roteiro

Tanto Bolsonaro quanto Chávez fizeram carreira militar e tiveram problemas disciplinares que os levaram a deixar as Forças Armadas | Foto: Reprodução/BBC News Brasil

O roteiro Chavez

Sérgio C. Buarque,* Jornal do Commercio

Depois de fracassar na tentativa de golpe, em 1992, o coronel Hugo Chavez se elegeu presidente da Venezuela em 1998. Saiu do poder apenas quando morreu, em 2013, tendo governado o país durante 15 anos. Depois de morto, o regime bolivariano montado por ele continuou através do seu sucessor, Nicolas Maduro. Mesmo afundando na maior crise econômica e social da histórica da Venezuela, níveis alarmantes de pobreza num dos países mais ricos da América Latina, o chavismo governa o país há 24 anos. O roteiro Chavez para consolidação do poder é um exemplo para os candidatos a ditadores: controle do Judiciário, militarização do governo, autorização para reeleição sem limites, armamentismo da população e pressão e controle da imprensa.

Em 2003, Chavez conseguiu aprovar na Assembleia Nacional o aumento dos membros do Tribunal Constitucional de 20 para 32 ministros, nomeando 12 novos membros com seus aliados. A legislação autorizou o governo a afastar ministros do Tribunal quando julgasse que sua conduta feria o "o interesse nacional", o que tem levado ao desligamento de ministros que desagradem ao presidente. Para completar o controle jurídico, Hugo Chávez substituiu o procurador-geral, que questionava a legalidade de algumas das suas decisões, pelo seu vice-presidente e aliado incondicional.

Hugo Chavez distribuiu os mais importantes cargos do governo com militares, praticamente entregou a PDVSA e toda a cadeia de produção petrolífera e mineral. Comandantes militares se organizaram em empresas que passaram a controlar vários ramos da economia e dos serviços públicos da Venezuela. Ao mesmo tempo, ele promoveu uma massiva distribuição de armas com a população criando um exército paralelo de milicianos e formando grupos paramilitares politicamente alinhados ao chavismo, que, em várias ocasiões, reprimiram manifestações populares.

Além do apoio total dos militares, Chavez conseguiu maioria na Assembleia Constituinte para conceder poderes extraordinários ao executivo e autorização para reeleição ilimitada do presidente da República. No seu segundo mandato, o governo bolivariano passou a perseguir e silenciar a imprensa: cancelou a renovação da concessão da Radio Caracas Televisión, sufocou financeiramente as emissoras críticas e comprou o apoio de outras com a distribuição generosa de anúncios. Ao menos 200 órgãos de imprensa tiveram sua atuação suspensa e houve sucessivas violações do trabalho jornalísticos, incluindo prisões arbitrárias de jornalistas.

Este modelo de poder construído pelo coronel Chavez é o roteiro que o capitão vem conduzindo no Brasil, um manual para implantação da ditadura bolsonarista. Se for reeleito, Bolsonaro vai avançar nas medidas para consolidação do seu poder autoritário. O Brasil será a Venezuela amanhã.

Sobre o autor

Sérgio C. Buarque é economista, com mestrado em sociologia, foi jornalista da Deutsche Welle (de 1975/1979) e correspondente da IstoÉ na Alemanha (1977) e professor titular da FCAP/UPE (de 1982/2014).

Atualmente é consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, é sócio da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade, conselheiro do Conselho Consultivo da Fundação Astrojildo Pereira e seminarista do Seminário de Tropicologia da Fundação Joaquim Nabuco. Membro do Conselho Editorial da Revista Será? colabora como articulista com o Jornal do Commércio e com a revista Política Democrática.


Maria Hermínia Tavares: Bolsonaro tem roteiro para o golpe

Insuflar a desconfiança nas eleições é tática dos políticos populistas para se manter no poder a qualquer custo

A democracia começa a ter um sério problema quando os vencidos numa eleição contestam os seus resultados. Embora sejam muitas as condições que asseguram a estabilidade do sistema, a escolha dos governantes pelo voto —com as instituições garantindo a lisura do jogo— e a aceitação do desfecho por todos os competidores formam o alicerce da ordem democrática.

Em 2014, um desatinado Aécio Neves se recusou a ouvir a voz das urnas favorável a Dilma Rousseff e abriu caminho para a crise política que culminaria com a ascensão da extrema direita ao poder quatro anos depois.

É cedo para dizer como estará o país em 2022. A pandemia e a crise econômica, agravadas por um assombroso desgoverno, tornam fútil qualquer exercício de previsão eleitoral. Mas, hoje como hoje, pelo menos um candidato ao Planalto parece ter um plano pronto.

Prevendo o fracasso provável de sua gestão sem rumo e sem compromisso, Jair Bolsonaro trata de reduzir a frangalhos o processo eleitoral. Para tanto, lança suspeitas descabeladas sobre a lisura do registro e da contagem de votos depositados na urna eletrônica. E quer fazer crer que, não fosse a fraude, teria saído vitorioso já no primeiro turno. Nunca apresentou nem sequer um fiapo das provas que alega ter. Pode parecer mais uma de suas efervescências, como a campanha contra as lombadas nas rodovias, mas não é.

Insuflar a desconfiança no mecanismo democrático de escolha dos governantes faz parte da caixa de ferramentas dos políticos populistas, a fim de se manter no poder a qualquer custo, mesmo sem votos para tal. É assim que alimentam seus seguidores sempre prontos a consumir receitas conspiratórias da política. Foi o que fez Donald Trump, é o que faz o seu adepto Bolsonaro.

Só que o brasileiro não se limita àquela manobra mambembe. Enquanto dissemina suspeitas vazias, trata de agradar aos militares —com gestos de apreço, cargos em diversos escalões do governo e atendimento de demandas corporativas—, na expectativa de ter ao seu lado, na hora certa, as Forças Armadas. Eis aí um sistemático investimento em cooptação, cujo retorno ainda se desconhece, mas que a nação deve temer.

Em recente entrevista ao jornal Valor, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) fez um apelo à autonomia das instituições representativas e ao imperativo político de desvincular as três Armas deste governo. Ele sabe o que diz: o roteiro para o golpe é cristalinamente claro. Pode resultar num circo de horrores, como o que se instalou em Washington na semana passada. Mas pode também acabar numa tragédia nacional.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.