ricardo salles
Míriam Leitão: O Brasil pode ser o verde da Terra
Não há palavras que desatem os atos de Bolsonaro e de Ricardo Salles na área ambiental. O Brasil vai se sentar na reunião de hoje como vilão, quando poderia ser respeitado por ser o país que é: uma potência ambiental, dono da maior parte da maior floresta tropical, o G1 da biodiversidade. O presidente brasileiro prometerá aumentar a fiscalização mas, na verdade, ela está sendo desmontada. A carta dos servidores do Ibama mostra que eles estão sofrendo assédio. O ministro os impede de trabalhar. É também por cumprir seu dever que Alexandre Saraiva foi exonerado da Superintendência da Polícia Federal no Amazonas.
Ibama, ICMBio, Funai estão sob ataque do presidente e do ministro do Meio Ambiente. O INPE foi ameaçado. O projeto de Bolsonaro de interferir na Polícia Federal deu certo e a exoneração de Saraiva é prova cabal. Com esse histórico, Bolsonaro não poderá falar que vai aumentar as ações de comando e controle na região. Não será crível.
Uma alta autoridade do governo brasileiro foi a uma reunião com um grupo de embaixadores dos Estados Unidos e países europeus. Várias autoridades foram chamadas no último mês. O relato do que foi dito lá mostra que não adianta ter conversa para inglês ver.
– Para minha surpresa o tom dos embaixadores foi duríssimo. A gente tem que agir rápido, a narrativa de que eles destruíram as florestas deles, e nós, não, é muito ruim. Se a conversa for pedir dinheiro, não vai pra frente. É preciso pôr em duas páginas quais são os compromissos para os próximos dois anos. Tem que levar algo concreto. Essa é a única forma de apaziguar e virar essa página — afirmou a autoridade.
O governo brasileiro foi avisado. Pelos embaixadores, pelos gestores dos grandes fundos globais, pelos bancos privados brasileiros, pelas grandes empresas, pelo agronegócio exportador. Bolsonaro insiste em seu projeto e tem ajuda. Salles é a motosserra. Ele diariamente derruba uma pedaço do edifício regulatório brasileiro com portarias e instruções normativas. Usa o espaço infralegal para conspirar contra as leis ambientais do país. Exatamente como avisou que faria naquela famosa reunião ministerial. A instrução normativa que obriga o fiscal a submeter a multa que aplicou a um superior hierárquico foi apenas uma de inúmeras normas. O vice-presidente Hamilton Mourão tem sido usado como um biombo. Ele conversa, ouve, impressiona bem, mas é deixado de lado. E, quando cobrado por algum interlocutor, diz que não tem poderes.
Salles usa também o truque de se apropriar de termos para impressionar. Quando ele fala de “bioeconomia”, não está se referindo ao conceito desenvolvido por alguns especialistas, como o climatologista Carlos Nobre, para defender uma nova economia a partir da nossa rica biodiversidade. A “bioeconomia” que Salles quer é a dos madeireiros e garimpeiros ilegais.
Quando Bolsonaro falar de regularização fundiária, os governantes estrangeiros devem saber que ele está se referindo aos projetos de legalizar a grilagem, como os que já apresentou ao Congresso. Quando falar em apoio às populações indígenas, ele está se referindo ao projeto já enviado ao Congresso que permite mineração, exploração de petróleo e pecuária em terras indígenas.
Apesar de tudo, a sociedade brasileira tem encontrado seu caminho para falar com o mundo. A Carta dos Governadores é resultado de lenta costura entre os chefes de executivo estaduais, iniciada pelo governador Renato Casagrande, do Espírito Santo. Na carta, eles fazem valer o princípio federativo. Lembram que representam mais de 90% do território nacional, propõem aumentar a “ousadia das NDCs”, (as metas nacionais), e dizem que os estados possuem fundos e mecanismos criados para “responder à emergência climática”.
Sugerem uma parceria para deter o desmatamento e para restaurar. Lembram que será preciso “reflorestar uma área do tamanho do território dos Estados Unidos” e, completam, “O Brasil pode ampliar o verde da Terra não apenas na Amazônia, mas também em biomas de grande capacidade de captura de carbono, inestimável biodiversidade e relevância socioeconômica como o Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e o Pantanal”. Os governadores entenderam. A mudança climática é também a oportunidade da nova economia. É o “green new deal”, um tempo aberto pra nós.
Maria Cristina Fernandes: Mentiroso e cínico
Se falhar na Cúpula do Clima, Bolsonaro se vitimizará com floresta e vacina
A quem interessar possa na turma de censores da Lei de Segurança Nacional, ele tem 84 anos, uma única dose da vacina da AstraZeneca e usa os dois atributos para definir a participação do presidente Jair Bolsonaro na Cúpula de Líderes sobre o Clima.
Ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) e ex-ministro do Meio Ambiente, Rubens Ricupero até aceita que o estrago poderia ser maior se Ernesto Araújo ainda fosse o chanceler. Não acredita, porém, que a mudança no tom convença o mundo na conferência virtual promovida pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a partir de hoje.
Para sustentar a primeira de suas adjetivações, Ricupero baseia-se na análise, feita pelo “Observatório do Clima”, da carta enviada pelo presidente Jair Bolsonaro para Biden. O aludido compromisso brasileiro com o combate à mudança do clima e com o desenvolvimento sustentável é desmontado em duas tacadas:
O desmatamento na Amazônia teve a maior elevação percentual do século em 2019 (34,5%) e, em 2020 o Brasil liderou, mais uma vez, a destruição de florestas primárias do mundo. É esse desmatamento, mais do que o uso de combustíveis fósseis, que leva o país a ter a quinta maior participação mundial para o efeito estufa;
A exemplo do que aconteceu no Orçamento, a nova proposta de redução na emissão de gases está baseada numa pedalada. O governo elevou o nível de emissões de 2005 em 700 milhões de toneladas para que possa atingir a meta de 43% de redução em 2030 emitindo 400 milhões de toneladas de gás carbônico a mais do que havia prometido.
Fundamentada a mentira, vem o cinismo. É um atributo adquirido. Bolsonaro não foi o único a fazer vista grossa ao desmatamento, mas foi o primeiro a defendê-lo. Só mais recentemente, diz Ricupero, a necessidade de salvar a imagem do Brasil, do ministro Ricardo Salles e a sua própria, mudou o discurso sem mexer na prática.
É com esse cinismo que reclama US$ 1 bilhão para pagar diárias a policiais da Força Nacional de Segurança. Não apenas despreza o desmonte de órgãos de fiscalização como o Ibama, como ainda cria um subterfúgio para o fato de que o Brasil, longe metas de redução de desmatamento, tem acesso vetado aos R$ 2,9 bilhões doados pela Noruega e pela Alemanha adormecidos no Fundo Amazônia no BNDES.
Como este binômio da mentira e do cinismo já correu o mundo, o embaixador aposta que o presidente não vai convencer ninguém. Até porque Estados Unidos, China, Reino Unido e União Europeia vão anunciar metas mais ambiciosas para amarrar os compromissos a serem acordados em Glasgow, em novembro, quando acontece a 26ª Conferência do Clima das Nações Unidas. Se as águas de março não foram suficientes para evitar que se registrasse o pior desmatamento deste mês dos últimos dez anos, é de se esperar que depois da seca que está por começar a coisa só piore.
O Brasil não é o único a chegar com o zoom embaçado na conferência de hoje. A Austrália e o Canadá, diz Ricupero, também estão aquém das metas acordadas no acordo de Paris, de 2015. Nenhum deles, porém, tem um governo que dependa tanto de uma recauchutagem em sua imagem externa. A repercussão da carta de Bolsonaro a Biden já mostrou que não vai dar. De Greta Thunberg aos senadores americanos que alertaram Biden sobre as pretensões bolsonaristas, passando pelo #ForaSalles que mobilizou as redes sociais no Brasil ao longo do feriado, reina o ceticismo.
Se Biden quer lustrar seu mandato, interna e externamente, com um certo ideário de “liderança moral” em pautas como meio ambiente e democracia, Bolsonaro se vale do discurso recauchutado para tentar sobreviver. Não abre mão do que Ricupero chama de agro-lumpen, essa base de madeireiros, grileiros e garimpeiros que, ao contrário do que diz o governo, não devastam porque são pobres mas porque querem ficar mais ricos. Estimativa do “Observatório do Clima” indica que o hectare desmatado pode custar até R$ 2 mil. A devastação brasileira não é uma soma de pequenas áreas mas o ajuntamento de blocos de 100 hectares para cima.
Mal-sucedido, Bolsonaro não capitulará. Vai se valer do cerco mundial para reforçar o discurso de vitimização que ainda ecoa entre seus seguidores. A cartada ambiental na política externa é uma boia de salvação na qual o presidente tenta se agarrar para não ser engolfado por uma conjuntura interna cada vez mais incontrolável. Ao entregar o Orçamento para o Congresso estraçalhar sem ganhar alívio concreto na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, Bolsonaro mostrou uma cartucheira com pouca munição.
O levantamento que a CPI fará sobre atos e atitudes que marcaram o desleixo de seu governo com a vacinação receberá dele a mesma resposta que se anuncia para os parceiros internacionais que se mantêm incrédulos em relação à sua conversão verde. Da mesma maneira que buscará convencer seus eleitores de que o Brasil ocupa a rabeira dos países que menos imunizaram sua população porque o mundo não vende vacina ao país, ficará tentado a usar a cartada do complô mundial contra o Brasil.
Tome-se, por exemplo, a declaração da vice-presidente americana Kamala Harris de que se, no passado, se fizeram guerras por óleo, as próximas o serão por água. Mas enquanto a contenda amazônica era com o presidente francês, Emmanuel Macron, ficava mais fácil para o presidente tentar sensibilizar "seu Exército". Com os americanos, a brincadeira de forte apache na foz do rio Amazonas é tiro n'água.
Mais do que enquadrar o Brasil na nova ordem climática mundial, os Estados Unidos avançam sobre a maior fonte de divisas externas do país. A China importou 85% a menos da soja brasileira em relação a março do ano passado. Foi o patamar mais baixo de venda neste mês em quatro anos. Enquanto isso, os Estados Unidos tiveram uma alta nas vendas do grão para a China de 320% no mesmo período.
Pode ser apenas o reequilíbrio de uma situação que foi muito favorável ao Brasil ao longo de toda a pandemia, período em que a China descumpriu acordo que prevê aumento nas compras de produtos agrícolas dos EUA. Mas se a uma economia estagnada, com desemprego e inflação em alta, se somar uma perda de divisas do único setor que tem-se mantido incólume à tragédia nacional, o #ForaSalles já não vai mais dar conta de quem tem que sair.
Mariliz Pereira Jorge: Bolsonaro é a raposa
Não adianta tirar Salles se Bolsonaro vive com a boca cheia de penas
Jair Bolsonaro, que não tem o dom da oratória, terá que se esforçar ao discursar na Cúpula de Líderes sobre o Clima, na tentativa de provar que o governo brasileiro não está destruindo o próprio quintal. O presidente apresentará um plano cheio de nomes bonitos, como "zoneamento ecológico e econômico", "comando e controle", "regularização fundiária", "promoção da bioeconomia".
Na prática, a agenda do dia é acabar com o Ibama e o ICMBio e substituí-los pelo que já vem sendo chamado de "milícia ambiental", permitir que reservas possam ser exploradas pela iniciativa privada, travar as demarcações de terras indígenas, derrubar árvores, transformar a floresta em pasto e deixar passar a boiada. É a festa do gado.
A prova de que Bolsonaro não está preocupado com as cobranças é que Ricardo Salles ainda é titular do Meio Ambiente, porque apenas faz o que o chefe manda. Nesta quarta (21), véspera da abertura da cúpula, em que o Brasil já deveria chegar pedindo desculpas, o ministro falou a empresários como se fôssemos um exemplo a ser seguido.
Pela sua disponibilidade de tempo, parece estar sem muito serviço. Com o filme mais queimado que a floresta Amazônica, Salles passou horas no Twitter arranjando confusão e retuitando mensagens de apoio que recebeu. Tretou com a cantora Anitta, desdenhou de Sônia Guajajara, importante líder indígena, alisou políticos governistas. Prioridades.
Cuidasse dos interesses da biodiversidade do país da mesma forma que se engajou em tentar mostrar que tem apoio político e popular, não teríamos que provar ao mundo que o governo brasileiro não é a raposa tomando conta do galinheiro. Mas a verdade é que não adianta tirar Salles se Bolsonaro também vive com a boca cheia de penas. Resta saber se não vai se engasgar numa delas a cada mentira que contar sobre os crimes que comete contra um de nossos maiores patrimônios.
Gabriela Prioli: Disfarçando a passagem da boiada
O risco do discurso sem prática
Era abril de 2020 quando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu "passar a boiada" e mudar regras ambientais enquanto a atenção da mídia e da população estava voltada para a Covid-19. Manter o descontrole da pandemia, por esse raciocínio, parecia ser bom negócio para o nosso desgoverno --no meio da gritaria, ninguém ouve os segredos ditos pelos cantos.
Se, no ano passado, o contexto internacional favorecia os arroubos de Bolsonaro, o mundo mudou. E não mudou só no Brasil, onde a CPI da Covid, ao enfraquecer Bolsonaro, aumenta o preço do centrão: o novo presidente americano, Joe Biden, fez da questão ambiental uma de suas principais plataformas. A preocupação é, em especial, com o Brasil. Poucos países foram citados nos debates presidenciais nos EUA.
O Brasil e a Amazônia apareceram como motivo de grande inquietação. O Itamaraty, recentemente livre de Ernesto Araújo, aconselha que a Cúpula do Clima seja uma virada de discurso e de prática. Nada mais difícil para um governo que se recusa a melhorar.
A preocupação, entretanto, não pode ser compreendida no singular. Há "preocupações" distintas quando se fala em meio ambiente. Há quem esteja de fato aflito com a preservação. Há, entretanto, aqueles para os quais a aparência de preservação vale mais do que a preservação em si. Para esses, uma mudança de discurso sem prática pode já ser suficiente, desde que convença os gringos.
Essa distinção entre ser e parecer é o que permite acomodar interesses e manter intacto o núcleo mais sensível das políticas de governo. A eventual mudança de tom assim, como em relação à pandemia, pode se dar na teoria para disfarçar a permanência na prática, desde que a aparência dure até o próximo ciclo eleitoral.
A aceleração das mudanças climáticas é um assunto multifacetado e de longo prazo, que depende de uma compreensão que leve em conta a realidade, o que não parece ser o caso da gestão Bolsonaro, o nosso exemplo de negacionismo.
Bruno Boghossian: Presidente é visto com desconfiança porque se orgulha de sua agenda antiambiental
Presidente é visto com desconfiança porque se orgulha de sua agenda antiambiental
Numa tarde de quarta-feira, Jair Bolsonaro enviou ao americano Joe Biden uma carta em que o Brasil se comprometia a acabar com o desmatamento ilegal até 2030. À noite, a Polícia Federal acusou o ministro do Meio Ambiente de dificultar uma operação contra a extração ilegal de madeira na Amazônia. No dia seguinte, o delegado que fez aquela investigação foi demitido.
Bolsonaro tenta convencer o mundo de que tem algum apreço pela preservação ambiental. Enquanto isso, ele mantém dentro de casa seu projeto para facilitar a devastação. O presidente pode até levar à Cúpula de Líderes sobre o Clima um discurso para tentar amenizar sua imagem de vilão internacional, mas o que se pode esperar é uma conversa para uma boiada inteira dormir.
O governo brasileiro é visto com desconfiança porque sempre se orgulhou de sua agenda antiambiental. Na campanha de 2018, Bolsonaro estudava subordinar o Ministério do Meio Ambiente ao Ministério da Agricultura, dizia a empresários que era preciso "vencer os problemas ambientais" e prometia afrouxar fiscalizações para acabar com uma tal "indústria da multa".
O Bolsonaro que agora deve apresentar compromissos genéricos para conter a devastação é o mesmo que já disse ser impossível acabar com o desmatamento ilegal. "É cultural", teorizou, quando a Amazônia queimava. Em seu discurso na ONU no ano passado, o presidente mentiu ao fazer propaganda de uma suposta "política de tolerância zero com o crime ambiental" em seu governo.
Às vésperas do encontro do clima, o governo faz questão de manter a reputação. Nas últimas semanas, o ministro Ricardo Salles defendeu madeireiros e dificultou a aplicação de multas ambientais em ações de fiscalização. Nesta quarta (21), ele tirou a tarde para bater boca com a cantora Anitta nas redes sociais.
Bolsonaro se sentiu protegido enquanto Donald Trump esteve no poder e aceitou cultivar a fama de pária global. O jogo mudou, mas o presidente continuará a ser esse pária.
Maria Hermínia Tavares: Na Cúpula dos Líderes sobre o Clima, só promessas, nem pensar
Se depender do ex-capitão, os compromissos serão menos palpáveis do que a fumaça das queimadas
Sob pressão, o governo mudou o discurso. O mesmo mandatário que, em 2019, afirmou ser a questão ambiental de interesse exclusivo de "veganos que só comem vegetais" [sic], escreveu ao homólogo Joe Biden dizendo-se disposto a eliminar o desmatamento ilegal até 2030. Colaborou na redação o assim chamado ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, unha e carne dos madeireiros que namoram a ilegalidade, com os quais, por sinal, confraternizou logo depois de terem organizado violenta manifestação contra o Ibama.
Em dois anos e tanto de mandato, o negacionista da mudança climática disparou uma enxurrada de medidas que enfraqueceram os organismos e instrumentos de monitoramento, controle e penalização de crimes ambientais. Ibama, Inpe, CNBio, Funai, todos perderam lideranças, quadros e recursos financeiros, enquanto as multas despencaram vertiginosamente.
Estudos mostram que acordos internacionais —de variada natureza— podem ser instrumentos aptos a induzir governos a fazer a coisa certa: sempre e quando logrem impor condições aos participantes, estabelecer mecanismos que estimulem o seu cumprimento e tornem crível a ameaça de punição aos transgressores. Ou seja, quando são capazes de criar os chamados mecanismos de trancamento (lock in), facilitando o respeito aos compromissos negociados e sua defesa diante dos opositores domésticos.
A cláusula democrática na União Europeia é sempre citada como poderoso exemplo de trancamento que ajudou a institucionalizar sistemas livres e competitivos na Espanha, em Portugal e na Grécia, recém-emersos de longas e sangrentas ditaduras.
Perversamente, a adesão a acordos internacionais pode ser uma cortina de fumaça para governos mal-intencionados, piorando o que era já um horror. Há uma década, os cientistas políticos americanos Peter Rosendorff e Peter Hollyer mostraram que as violações de direitos humanos cresciam quando ditadores assinavam pactos multilaterais contra a tortura.
Se depender do ex-capitão, as seis páginas enviadas a Biden e as promessas que fará nesta quinta e sexta serão ainda menos palpáveis do que a fumaça das queimadas. Não é demais lembrar que o agronegócio mais atrasado, os desmatadores ilegais e os invasores de terras indígenas são adeptos do ex-capitão e com ele compartilham as mesmas crenças retrógradas de como lidar com o patrimônio ambiental do país e os povos da floresta.
Deste governo só se pode aceitar —e olhe lá!— compromissos definidos, prazos e metas claras e mensuráveis que possam ser monitoradas pela sociedade e seus representantes políticos.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Vinicius Torres Freire: Realidade ruim da fome, do ambiente e do Orçamento testam mentiras de Bolsonaro
Não será fácil ocultar realidade no preço da comida, no ambiente e do Orçamento
As mentiras de Jair Bolsonaro sobre a epidemia de Covid-19 até aqui foram de algum modo toleradas por cerca de 30% do eleitorado, que considera o desempenho do presidente “ótimo” ou “bom”. A inflação anual da comida passou de 20%, a maior desde 2003, mas a carestia também parece não ter abalado o ânimo daqueles 30%. Mesmo em assuntos de vida e morte, a realidade dura não afeta o prestígio de Bolsonaro para 3 de cada 10 brasileiros adultos ou algo assim.
Haverá em breve mais testes, o que em outro ambiente mental ou político seriam choques de realidade: inflação persistente, desastre ambiental, penúria e rolos derivados da gambiarra do Orçamento, a CPI e o meio milhão de mortos. Bolsonaro ainda vai passar com nota 30%?
A Cúpula do Clima será o começo do teste do programa de destruição ambiental do governo e mentiras associadas. Bolsonaro não vai conseguir enganar o governo americano, que de resto não está sozinho nisso. Clima é um raro assunto em que EUA e China estão em acordo razoável. Caso não tome atitude alguma, Bolsonaro terá problemas na política mundial, com repercussões econômicas crescentes, o que vai incomodar boa parte dos donos do dinheiro grosso daqui.
A alternativa é demitir Ricardo Salles, vulgo “Boiada”, e mudar a política. Bolsonaro entraria assim em conflito com seus amigos grileiros, desmatadores, mineradores ilegais etc. Teria também de inventar desculpa para suas falanges fanáticas por ter cedido ao globalismo ambiental.
O governo e o Congresso-centrão acertaram uma gambiarra no Orçamento de 2021 (aliás, o que vale um Orçamento aprovado depois de transcorrido 30% do ano?). Essa mumunha evita o risco de conflito político maior e de processo imediato contra Bolsonaro. Mas mumunhas não cobrem buracos. O governo vai cortar no osso. Já corta: ora dizima as bolsas de pesquisa. Vai ser pior. Se não fizer a mutreta de transferir o pagamento de certas despesas para 2022, vai paralisar alguns serviços. Talvez a maior parte da população nem note, dado o estado de miséria ou obnubilação em que já vive. Mas a gambiarra e seus efeitos vão ficar evidentes para quem tem o luxo de poder prestar atenção no buraco em que o país vai se enfiando cada vez mais.
A inflação da comida anda em torno de 19% por ano desde o trimestre final de 2020. Ou seja, quem receber o auxílio emergencial, já reduzido, ainda por cima perdeu um quinto do poder de compra em alimentos, em um ano. Além do mais, milhões não receberão ajuda alguma e a recuperação do emprego (muito bico) vai ser retardada pelo afundamento da economia pelo menos em março e abril.
Bolsonaro não é responsável por boa parte dessa carestia, mas ajudou a piorar a coisa, pois a baderna de seu governo mantém o dólar nas alturas. O atraso do pagamento do auxílio emergencial e o fato de que ainda não foram renovados os auxílios de emprego e para pequenas empresas, no entanto, são resultados da incompetência e da negligência de Paulo Guedes e do presidente. Para os dois, a epidemia estava “no finzinho”, em fins de 2020.
Há uma chance nada desprezível de a epidemia refluir bem a partir de julho, se a zona infecta que é o Brasil não produzir alguma nova variante assassina do vírus. Haverá dezenas de milhões de pessoas com sequelas da Covid, da educação arruinada e da miséria ampliada. Pode bem ser que os 30% não se importem com isso também. Até lá, pelo menos, a mentira perversa e lunática que é Bolsonaro vai passar por testes.
Celso Ming: O pária e a cúpula do Clima
Política ambiental desastrosa do governo Bolsonaro é alvo de críticas e pode produzir efeitos negativos para o País
O presidente Jair Bolsonaro comparece na condição de presidente de um país pária do clima à Cúpula de Líderes sobre o Meio Ambiente convocada pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que vai reunir líderes mundiais. Depende exclusivamente de Bolsonaro deixar essa condição e reconduzir o Brasil à linha de frente no combate ao desmatamento ilegal e à redução das emissões de dióxido de carbono (CO2), responsável pelo efeito estufa.
O encontro virtual será realizado nestas quinta e sexta-feira e terá por objetivo a preparação da 26ª Conferência das Partes sobre a Mudança Climática, a ser realizada em Glasgow, em novembro deste ano, com o objetivo de atualizar o Acordo de Paris, de 2015.
Há certa mudança na postura do governo brasileiro no enfrentamento dos problemas ambientais. A posição prevalecente nestes dois anos foi a de que as pressões internacionais para o combate ao desmatamento ilegal, mais do que motivação ideológica, são alimentadas por interesses comerciais e geopolíticos.
Como desculpa para deixar que continuassem as ações predatórias de garimpos, da derrubada de florestas e invasões de terras indígenas, Bolsonaro repetia que aqueles que destruíram impunemente fauna e flora da Europa e dos Estados Unidos não têm moral para agora cobrar a preservação da Amazônia e do Pantanal. Que governos, ONGs e instituições ambientalistas não se metessem em questões de soberania do Brasil.
Nas últimas semanas, Bolsonaro mudou de tom, pediu US$ 1 bilhão para reduzir em até 40% o desmatamento ilegal no prazo de 12 meses. Assim, o governo, que justificava com alegações soberanistas sua omissão nas questões ambientais, agora não vê mais inconveniente em receber dinheiro de potências estrangeiras para cobrir despesas no cumprimento de metas ambientais.
Por trás dessa mudança de postura está a influência de empresários da indústria e do agronegócio que vêm advertindo que o Brasil corre o risco de continuar perdendo grandes negócios e investimentos se continuar permitindo a destruição ambiental.
Relatórios e imagens sobre os desastres no Cerrado e na Amazônia correm o mundo e acirram as pressões para que países adotem represálias econômicas ao governo brasileiro. O desmatamento na Amazônia em março foi o maior em dez anos, segundo o Instituto Imazon.
As pressões de governadores brasileiros e de personalidades mundiais contra o desleixo ambiental do governo Bolsonaro também crescem todos os dias e pode produzir seus efeitos.
Por enquanto, nenhuma promessa sobre mudança concreta da política ambiental do governo merece credibilidade. Com as bênçãos de seu chefe, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, continua permitindo que os desastres ambientais se multipliquem. Dia 14, o superintendente da Polícia Federal do Amazonas, Alexandre Saraiva, acusou o ministro de acobertar os interesses dos responsáveis pela maior apreensão de madeira ilegal já acontecida no País e, por isso, foi exonerado de sua função.
Mais do que com discursos, Bolsonaro terá agora de convencer o mundo e também os brasileiros de que a preservação da Amazônia passou a ser objetivo de seu governo. Mas isso não acontecerá enquanto Ricardo Salles continuar passando sua boiada para o outro lado da cerca já desmatada.
Adriana Fernandes: Pontes ambientais fora de Brasília
'Boiada' de Bolsonaro e Salles deu protagonismo a governadores na política ambiental
A política antiambiental do governo Jair Bolsonaro, liderada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, arrastou o Brasil para o isolamento no cenário internacional, mas acabou servindo para fortalecer as pontes e o canal direto de diálogo dos Estados e municípios com os financiadores internacionais. A turma lá de fora, que tem o dinheiro na mão, e quer apostar em projetos de desenvolvimento sustentável e locais, via governos locais e agências de fomento regionais.
Esse movimento de articulação já estava em gestação antes de Bolsonaro, mas cresceu muito nos últimos dois anos no Brasil, no vácuo deixado pelo governo federal, que preferiu ignorar todos os alertas do prejuízo para a imagem do País e a economia do desmonte da política ambiental.
Bolsonaro e Salles, ao contrário, insistiram no plano de passar a “boiada” na legislação ambiental e, agora, com a troca de presidente dos Estados Unidos tentam contornar o prejuízo ao buscar dinheiro internacional para o combate ao desmatamento.
Só que ninguém acredita na mudança. A ponto de o presidente norte-americano, Joe Biden, ter sido bombardeado por cartas de governadores, ex-ministros, artistas brasileiros, americanos e britânicos que pediram o endurecimento da posição da Casa Branca com Bolsonaro na área ambiental, como mostrou reportagem do Estadão.
Os governadores foram ao ponto: têm fundos e mecanismos criados especialmente para responder à emergência climática, disponíveis para aplicação dos recursos internacionais. Antes, era o governo federal o protagonista e principal catalisador de atração do dinheiro internacional para o meio ambiente.
Um bom termômetro da força desse novo ambiente de financiamento pode ser testado, ao longo da próxima semana, no fórum internacional de desenvolvimento, organizado pela ABDE, a associação brasileira que reúne 31 dessas agências de fomento e bancos de desenvolvimento presentes em todo território nacional.
São bancos conhecidos como “de última milha”, que estão mais próximos dos problemas locais e atuam em parceria numa espécie de cascata em que o recurso vem dos financiadores internacionais e do setor privado nacional para uma aplicação direta na ponta.
Será uma reunião de cúpula das instituições de desenvolvimento do País e certamente o principal evento do ano sobre desenvolvimento, tanto do ponto de vista das lideranças políticas (alguns presidenciáveis), com participação de grandes nomes internacionais da área. Governadores, bancos de desenvolvimento do mundo inteiro, organismos multilaterais e economistas renomados. Mais do que nunca, a área precisa de dinheiro, mas também de bons projetos.
A número dois da ONU e ex-ministra do Meio Ambiente da Nigéria, Anima Mohammed, também falará no fórum.
A criação recente da Aliança Subnacional de Bancos de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe fortaleceu essa ponte. “É importante cuidar das emergências do presente, mas também planejar e preparar o futuro”, diz Sergio Gusmão Suchodolski, organizador do evento e presidente da ABDE.
Gusmão é hoje um dos principais nomes brasileiros lançando mão de ferramentas inovadoras de financiamento na área, utilizando modelos que fazem um mix de diferentes fontes de capital de maneira a mobilizar recursos para projetos atrelados ao tema da sustentabilidade. Ele coordenou, no ano passado, a primeira emissão de bônus sustentável, com DNA ambiental e social, no mercado externo feita por um desses bancos de “milha”, o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais.
Para Gusmão, o Brasil está atrasado: “O que eu sinto falta é uma estratégia de País com consistência. De começo meio e fim para o tema de desenvolvimento sustentável. Um caminho com ações concretas e que tragam recursos para o financiamento”.
Os Estados estão buscando se articular internacionalmente não só porque veem a urgência da agenda climática e de desenvolvimento sustentável, mas também pela preocupação com o impacto negativo do risco reputacional.
Os governadores querem se aproveitar da agenda positiva que Biden está liderando nessa área, catalisando contrapartidas concretas e linhas específicas para investimentos que usam instrumentos adequados para cada região do País. Esse tipo de articulação aconteceu em alguns Estados e capitais americanas durante o governo Trump.
Ninguém quer ficar parado e sofrendo com impacto negativo das políticas que saem de Brasília e afetam a todos. Está todo mundo “correndo atrás do prejuízo” porque ninguém acredita na capacidade de Salles, chamado pelos críticos de ministro do desmatamento, em conseguir atrair dinheiro de Biden. Os americanos sabem o que o governo brasileiro fez no verão passado e continua fazendo para prejudicar o combate pelos órgãos de fiscalização dos crimes ambientais.
Elio Gaspari: De Zappa@edu para Bolsonaro@gov
O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente
Presidente,
O senhor implica com os diplomatas profissionais e chega a ironizar suas boas maneiras. Como disse um colega, alguns arrumam melhor os talheres numa mesa que os pronomes numa frase. Escrevo-lhe com a autoridade de quem, no século passado, serviu como embaixador em postos para os quais o creme de barbear chegava por mala diplomática (Pequim, Hanói, Maputo e Havana). Eu evitava usar smoking, porque seria confundido com garçom.
Amanhã o senhor começará a participar da Cúpula do Clima e terá momentos difíceis. Acho que posso ajudar com uma ideia simples: deixe a diplomacia com os diplomatas profissionais. Teste-os, enunciando uma tolice. Quem concordar, profissional não é.
Na diplomacia, não há lugar para ganhadores nem para perdedores. Isso é coisa de militares. Às vezes o vencedor finge que perdeu e dá ao perdedor a chance de dizer que ganhou. Conversa de diplomata? Talvez o senhor esteja entre aqueles que consideram o americano Henry Kissinger um grande diplomata. Ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz, mas abandonou o Vietnã à própria sorte depois de massacrar parte de sua população numa guerra perdida. Eu vivi lá e sei o que houve. Grande marqueteiro, isso sim.
O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente. Depois de delirar na virtude de ser um pária, seu governo não deve apresentar contas. Sua carta ao presidente Joe Biden foi longa demais porque muita gente meteu a colher.
Nós já compramos causas perdidas. Apoiamos o colonialismo português na África, ficamos com os chineses de Taiwan, mesmo depois que os americanos se acertaram com a China. Votávamos nas Nações Unidas com Portugal por causa da pressão de meia dúzia de comendadores do Rio de Janeiro. Saímos dessa encrenca. Mais difícil foi aguentar as implicâncias com o restabelecimento de relações diplomáticas com a China. O senhor implicou com a vacina chinesa. Para quê?
Diplomatas consertam vasos quebrados desde os tempos coloniais. Eles sabem lidar com o ritmo e o tom nas crises. Na questão da Amazônia, o Brasil precisa apenas voltar a ser ouvido. Deixamos de sê-lo porque deliramos. A irracionalidade não é invenção nossa. Veja o caso dos Estados Unidos na Amazônia. No século XIX, eles queriam mandar para lá seus negros. No início do XX, Henry Ford delirou querendo transformar um pedaço da floresta em seringal particular. Décadas depois, o bilionário Daniel Ludwig teve uma ideia parecida. Deliraram, deram-se mal e foram-se embora.
Existe um espaço enorme para negociarmos projetos relacionados com a Amazônia. Para um exportador de grãos que compete conosco no mercado internacional, vossa política ambiental é um presente.
Pelo que sei, há malandraços oferecendo pontes com a Casa Branca. Não caia nessa. O presidente Biden tem um jeitão de vovô, mas conhece Washington. Para seu caderno de notas: em abril de 1975, as tropas do Vietnã do Norte estavam entrando em Saigon, e discutiam-se recursos para resgatar os vietnamitas que haviam ajudado os americanos. O então senador Biden avisou:
— Voto qualquer quantia para tirar os americanos, mas não quero me meter com operações para retirar vietnamitas.
Eu servi lá e nos Estados Unidos. Sei quanto isso custou aos dois povos.
Atenciosamente,
Ítalo Zappa.
Míriam Leitão: Os vários pontos de atrito em Brasília
O governo usou ontem a tática de tentar adiar a instalação da CPI para continuar seu bombardeio ao possível relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL). O grupo dos sete senadores, de oposição e independentes, já está trabalhando na estrutura dos trabalhos e na lista de possíveis convocados. O ex-ministro Pazuello pode ir até mais de uma vez. Primeiro, como testemunha, depois, como investigado. Em outra frente, parlamentares e embaixadores se reuniram para discutir a cúpula do clima. O cantor Caetano Veloso compareceu, como representante da sociedade civil, e deu um recado direto aos diplomatas dos Estados Unidos e países europeus. “Salles é o antiministro e este governo ataca a Amazônia.”
Os dias estão intensos em Brasília nesta semana, com um feriado no meio e uma agenda lotada. A instalação da CPI se desdobra em várias reuniões e negociações sobre a ordem dos trabalhos e dos convocados. “Não temos tempo a perder”, disse o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Ele acha que tem que começar pelos ex-ministros da Saúde. Mas há na CPI quem defenda que se chame primeiro os cientistas para mostrar, com dados, como chegamos até aqui e quais são os riscos. A convocação de Paulo Guedes é a dúvida do momento. O ex-ministro Pazuello pode ser convocado mais de uma vez, explicou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Ele pode falar primeiro como testemunha. Depois, com o andar da CPI, pode ser novamente convocado, mas como investigado.
Neste início de semana, em que ocorrerá a cúpula do clima, o procurador Lucas Furtado, do MP junto ao TCU, fez uma representação para que o tribunal requeira junto à Casa Civil o afastamento do ministro Ricardo Salles. Essa seria uma medida cautelar até que o tribunal decida sobre várias representações já apresentadas mostrando os erros, desvios de função e políticas danosas ao meio ambiente impostas pelo ministro.
Numa terceira frente o governo negociava o Orçamento. Ou melhor, era pressionado. Se adotasse a estratégia proposta pelos técnicos do Ministério da Economia, ficaria mais fraco no Congresso. A saída arquitetada é vetar partes, preservar a maioria das emendas parlamentares e liberar despesas do controle do teto. Ou seja, está sendo feita uma operação no Frankenstein orçamentário de 2021, para preservar emendas, com medo de uma reação dos parlamentares em ambiente já tenso com a CPI. Ontem, em uma live da XP Investimentos, a ministra Flávia Arruda, da Secretaria de Governo, falou em R$ 100 bilhões a mais fora da meta de primário. Depois, recuou e disse que não havia recebido as contas.
No próprio grupo de oposição mais os independentes há dúvidas. O senador escolhido para ser o presidente da CPI é definido por um senador como “imprevisível”. Esse parlamentar diz que o grupo dos sete na verdade é seis mais um. Sobre o possível relator, Renan Calheiros, ontem foi dia de ataques da milícia digital contra ele. O argumento dos bolsonaristas de que ele seria suspeito por ser pai do governador de Alagoas é fácil de ser rebatido, segundo me disse um dos parlamentares. “A CPI desde o começo foi para investigar as origens, causas e omissões do governo que fizeram o país chegar onde está. O foco é esse”, disse.Ouvi também o senador Randolfe Rodrigues. Ele diz que não há razão para adiar o início dos trabalhos e afirma que o ataque contra Calheiros veio de endereço certo:— O ataque vem das milícias bolsonaristas nas redes sociais e é coordenado diretamente do gabinete do ódio por Carlos Bolsonaro. Eles querem atrasar para tentar desgastar ao máximo o senador Renan Calheiros.
Randolfe esteve em reunião com os embaixadores dos EUA, da União Europeia, Alemanha, Noruega e do Reino Unido para discutir a cúpula do clima e os acordos com o Brasil. Além dele, estavam o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) e o senador Jaques Wagner (PT-BA) e representantes da sociedade civil. No meio, Caetano Veloso.
— A reunião era para deixar claro que somos a favor de recursos para o Brasil, mas queremos acompanhar a aplicação desse dinheiro, e que o dinheiro pode ir também para estados e municípios. Mas quem falou de forma mais clara foi o Caetano. Ele definiu Salles como o antiministro do Meio Ambiente, lembrou que este governo é negacionista e tem o objetivo de devastar o meio ambiente — disse o senador.
Esses mesmos embaixadores se reuniram com autoridades do governo brasileiro. Uma dessas autoridades me disse que nunca viu Estados Unidos e Europa tão unidos numa questão como nesta cúpula do clima.
Elio Gaspari: O que falta a Bolsonaro é seriedade
O capitão, seu ex-chanceler e o ministro Ricardo Salles viajaram numa maionese de excentricidades e pirraças
A diplomacia americana está fritando Bolsonaro. O capitão, seu ex-chanceler e o ministro Ricardo Salles viajaram numa maionese de excentricidades e pirraças. Do outro lado, o Departamento de Estado levantou um muro. Quando um porta-voz disse que espera “seriedade” do governo brasileiro na cúpula do clima que começa quinta-feira, cravou uma estaca na agenda.
Enquanto o Departamento de Estado pedia “seriedade”, o primeiro-ministro francês, Jean Castex, justificava o bloqueio a viajantes brasileiros e arrancava risadas na Assembleia francesa ao lembrar que “o presidente da República, em 2020, aconselhou a prescrição de hidroxicloroquina, e gostaria de lembrar que o Brasil é o país que mais a prescreveu”.
Bolsonaro passou de piromaníaco a pedinte. Admitiu acabar com o desmatamento até 2030 e estragou sua nova posição numa única frase: “Alcançar esta meta, entretanto, exigirá recursos vultosos e políticas públicas abrangentes, cuja magnitude obriga-nos a querer contar com todo apoio possível.” Coisas assim se fazem, mas não se dizem, sobretudo se esse mesmo governo desdenhou a ajuda estrangeira e esvaziou o Fundo Amazônia. Colocar o Brasil, ou qualquer outro país, na posição do cachorro que olha para os espetos de frangos, como fez o doutor Ricardo Salles, é apenas burrice.
O Império e a República cuidaram da Amazônia de todas as formas, mas nunca falaram em dinheiro. Essa é a pior maneira para se começar uma negociação diplomática. Com ela, chega-se apenas a uma velha piada, atribuída ao ex-secretário de Estado Americano Henry Kissinger.
Numa versão politicamente correta, ela fica assim:
“Todos têm um preço”.
“Há coisas que eu não faço, nem por um milhão de dólares”.
“Você já está discutindo seu preço”.
Veneno
A carta de Bolsonaro a Joe Biden ocupa sete páginas.
Fosse qual fosse seu efeito, ele foi anulado pela curta notícia do afastamento do delegado Alexandre Saraiva, que chefiava a Superintendência da Polícia Federal no Amazonas e acusou o ministro do Meio Ambiente de advogar no interesse de desmatadores.
Lula e Bolsonaro
Uma Lava-Jato e três anos depois, Lula ficou maior, e Bolsonaro está menor.
Suprema criatividade
Quem entende de Supremo Tribunal Federal arrisca: com a anulação das sentenças que Curitiba impôs a Lula, algo como dez réus de Sergio Moro, em condições similares, pedirão o mesmo benefício. Para negá-lo, será necessária inédita criatividade.
Sumiço
Um experimentado empresário do agronegócio registra que a militância dos agrotrogloditas entrou num período de entressafra. Deram-se conta de que colheram (ou queimaram) o que podiam.
Profissional e amador
O embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, é um diplomata de carreira. Como o ex-chanceler Ernesto Araújo também é, entende-se que profissionais acabem se comportando como amadores. Em 2019, quando estava sendo sabatinado pelos senadores americanos, Chapman classificou as queimadas da Amazônia como “ocorrências anuais”. Perdeu uma oportunidade de ficar calado, mas pode-se entender que não quisesse melindrar Bolsonaro, o bom amigo de Donald Trump.
Passou o tempo, Trump foi para a Flórida, e na Casa Branca está Joe Biden. O embaixador Chapman reuniu-se com integrantes da “Articulação dos Povos Indígenas do Brasil”. A Apib queria um “canal direto” de comunicação com o governo americano, e o encontro foi diluído com a presença de indígenas indicados pelo governo. Uma salada.
Não é boa ideia que um embaixador de povo estrangeiro se reúna com representantes dos “povos indígenas”, mas seria descortesia não conversar. Podia ter destacado um diplomata de escalão inferior para o encontro.
Chapman poderia consultar os arquivos do Departamento de Estado para estudar um valioso precedente. Em 1876, quando viajava pelos Estados Unidos, D. Pedro II teve seu trem parado por um grupo de índios Sioux, chefiados pelo famoso “Touro Sentado”. O cacique pedia que o Imperador intercedesse pelos índios americanos junto ao presidente Ulysses Grant. É improvável que D. Pedro tenha tratado do assunto.
Apocalipse
No mesmo dia em que se noticiava a morte, na cadeia, do vigarista Bernard Madoff, que em 2008 foi apanhado num golpe de US$ 15 bilhões, Jair Bolsonaro disse que o Brasil se tornou “um barril de pólvora”: “Estamos na iminência de ter um problema sério”.
O que ele quis dizer com isso, não se sabe. Desde o ano passado, Bolsonaro acena com um Apocalipse. Ora falava em saques, ora advertia para o caos. Morreram mais de 360 mil pessoas, faltaram testes, vacinas, oxigênio e remédios. A desordem esteve no governo, e os saques, quando ocorreram, atacaram a Bolsa da Viúva.
Madoff também apostou no Apocalipse. Muita antes de ser apanhado, ele sabia que sua pirâmide explodiria e, preso, contou:
“Eu queria que o mundo acabasse. Quando aconteceu o atentado de 11 de setembro de 2001, eu achei que ali estava a saída. O mundo acabaria.”
Doutores cloroquina
É possível que o repórter Fabiano Maisonnave tenha entregue de bandeja um presente à CPI da Pandemia. Seria o depoimento dos médicos Michelle Chechter e Gustavo Maximiliano Dutra, que foram a Manaus em fevereiro para aplicar a “técnica experimental ‘nebuhcq líquido’, desenvolvida pelo dr. Zelenko”. Eram nebulizações de cloroquina.
Quatro pacientes grávidas receberam o tratamento. Todas morreram.
Uma delas teve um vídeo gravado, postado no dia 20 de março pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni. Ele informava que “de 0 a 10, melhorou 8”.
Talvez Lorenzoni não soubesse, mas ela morrera no dia 2.
Milton Ribeiro zangou-se
O ministro Milton Ribeiro, da Educação, zangou-se com uma reportagem de Paulo Saldaña mostrando a existência de um esquema para fraudar pagamentos do Financiamento Estudantil, boca rica administrada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE.
Como os repórteres são uma raça maldita, o doutor Ribeiro bem que poderia estender sua zanga ao edital do FNDE de 2019 que pretendia torrar algo como R$ 3 bilhões na compra de equipamentos para a rede pública de ensino. A Advocacia-Geral da União sentiu o cheiro de queimado, porque numa só escola 255 alunos receberiam 30 mil laptops (118 para cada um). Outros 335 colégios receberiam mais de um laptop para cada aluno.
O edital foi suspenso e cancelado. Passaram-se dois anos, três ministros da Educação e pelo menos três presidentes do FNDE, mas ninguém sabe quem botou esse jabuti no edital.