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Alberto Aggio: Resistência da sociedade é visível e vai continuar

Aggio fala do “mar da História” como instância aberta, como possível “reconstrução do passado” e discute o atual cenário político

Vanessa Maranha / Folha de Franca

A política é motor do funcionamento e palco dos reveses nas sociedades. O Brasil e o mundo têm vivenciado, sobretudo na última década, pela facilitação da comunicação em rede via Internet, o acirramento ideológico, a polarização das posições partidárias e também subjetivas por uma já evidenciada manipulação da percepção da realidade que as mídias possibilitam. Folha de Franca convidou o historiador Alberto Aggio, docente e autor de artigos e livros de relevância com foco na História Política da América Latina, um nome mais do que avalizado para pensar o Brasil e o mundo de hoje na esfera política em perspectiva temporal e factual. 

Formado em História pela USP, onde também fez mestrado e doutorado, é professor de História na Unesp/Franca desde 1987, na qual tornou-se Livre-docente e Titular. Atualmente, colabora como professor de pós-graduação no PROLAM da USP. Foi articulista do jornal O Estado de São Paulo. É colaborador da revista eletrônica Estado da Arte e criador e editor do Blog-Revista Horizontes Democráticos (www.horizontesdemocraticos.com.br).

Nesta conversa, a partir de seu arcabouço teórico e numa articulação lógica e ao mesmo tempo reflexiva, Aggio fala do “mar da História” como instância aberta, como possível “reconstrução do passado” e discute o atual cenário político. Ao longo de todo o texto há indicações de links para aprofundamento nos temas mencionados, discutindo a renovação na crença da democracia e defesa da mesma, retrocessos e sectarismos na atualidade, bem como as perspectivas para 2022, sem poupar críticas ao governo atual.

K. Marx e A. Gramsci

Folha de Franca – De que forma e por que se deu a sua escolha em estudar essa área? Quais são os pensadores que balizam o seu percurso?

Alberto Aggio – Desde minha mudança para São Paulo, em 1970, me interessei pela área de Humanas. Na escola média, o teatro e a escrita me interessaram muito. Com amigos fizemos ambas as coisas, mesmo depois de terminar a escola. A escrita ensaística de opinião foi o que mais me prendeu. Tornar-me professor foi uma questão profissional, de sobrevivência. Na minha formação e como professor universitário os autores que mais me influenciaram foram K. Marx, A. Gramsci, A. Tocqueville, E. Hobsbawm, G. Vacca, Luiz Werneck Vianna, dentre outros.

FF – Seus posicionamentos políticos se modificaram conforme seu percurso teórico e o próprio fluxo dos acontecimentos mundiais/nacionais? Em suma: como você se posicionava politicamente no início de sua carreira …

 AA – Não noto grandes mudanças, não. Reconheço-me desde sempre como um partidário da democracia e da mudança social, por mais igualdade, mais progresso e desenvolvimento. Lutei contra a ditadura, na periferia de São Paulo, ajudando a organizar a população e estimulando a cultura e as artes; na universidade, defendia uma luta intransigente pela democracia, mas sempre com realismo. Fui crítico à esquerda que aderiu a luta armada. Revendo essa trajetória, creio que há mais continuidade do que mudanças súbitas e profundas. É claro que a vida profissional e a dedicação aos estudos, à teoria, geraram mais solidez e ampliaram meus conhecimentos. Politicamente, sempre me mantive na defesa, consolidação e aprofundamento da democracia.

FF -A mídia de países como EUA e Inglaterra declara abertamente sua posição político-partidária. Como você avalia isso sob a ótica brasileira?

AA – São histórias políticas diferentes, culturas políticas distintas. Nesses países o embate entre correntes político-ideológicas foi mais incisivo e direto. Havia jornais que cumpriam a função de partidos, que formaram o seu público por longos anos. No Brasil não foi assim. Manter um jornal em circulação custa muito e somente empresas de comunicação podem suportar esses custos e nem sempre conseguem. Mesmo assim, o jornalismo de opinião faz parte da nossa grande imprensa, mas é uma parte pequena dela. Com a internet tudo se alterou radicalmente. Com ela é possível uma comunicação mais abertamente partidária. Mas também há uma dispersão maior.

FF – Como e por que, na sua avaliação, em nível de mundo e de Brasil chegamos a tal polarização política?

Manifestantes de extrema-direita em cidade européia

AA – Creio que há fatores mundiais e domésticos que se combinam. O fim do comunismo abalou muito as convicções e, por outro lado, aqueles que acreditaram que a História havia chegado ao fim perceberam que sua crença se despedaçava com as crises que se sucederam desde o início do século XXI. A pós-verdade se instalou e junto com ela o relativismo integral. Da crítica ao padrão civilizatório ocidental se evoluiu para a destruição dele, para a defesa de um passado imaginário, de rejeição à globalização, aos direitos humanos etc. Isso gerou um retrocesso cultural e humano imenso. Não há como não resistir a tudo isso. Mas é uma resistência difusa e, muitas vezes, confusa. Às vezes, atua de maneira tão sectária que faz o jogo desses novos “destruidores”, como é o caso dos chamados “identitarismos” de raça, de gênero, etc. Do meu ponto de vista, há um polo de destruição em ação (equivocadamente chamado de populismo) e a principal vítima é a democracia. Os “novos bárbaros” querem o fim dela ou sua mitigação e advogam por uma “democracia iliberal”. Ora, o essencial da democracia não ela ser liberal, é ela ser pluralista e representativa, sustentada por valores e regras consensuais. Como renovar nossa crença na democracia e saber defendê-la me parece que se tornou o nosso maior desafio.

FF – Como você avalia a evolução-involução da política brasileira sob uma perspectiva histórica e cultural?

AA – A política brasileira sentiu o impacto dessas mudanças globais e emergiu entre nós, com muita força, a antipolítica, em suas diversas faces. O PT foi um ator da antipolítica, instalou no país a lógica do “nós contra eles”, foi hegemonista e majoritarista. Essa prática feriu de morte a democracia que estava sendo construída à base de consensos, como foi o conquistado pela Constituição de 1988. E então veio o bumerangue: a reação da ultradireita. Creio que a ruptura da frente democrática na primeira eleição pós-ditadura abriu espaço para essa involução. O país enfrentou vários desafios de lá para cá, venceu alguns, mas estruturalmente permaneceu muito desigual socialmente. E, fundamentalmente, a democracia da Carta de 1988 não está consolidada como cultura política na sociedade. Vide esse movimento da extrema-direita que conseguiu galvanizar massas e ganhar a presidência da República. Com Bolsonaro o grau de destruição e de ameaça à democracia tornou-se dramático. Não haverá possibilidade de retomar o “fio da meada”, como escreveu Luiz Werneck Vianna, sem que se ultrapasse o equívoco que a sociedade cometeu em 2018.

FF – De que forma, a seu ver, pode ser definido o atual cenário político brasileiro? Estamos às voltas com um autocrata que sonha uma teocracia?

Bolsonaro em uma das suas motociatas

AA – Somos governados por um personagem que se coloca fora do campo das forças políticas democráticas, mesmo as de direita. Bolsonaro é um parasita das estruturas do Estado Democrático de Direito, é um homem de facção, vive para seus apoiadores mais diretos, não se configura como o líder de uma Nação, não é um estadista. No início do seu governo, eu cheguei a imaginar que iríamos por esse caminho, de uma teocracia. Escrevi até um artigo em que comparava Bolsonaro com Girolamo Savonarola, um pregador ultracatólico que queria moralizar a Florença da época dos Medici (https://horizontesdemocraticos.com.br/do-fantasma-pinochet-ao-risco-savonarola/) . Chegou ao poder, mas durou pouco; mandou muita gente para a fogueira, mas depois foi lá que ele foi parar. Mas a vinculação de Bolsonaro com as igrejas me parece pragmática, instrumental e utilitária. E hoje, felizmente, ele não galvaniza mais o apoio de antes.

FF – Quais são seus prognósticos para 2022?

AA – Ao que tudo indica caminhamos para um regresso ao passado se a disputa eleitoral se concentrar entre Bolsonaro e Lula. Bolsonaro é em si mesmo o passado, o atraso; enquanto Lula expressa um retorno ilusório a um período que não volta mais (https://horizontesdemocraticos.com.br/quando-o-regresso-se-impoe/) . De qualquer forma, entendo que, para o bem do país, Bolsonaro tem que ser derrotado nas urnas. Penso que a eleição tem que assumir um caráter plebiscitário: deve ser um “não” a Bolsonaro (https://horizontesdemocraticos.com.br/uma-eleicao-plebiscitaria/) . Em segundo lugar, a sociedade deve refletir sobre como quer encontrar o tal “fio da meada”: salvar a democracia, retomar a luta pela equidade, pela sustentabilidade, retomar o crescimento e recuperar a nossa inserção internacional. E isso sem ilusões e sem demagogia, com olhos voltados para a retomada da economia global no pós-pandemia. O processo está em curso e não sabemos se os atores políticos e a própria sociedade estarão conscientes desse quadro e à altura dos seus desafios.

FF – Em artigo que você publicou recentemente sobre Antonio Gramsci, você o coloca como valor representação, numa basilar simbólica das esquerdas. Falo no plural porque, no seu texto você sugere uma pluralidade de esquerdas de vários matizes, inclusive aquela que deturpou o pensamento gramsciano. Por favor, resuma ao nosso público leitor a ideia central dessa discussão.

Imagem da capa da edição brasileira dos Cadernos do Cárcere

AA – Antonio Gramsci foi sempre um autor de referência, um clássico. Ele foi publicado no Brasil em diversas edições desde a década de 1960. É um autor póstumo. Morreu em função da prisão imposta por Mussolini. Sua recepção no Brasil tem uma história político-cultural que precisa ser conhecida e é isso que tentei fazer nesse artigo que você mencionou (https://horizontesdemocraticos.com.br/o-gramsci-que-conhecemos-e-o-que-ele-inspirou/) . Ele influenciou a esquerda brasileira, especialmente no período de luta contra a ditadura. Ajudou a pensar que tipo de formação social era a nossa e como a democracia aqui é difícil, mas imprescindível. Há diversas correntes interpretativas sobre seus escritos. Algumas o tem como um revolucionário comunista, movimento ao qual, de fato, ele esteve vinculado. Outros, já o veem como um pensador que escapa ao comunismo e se vincula aos desafios da contemporaneidade, na qual a democracia é uma forma política que nos auxilia a vencer os traços oligárquicos e excludentes que ainda existem na sociedade atual.

FF – Quando você menciona, ainda nesse texto, uma “revolução passiva à brasileira” a que exatamente se refere?

AA – A expressão é de Luiz Werneck Vianna. Para esse autor, o Brasil nunca teve uma revolução, no sentido convencional do termo. O Brasil é um exemplo paradigmático da “revolução passiva”, um conceito presente nos seus Cadernos do Cárcere de Antonio Gramsci. Nele está a ideia de que a História moderna muda por meio de processos nos quais a conservação controla os ímpetos maiores de transformação da sociedade. E isso assume diversas formas e dinâmicas, conforme a época. Há momentos de negatividade, de autoritarismo; e momentos de positividade, de reformismo e mudança. A “revolução passiva à brasileira” alude ao longo processo que vai da nossa Independência até os dias atuais, embora tenhamos que fazer um reparo: com Bolsonaro nem mesmo esse processo não-revolucionário de andamento da História existe; o que existe é simplesmente destruição e regressão.

FF – O que você diz da trajetória histórica do PT (Partido dos Trabalhadores)? O que você tem a dizer acerca do antipetismo?

AA – O PT é parte da história da redemocratização do Brasil. Ele se forma pela combinação de militantes da luta sindical no ABC paulista, das CEB da Igreja católica mais os egressos da luta armada dos anos 60 e 70. Tudo isso se junta aos novos seres sociais que emergem com a modernização conservadora impulsionada pelo regime militar, o famoso “milagre econômico”. Forjou-se então um grande partido de massas, com uma grande liderança que é o Lula. O problema esteve nas suas convicções democráticas e no reconhecimento de que a política, em especial a política democrática, é diferente da luta sindical, da prática religiosa ou da militância radical dos guerrilheiros. E mais: a compreensão do Brasil necessitava mais do que a vontade de transforma-lo. E então veio a vitória de 2002 e o desafio de governar o país. A política cobrou seu preço. A saída foi desastrosa: Mensalão, Petrolão, etc…; o PT apostou na compra dos outros atores políticos para ter sustentação. Fez uma opção antidemocrática e antirrepublicana. Acabou desmoralizando a esquerda. O impeachment de Dilma é um desdobramento disso. Aí emergiu o monstro que já existia entre nós. Das manifestações de 2013 ao impeachment a ultradireita ganhou espaço e se firmou por meio do antipetismo que se desdobrou em antiesquerda, em antidemocracia. E aí estamos.

Bolsonaro e Trump, duas expressões da extrema-direita

FF – As eleições de Trump nos EUA e de Bolsonaro no Brasil trouxeram a marca da manipulação algorítmica que as redes sociais propiciam. O documentário Privacidade Hackeada (Netflix) denuncia como a extrema direita de lá e de cá, assessorada por Steve Bannon, polarizou a opinião pública a partir de perfilamento psicológico dos usuários das redes e compartilhamento desses dados para manipulação das mentalidades. Podemos falar, nesse sentido, em estelionato eleitoral? O que você tem a dizer sobre isso?

AA – Tudo isso é verdade. Há uma clara influência dessas iniciativas manipuladoras no processo eleitoral de 2018, mimetizando o que ocorreu nos EUA. Mas não vejo aí um “estelionato eleitoral”. Creio que a situação brasileira guarda especificidades. Além de se sustentar no antipetismo, Bolsonaro manifestou uma série de ambiguidades: foi mais corporativo do que um liberal-reformista, como pregava no seu discurso eleitoral. Creio que aqueles que se dizem liberais podem dizer que foram enganados. Da mesma forma, aqueles que votaram em Bolsonaro para continuar a luta contra a corrupção. A ruptura com Sergio Moro e as denúncias de corrupção dos Bolsonaros e mais o que tem revelado a CPI da Covid mostram que o descrédito do presidente tem razão de ser.  

FF – O movimento da História é mesmo pendular? A cadela do fascismo está sempre no cio, como vaticinou Bertolt Brecht?

AA – O fascismo é sempre um perigo e temos que estar atentos. No momento em que os democratas não conseguem sustentar a democracia, o fascismo pode emergir e vencer. A História é aberta em todos os sentidos. Não é repetível, nem como tragédia nem como farsa. Essa foi uma imagem usada por Marx para ilustrar uma situação específica. A História também não é “um carro alegre com um povo contente que atropela indiferente todo aquele que a negue”, como cantou Chico Buarque referindo-se à Cuba revolucionária. A História é simplesmente desafiadora. Em termos acadêmicos e sociais penso que a História não pode ser vista como reprodução do passado. Ela é uma reconstrução do passado e tem seus métodos reconhecidos.

Manifestantes protestam contra Bolsonaro

FF – O que você diria sobre a mentalidade do brasileiro dentro da perspectiva da História das Mentalidades, no que tange à política?

AA – É difícil dizer que o brasileiro tem uma única mentalidade. O brasileiro é multifacetado. Reconhecemos que padece de algumas dificuldades do ponto de vista de valores coletivos. É a expressão de uma História difícil, com traços singulares de adaptação e atualização à dinâmica do mundo.

FF- Como você avalia as últimas manifestações como a de 02 de outubro?

AA – Acho que as manifestações de 02 de outubro ficaram aquém do esperado. Mas elas se generalizaram pelo país e houve participação. As oposições estão muito divididas, com projetos eleitorais particulares que dificultam uma mobilização unificada. A pandemia e o governo Bolsonaro machucaram muito a população. Mas a resistência da sociedade é visível e vai continuar. Acho que a dinâmica eleitoral vai se impondo com os diversos candidatos e a ideia de uma mobilização única contra Bolsonaro vai se diluindo. Fica claro que o impeachment não virá. O que não significa que a oposição a Bolsonaro irá arrefecer.

Fonte: Folha de Franca e Blog Horizontes Democráticos
https://folhadefranca.com.br/secoes/colunas/alberto-aggio-a-resistencia-da-sociedade-e-visivel-e-vai-continuar/

https://horizontesdemocraticos.com.br/a-resistencia-da-sociedade-e-visivel-e-vai-continuar/


Jamil Chade: O luto como resistência

A covid-19 obrigou a que esta despedida ocorra sob máscaras, à distância. Mas há séculos o que não muda é nossa necessidade de encontrar sentido num cenário despido de lógica. O luto, portanto, como um grito de mobilização e insurreição de consciências

covid-19 obrigou a que o ritual humano do luto pelos que se foram ocorra coberto por máscaras, à distância, sem um último beijo. Num recente evento em Madri, uma enfermeira arrancou lágrimas ao resumiu esse novo adeus. “Temos sido mensageiros do último adeus para os idosos que estavam morrendo sozinhos, ouvindo a voz de seus filhos através do telefone. Fizemos videochamadas, apertamos as mãos e tivemos que engolir nossas lágrimas quando alguém nos disse: “Não me deixe morrer sozinho. Vivemos situações que ferem a alma”, disse a enfermeira.

Ao longo dos séculos, o que não mudou foi nossa necessidade de encontrar sentido num cenário despido de lógica, acima de tudo por aqueles que diretamente perderam pessoas amadas. Uma necessidade de homenagear aqueles que nos deixaram, ainda que passaremos anos sonhando em silêncio com eles. O luto faz parte de diferentes culturas e de diferentes religiões, se confundindo com a própria história da humanidade. A perda é uma temática estudada e especialistas nos ensinam como ela nos afeta de forma psicológica e física. Nos tira o sono e muda nossa maneira de encarar o restante de nossas vidas. Ao longo dos séculos, as práticas mudaram. Na Idade Média, rituais relativos à morte eram públicos. O luto era de uma comunidade. Em outros locais, a morte era seguida por eventos festivos que a desafiava com uma explícita demonstração do poder da vida.

Foi com a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, e o fato de muitos dos garotos enviados ao front nunca terem voltado, que monumentos com nomes desses heróis se espalharam por praticamente todas as cidades da Europa. Nesses monumentos, até hoje, pequenos vilarejos se encontram uma vez por ano para deixar claro que existe uma comunidade de destino.

Hoje, a alma ferida de uma nação fica evidente ao atingirmos um trauma de massa. Mas, no caso brasileiro, temos sérios obstáculos para conseguir transformar essa tragédia em uma reação coletiva, em uma mobilização popular. Em parte, trata-se de o resultado de anos de um processo de banalização da morte, ao ponto de contar com um chefe de Estado cujo símbolo de campanha era uma arma.

Hoje, o Brasil precisa ter a coragem de declarar seu luto coletivo e assumir que a morte do outro é, em parte, uma perda de todos. Uma tarefa difícil quando, nos discursos improvisados dos almoços de domingo, sobra ódio contra o outro. Uma tarefa complicada quando parte da sociedade ainda acredita que uma parcela do país não tem direito a ter direitos. Ou quando, de forma hipócrita, o governo faz discursos de combate ao racismo na ONU ao lembrar da morte de George Floyd. Mas não destina uma só palavra para lamentar a perda de seus velhos caciques na floresta.

Ao atingirmos 100.000 perdas de vidas, é o tempo de suspender tudo, recolocar nossas prioridades sobre a mesa e avaliar que sociedade queremos reerguer. Não há como seguir fingindo uma falsa normalidade. Se não agora, quando? O que precisaremos para despertar se nem 100 mil mortes nos transformam como nação? O que precisaremos para nos transformar em nação?

Recuperar a ideia de um luto coletivo é o primeiro passo para dizer que não aceitaremos a fatalidade da crise. O luto por aqueles que não resistiram às falências do Estado. Um luto por caminhos não tomados. Um luto por escolhas equivocadas. Um luto pela politização de uma pandemia, talvez a grande história que nossos descendentes contarão no futuro sobre nós.

Não são 100.000 mortes. São 100.000 pessoas. Não se trata de um destino inevitável. Mas das consequências de ações e opções políticas. O luto, portanto, como ato de resistência. Um grito de mobilização. O luto, enfim, como insurreição de consciências. Essa, sim, uma homenagem real àqueles que morreram e uma chama de esperança para que os permaneceram.