rutger bregman

Uma conversa: Luciano Huck & Rutger Bregman

Jovem ativista e historiador holandês defende que “preguiça” seja mais taxada do que trabalho e que pobreza seja resolvida dando dinheiro às pessoas

Texto: Luciano Huck, especial para o Estado

Memórias do avô Maurício sobre sua vida na dificuldade e a solução criativa para escapar dela são inspiração para Luciano Huck, que trabalha por respostas sociais à pandemiaACERVO PESSOAL/LUCIANO HUCK

Sei que sou um privilegiado, sei que sou visto assim. Homem, branco e nascido numa família de classe média de professores universitários --num país em que ser mulher, negro ou pobre já impõe obstáculos às vezes intransponíveis, cresci dentro de uma redoma social, estudando em bons colégios, protegido por meus pais e rodeado pelo carinho dos meus avós.

Mas, ali mesmo, ouvia as histórias de meu avô Maurício – que não eram exatamente as de um privilegiado. Na primeira metade dos anos 1930 ele vivia, em Grajewo, uma cidadezinha da Polônia com cerca de 2 mil habitantes. Era um adolescente judeu num mundo de ameaças. Atos corriqueiros, como andar pela vizinhança, traziam grandes perigos.

Meu avô sofreu violências e humilhações inúmeras vezes nos trajetos de casa para a escola. Até o dia que abriu a janela para deixar o sol entrar e viu uma oportunidade. Dela vislumbrava todo o centro de Grajewo, um quadrilátero em que as edificações de madeira, típicas dos bairros judaicos daquela época, ficavam todas coladas umas nas outras. Ele se apoiou no parapeito e dirigiu os olhos para aquela paisagem de telhados emendados uns nos outros, como retalhos de uma colcha. Estava bem ali, na sua frente, a solução. Poderia simplesmente caminhar pelo topo das casas.

A vida na dificuldade e a solução criativa para escapar dela formam uma impressão de infância que não me larga nunca, por melhor que estejam as coisas.

Profissionalmente, tive a liberdade de trilhar meu próprio caminho, a oportunidade de encontrar cedo a minha profissão e a sorte de ter podido ganhar dinheiro com aquilo que amo fazer. Quando a pandemia nos atingiu, eu tive imenso privilégio de poder parar o trabalho, me isolar em casa e me dedicar àquilo que eu tenho de mais precioso: a minha família. Foram quatro meses vivendo da porta para dentro. Todos agradecendo a cada dia por estarmos vivos e com saúde.

Mas vinha sempre o exemplo de meu avô Maurício. Havia muita angústia com aquilo que se passava da porta para fora, no Brasil e no mundo. Por isso busquei formas de “pular a janela e caminhar sobre as casas”. Usei minhas plataformas pessoais para divulgar mensagens responsáveis sobre a gravidade da doença. Amplifiquei a voz de quem não estava sendo ouvido. Articulei muitas iniciativas do setor privado de resposta social à pandemia. Fiz a ponte com favelas e comunidades carentes para a distribuição de recursos de emergência. E sigo tentando trazer alguma luz para o debate pós-pandemia por meio do diálogo com pensadores de vanguarda que respeito e admiro. E foi assim que nasceu esta série de conversas publicadas no Estadão.

Por aqui jé tive o privilégio de ser atendido por Yuval Harari, Esther Duflo, Michael Sandel, Tom Friedman, Thomas Piketty e tantos outros iluminadores. Sempre pensando em criar um caminho, passar dos problemas para as soluções, usando meus privilégios para tentar achar uma janela para o Brasil melhorar, buscar caminhos disruptivos para problemas que às vezes podem até parecer insolúveis.

Na conversa de hoje optei por um jovem muito talentoso e com ideias provocativas e pensamentos fora da caixa. Autor e historiador holandês, Rutner Bregman faz parte de uma nova onda de ativistas, pensadores e políticos, que inclui Alexandria Ocasio-Cortez, a nova congressista democrata de 29 anos, e Greta Thunberg, a manifestante climática de 16 anos, cujas alternativas radicais têm angariariado aceitação mundo afora.

Bregman tem 32 anos. Cresceu nas décadas de ambos os lados do milênio, nas quais grandes batalhas ideológicas eram consideradas uma coisa do passado.

Li seu último livro – Utopia Para Realistas – durante meu isolamento. Uma visão idealista que muitos descartariam como pura fantasia, mas faz pensar.


VEJA A SÉRIE COMPLETA 'UMA CONVERSA COM LUCIANO HUCK' :


Luciano Huck: Você é parte de uma nova legião de pensadores ativistas. Tem 32 anos e já está guiando importantes tópicos do debate público ao redor do mundo. Jovens como você, Alexandria Ocasio-Cortez, do Congresso americano, e Greta Thunberg são iluminadores de uma nova utopia. O Brasil é um país em que praticamente não há mobilidade social. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), demora nove gerações para que um brasileiro que nasceu em uma família pobre alcance a média da classe média. Em outras palavras, as pessoas aqui não têm nem sequer o direito de sonhar. O que dizer a elas? Há uma utopia possível para esta geração?

Rutger Bregman: Devemos começar reconhecendo que todo marco histórico da civilização em algum momento foi uma fantasia utópica. Quando pensamos na abolição da escravidão, na ascensão da democracia, no nascimento do Estado do bem-estar social... tudo isso começou com pessoas que, no princípio, foram descartadas e consideradas loucas, irrealistas, irracionais. Com pessoas que não foram levadas a sério. No entanto, em determinado momento, a ideia da mudança conquistou a maioria. É nisso que eu me interesso como historiador. Como é possível que ideias em princípio bizarras ou mesmo ridículas se desloquem para a corrente principal e acabem mudando a história do mundo? E nós estamos vendo isso acontecer.

Luciano Huck: Seu livro mais recente se dispõe a discutir como construir um mundo melhor usando a utopia como importante ferramenta, com pensamentos arrojados e ideias inovadoras. O que mudou na sua visão depois da pandemia?

Rutger Bregman:  Nos últimos 40 anos, vivemos a era neoliberal. O neoliberalismo é uma ideologia que nasceu em meados dos anos 50 com um grupo de pensadores muito importantes, incluindo os economistas Milton Friedman, americano, e Friedrich Von Hayek, austríaco. Eles acreditavam que o mercado poderia resolver tudo, que as empresas e negócios poderiam salvar tudo desde que o governo saísse da frente e nós abolíssemos todas as regras, diminuíssemos os impostos, etc. A desigualdade não seria um problema – desde que deixássemos os negócios livres, poderíamos resolver qualquer coisa. Isso teve uma influência imensa, principalmente após os anos 70 e 80, quando Ronald Reagan foi eleito nos EUA e a Margaret Thatcher foi eleita no Reino Unido. Eu nasci em 1988, um ano antes da queda do Muro de Berlim, e, especialmente depois da queda, as pessoas tinham essa ideia de que havíamos chegado ao “fim da história”, de que o comunismo tinha perdido e o capitalismo tinha vencido, de que esse modelo de capitalismo democrático era tudo o que restava e não havia mais nenhum grande problema a se resolver. Obviamente é muito difícil de acreditar nisso em 2020. Nós vimos o Brexit, a eleição de Donald Trump, vimos a ascensão de líderes autoritários pelo mundo, como Modi na Índia e Jair Bolsonaro no Brasil, vimos uma pandemia, a covid-19, mudar completamente nosso mundo.

A era neoliberal está acabando. Nós estamos caminhando para uma nova era. A era antiga girava em torno dos valores da competição e do individualismo, da noção de que as pessoas são fundamentalmente egoístas. Mas agora nós estamos caminhando para algo diferente, que pode ser muito pior, mas também pode ser muito melhor. Eu não sei se você viu, mas em abril deste ano o Financial Times, o principal jornal de negócios do mundo, um jornal para as pessoas ricas do mundo, publicou um artigo de seu conselho editorial dizendo que precisamos “reverter a direção das políticas dos últimos 40 anos” e pensar em aumentar os impostos dos ricos, dar ao governo um papel mais ativo, ter políticas mais arrojadas para estimular inovação, combater a mudança climática e erradicar a pobreza. Não estou dizendo que isso vai acontecer, mas acho que existe a esperança. Essas ideias eram antes totalmente descartadas por serem ridículas e bizarras, mas agora são as ideias principais. Acho que isso é um indício esperançoso.

“Em um país que quer se desenvolver, o combate a pobreza não é bom apenas para nossa consciência, mas também para o nosso bolso.”Luciano Huck

Luciano Huck: Nos seus trabalhos, você lembra que, nos últimos 200 anos, a população mundial tornou-se mais rica, bem nutrida e saudável. Que 84% da população mundial vivia na extrema pobreza em 1820, e que hoje essa parcela é menor do que 10%. Você pode falar um pouco sobre isso e como você enxerga o Brasil, um país com tantos pobres e miseráveis, nessa equação?

Rutger Bregman: Nós vivemos um momento muito paradoxal. Estamos na melhor de todas as épocas, mas talvez também estejamos na pior de todas. Por um lado é inegável que fizemos avanços extraordinários nos últimos 30, 40 anos. Se observarmos o mundo, a expectativa de vida aumentou, a extrema pobreza diminuiu, as pessoas são mais saudáveis, têm mais dinheiro, são mais ricas do que nunca. É um fato. Agora, você recentemente conversou com Thomas Piketty, o economista francês, certo? Ele aponta que a desigualdade também aumentou bastante, e isso também é um fato.

A desigualdade é um veneno para a sociedade. Ela separa as pessoas, envenena as democracias, destrói a sociedade civil. Há alguns países ricos ou de renda média que têm um grau incrivelmente alto de desigualdade. E esse é o caso específico do Brasil. Se existe um lugar em que as pessoas deviam falar muito de impostos, esse lugar é o Brasil. É onde você precisa dessa redistribuição massiva dos bens e da renda. Não estou dizendo que devemos migrar para uma sociedade comunista, onde todos têm a mesma quantidade de bens. Isso não vai funcionar. Mas você tem que impor um limite para a desigualdade. Porque, do contrário, você não consegue ter uma democracia efetiva e saudável. Chega um ponto em que você só distancia tudo, as coisas não funcionam mais. Nesse ponto você começa a ver as pessoas mais ricas comprando eleições, elas conseguem fazer o que quiserem, surgem dinastias, isso é muito louco. Outra coisa que também é bastante preocupante é o que estamos fazendo com o meio ambiente. Tenho 32 anos. Durante a minha vida foi emitido mais da metade de toda a emissão de gases da era industrial desde 1750. Em uma geração nós criamos a pior parte do problema, e agora nós temos uma geração para resolver. Então é uma época muito estranha para se estar. Por um lado, tivemos um progresso enorme, mas, por outro. parece que estamos dançando sobre um vulcão sem a certeza de que o futuro será tão iluminado.

Luciano Huck: Mas você acha que, depois de tudo que estamos passando, o mundo vai levar mais a sério os avisos da ciência sobre as ameaças climáticas e as suas consequências para a vida na Terra?

Rutger Bregman: As crises fazem isso. As crises te fazem perceber coisas que você sempre soube, mas que, por algum motivo, esqueceu. Um dos momentos que eu achei mais interessantes na pandemia foi nas primeiras semanas, quando os governos ao redor do mundo estavam definindo as listas dos chamados trabalhadores essenciais, que não podiam parar. Eu achei isso ótimo. Porque você olha para essas listas e descobre quais são os trabalhos realmente importantes na sociedade. Nessas listas estavam enfermeiras, coletores de lixo, professores... Um momento como esse te faz perguntar quem são os verdadeiros geradores de riqueza na nossa economia. Será que é verdade que toda a riqueza é gerada no topo e goteja para baixo? Ou será que a maior parte da riqueza é gerada embaixo, pelas pessoas que realizam os trabalhos de verdade?

“Todo marco histórico da civilização começou com uma utopia, com uma ideia considerada irracional”Rutger Bregman

Luciano Huck: Você assistiu esse novo documentário na Netflix, Dilema das Redes? Ele faz importantes alertas. Mostra que são jovens que programam as redes sociais que estão intensamente influenciando e pautando o mundo. São eles também que dominam os algoritmos mais poderosos da internet. Em sua enorme maioria, porém, eles estão pouco conectados aos problemas da vida real, do debate público e político.

Rutger Bregman: Tem uma citação ótima de alguém que trabalhou muito tempo no Facebook: “As melhores cabeças da minha geração estão pensando em como fazer as pessoas clicarem em anúncios”. Você tem essas pessoas muito inteligentes que estudaram nas melhores universidades, e nós pagamos caro pela educação brilhante deles, mas então eles se formam e vão trabalhar nesses empregos estúpidos. Eles fazem isso por 20 anos, ficam muito ricos e daí têm uma crise da meia idade. Ficam completamente deprimidos porque a alma deles foi destruída. E então eles decidem que querem se tornar professores... Ué, por que não fizeram isso lá atrás? É algo muito estranho. Dentro disso que nós chamamos de economia do conhecimento, tem muito conhecimento desnecessário. Talvez precisemos voltar para a escola e pensar no que estávamos fazendo antes de alguém dizer que tínhamos que ganhar a vida.

Luciano Huck: Reduzir desigualdades, gerar oportunidades e mobilidade social sem ser um jogo de soma-zero. Quanto mais eu mergulho nas ideias mais modernas de políticas públicas, mais eu acredito que seja possível. Na minha opinião, esse devia ser o maior legado da nossa geração. O que me preocupa são os recursos humanos, as melhores sinapses se dedicando a servir a um propósito, o que não acontece hoje. Ainda prevalece o velho cada um por si. Mesmo se reunirmos todos os filantropos do Brasil, eles não seriam capaz de mover o medidor das desigualdade. Só o Estado tem esse poder. E o Estado é gerido pela política. Por isso nós precisamos de bons políticos, precisamos formar novas lideranças. Como você vê essa necessidade de novas lideranças ocuparem os espaços da política?

Rutger Bregman: Primeiro eu quero dizer algo sobre a filantropia. Eu não sou contra a filantropia. Se as pessoas são ricas e querem dar dinheiro para boas causas, isso é ótimo. O que eu sou contra é quando as pessoas ricas dizem que não precisam pagar impostos porque já estão dando dinheiro para as causas. A filantropia é usada como uma distração: as pessoas fazem um projeto qualquer para ajudar a educação, vão nos seus iates particulares para algum país africano, tiram um monte de fotos para mostrar que estão amparando as pessoas de lá e, ao mesmo tempo, evadem seus impostos. É isso que eu sou contra. Primeiro pague seus impostos, depois você me conta dos seus planos de salvar o mundo.

Sobre as lideranças e os políticos, eu, na verdade, tendo a focar em outras coisas, pois acho que os políticos estão quase sempre no fim da fila – quando todos já estão convencidos de que precisamos ir em outra direção, só aí eles percebem. Então o zeitgeist (espírito da época) tem de mudar primeiro. É só depois do trabalho do ativismo de mudar o mundo, de mudar as cabeças das pessoas, de fazer a coisa acontecer, que os políticos vão pensar “olha posso ganhar votos com isso”.

Estou animado com a ideia de dar a todos uma renda básica, erradicar completamente a pobreza, e de dar a todo mundo um pouco de capital de risco para que as pessoas possam ter as próprias escolhas na vida. Há dez anos, essa era uma ideia completamente descartada. Mas houve muita pressão de ativistas, as pessoas têm escrito sobre isso, têm pensado sobre isso, têm falado sobre isso, e só agora os políticos e os legisladores estão se interessando. Mas essas coisas nunca começam com eles; elas sempre começam nas ruas ou em lugares onde só tem café ruim e pessoas com cabelos compridos que parecem anarquistas e são meio fedidas... hahaha.

“O poder de dizer não é a liberdade mais importante que uma pessoa pode ter”Rutger Bregman

Luciano Huck: Hoje o Brasil é um país momentaneamente anabolizado, da popularidade do presidente aos números do comércio, pelo impacto do programa emergencial de transferência de renda que o Congresso aprovou durante a pandemia. Programa necessário, é importante frisar, que evitou nosso caos social. Mas um programa econômico e fiscalmente inviável em condições normais de temperatura e pressão para a realidade brasileira. A menos que seja um programa bem planejado, bem executado, bem fundamentado. Seu trabalho discute e aprofunda a questão da renda mínima. Qual sua avaliação sobre esses programas de emergência pelo mundo?

Rutger Bregman: Há esse debate antiquado entre pessoas de direita e de esquerda, no qual as pessoas de esquerda dizem “nós precisamos ajudar os pobres, dar dinheiro a eles” e as pessoas à direita dizem “não devemos fazer isso, pois isso torna as pessoas dependentes e preguiçosas e nós não podemos bancar tudo isso”. Esse é o debate-padrão que geralmente vemos na política. Acho que devemos ir além disso. A renda básica, na verdade, é um investimento que paga a si mesmo. Se você é um empreendedor, você obviamente sabe que, para ficar rico no futuro, você deve começar a fazer investimentos agora. Nós temos muitas evidências científicas de que, uma vez que você dá às pessoas os meios para tomarem as próprias decisões na vida, pouquíssimas delas desperdiçam dinheiro. A maioria dos pobres gasta seu dinheiro em moradia, educação, roupas, nas necessidades básicas. E então você vê as crianças indo melhor na escola, o custo da assistência médica diminui, o crime diminui. Se uma criança vai melhor na escola, ela vai conseguir empregos melhores; e, se ela tem um emprego melhor, ela paga mais impostos. Logo, isso é um investimento que te dá muito retorno. Se o crime diminui, você gasta menos com a polícia e com o sistema judiciário. A assistência médica é extremamente cara, imagine se o gasto com ela diminui? Você vai gastar menos com médicos e, além disso, se as pessoas são mais saudáveis, elas podem trabalhar por mais tempo e pagar impostos por mais tempo.

Se você se aprofundar nisso, você verá que a pobreza é o verdadeiro problema. Por isso, a renda básica não é algo de direita ou de esquerda, é simplesmente avançar. E, na história, temos pensadores e economistas mais identificados com a direita que são a favor de programas como esse, porque é uma ideia realista e racional com a qual todos vão se beneficiar.

Luciano Huck: Ainda no tema da erradicação da pobreza extrema, você enxerga mais eficiência nos programas de transferência direta de recursos ou nos programas de benefícios sociais? Por exemplo para a população em situação de rua, você acredita mais em dinheiro no bolso para a pessoa alugar um lugar para morar ou em albergues de acolhimento com serviços sociais?

Rutger Bregman: Se você ver uma pessoa desabrigada na rua, essa pessoa, em outro mundo, poderia ser sua advogada, poderia ser sua encanadora, poderia ser a sua professora, poderia ser a sua enfermeira. Toda pessoa desabrigada é um desperdício inacreditável de capital humano. Então, mesmo que você não tenha um coração, você ainda tem uma carteira. Nós deveríamos ser mais realistas e pragmáticos sobre todas essas coisas. O que é a pobreza? Pobreza é a falta de dinheiro. Como você resolve isso? Você dá dinheiro às pessoas. Isso funciona? Sim, temos muitas evidências disso. Podemos pagar por isso? Sim, nós podemos, porque não fazer nada a respeito da pobreza é muito mais caro. Os países com mais pobreza são prósperos, estão indo bem? Não, claro que não. Quais são os países mais inovadores, com os maiores índices de desenvolvimento humano? Olhe para a Escandinávia, por exemplo, onde todos têm direito a um forte Estado de bem-estar social e têm assistências de educação e de saúde. E isso não é só a coisa certa a se fazer, é porque te fornece uma sociedade mais eficiente e civilizada, onde todos se beneficiam, incluindo os ricos.

Conversa virtual de Luciano Huck com o autor e historiador Rutner Bregman
ACERVO PESSOAL

Luciano Huck: Estou há mais de 20 anos rodando meu país, entrando na casa das pessoas, ouvindo, conversando e contando sua histórias na TV. O que me trouxe ao debate público é meu enorme incômodo com nossas abissais desigualdades. Na minha última conversa neste mesmo ‘Estadão’ com Thomas Piketty, ele me disse que o Brasil não se desenvolverá enquanto não endereçar suas desigualdades – e eu concordo. Em um país que quer se desenvolver, o combate à pobreza não é bom apenas para nossa consciência, mas também para o nosso bolso.

Rutger Bregman: Observando a história e o século 20, vemos que o melhor período foi dos anos 50 até os anos 70 para os países europeus e para os EUA. Na França, eles chamam de “Trente Glorieuses”, os 30 anos gloriosos, com o nível mais alto de crescimento econômico, mais inovação, invenções pioneiras, tudo estava melhorando radical e rapidamente. Além disso, se você analisar, esse foi o período com menos desigualdade, foi quando havia altos impostos para os ricos. Acho que deveríamos ter impostos baixos para os que trabalham e impostos altos para rendas como aluguel, rent-seeking, fortunas, heranças, etc. Eu costumo falar de imposto sobre a preguiça: a preguiça deveria ser taxada e o trabalho não deveria ser tão taxado. Essa é a mudança de que nós precisamos e isso é exatamente o que vimos nos anos 50 e 60. Eu acho que a história nos ensina que a sociedade poderia funcionar muito melhor assim.

Como eu disse, nos anos 70 nós entramos na era neoliberal, que foi uma era bastante decepcionante. Alguém poderá falar da evolução tecnológica, de coisas como a internet, a telefonia móvel, etc. Mas é importante lembrar que a maioria dessas inovações foi financiada com impostos, com a ajuda do governo. Tem uma economista brilhante, Mariana Mazzucato. Ela escreveu um livro chamado O Estado Empreendedor, você vai gostar dele. Ela mostra que em cada lasca de tecnologia que faz do iPhone um smartphone, em vez de um stupidphone, a tecnologia móvel, o GPS, a bateria, tudo o que faz dele um aparelho tão bom, foi inventado por pesquisadores que estavam na folha de pagamento do governo. O que a Apple fez foi pegar essas inovações e criar um belo produto com elas, o que é ótimo, mas a Apple não teria feito isso sem todas essas inovações financiadas pelo dinheiro público. E agora o que acontece? A Apple não paga tributos, está evadindo os impostos com a ajuda de paraísos fiscais, como a Holanda, onde eu moro. Isso não deveria ser assim. É claro que nós precisamos de empresas criando bons produtos, mas elas precisam pagar seus impostos para que nós possamos financiar a próxima rodada de inovações fundamentais e, com isso, criar novos bons produtos, certo?

Luciano Huck: Passei alguns dias das minhas últimas férias em um lugar chamado Preá, no Estado do Ceará, nordeste do Brasil. Um lugar paradisíaco, que está se desenvolvendo por causa das fortes correntes de vento que tornaram o local um dos melhores pontos do planeta para a prática do kite surfe. Mas hoje, se uma grande indústria petroquímica se instalasse no local, apesar de afetar muito negativamente o meio ambiente, o PIB local cresceria barbaramente. Como você enxerga as métricas modernas de aferição de riqueza e desenvolvimento?

Rutger Bregman: Quando você vê os noticiários, você escuta bastante sobre isso, sobre a importância do crescimento econômico, que o crescimento econômico é a coisa mais importante do mundo. Nós devemos ser um pouco mais críticos quando os jornalistas e os políticos dizem isso. A questão é crescimento do quê? O crescimento pode ser uma coisa maravilhosa. Se as flores crescem, isso é ótimo. Se nossos filhos crescem, isso é ótimo. Mas se um câncer cresce, isso não é tão bom. Então, pensando no PIB, porque é disso que falamos quando tratamos de crescimento econômico, ele não mede coisas muito boas. Se a poluição aumenta, empresas ganham muito dinheiro com isso e o PIB aumenta, mas toda essa poluição tem de ser limpa, alguém tem de fazer algo a respeito, isso também custa dinheiro. Também existe uma grande quantidade de trabalhos importantes, como cuidar das crianças ou dos idosos, ou trabalhos voluntários que não estão relacionados com o PIB. No setor financeiro imenso que temos hoje, algumas partes são úteis, mas muitas outras não são e algumas acabam até destruindo riquezas, mas no conjunto elas aumentam o PIB. Acho que nós devemos abandonar essa medida. Talvez nos anos 30, 40, muito tempo atrás, ela ainda era útil, especialmente durante a 2.ª Guerra, quando tínhamos de construir tanques, aviões e o quanto fosse possível de munição. Lá podia fazer sentido olhar para esses dados e dizer que a economia estava avançando. Mas a guerra acabou. Nós vivemos em um mundo muito diferente. As coisas que fazem a vida valer a pena agora são outras. São as conexões humanas, a amizade, cuidar uns dos outros, e isso é muito difícil de mensurar.

Luciano Huck: Eu gosto desse ponto de vista, me faz pensar. Eu quero falar um pouco mais sobre o Brasil, Vivemos aqui uma confusão de narrativas. Ao mesmo tempo que temos um ambiente de negócios muito moderno, potente e cheio de oportunidades, temos hospitais públicos superlotados e uma diferença abissal na qualidade da educação entre a rede pública e a privada. Somos um país rico e miserável ao mesmo tempo. Temos que pensar nesta economia 4.0, inteligência artificial, fábricas e meios de transporte autônomos, mas ainda não conseguimos nem qualificar nossos professores e médicos como eles merecem e como a população demanda. Como você enxerga esse conflito?

Rutger Bregman: Sempre penso nas vias públicas quando entro nesse assunto. As vias são financiadas pela comunidade, e a qualidade delas depende do quão saudável a comunidade é. Se nós pagamos direito nossos impostos, teremos certeza de que as vias serão boas, de que não terão buracos, etc. O que acontece em vários países desiguais, como no Brasil, é que os ricos têm essas SUVs imensas, os carros mais fantásticos, mas têm de andar em ruas péssimas. E eu acho que faz mais sentido, e também é mais eficiente, porque você consegue ir mais rápido, se coletivamente nós garantirmos vias melhores. Talvez o seu carro não vai ser tão grande, talvez as SUVs vão ser menores, mas, no final das contas, você vai dirigir com mais segurança e conforto. Eu não acho que vai ser fácil, que as pessoas no poder vão entregar o poder sem lutar. Mas não precisa ser uma situação perde-ganha. Pode ser uma situação de ganha-ganha. É muito melhor ser rico num país igualitário. As pessoas ricas na Suécia ou na Noruega são muito mais felizes que as pessoas ricas no Brasil ou nos EUA. Elas não precisam viver em condomínios fechados, não precisam temer as pessoas pobres, as pessoas das favelas ou coisas assim.

“Acompanhar o desenvolvimento infantil de maneira focalizada é uma das chaves para a emancipação das famílias da condição de pobreza”Luciano Huck

Luciano Huck: Você tem ideias sobre como nós podemos remodelar o capitalismo?

Rutger Bregman: Todo empreendedor precisa de capital, de algo para começar, para que possa investir e buscar um retorno para esse investimento. É aí que eu acho que devemos começar. Todos precisam de um capital inicial. Isso significa acesso a uma boa educação e de uma renda básica, algo em que possa se apoiar no caso de algum erro. No Vale do Silício, polo global de tecnologia e inovação, eles chamam isso de “capital do dane-se”. Você sempre precisa de dinheiro na sua conta para que você possa dizer não, para que você possa se demitir. O poder de dizer não é a liberdade mais importante que uma pessoa pode ter. Bilhões de pessoas no mundo não têm esse poder, pois elas são dependentes de seus empregos ruins, são dependentes das pessoas do topo. Eu quero viver em um mundo onde todos tenham um “capital do dane-se”, onde todos tenham o poder de dizer não e possam se mudar para outra cidade, se mudar para outra empresa ou até abrir uma empresa própria. As pessoas precisam ser capazes de correr riscos. Se você não consegue correr riscos, você não está em lugar nenhum. Todos deveriam ter essa chance de correr riscos. É claro que isso tem limites, mas eu acho que nós devemos construir uma base na nossa economia, algo em que você possa sempre confiar, que é essa renda básica. Obviamente, não é algo que te dá uma vida luxuosa, mas dá o suficiente para bancar as necessidades básicas, roupas, comida, abrigo, educação para seus filhos. Uma sociedade assim seria muito mais inovadora que qualquer outra.

Luciano Huck: No Brasil, todos os anos realizamos a Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas. Em média, 18,2 milhões de alunos participam. Em 2019, 7.500 medalhas foram distribuídas – destas, 1.288 foram dadas a jovens beneficiários do Programa Bolsa Família. Acompanhar o desenvolvimento infantil de maneira focalizada é uma das chaves para a emancipação das famílias da condição de pobreza. Ainda não chegamos a um grau ideal de eficiência por aqui. A pandemia expôs nossas desigualdades, e uma das mais complexas no Brasil é a da educação. Não me refiro ao acesso, porque hoje a maior parte das crianças e jovens vai à escola. Eu me refiro à qualidade. Nós ainda precisamos qualificar e valorizar os professores, unificar currículos e avançar para que algum dia a qualidade da escola do pobre seja equivalente à do rico. Além da desigualdade digital que também é um problema no Brasil, pois temos estudantes digitais em um sistema analógico. Você falou sobre educação e eu quero finalizar nossa conversa com isso.

Rutger Bregman: A educação poderia ser o grande fator igualitário. Acho que em sociedades justas não existem escolas particulares. Todos estudam no ensino público, mesmo as crianças ricas. A própria existência das escolas particulares é a admissão dos ricos de que o ensino público não é bom o suficiente. Outra coisa importante é que, em escolas públicas, pessoas de origens diferentes podem se conhecer, ricas, pobres, de diferentes etnias, isso vira um caldeirão, que é o que a vida real deveria ser. Eu também acredito em um sistema educacional no qual as crianças tenham um pouco mais de liberdade. As escolas tradicionais ainda são esses lugares hierárquicos onde os professores sabem tudo e tentam enfiar esse conhecimento nos cérebros dos estudantes. A criatividade surge com a liberdade, com a possibilidade de as crianças decidirem por si mesmas o que elas acham interessante. Não existe nenhum pai que precisou pagar ou obrigar o seu filho a começar andar. As crianças simplesmente andam. Nós criamos um sistema educacional que, no final, tira essa curiosidade natural da gente, tira essa motivação intrínseca. E, então, entramos para essa economia do conhecimento na qual tentamos construir um currículo ou um perfil no LinkedIn, trabalhamos durante 20 anos num emprego que não nos interessa, enviamos e-mails para pessoas das que não gostamos, vamos a reuniões que não achamos necessárias, vemos um monte de apresentações de Powerpoint... A escola do futuro não deveria preparar as pessoas só para ganhar tanto dinheiro quanto possível, mas para viver uma vida bem vivida, para tentar acrescentar algo à sociedade. Tudo isso começa com um pouco mais de liberdade para as crianças.

Luciano Huck: Muito obrigado! Foi uma conversa ótima e  inspiradora.