revista epoca

Monica de Bolle: As vacinas da desigualdade

Os vulneráveis, os trabalhadores essenciais, as cuidadoras, as pessoas que precisam sair para trabalhar assistirão não apenas ao resto do mundo recebendo os imunizantes, como também a seus conterrâneos abastados sendo inoculados

Desde que soubemos os resultados dos ensaios clínicos em fase III da Pfizer/BioNTech e da Moderna, tenho refletido sobre como as estratégias de imunização em diferentes países podem interagir com as desigualdades existentes, multiplicando-as. São muitos os canais, mas esboçarei aqui os que mais me preocupam.

O primeiro deles é óbvio: as vacinas de última geração, as que utilizam o RNA mensageiro para induzir uma resposta imune, são vacinas relativamente caras, o que significa que países mais pobres dificilmente terão acesso a elas — isso sem considerar os desafios de armazenamento e distribuição associados a essas vacinas. Portanto, é bastante provável, quase certo na verdade, que a população dos países mais ricos tenha mais proteção para a Covid-19 do que a população dos países mais pobres.

Raciocínio semelhante se aplica ao Brasil. O país fez acordo para a produção e distribuição de duas vacinas: a da AstraZeneca/Oxford, em associação com a Fiocruz, e a CoronaVac, parceria da Sinovac com o Butantan. Essas vacinas, entretanto, ainda não têm resultados claros sobre sua eficácia, isto é, sobre o grau de proteção que conferem. A CoronaVac não publicou tais resultados provenientes do ensaio clínico, enquanto a AstraZeneca teve problemas significativos de transparência nos dados e de dosagem durante os ensaios conduzidos no Reino Unido. Os dados de eficácia que juntaram as informações obtidas dos ensaios no Brasil com as do Reino Unido não foram conclusivos a ponto de dar uma boa margem de confiança sobre o grau de proteção.

Diante desses problemas e da constatação de que as campanhas de imunização com as vacinas de última geração estão começando em vários países, o governo brasileiro anunciou a compra de 70 milhões de doses da vacina da Pfizer, que requer cadeias de ultrarrefrigeração para armazenamento. Contudo, apenas 8,5 milhões de doses estarão disponíveis no primeiro semestre, pois o planejamento do Ministério da Saúde foi falho. Como a vacina é dada em duas doses, apenas 4,3 milhões de pessoas receberão a vacina cuja eficácia já é conhecida no primeiro semestre de 2021. Haverá, portanto, racionamento. E não é difícil imaginar que aqueles que receberão as vacinas de ponta serão os mais ricos, não os mais pobres desproporcionalmente afetados pela doença.

Há mais. No dia 1º de dezembro, o governo brasileiro anunciou um “plano” para a campanha de vacinação prevendo tão somente o uso da vacina da AstraZeneca. Como sabemos, a politização da CoronaVac, ou da “vacina chinesa”, chegou às raias do absurdo.

Bolsonaro chegou a dizer que não compraria a CoronaVac, deixando o país praticamente à deriva com apenas uma opção de vacina.

Em nota recente, o Observatório Covid-19, rede da qual faço parte, avaliou o plano do governo brasileiro como um “esboço rudimentar” repleto de falhas e lacunas. Diz a nota: “São marcantes a falta de ambição, de senso de urgência e de comprometimento em oferecer à população brasileira um plano de vacinação competente, factível, que contemple as diversas vacinas em teste no Brasil, com transparência e em articulação com estados e municípios”.

Diante desse quadro, é razoável imaginar que, em algum momento, clínicas e redes privadas façam acordos com os laboratórios responsáveis pelas vacinas de última geração, disponibilizando-as para a população que pode pagar por elas. O restante da população brasileira, os vulneráveis, os trabalhadores essenciais, as cuidadoras, as pessoas que precisam sair para trabalhar, ficarão a ver navios. Essa é a mesma população que hoje não poderá contar com o auxílio emergencial a partir de 1º de janeiro de 2021 e é também a população que depende do SUS. O SUS, por sua vez, ficará sem os recursos de que necessita, porque no dia 1º de janeiro voltará a valer a camisa de força do teto de gastos, já que o Decreto de Calamidade que o suspende também haverá de expirar.

Essas são as pessoas que assistirão não apenas ao resto do mundo recebendo as vacinas, como também a seus conterrâneos abastados sendo inoculados. Nesse cenário, não é difícil imaginar um quadro de convulsão social, aquele que talvez tenhamos conseguido evitar em 2020 a despeito do governo: afinal, não foi Bolsoguedes quem apoiou e fez acontecer o auxílio emergencial.

Vejo poucas pessoas preocupadas com a possibilidade de que a falta de estratégia em relação às vacinas possa ser um multiplicador de desigualdades. É hora de pensar nisso com a devida urgência.

Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins