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Rolf Kuntz: Depois da pandemia ainda restará a velha crise

O País nunca saiu do buraco onde caiu em 2015. O PIB de 2014 continua longe

Brasil, Estados Unidos e muitas outras economias ainda levarão mais de um ano para sair da profundeza de 2020. Dezenas de países só voltarão em 2022 ao patamar de 2019, se as projeções estiverem razoavelmente corretas. Sem um segundo surto de covid-19, a maior parte da América Latina estará recuperada em 2023, segundo estimativa do Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas o caso brasileiro, mais uma vez, é especial, tão especial quanto o de um senador – vice-líder de governo – flagrado com dinheiro na cueca. O País ainda levará uns dois anos, talvez três, para exibir um produto interno bruto (PIB) parecido com o de 2014, anterior ao do grande tombo. Mas a economia terá de funcionar num cenário global diferente daquele conhecido até há pouco tempo.

O Brasil tem sido um país diferente, no mau sentido, há uns dez anos, e o esforço de “normalização” iniciado em 2016-2017 foi em grande parte abandonado em 2019. Para começar, crescimento foi o padrão mundial depois da crise financeira de 2008-2009. Com maior ou menor vigor, a maior parte das economias voltou a avançar, até o desastre da pandemia. Na maior economia da América do Sul, no entanto, erros políticos, agravados com a pilhagem do Estado, minaram a prosperidade.

Mas isso foi pouco visível inicialmente. A primeira fase depois da crise financeira foi promissora. Depois da queda de 0,5% em 2009, o País logo se recuperou. Mas tropeçou em 2012 e três anos depois afundou numa recessão inteiramente made in Brazil, enquanto a vizinhança continuava em crescimento. A economia brasileira encolheu 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016 – uma perda acumulada de 6,58% em dois anos.

O PIB cresceu lentamente nos três anos seguintes, 1,3% em 2017, 1,3% em 2018 e 1,1% em 2019, acumulando um avanço de 3,74%. O País chegou a 2020, portanto, sem ter retomado o nível de atividade de 2014, ano anterior à recessão brasileira. Então chegou o novo coronavírus e, com ele, um dos maiores tombos econômicos, talvez o maior da História republicana. Em um trimestre a produção de bens e serviços diminuiu 9,70%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A reação começou logo em seguida, como em muitos países, puxada pelo consumo e favorecida por medidas emergenciais. O Tesouro assumiu custos de centenas de bilhões de reais e o Banco Central (BC) afrouxou a política monetária, criando condições para aumento do crédito. A atividade voltou a crescer, embora sem retornar ao nível pré-pandemia, e há cerca de um mês as projeções para o ano começaram a melhorar.

A maior parte das estimativas aponta contração econômica na faixa de 4% a 5%, neste ano. O FMI ainda projeta para 2020 um PIB 5,8% menor que o do ano passado e expansão de 2,8% em 2021. As projeções do governo, do mercado e de entidades multilaterais indicam ritmos diferentes de recuperação, nos próximos dois anos, mas, de modo geral, insuficientes para o retorno ao patamar de 2014. Na melhor hipótese, a economia tocará esse nível em 2022 e talvez o supere ligeiramente.

Mas a dúvida mais inquietante é outra. Não se sabe quando o Brasil crescerá como um grande emergente. A expansão, pelas projeções de médio e de longo prazos, ficará entre 2% e 2,50% ao ano. Nenhuma das fontes indica um desempenho melhor. É esse o crescimento potencial – sustentável sem desajustes – avaliado por muitos especialistas. Há quem sugira um potencial abaixo de 2%.

São cálculos inseguros, mas certamente a economia brasileira tem perdido vigor há muitos anos. Desde 2000 o investimento em máquinas, equipamentos e obras ficou em média na altura de 18% do PIB. A partir de 2015 permaneceu entre 15% e 16%. A taxa supera 24% ou 25% em emergentes mais dinâmicos.

Além de baixo, o investimento tem sido pouco produtivo. Muitos bilhões foram aplicados pelo setor público em obras interrompidas ou concluídas com muito atraso. Também se falhou na formação de capital humano. Houve redução do analfabetismo e aumento da inclusão escolar, mas outros objetivos essenciais foram negligenciados. Nos anos 2000 pouco se cuidou da qualidade da escola fundamental. Tratou-se muito mais de facilitar o acesso a faculdades e o governo central demorou a valorizar a formação técnica.

A reversão será complicada. Com as contas oficiais estouradas, obras públicas, principalmente federais, dependerão de capitais privados. Mais do que em outros momentos, será essencial formular bem os objetivos, identificar os gargalos e cuidar da eficiência de cada passo. Mas nem o Orçamento de 2021 está pacificado. Além disso, o ministro da Economia insiste em poucos temas, como os custos da folha salarial e a recriação da CPMF, uma aberração. O ministro da Educação fala da sexualidade dos estudantes, o do Meio Ambiente dificulta a proteção das florestas e o de Relações Exteriores segue a Casa Branca, mesmo contra grandes importadores de produtos brasileiros. Enquanto isso, o presidente se concentra na reeleição e na proteção de filhos suspeitos de travessuras, como rachadinhas.

Com esse desgoverno, quem precisa de coronavírus para ir mal?

*Jornalista


Rolf Kuntz: Um gigante sem fôlego e sem rumo

Sem plano sequer para alongar a retomada, o País parece condenado a crescer menos que 3%

O Brasil, vejam só, deixou de ser o país do futuro. Que futuro pode ter um país emergente incapaz de crescer 3% ao ano? Esqueçam Stefan Zweig. Pensem num ministro da Educação preocupado com a vida sexual dos estudantes, num ministro do Meio Ambiente avesso à proteção das florestas, num ministro da Economia empenhado em recriar uma aberração tributária, a CPMF. Considerem um presidente negacionista, propagandista da cloroquina e centrado em interesses pessoais e familiares, com destaque para a reeleição. Quem se importa, em Brasília, com o miserável crescimento projetado para o médio e o longo prazos, nada além de 2,5% ao ano?

Bolas de cristal muito consultadas preveem mediocridade, ou algo pior que isso, no médio e no longo prazos. Por enquanto, há algum dinamismo. Passado o grande choque, os negócios voltaram a mover-se, como em todo o mundo. Em 2021 o produto interno bruto (PIB) crescerá 3,5%, segundo a mediana das projeções do mercado. A expansão ficará em 2,8%, de acordo com estimativa recente do Fundo Monetário Internacional (FMI). A partir daí o cenário fica menos claro, mais inquietante e, principalmente, mais estimulante para uma avaliação das condições do Brasil.

O PIB crescerá 2,3% em 2022, segundo o FMI, e apenas 2,2% em cada um dos três anos seguintes. Pela projeção do mercado, captada na pesquisa Focus, do Banco Central, a expansão será de 2,5% ao ano em 2022 e 2023. Detalhe relevante: essa taxa de 2,5% aparece há tempos, nessas pesquisas, como estimativa para o médio prazo. As projeções do FMI têm a mesma característica: números baixos, na casa dos 2%, quando se ultrapassa o horizonte de um ou dois anos. Não se trata de preguiça dos analistas. O problema está na economia brasileira. Os economistas do mercado e das entidades multilaterais são inocentes.

Para olhar um pouco mais longe, os economistas levam em conta o potencial de crescimento da economia. Esse potencial é determinado por vários fatores, com destaque para os investimentos em capital fixo (máquinas, equipamentos e construções), em capital humano, em conhecimento (ciência e tecnologia) e em inovação. Fatores institucionais e de ambiente de negócios, como tributação, segurança jurídica, burocracia e integração internacional, também são importantes. O Brasil tem ido mal, há muitos anos, em todos esses quesitos.

Só o investimento em capital fixo é mostrado de forma explícita nas contas nacionais brasileiras. Na maior parte dos últimos 20 anos esse investimento foi equivalente a menos de 20% do PIB, embora a meta oficial tenha sido, quase sempre, uma taxa de pelo menos 24%. Além disso, boa parte do investimento foi pouco produtiva.

Muitas obras públicas ficaram inacabadas, outras consumiram tempo demasiado, o superfaturamento foi frequente e houve amplo desperdício. A contribuição dessas obras para a capacidade produtiva acabou sendo muito prejudicada. O setor privado investiu mais que o governamental, mas o protecionismo e outros fatores limitaram os incentivos à busca de eficiência, inovação e competitividade.

A indústria de transformação começou a perder vigor alguns anos antes da recessão de 2015-2016. Incentivos fiscais e financeiros mal concebidos, somados à corrupção, favoreceram grupos e ramos empresariais, mas a maior parte do setor escorregou ladeira abaixo até chegar a pandemia. A equipe do presidente Jair Bolsonaro jamais apresentou um diagnóstico sério dos problemas da economia brasileira. Por isso mesmo nunca propôs um plano de modernização, dinamização e retorno a um crescimento aceitável para um país emergente.

A única reforma importante aprovada desde o ano passado, a da Previdência, estava madura no fim do mandato do presidente Michel Temer. Ainda na gestão Temer as normas trabalhistas foram modernizadas e flexibilizadas, sem eliminação de direitos. Também nesse período foi criado o teto de gastos. Hoje, além de pouco avançar na pauta de reformas, o ministro da Economia insiste em objetivos modestos, como a desoneração da folha salarial.

Essa desoneração pode evitar demissões e preservar empregos, mas é insuficiente para ampliar a oferta de vagas. Isso foi comprovado na gestão da presidente Dilma Rousseff, quando mais de 50 setores foram contemplados com a redução de encargos. Desse conjunto sobraram 17 setores – com 6 milhões de trabalhadores, segundo se estima. O mais prudente, agora, é preservar esses benefícios pelo menos por um ano, por causa das condições da economia.

Seria bom se a equipe econômica notasse a diferença entre evitar demissões e gerar empregos, objetivos tão bons quanto distintos. Geração de empregos depende, em primeiro lugar, da atividade e das perspectivas de crescimento. Não se moverá a economia eliminando direitos trabalhistas, recriando um monstrengo tributário e gastando energia para subordinar o Orçamento de 2021 aos interesses eleitorais do presidente. Planejamento para o longo prazo vai muito além disso, mas essa noção parece estranha aos condutores da política econômica.

*Jornalista


Rolf Kuntz: Na chanchada populista só faltou cloroquina contra a inflação

Câmbio também afeta os preços e o maior fator de instabilidade mora no Alvorada

Arroz caro e populismo barato marcaram mais uma semana da grande chanchada política nacional. O presidente pediu patriotismo para conter os preços e perguntou como deter a alta do dólar. O Ministério da Justiça virou fiscal da inflação e prometeu “coibir aumentos arbitrários”, em conflito com os critérios do “posto Ipiranga”. O ministro da Educação lamentou a condição espiritual de jovens descrentes, convertidos, segundo ele, em “zumbis existenciais”. Contaminado pelo coronavírus pouco depois de chegar a Brasília, esse cavalheiro virou garoto-propaganda da cloroquina, curou-se e reapareceu como pregador. Quais seus planos para o setor educacional? Na sexta-feira o Procon de São Paulo também anunciou a disposição de examinar os preços da cesta básica.

Não ficou claro se o pessoal do Procon agirá como fiscal do Bolsonaro, do Doria ou de ambos. No tempo dos fiscais do Sarney a Polícia Federal chegou a caçar animais no pasto. Um dos efeitos do controle de preços, aplicado no final da cadeia, foi tornar o boi magro mais caro que o boi gordo. A maior especulação, comentou o então deputado Delfim Netto, seria levar o boi gordo para a sauna e fazê-lo emagrecer para aumentar seu preço.

Muito mais grotesca é a situação de hoje. Não há mais como levar a sério as velhas políticas de controle, depois de tanta experiência no Brasil, na Ásia, na Europa e nos Estados Unidos. A última aventura americana ocorreu no governo do presidente Nixon – isso mesmo, um republicano.

Controle de preços já teve respeitabilidade teórica, até entre economistas considerados liberais e conservadores. Os mercados sempre foram “imperfeitos”. Então, valeria a pena, talvez, tentar compensar suas imperfeições, até para efeitos distributivos. Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen quebraram a cabeça com essas questões. Mas isso foi há muito tempo.

As tentativas nunca deram certo, em tempos de paz e em países democráticos. Mesmo em regimes autoritários, como se verificou no Brasil, as experiências foram complicadas e produziram distorções. Qualquer pessoa passavelmente informada pode reconhecer esses dados. Não é preciso alinhar-se a uma ideologia.

Que o presidente Bolsonaro e a maioria de seus auxiliares desconheçam esses fatos – e tantos outros – parece normal. Mas ele poderia ter consultado seu “posto Ipiranga”, o ministro Paulo Guedes, para entender a situação dos preços e discutir soluções. Também seria preciso envolver a ministra da Agricultura. Afinal, estavam envolvidos preços de alimentos.

Mas Bolsonaro só reagiu como candidato, como tem feito quase sempre. Comida mais cara pode atrapalhar a campanha. O resultado foi patético. Ele pediu patriotismo aos donos de supermercados e depois cobrou margem de lucro próxima de zero. O Ministério da Justiça, chefiado por um candidato “terrivelmente evangélico” a uma vaga no Supremo Tribunal Federal, logo se pôs na linha de frente, no combate aos preços altos. Cinco dias foram dados a produtores e vendedores de alimentos da cesta básica para se explicar.

Mistério, no entanto, só existia para os desinformados. As exportações de alimentos cresceram muito, neste ano, puxadas principalmente pela enorme demanda chinesa e pela alta do dólar em relação ao real. Também os produtores de arroz entraram na festa do comércio exterior, até porque outros países tiveram safras menores.

A maior parte dos preços continua contida, sem risco visível de estouro inflacionário. O único desarranjo aparente, no quadro mais amplo, tem sido a forte depreciação do câmbio. Várias vezes o dólar esteve 40% mais caro do que no começo do ano. Ocorreu uma reversão no fluxo de capitais de curto prazo, aplicados em títulos. De janeiro a julho de 2019 houve ingresso líquido de US$ 14,1 bilhões. Neste ano, até julho, houve saída líquida de US$ 30,6 bilhões. A perda é bem maior que na maior parte das outras economias emergentes.

Algo assusta o investidor. Também essa história é sem mistério. Grandes fundos internacionais anunciaram a intenção de ficar fora do Brasil por causa da política ambiental do presidente Bolsonaro. Outros investidores têm fugido. Além disso, a incerteza quanto à gestão das contas públicas também afeta o câmbio.

Essa incerteza é claramente associada às prioridades do presidente. Seus objetivos eleitorais podem custar muito dinheiro. O Orçamento de 2021 ainda é assunto aberto, embora um projeto formal tenha sido entregue ao Congresso. Há também pressões de seus aliados do Centrão, sempre dispostos a cobrar muito por qualquer apoio, tanto mais caro quanto maior a necessidade do presidente.

O principal foco de instabilidade cambial mora no Palácio da Alvorada e despacha no Planalto. Qualquer pressão por ações eleitoreiras é facilmente associada a seu nome. Qualquer nova fogueira na mata remete direta ou indiretamente à política de tolerância à destruição de biomas. Dólar instável atrapalha os negócios e desarranja preços. Não adianta buscar um freio para o câmbio. O verdadeiro problema tem nome, sobrenome e endereço conhecido.

*Jornalista


Rolf Kuntz: Não culpem só a pandemia. O Brasil já ia muito mal

A crise industrial começou no País bem antes de chegar a covid-19

A pandemia forçou o governo a cuidar da economia real e até dos pobres, mas falta um plano para consolidar a retomada, combiná-la com o conserto das contas públicas e, sobretudo, reconduzir o País ao desenvolvimento. Falta um governo do tipo necessário a um país emergente. O Brasil já ia muito mal antes do novo coronavírus. Com o desastre ocasionado pela covid-19, muita gente parece haver esquecido aquele quadro sombrio. O desafio imediato é sair do buraco e retomar as condições anteriores ao grande tombo. Mas o problema real é muito maior e qualquer discussão séria – sem populismo e sem jogadas eleitorais – tem de partir desse ponto. Para onde rumava o País antes da tragédia de 2020?

Sinais vitais do comércio e da indústria têm melhorado, mas em junho a produção industrial continuou abaixo do nível de fevereiro. Se tivesse voltado àquele nível, ainda estaria 16,6% abaixo do pico alcançado em maio de 2011. A partir desse topo o declínio da indústria, até a recessão de 2015-2016, é bem visível nas séries do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Houve alguma reação em 2017 e 2018, mas o impulso acabou no primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro.

Depois de três anos de queda, a produção da indústria avançou 2,5% em 2017 e 1% em 2018, mas declinou 1,1% em 2019. Bolsonaro e equipe tiveram uma estreia desastrosa – mesmo sem contar a vergonha diplomática e o vexame da política ambiental. O produto interno bruto (PIB) cresceu 1,1% – menos que em cada um dos dois anos anteriores – e o desemprego permaneceu na faixa de 12% a 13%. De novembro a fevereiro, antes, portanto, da nova crise, a produção industrial foi sempre menor que no mês correspondente do ano anterior.

Com a pandemia, a partir de março ficou menos visível a diferença entre os novos desafios econômicos e os velhos problemas estruturais, exceto pelos detalhes mais chocantes. Quando foi preciso pensar em prevenção, isolamento, contenção do contágio e, enfim, socorro aos mais vulneráveis, mais luz foi lançada sobre a pobreza extrema e as condições de saneamento e de habitação de milhões de famílias. Dados abstratos, como o coeficiente de Gini, transformaram-se de repente em cenas assustadoras ao vivo e em cores.

A desigualdade passou de mero indicador a fato escancarado. A realidade confirmou a advertência do Fundo Monetário Internacional (FMI): para executar as políticas emergenciais os governos latino-americanos precisariam chegar a segmentos sociais ainda intocados pelas políticas públicas. A experiência brasileira comprovou de forma chocante essa previsão.

Mas nem seria preciso chegar às cenas de pobreza extrema para perceber o enorme desafio. Bem antes da pandemia e da recessão no primeiro semestre de 2020, o desenvolvimento brasileiro havia sido travado. A baixa qualidade do emprego, a informalidade e os níveis escandalosos de pobreza eram os sinais mais claros da interrupção de um longo processo.

Tinha havido alguma redução da desigualdade nas últimas décadas e crescente inclusão, embora os indicadores sociais continuassem ruins. A crise da indústria, visível antes da recessão de 2015-2016, realçou problemas cada vez mais graves: baixa produtividade, formação deficiente de capital humano, pouca inovação, ampla predominância dos segmentos de baixa tecnologia e escassa competitividade.

Protecionismo excessivo e insuficiente participação nas cadeias globais foram facilmente identificados, há anos, como entraves importantes. Burocracia, insegurança jurídica, tributação disfuncional e financiamento escasso também têm sido apontados, há muito tempo, como obstáculos à eficiência e à competitividade.

No mesmo período o agronegócio brasileiro se consolidou como potência mundial. A trajetória começou há décadas. Foi essencial a ação do setor público, por meio do trabalho da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e de sua cooperação com outras instituições. Também houve boas estratégias de financiamento, de logística, de zoneamento e de difusão de tecnologia. Com eficiência, em 30 anos a produção cresceu muito mais que a área ocupada. Poupando terras, o agronegócio tem garantido a segurança externa da economia brasileira.

Por que a agropecuária cresceu e ocupou espaços no mercado global, enquanto a indústria, com exceção de alguns segmentos e grupos empresariais, emperrou e até regrediu? Como programar a retomada industrial? Como ordenar as ações? Essas perguntas poderiam abrir um reexame do crescimento, da modernização e das funções das políticas públicas.

É inútil propor esse tipo de assunto ao presidente Bolsonaro. Ele repassará a questão ao seu “posto Ipiranga”, o ministro da Economia. Mas será uma surpresa se ele responder com algo diferente de seu discurso habitual. Aprovada a reforma da Previdência, ele se concentrou em duas missões, aparentemente essenciais, em sua opinião, para a prosperidade brasileira: eliminar os encargos da folha salarial e recriar com nova cara a CPMF. Para que complicar a conversa?

*Jornalista


Rolf Kuntz: Cloroquina é inútil contra o desgoverno

Desprezando o direito à vida, Bolsonaro busca reeleição sem nunca ter governado

Não tentem curar despreparo, ignorância, incompetência ou irresponsabilidade com cloroquina. Não vai dar certo, como já foi comprovado no Brasil e nos Estados Unidos. Consumidor, defensor e propagandista desse medicamento, o presidente Jair Bolsonaro já testou positivo para o novo coronavírus, mas continuou testando negativo para as funções de governo. No meio de uma pandemia, o Brasil completou na última sexta-feira quase dois meses sem titular no Ministério da Saúde. No mesmo dia, um novo ministro da Educação, o quarto em pouco mais de um ano meio, poderia ser anunciado. Na véspera, numa de suas lives, o presidente havia tentado mostrar otimismo. “A economia vai pegar”, disse ele, atribuindo a profecia ao ministro da Economia. “Se a economia não pegar, fica complicado. Mas acredito no Paulo Guedes”, acrescentou. Acredita mesmo?

Confiando no ministro, mas nem tanto, na mesma live o presidente voltou a cobrar a reabertura mais pronta das atividades. “Há sinais de retomada na economia, mas precisamos de governadores e prefeitos que comecem a abrir o comércio, caso contrário as consequências vão ser danosas para todo mundo no Brasil”, disse Bolsonaro. A insistência contrasta com seu desinteresse, exibido até recentemente, pelos assuntos econômicos. Como explicar a mudança? Uma súbita iluminação?

Bolsonaro completou seu primeiro ano de mandato com a economia em pior estado do que em 2018. O produto interno bruto (PIB) cresceu apenas 1,1% em 2019, menos que em qualquer dos dois anos precedentes.

No começo deste ano o desemprego, superior a 11%, era pouco menor que o de um ano antes e mais que o dobro da média (5,2%) da OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. A indústria, depois de alguma retomada em 2017 e 2018, emperrou de novo. Entre novembro de 2019 e março de 2020, a produção industrial de cada mês foi sempre menor que a de um ano antes.

O presidente nunca se mostrou preocupado com esses números – até a pandemia bater no Brasil e começar a discussão sobre como enfrentar os novos problemas. A gravidade da crise sanitária foi reconhecida com algum atraso pelo Executivo federal, mas em seguida houve ações importantes. A política de saúde foi reforçada com mais dinheiro. Além disso, medidas emergenciais foram anunciadas para ajudar empresas pequenas e médias, defender o emprego e socorrer famílias mais vulneráveis. O governo cuidou de realçar os próprios feitos, como se resultassem de iniciativas excepcionais. O autoelogio, porém, foi um tanto exagerado.

As ações anticrise foram positivas, sem dúvida, mas muito parecidas, em aspectos essenciais, com as implantadas em dezenas de países. Dados da OCDE divulgados mostram amplo recurso a medidas fiscais e monetárias de apoio à atividade econômica, ao emprego e às populações mais necessitadas. Com algumas variações, políticas desse tipo foram lançadas em países tão diferentes quanto Noruega, Alemanha, Tanzânia, Costa Rica, Estados Unidos, Indonésia, Argentina, França, Japão, Vietnã, Coreia do Sul, Uganda, República Dominicana, Colômbia, Peru, Paraguai, Malásia, Austrália, Tunísia, México, Índia, Israel e Nova Zelândia.

Com ou sem Bolsonaro teria prevalecido orientação semelhante. Isso em nada reduz o mérito das políticas. Simplesmente as situa numa perspectiva realista. Mas, ainda assim, suas ações têm algumas características particulares.

Em primeiro lugar, é evidente o destaque dado por Bolsonaro a seus objetivos eleitorais. O Brasil teve, nos últimos meses, um presidente em guerra contra os governadores João Doria, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, tratados como prováveis adversários na eleição presidencial de 2022. A preocupação política explica também, de modo muito claro, o empenho de Bolsonaro em apressar a reabertura do maior número possível de atividades.

Em segundo lugar, é notória a prevalência dos objetivos políticos sobre as preocupações com a segurança dos cidadãos. Mesmo depois do teste positivo, Bolsonaro continuou minimizando o perigo do coronavírus e, mais que isso, menosprezando o direito à vida. Ele age como se alguns milhares de mortos a mais fossem um preço razoável para apressar a retomada econômica e facilitar sua reeleição. Não se distingue, quanto a isso, de seu líder Donald Trump. Em Tulsa, Oklahoma, mais de 200 casos diários de covid-19 foram registrados duas semanas depois do famigerado comício do presidente americano. Eram menos de 100 por dia antes do evento, segundo o governo local.

Qualquer presidente, dirão boas almas, tem o direito de cuidar de seus objetivos políticos, incluída a reeleição. É verdade. Mas no começo do segundo ano de mandato? E sem ter governado? Desde janeiro de 2019 Bolsonaro cuidou de assuntos como posse de armas, atrapalhou a discussão dos grandes temas, como a reforma da Previdência, deu prioridade a interesses pessoais e familiares. Além disso, tem prestigiado manifestações golpistas. Não se pode, enfim, acusá-lo de ter governado mal. De governo ele jamais cuidou.


Rolf Kuntz: Dinheiro público, dinheiro sujo e guerra à democracia

Até o TCU entra na briga pelo Estado de Direito contra a política de Bolsonaro

Democracia tem tudo a ver com imprensa livre - imprensa de verdade, conduzida de forma aberta e responsável - e essa verdade tem sido comprovada no dia a dia do governo Bolsonaro. O presidente mantém uma simetria perfeita entre seus atos contra as instituições, como a presença em manifestações golpistas, e, de outro lado, o combate constante aos meios de comunicação profissionais e o apoio às centrais de mentiras e de mensagens de ódio. O horror do presidente e de seus minigoebbels ao jornalismo decente já ultrapassou as fronteiras da política. Tornou-se um fato também contábil, como demonstra, por exemplo, o parecer preliminar do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre as finanças federais de 2019.

Com 14 ressalvas, 21 recomendações e 7 alertas, o parecer recomenda, apesar de tudo, a aprovação do balanço encaminhado pelo presidente da República. Mas passa longe de recomendar o comportamento presidencial em relação às instituições e à sociedade ferida pela pandemia de covid-19. Ao apresentar o documento, numa sessão virtual, o relator do processo, ministro Bruno Dantas, propôs em primeiro lugar um minuto de silêncio em homenagem às vítimas do novo coronavírus. Foi um gesto de respeito raramente esboçado pelo presidente Jair Bolsonaro, até a sessão ministerial transmitida ao vivo, há poucos dias, numa encenação de seriedade governamental.

“A democracia brasileira pode ser jovem”, disse o ministro, “mas seu conceito não é recente, nem é efêmera sua construção. O abalo dos alicerces de nosso Estado de Direito Democrático não é um mero recuo à década de 60 do século passado. É um recuo de oito séculos, ao período medieval”. Ele falava, nesse momento, da cooperação, da independência e do respeito entre os Poderes, noções frequentemente renegadas, com sua anuência silenciosa, por apoiadores do presidente. Mas às vezes, de fato, nem tão silenciosa, como quando ele anuncia - para em seguida se corrigir - a disposição de rejeitar decisões do Judiciário ou do Legislativo.

A defesa do Estado Democrático de Direito foi mais detalhada quando o ministro examinou a relação do Executivo com os meios de comunicação. A distribuição de verbas de publicidade, comentou, tem seguido “critérios pouco técnicos”. Mencionou conflitos com a Folha de S.Paulo e a ameaça de não renovar a concessão da Rede Globo.

“Por certo”, concluiu o ministro nessa parte, “esse assunto não se esgotará aqui, devendo toda a sociedade e este tribunal ficar vigilantes, atentos e zelosos pela regularidade, legitimidade e economicidade dos gastos com comunicação social do governo federal, visando a garantir a isonomia de tratamento entre os veículos, a imprensa livre e o compromisso com a verdade.”

Lambanças do governo com verbas de comunicação haviam sido denunciadas no começo de junho pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Fake News. Uma semana antes de aparecer o relatório do TCU, o público já havia sido informado sobre a destinação de verbas a canais nada ortodoxos, dedicados, por exemplo, à pornografia, a jogos de azar, à promoção da figura do presidente e, é claro, à difusão de fake news. Segundo o relatório, elaborado por consultores legislativos, mais de 2 milhões de anúncios foram publicados em sites dessa qualidade num curto intervalo, em 2019. Dados da própria Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom), referentes a junho e julho, foram usados pelos consultores.

A maior parte dos anúncios foi destinada, segundo o relatório, à promoção da reforma da Previdência. O projeto foi defendido até em sites de atividades ilegais, como um dedicado à publicação de resultados do jogo do bicho. Entre os mais favorecidos havia 14 canais destinados ao público infantojuvenil, um deles caracterizado pelo uso do idioma russo. Sites de notícias falsas foram identificados em posições de destaque, assim como páginas de apoiadores do presidente Bolsonaro.

Divulgado o relatório, a direção da Secom tratou de se defender numa nota. Segundo o texto, a destinação das verbas era decidida pelo sistema Google AdSense, por meio de um algoritmo. A explicação deveria caber, portanto, ao Google. O responsável pela Secretaria de Comunicação exibiu, na tentativa de defesa, ignorância de noções fundamentais de administração. Um gestor pode transferir e até privatizar tarefas, mas a responsabilidade é intransferível. Mais que chocante, o desconhecimento ou menosprezo desse fato é inaceitável quando se trata de gestão pública - mais precisamente, de dinheiro público.

Os muito otimistas poderão apostar em mudanças. Descumprindo mais uma de suas promessas, o presidente acaba de recriar o Ministério das Comunicações. Escolhido para o posto, o deputado Fábio Faria (PSD-RN) é genro do empresário Sílvio Santos. O ex-chefe da Secom será secretário-geral, isto é, vice-ministro. Só haverá mudança, obviamente, se o novo ministro renegar a política da Secom e do presidente e seguir os valores do Estado Democrático de Direito. Como fazer isso e ao mesmo tempo obedecer a um Bolsonaro?


Rolf Kuntz: Campanha eleitoral sobre cadáveres

Agenda presidencial dá prioridade à reeleição sobre a segurança e a vida das pessoas

Foi uma quinta-feira tenebrosa. Mais 407 mortes, um recorde sinistro, foram comunicadas oficialmente. Em Manaus, ambulâncias corriam de hospital em hospital com doentes em busca de uma vaga. Em São Paulo, a Prefeitura liberou enterros à noite e anunciou a abertura emergencial de 13 mil sepulturas. Num site jornalístico, um médico descrevia a experiência de ser a última pessoa vista por um moribundo, sem a presença de familiares. Enquanto isso, no Palácio do Planalto, o presidente cuidava das prioridades mais altas da República Bolsonariana, incluída a exoneração do chefe da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo. Naquela altura, outra ação de grande importância na agenda palaciana havia aparecido no Diário Oficial. Os brasileiros poderão, graças a um decreto redentor, comprar até 550 unidades de munição por mês. Portaria anterior, anulada pelo mesmo ato, fixava o limite de 600 unidades por ano.

A demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, consumou-se na sexta-feira. Ele havia resistido à exoneração do diretor-geral da Polícia Federal. Havia tentado até negociar a nomeação de um substituto, segundo afirmou, para evitar um desentendimento maior num momento de pandemia. Não deu certo. Não se sabe se ele usou a palavra pandemia na conversa com o presidente. De toda forma, é difícil dizer se isso faria alguma diferença. A segurança e a vida dos brasileiros, como já sabia qualquer pessoa razoavelmente informada, estão fora das prioridades presidenciais.

Segurança, vida e bem-estar sempre estiveram longe do primeiro plano desde o começo do mandato. Há um ano, o desemprego superava 12% e os desempregados eram mais de 12,5 milhões. Mas no alto da agenda estavam as armas de fogo, apresentadas como itens fundamentais para a tranquilidade e o futuro dos brasileiros.

Revólveres, pistolas e fuzis continuam tratados como questões de alta importância, enquanto governos estaduais e municipais correm atrás de respiradores, improvisam hospitais de campanha e - apesar desse empenho - têm de providenciar câmaras frigoríficas para abrigar vítimas da pandemia. Armas, no entanto, nem são agora a mais alta prioridade presidencial. O assim chamado chefe de governo - governante seria uma palavra muito estranha - vem cuidando principalmente de seus interesses políticos pessoais e da proteção dos valores familiares, aqui entendidos como os de sua família.

Cuidar da reeleição tem sido a atividade mais notória do presidente. Essa prioridade é evidente desde o ano passado, mas o jogo tem-se tornado mais intenso. Essa preocupação se torna quase chocante quando o tratamento da pandemia é subordinado às eleições de 2022.

Candidatos potenciais, como os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro, são tratados como rivais e até como inimigos. A redução do isolamento e a rápida liberação das atividades econômicas, bandeiras do presidente e de seus aliados, escancaram o interesse eleitoral. São orientações contrárias àquelas seguidas em vários Estados, incluído São Paulo, e envolvem uma aposta em ganhos de popularidade.

A demissão de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde foi parte desse jogo. Além de seguir, no essencial, as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), aceitas também pelo governo paulista, o ministro havia se tornado muito mais popular que o presidente. Não foi, no entanto, apenas um caso de ciúme. Um ministro disposto a dar prioridade à vida, atendendo mais à ciência do que aos interesses de seu chefe, podia ser um estorvo.

A demissão de Mandetta, a exoneração de Maurício Valeixo e a saída de Moro são fatos estreitamente articulados. Desde o ano passado o presidente procura controlar, ou enfraquecer, os principais organismos de investigação.

Seu interesse podia estar vinculado, inicialmente, à proteção de um filho suspeito de irregularidades na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). A prática da rachadinha havia sido evidenciada por declarações de Fabrício Queiroz, assessor de Flávio Bolsonaro na Alerj. O assunto continua quente. Mas os problemas ficaram mais complicados com as investigações sobre fake news e sobre a organização da passeata golpista realizada em Brasília no dia 19, um domingo.

Por que o deputado Eduardo Bolsonaro recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra a prorrogação da CPI das Fake News? Além disso, quem ignora a atuação do gabinete do ódio? Mas há outros motivos de preocupação para o presidente. Seu nome, em princípio, está fora da investigação sobre a passeata golpista, mas sua presença é inegável e o inquérito pode produzir efeitos secundários.

Percebido o erro, o presidente declarou amor às instituições e tentou maquiar os fatos. O objetivo da manifestação, disse ele a um grupo, foi a defesa da volta ao trabalho. Mesmo com a pandemia? A pandemia, admitiu, ainda ameaça as pessoas. “Lamentamos as mortes”, disse. E acrescentou: “Enfim, é a vida, né? Tem gente que vai morrer”. Em outra ocasião ele havia dito em sua língua peculiar: “Haverão mortes (...) Paciência”. Bolsonaro é isso mesmo.

* Jornalista


Rolf Kuntz: No menosprezo à vida e à ciência Bolsonaro é coerente

Defendendo armas e combatendo radares, ele já desprezou a vida

Rainha da Inglaterra? Nada disso. Bolsonaro é muito diferente. Elizabeth II fala corretamente seu idioma, é informada, tem compostura e respeita os limites constitucionais. Nunca menosprezou a cultura, nem a ciência, nem a vida de seus súditos. O presidente brasileiro foi comparado à rainha, impropriamente, porque o ministro da Saúde tem dado pouca atenção a seus palpites.

Além disso, milhões de cidadãos apoiam o isolamento social, contrariando a orientação do assim chamado chefe de governo. Nem no Executivo suas palavras são levadas a sério, como nos primeiros tempos. No entanto, o capitão é a mesma figura, coerente no despreparo, na pobreza intelectual, no menosprezo à vida de seus concidadãos e no desprezo à ciência.

“Infelizmente algumas mortes terão”, disse o presidente, em seu dialeto, no dia 27 de março. “Paciência, acontece, vamos tocar o barco”, acrescentou. Segundo ele, as consequências do esfriamento econômico seriam “mais danosas do que o próprio vírus”. Traduzidas para o português corrente, essas palavras só podem significar: as mortes de alguns milhares de pessoas, nesta altura, são preferíveis às perdas de produto e renda, à quebra de algumas empresas e ao provável aumento do desemprego. Que as perdas econômicas sejam superáveis, ao contrário das perdas de vidas, parece ter pouca ou nenhuma importância para sua excelência.

Esse menosprezo à vida alheia foi novamente exibido, em Brasília, dois dias depois. “Vamos enfrentar o vírus com a realidade”, propôs o presidente. “É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”, continuou. E então? Se todos morrerão um dia, será isso um motivo para atravessar a rua sem cuidado ou para jogar bituca de cigarro num posto de gasolina? Ele falou, enfim, como se a certeza da morte como destino final de cada um tornasse a vida um traste sem valor. Detalhe interessante: esses comentários foram feitos durante um passeio em Brasília, no meio de um ajuntamento, situação propícia ao contágio, à multiplicação de doentes e, portanto, ao risco de morte para muitas pessoas.

Ninguém se espantará com essa atitude se lembrar o presidente Bolsonaro nos primeiros meses de mandato. Facilitar a posse e o porte de armas foi uma de suas prioridades. Desemprego elevado e economia emperrada nunca tiveram destaque em seus pronunciamentos, até recentemente. Muito mais importante era armar a população. Ele também se empenhou, em 2019, em relaxar os controles de segurança nas estradas, defendendo a remoção e a redução de radares. Propôs, além disso, a ampliação do limite de pontos por infrações de trânsito.

Mais armas de fogo, mais pontos na carteira e menor controle por meio de radares são claros sinais de desprezo à vida. Tão claros quanto a negação do risco de contágio e de morte pelo novo coronavírus. A comparação da covid-19 com uma gripezinha já virou assunto internacional. Motivo de escândalo fora do Brasil, essa atitude foi citada, num comentário reprovador, pelo primeiro-ministro da Grécia, Kyriákos Mitsotákis. Depois de apontar o erro do presidente brasileiro, Mitsotákis lembrou a proteção da vida como primeira obrigação de seu governo.

Segundo Bolsonaro, a maioria das pessoas precisa trabalhar, muitas delas sem perder um dia. É verdade, mas hoje é preciso, em primeiro lugar, proteger a vida dessas pessoas. É obrigação do Estado. Com alguma demora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, assumiu essa tarefa e montou, com sua equipe, um plano de ajuda aos trabalhadores mais vulneráveis e a seus empregadores. O plano pode ter falhas, mas é uma resposta séria à emergência. O governo pouco fez em 2019 para desemperrar a economia e criar empregos. Não por acaso o produto interno bruto (PIB) cresceu apenas 1,1%, taxa menor que a do ano anterior, 1,3%. Mas a equipe econômica se dispôs, enfim, a enfrentar a pandemia, dando atenção aos trabalhadores e suspendendo a arrumação fiscal, com apoio do Congresso.

E o presidente, por que se mostra tão interessado, afinal, pela saúde da economia, depois de haver negligenciado o assunto no ano anterior? Pode ser difícil uma resposta precisa, mas há uma explicação pelo menos compatível com seu perfil: além de atender a pressões empresariais, ele tenta reverter o desgaste político, preocupado com seu grande objetivo pessoal, a reeleição.

O presidente Bolsonaro também é coerente ao desprezar a ciência. O desprezo se manifesta quando ele se opõe ao isolamento social, contrariando a experiência estrangeira, assim como as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Fica também evidente quando ele insiste em difundir o uso da cloroquina. A substância tem sido usada em casos graves, mas faltam dados sobre sua eficiência para outros pacientes. Além disso, cardiologistas apontam efeitos colaterais, com risco de morte. Esse Bolsonaro é aquele mesmo empenhado, em 2019, em negar as informações do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O presidente de hoje, enfim, é o mesmo das queimadas, da recusa da ciência e da guerra à cultura.

*Jornalista


Rolf Kuntz: Se governar atrapalha a reeleição, melhor mesmo é evitar esse risco

O critério é claro: baixaria é permitida, mas cuidar de reformas pode ter custo político

Quarta-Feira de Cinzas poderá ser difícil, mas a grande ressaca virá uma semana depois, principalmente para os mais sóbrios, quando sair o balanço econômico do primeiro ano do governo Bolsonaro. Todas as prévias apontam crescimento abaixo de medíocre, parecido com o de 2018 ou até inferior ao desse ano infeliz, quando a crise no transporte e a incerteza política interromperam uma recuperação promissora. Algum desfile extemporâneo poderá chamar a atenção, no início de março, mas o mais fascinante será ouvir as explicações de Brasília sobre as contas nacionais de 2019.

Não se esperam novidades animadoras com a divulgação, no dia 4, do produto interno bruto (PIB) do ano passado. Segundo a prévia mais confiável, produzida pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), o PIB cresceu apenas 1,2%, pouco menos que no ano anterior, quando o avanço chegou a 1,3%. O presidente e seus auxiliares parecem conformados com os números pífios do começo de mandato. Mas o chefão do Planalto já se mostra nervoso, segundo se comenta em Brasília, com o risco de um novo fiasco em 2020, ano de eleições municipais e de construção de uma base para a busca de a reeleição presidencial.

Baixaria está longe de ser problema para o presidente, pelo menos diante de seus eleitores mais fiéis e dos apoiadores no charco digital. Esse comportamento, levado a novo recorde com as ofensas à jornalista Patrícia Campos Melo, pode ser visto como ponto positivo por esse público. Mas até esse auditório poderá ficar inquieto e menos favorável se a economia continuar em marcha lenta e o dinheiro permanecer curto. Por enquanto, os mais otimistas contam como feito importante a redução do desemprego.

Mas a redução, em um ano, foi de 11,6% para 11% da força de trabalho, com elevação para 11,8% durante o trajeto (no terceiro trimestre de 2019). A taxa média de desocupação recuou de 12,3% em 2018 para 11,9% no ano passado. Considerados só os extremos, os desocupados passaram de 12,1 milhões para 11,6 milhões, com melhoras muito limitadas no quadro geral.

No trimestre final de 2019, os trabalhadores subutilizados (os desocupados, os subocupados por insuficiência de horas e os pertencentes à força de trabalho potencial) eram 26,2 milhões. Em um ano houve redução de apenas 2,5%. Os informais chegaram a 38,4 milhões, 41,1% da população ocupada. Desde 2016 foi o maior número de pessoas ocupadas sem documentação.

As péssimas condições do mercado de trabalho combinaram com o baixo ritmo da atividade econômica, assunto desprezado pelo governo durante a maior parte do ano. Os primeiros incentivos entraram em vigor em setembro, com a liberação de recursos do Fundo de Garantia e do PIS-Pasep. Houve alguma aceleração do consumo, com reflexo moderado na indústria, mas em dezembro a atividade perdeu impulso, segundo os dados conhecidos até agora.

Com a perda de impulso no fim do ano e poucos sinais de reação em janeiro, economistas do mercado reduziram, neste mês, suas projeções de crescimento econômico em 2020. Na pesquisa Focus, publicada semanalmente pelo Banco Central (BC), a mediana das projeções de aumento do PIB caiu em quatro semanas de 2,31% para 2,23%. Para o período entre 2021 e 2023 essa estimativa está há muito tempo estacionada em 2,5% ao ano. Até esse número é um tanto otimista, porque envolve o pressuposto de um crescimento em torno do potencial da economia brasileira.

Há vários anos a expansão tem ficado bem abaixo desse padrão. Há até razões muito boas para se perguntar se o potencial será esse mesmo. Com tantos anos de investimento insuficiente para cobrir a depreciação do capital fixo – máquinas, equipamentos, instalações e infraestrutura –, a capacidade de crescimento pode ter diminuído. Nem se fale nas condições da mão de obra, agora dependentes, em boa parte, do ministro Abraham Weintraub, um dos principais, e mais inquietantes, indicadores de qualidade do governo Bolsonaro.

Dúvidas sobre o avanço da pauta de ajustes e reformas inquietam o mercado, como informou o Estado na quinta-feira. Já se fala em medidas para romper o teto de gastos. Multiplicam-se os atritos com o Congresso, agravados pelo general Augusto Heleno quando acusou parlamentares de chantagear o Executivo. Mas o fator mais importante é o horror do presidente às funções de governo. Ocupado quase só com a reeleição, ele tenta adiar ou evitar todo ato administrativo com potencial custo político.

O Congresso ainda espera o projeto da chamada reforma administrativa. Talvez seja enviado depois do carnaval. A hesitação, assim como as intervenções presidenciais em assuntos como esse e a reforma tributária, só se explica pelo interesse eleitoral. Por isso, e sem argumento técnico, ele rejeitou a ideia (ruim, a propósito) de recriação da CPMF. Por isso ele se opôs à inclusão da cerveja na base do “imposto do pecado”. Governar dá galho, deve pensar o presidente. Pode estar certo, mas é a função presidencial. E governar é diferente de cometer baixarias, assinar medidas provisórias inaceitáveis e dar prioridade à reeleição desde o primeiro ano de mandato.


Rolf Kuntz: Novo elogio a torturador reforça sinais de alarme

As falas destemperadas compõem uma figura mal ajustada ao Estado democrático e de direito

O presidente Bolsonaro fala o que pensa, disse o ministro Onyx Lorenzoni. Mas ele realmente pensa o que fala? Pensa mesmo, tudo indica, e por isso é preciso levar muito a sério os sinais de alarme. Os brasileiros comprometidos com os direitos fundamentais devem olhar com muito cuidado quem defende uma ditadura, mistura religião com instituições e põe um torturador entre os heróis da Pátria. O cuidado deve ser maior quando essa pessoa é um chefe de governo. Essa figura mais uma vez homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado em 2008 depois de um processo por acusação de tortura. O presidente o chamou de “herói nacional”, na quinta-feira, antes de receber sua viúva no Palácio do Planalto. Esse herói, segundo ele, “evitou que o Brasil caísse naquilo que a esquerda hoje em dia quer”. O presidente encerrou o contato com a imprensa, no entanto, sem explicar se um novo DOI-Codi será necessário para conter essa esquerda de “hoje em dia”.

Entre 1970 e 1974 Brilhante Ustra chefiou em São Paulo o DOI-Codi, um dos mais sinistros aparelhos de repressão da ditadura, conhecido pela barbárie de seus interrogadores e de seu líder. Raramente citado, o nome completo desse aparelho era Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna. Criado em 1970, esse órgão sucedeu à tenebrosa Operação Bandeirante (Oban). O coronel foi reconhecido e apontado publicamente por várias de suas vítimas, incluídos a deputada e artista Bete Mendes e o então vereador Gilberto Natalini, preso no DOI-Codi em 1972, aos 19 anos, quando estudante de Medicina.

Bolsonaro já se declarava admirador de Brilhante Ustra muito antes de chegar à Presidência da República. Ainda deputado, prestou culto à memória do torturador ao declarar seu voto, em 2016, a favor da cassação do mandato da presidente Dilma Rousseff.

Encerrada oficialmente há mais de três décadas, a ditadura militar e seus valores continuam presentes nos embates políticos do atual presidente da República. Sem poder agir exatamente como os governantes dos anos de chumbo, ele tenta usar do modo mais autoritário os meios disponíveis. Às vezes tem de aceitar um resultado incompleto.

Teve sucesso parcial, por exemplo, quando mandou o presidente do Banco do Brasil suspender um anúncio e demitir o diretor de marketing. O presidente do banco obedeceu. Mas Bolsonaro foi contido pelo ministro da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto Santos Cruz, quando tentou regular toda a publicidade oficial. Isso violaria, lembrou o ministro, a Lei das Estatais. Os desentendimentos continuaram, em outros temas, e Santos Cruz foi demitido.

Bolsonaro também teve sucesso quando retardou com um telefonema um reajuste de preços da Petrobrás. A direção da estatal agiu como se estivesse subordinada, na rotina administrativa, ao presidente da República. A empresa ainda voltou ao noticiário político há poucos dias. Foi quando rompeu contrato com o escritório de advocacia do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, envolvido em polêmica com o presidente da República. Coincidência notável? Bolsonaro negou haver ordenado o rompimento, mas acrescentou: “Eu havia falado já, nem era para ter esse contrato”.

O presidente havia criticado a OAB por ter defendido o sigilo profissional do advogado de Adélio Bispo, autor do atentado ao candidato Bolsonaro em Juiz de Fora. Ao falar sobre o assunto, no fim de julho, o presidente disse saber como havia desaparecido, em 1974, o estudante Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, pai de Felipe Santa Cruz. Segundo a versão de Bolsonaro, o pai do presidente da OAB foi morto por seus companheiros da Ação Popular.

A versão oficial, endossada por fontes militares, por depoimento público de um integrante da repressão e consagrada em decisão judicial, é outra: o pai do atual presidente da OAB foi assassinado pelo DOI-Codi no Rio de Janeiro. Seu corpo acabou incinerado numa usina de açúcar fluminense. Não há registro, segundo a Comissão da Verdade, de participação do estudante na luta armada.

Sem os poderes de um governante militar, Bolsonaro se arranja como pode, contestando, por exemplo, as informações do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre o desmatamento da Amazônia. Tendo atacado publicamente o diretor do Inpe, Ricardo Galvão, o presidente recebeu a resposta pela imprensa. Galvão acabou demitido pelo ministro de Ciência e Tecnologia. Não deveria ter dado a entrevista, segundo o ministro. Mesmo sendo atacado abertamente?

O episódio foi classificado como “alarmante” pelo professor Douglas Morton, diretor do Laboratório de Ciências Biosféricas da Nasa, a agência espacial americana. Ao contrário de Bolsonaro, o Inpe e seu diretor dispensado tinham excelente reputação fora do País.

Bolsonaro tem mais poder sobre o Inpe do que sobre os meios de comunicação, mas nem por isso deixa de atacá-los e de tentar enfraquecê-los. Tendo assinado medida provisória para dispensar as empresas de capital aberto de publicar balanços em jornais, fez questão de explicar em pronunciamento público sua decisão: “No dia de ontem retribuí parte daquilo que (sic) grande parte da mídia me atacou”. Formulada em bolsonarês, a frase é sintaticamente defeituosa, mas a mesquinhez de seu conteúdo é clara. A medida pouco ou nada afetará grandes jornais, mas prejudicará muitos outros, pequenos, principalmente do interior.

Todos esses arroubos autoritários, ainda limitados pela Constituição, combinam com as homenagens ao coronel Brilhante Ustra, um torturador elevado a herói na retórica de Bolsonaro. Não são meros deslizes verbais. São significativos e compõem uma figura mal ajustada à democracia e ao Estado de direito. Até onde seus apoiadores mais entusiasmados, incluídos alguns grandes empresários, estarão dispostos a seguir essa figura? Essa é a questão mais preocupante.

* Jornalista