemia. Precisa de crises. A peste foi um presente.

A circulação do vírus, o caráter imprevisível do bicho, sustenta este governo. Mantém agudas todas as condições para que Bolsonaro, golpista essencial, alimente-se como líder sectário e amarre ainda mais a parceria oportunista com o Centrão; a costura populista pelo único interesse do presidente: a reeleição. O governo torce pela segunda onda.

Seria o paraíso. A garantia do chão de instabilidade. Terreno para cultivar, por meio da pregação antidistanciamento, a batalha com governadores, ao mesmo tempo fato novo para lavar o discurso contra as vacinas e passar a admiti-las, e escada para camuflar a incapacidade de formular o tal Renda Cidadã e justificar a continuidade do auxílio, empurrando para amanhã — questão de tempo — a queda do teto de gastos.

Um país paralisado por um governo muito ruim — de um presidente, um populista-autoritário, que prospera no caos e tende a ser altamente competitivo em 2022. Governo ruim — muito ruim — não é governo morto.


Luiz Carlos Mendonça de Barros: A covid-19 contra-ataca

Esforço fiscal adicional precisa recair sobre as classes de renda mais elevada

Neste final de 2020, as incertezas sobre a perenidade da recuperação econômica em curso nos países mais importantes do mundo voltaram a crescer com a chegada da chamada segunda onda da pandemia. Inicialmente associada ao inverno no hemisfério norte, ela atinge também países, como o Brasil, situados abaixo da linha do Equador. Um “castigo” para as sociedades que não trataram a pandemia com o devido respeito. Felizmente a vacina contra a covid-19 será uma realidade ainda no primeiro trimestre de 2021 evitando que uma segunda rodada do isolamento social jogue a economia em nova recessão. O comportamento dos mercados nos últimos dias é uma prova desta afirmação.

Conhecemos hoje o cronograma desta batalha mortal entre o ser humano organizado em sociedade e a natureza representada pelo vírus. Surpreendidos pela rapidez e mortalidade com que o vírus se espalhou, os governos reagiram com as armas que o conhecimento científico coloca à sua disposição em momentos como este. E elas vieram tanto do campo das ciências, em especial da medicina, como da gestão da economia. O primeiro movimento foi o de definir um protocolo multidisciplinar de ações para enfrentar esse inimigo desconhecido e perigoso.

Gostaria de refletir neste espaço do Valor sobre os resultados deste protocolo na Economia, área em que me sinto profissionalmente mais qualificado. Os economistas e governantes já viveram momentos em que novos protocolos de ações tiveram que ser construídos para enfrentar situações inesperadas, mas com efeitos sociais e políticos explosivos. No caso da covid-19 os governantes foram buscar no passado ensinamentos para orientar suas ações emergenciais. O mesmo ocorreu aqui no Brasil e, na minha opinião, foi um dos mais exitosos e eficientes entre os que foram acionados por países emergentes e mesmo os desenvolvidos.

O Banco Central teve uma ação decisiva no mercado de crédito para as empresas, o que levou a uma expansão vigorosa ao longo do ano. Da mesma forma, via Copom, agiu rapidamente na acomodação das condições monetárias e na redução dos juros sob seu controle direto. Paralelamente o Ministério da Economia tomou várias medidas de expansão fiscal, tanto na ajuda financeira para Estados como para empresas e a parcela mais vulnerável da sociedade, compensando com seus recursos parte da brusca redução de renda criada pelo afastamento social e a recessão que se seguiu. Os números são hoje conhecidos e chegam a mais de 10% do PIB.

Além destas ações institucionais, as reações de consumidores e empresas vieram em ajuda no enfrentamento da crise. As economias de mercado têm esta capacidade de reagir de forma espontânea quando atingidas por eventos como a chegada da covid-19. Dois mecanismos merecem ser citados no caso do Brasil: de um lado a reação defensiva dos consumidores à recuperação rápida da atividade econômica sob os estímulos do governo criando um imenso pool de poupança privada adicional e que representa uma reserva de consumo para ser utilizada no ciclo de recuperação em 2021.

Outro estímulo natural criado no Brasil pela reação dos mercados foi a desvalorização de mais de 50% do real nos últimos seis meses, em um momento em que os salários privados ficaram praticamente estáveis em função da inflação baixa e do aumento do desemprego. Isto foi particularmente importante nos setores exportadores, mas também ajudaram a indústria com baixa exposição aos mercados internacionais pelo aumento de sua competitividade em relação as importações. Isto ocorre pois a folha de salários em US$ caiu praticamente 50% neste período, o que representou na prática a criação de um imposto de importação da ordem de 12% em vários mercados importantes. Como resultado, a produção industrial brasileira já é hoje 2% superior à de 2019 e um dos setores que mais rapidamente voltaram a crescer.

A recuperação rápida da atividade econômica no Brasil foi conseguida principalmente em função de uma expansão vigorosa dos gastos do governo em um momento em que a arrecadação corrente de tributos era reduzida pela recessão. Portanto era natural - e necessário - que seu déficit fiscal tivesse um grande aumento no período mais agudo da crise. Somente com o retorno do crescimento econômico sustentado a partir de 2021 é que o governo poderá voltar a uma situação orçamentaria de superávits primários que estabilize a curva da dívida pública.

A partir daí seria desejável que, junto com o Congresso, o governo criasse um protocolo de ações emergenciais para reduzir a corcova na dívida pública criada pelo enfrentamento da covid-19 e sinalizasse uma linha descendente de crescimento para o futuro. A dependência estrutural de nossa economia em relação à poupança externa nos obriga a trabalhar com um protocolo que incorpore valores aceitos pelos investidores internacionais. E deste protocolo fazem parte métricas sobre a expansão da dívida pública em uma linha do tempo de prazo mais longo. Dele deriva a importância do nível da dívida pública bruta em relação ao PIB e a perenidade do superávit primário como parâmetros a serem seguidos.

Mas este esforço fiscal adicional e temporal precisa recair sobre as classes de renda mais elevada na sociedade e que foram diretamente as mais beneficiadas pela recuperação rápida da economia. O mais justo seria o aumento da faixa superior do IR dos rendimentos de salário e a tributação com IR dos dividendos pagos pelas empresas privadas e públicas por um período finito de alguns anos.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


Merval Pereira: Os fatores de evolução

A consultoria Macroplan, do economista Claudio Porto, especializada em cenários prospectivos, mapeou os dez fatores que vão influenciar os rumos do país na próxima década no estudo recém lançado “O que será do Brasil pós-COVID: um Ensaio Prospectivo até 2030”. O resultado é baseado em uma pesquisa junto a 139 pessoas qualificadas, entre executivos, gestores, acadêmicos e especialistas dos setores privado, público e do 3º setor.

Os “aceleradores de transformações” têm, na visão da Macroplan, um forte potencial de impacto sobre Brasil nos próximos 10 anos. Se forem bem compreendidos e manejados por lideranças racionais e progressistas, o país tem grande chance de retomar uma rota saudável de recuperação sustentada.

O fato é que “nenhum executivo ou agente público, privado ou do terceiro setor terá chance de sucesso se ignorar esses vetores de mudança em sua navegação nos negócios públicos ou privados no Brasil ao longo desta década”, conclui Claudio Porto.

Os 10 vetores que, na visão da Macroplan, vão influenciar drasticamente o futuro do Brasil até 2030 são:

1) O endividamento público e privado. Até 2030 a dívida bruta do Governo Federal ( Em 2020 pouco superior a 90% do PIB) alcançará a proporção de 112% no cenário base ou 156% no pessimista, segundo projeções da IFI-SEnado.

2) O desemprego e a pobreza no país: mantidas as condições que prevaleceram nos últimos cinco anos e nos dias de hoje (14,4% desempregados), para o decênio de 2020-2030, a taxa média de desemprego provavelmente será maior do que na década passada. Para que a média seja similar à do período 2012-2019, será preciso que a taxa caia em torno de 5% ao ano até 2030 - o que não se dará naturalmente.

3) A segurança sanitária: há indícios de uma crescente valorização das medidas sanitárias e da saúde pública por parte da população, o que pode favorecer a ampliação de investimentos e a performance do sistema único de saúde (SUS). Um sinal relevante foi o bom desempenho eleitoral dos governantes e candidatos que mostraram melhor dedicação na prevenção ou mitigação da COVID-12 nos seus espaços administrativos, confirmando que a boa oferta de saúde pública gera votos.

4) A evolução da Educação: Até 2030, o modelo educacional brasileiro será mais diverso e integrado devido às inovações tecnológicas. O ensino a distância (ou semipresencial) deve consolidar-se. Desde 2010, o EAD vem crescendo a taxas de 20% ao ano sinalizando uma oportunidade para acelerar o passo e reduzir o enorme atraso do país neste campo.

5) Os investimentos em dados, Big-Data e Analytics: para 2020-2022, estima-se um investimento de R$ 142,7 bilhões (23% a.a) em computação em nuvem e R$ 68,8 bilhões (13% a.a) em Big Data e Analytics. O digital se consolidará como a plataforma dominante, mesmo com todas as nossas precariedades.

6) O trabalho remoto: até setores com trabalho humano intensivo, como o agrícola, aderiram ao novo modelo. A tendência mais provável é que o “modelo home office” reflua e um modelo híbrido passe a se constituir um novo padrão.

7) Os negócios digitais no país: o acesso à internet do Brasil já alcançou 70% da população em 2020, e irá ampliar o alcance dos negócios digitais principalmente Fintechs, Streamings e Marketing de conteúdo.

8) Os investimentos em automação e robotização - Internet 5G e impressoras 3D serão comuns até 2030. E robôs vêm sendo utilizados em trabalhos anteriormente feito por humanos, sobretudo nas indústrias.

9) A aceleração do comércio eletrônico- Até 2030, o faturamento do comércio eletrônico no Brasil alcançará a marca de R$ 315 bilhões, mantida a taxa média de 16% crescimento anual entre 2011 e 2019.

10) Os impactos das conexões virtuais e das redes sociais na sociedade - Os brasileiros estão entre as populações mais conectadas do mundo (mais de nove horas por dia), e nas primeiras colocações entre os que mais usam plataformas de mídia social. Um fato portador de futuro que está emergindo é a aceleração da melhoria dos filtros críticos da sociedade em relação às chamadas “fake news”. Neste terreno, a mídia convencional está sendo revalorizada e tem desempenhado um papel educacional de massa muito construtivo e decisivo.