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El País: Marcelo Crivella, prefeito do Rio, é preso por suspeita de chefiar esquema de propina

Prisão foi realizada pela Polícia Civil e do Ministério Público, em um desdobramento da operação que investiga um suposto ‘QG da propina’ na Administração municipal

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), foi preso na manhã desta terça-feira durante uma operação conjunta do Ministério Público do Rio de Janeiro e da Polícia Civil. A poucos dias de deixar a prefeitura ―o prefeito eleito Eduardo Paes (DEM) toma posse em 1º de janeiro―, Crivella foi detido em sua casa e levado para prestar depoimento no início da manhã. Procurada, a Promotoria confirmou que realizou uma operação “para cumprir mandados de prisão contra integrantes de um esquema ilegal que atuava na Prefeitura do Rio”, mas que, em razão de sigilo de Justiça, não poderia fornecer outras informações.

Segundo informações da TV Globo, que mostrou o momento da condução do prefeito para a Cidade da Polícia, Crivella foi preso em um desdobramento da Operação Hades, iniciada no dia 10 março, que apura suspeita de irregularidades na Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro (Riotur). Ainda de acordo com a emissora, ao menos outras seis pessoas foram presas, incluindo o empresário Rafael Alves, apontado como operador do esquema.

Como mostrou reportagem do EL PAÍS em setembro, o prefeito é acusado pelo Ministério Público de montar um “QG da Propina”, esquema que motivou a abertura do processo de um impeachment na Câmara Municipal. Alves, que é irmão de Marcelo Alves, ex-presidente da Riotur, é suspeito de direcionar licitações, burlar a ordem cronológica de pagamentos que o Tesouro Municipal devia a empresas e, segundo a investigação, tinha poderes de indicar cargos.

Em um vídeo gravado durante a busca e apreensão na casa dele, em março, Crivella supostamente liga para um dos celulares de Rafael Alves para avisar de uma busca na Riotur e é atendido pelo delegado da Polícia Civil responsável pela ação. Ao perceber que não se tratava de Alves ao telefone, Crivella encerra a chamada. A desembargadora Rosa Helena Guita, que deu a ordem de busca na ocasião e determinou a prisão do prefeito nesta terça, disse que na época que “a subserviência de Crivella a Rafael Alves é assustadora”.

Ao ser preso nesta terça, Crivella afirmou aos jornalistas ser vítima de “perseguição política”, em declaração na entrada da Polícia Civil às 6h35. “Lutei contra o pedágio ilegal injusto, tirei recursos do carnaval, negociei o VLT, fui o Governo que mais atuou contra a corrupção no Rio de Janeiro”, disse. Questionado sobre sua expectativa agora, o prefeito disse: “Justiça”.

Bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, fundada por seu tio, o bispo Edir Macedo, Marcelo Crivella foi eleito prefeito do Rio de Janeiro em 2016, mas não conseguiu reeleger-se, apesar do apoio explícito do presidente Jair Bolsonaro, após acumular críticas a sua gestão. O presidente da Câmara do Rio, Jorge Felippe (DEM), deve assumir a Administração municipal pois o vice de Crivella, Fernando McDowell, morreu em 2018.

Já Eduardo Paes comentou pelo Twitter a prisão, afirmando que o trabalho de transição de Governo será mantido. “Conversei nessa manhã com o presidente da câmara de vereadores Jorge Felipe para que mobilizasse os dirigentes municipais para continuar conduzindo suas obrigações e atendendo a população. Da mesma forma, manteremos o trabalho de transição que já vinha sendo tocado”, escreveu.


Yascha Mounk: Verniz de invencibilidade de Trump se desfaz com vitória de Biden

Republicano lançou tentativa de golpe mais incompetente desde 'Bananas', de Woody Allen

O presidente Donald Trump deixou uma coisa dolorosamente clara: depois de deixar a Casa Branca a contragosto, ele vai seguir fazendo tudo o que puder para continuar a ser notícia. Vai postar insultos e teorias conspiratórias no Twitter. Talvez abra seu canal de televisão próprio. E, segundo membros de seu círculo interno, é possível que se candidate a presidente em 2024.

Após meia década sob sua influência, muitos observadores políticos imaginam que Trump vai conseguir conservar a atenção da nação voltada para ele. Entendo por quê. Uma minoria considerável dos americanos acredita que a eleição foi fraudada e permanece profundamente devota ao presidente que está de saída.

Mesmo agora que a derrota de Trump libertou o Partido Republicano de seu captor, os políticos republicanos parecem estar sofrendo de um caso grave de síndrome de Estocolmo. E a única área na qual o 45º presidente já comprovou reiteradamente possuir talento real é sua capacidade de se manter no centro da atenção pública.

Mas, embora Trump ainda possa acabar se mostrando uma influência tão dominante sobre a política na década de 2020 quanto foi na década de 2010, esse resultado é menos provável do que muitos supõem.

Sobram teorias para tentar explicar a ascensão de Trump ao poder em 2016. De acordo com algumas, ele falou em nome dos economicamente despossuídos. Segundo outras, suas mensagens racistas disfarçadas atraíram eleitores preconceituosos.

Entretanto, embora as duas hipóteses ajudem a explicar parte de sua atração, a verdade é muito mais simples: milhões de americanos que não pensam muito em política encaravam Trump como um vencedor, um realizador.

Desde seus primeiros momentos de fama local em Nova York, ele vem moldando sua imagem pública cuidadosamente para dar ênfase a seu poder e seu sucesso.

Os insiders de Manhattan sabem que a verdadeira elite da cidade sempre o desprezou. Mas os leitores de seu livro “A Arte da Negociação” o encaram como exemplo rematado de um negociador dominante que sabe como usar seu poderio financeiro.

Jornalistas de negócios sabem que muitos dos empreendimentos de Trump foram à falência em pouco tempo e que ele poderia estar muito mais rico agora se tivesse simplesmente aplicado sua herança no mercado acionário. Mas, para a maioria dos americanos, o apresentador de “O Aprendiz” é a personificação de um empreendedor que construiu um grande império graças a seu incrível tino para os negócios.

Agora, porém, o verniz de invencibilidade de Trump está se desfazendo. Ele perdeu sua tentativa de reeleição e lançou a tentativa de golpe mais incompetente desde “Bananas”, de Woody Allen. Ele pode se enfurecer e falar loucuras sobre o que aconteceu em novembro, mas não poderá impedir seus seguidores de verem Joe Biden tomar posse em janeiro. O medo de qual pode ser seu próximo passo está dando lugar às gargalhadas. Trump está parecendo mais fraco e assustado a cada dia que passa.

Tampouco está claro se o presidente em final de mandato vai conseguir construir uma “Rede Trump de Jornalismo”. Se ele tiver um programa diário de uma hora na televisão, seus fãs mais devotos com certeza vão assistir. Mas, para ser comercialmente viável, seu canal teria que ampliar aquele público fundamental, atrair outros apresentadores que fossem capazes de conservar a atenção do público, contratar jornalistas que pudessem cobrir de fato o que acontece no mundo e atrair publicidade de empresas comuns.

Competir com a Rede Fox não seria fácil para ninguém que estivesse lançando uma nova rede de jornalismo conservador. Dado o histórico de incompetência de Trump tanto nos negócios quanto em seu cargo público, parece improvável que ele tivesse êxito nessa empreitada.

Tampouco é evidente que Trump pudesse realisticamente se candidatar à Presidência outra vez. Em 2024 ele pode estar falido, na prisão ou com a saúde muito fragilizada. E, mesmo que esteja em condições de disputar a candidatura presidencial republicana, ele não necessariamente a conquistaria.

O Partido Republicano teve uma composição ideológica relativamente estável no último meio século. O chamado “banquinho de três pés” unia conservadores sociais, defensores do livre mercado e figuras de linha dura na política externa, formando uma aliança intranquila, mas durável. Mas, precisamente pelo fato de a composição política do partido ser tão heterogênea, seus líderes mais influentes —de Richard Nixon a George W. Bush e de John McCain a Donald Trump— não guardam muita semelhança uns com os outros.

Que ninguém se engane: ainda é muito cedo para encarar Trump como carta fora do baralho. Pode ser que os americanos continuem a acompanhar seu feed no Twitter com horror ou fascínio pelos próximos quatro anos. Talvez os eleitores das primárias escolham Trump como candidato republicano em 2024. Pode até ser que Trump faça um retorno triunfal à Casa Branca.

Mas o que é possível não precisa ser provável. E as chances são muito boas que os americanos se entediem com as palhaçadas cada vez mais risíveis do mau perdedor que acabam de expulsar do cargo.

*O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".


El País: Trump começa a preparar candidatura de 2024: “Vejo vocês em quatro anos”

Em ato com republicanos na Casa Branca, presidente insinua que voltará à linha de frente na próxima eleição presidencial

Amanda Mars, El País

Quando um presidente norte-americano vê seu tempo na Casa Branca se aproximar do final, começa a trabalhar no seu legado: criar uma fundação, abrir uma biblioteca, escrever memórias, esse tipo de coisa. Donald Trump parece estar decidido a romper também essa convenção e já aponta abertamente uma etapa pós-presidencial na linha de frente da luta política, com a possibilidade inclusive de voltar a disputar o cargo em 2024. “Foram quatro anos fabulosos, estamos tentando ter outros quatro anos. Se não for assim, vejo vocês em quatro anos”, disse na terça-feira à noite em uma festa de Natal antecipada com membros do Comitê Nacional Republicano, como mostra o vídeo do evento publicado no site Politico e corroborado pelo relato de vários presentes compartilhado com o canal Fox.

O encontro ocorreu horas depois de o secretário de Justiça, William Barr, impor o enésimo e mais duro revés até agora ao presidente em sua cruzada judicial contra a vitória eleitoral do democrata Joe Biden. Barr, importante aliado de Trump no Executivo, afirmou à agência Associated Press que o Departamento de Justiça não encontrou provas dessa fraude maciça que o republicano denuncia, ainda obstinado em não reconhecer que seu rival eleitoral foi eleito presidente. Entretanto, com a bandeira dessa batalha judicial contra uma suposta fraude generalizada, Trump arrecadou até agora cerca de 170 milhões de dólares, dos quais a maior parte acabou engrossando um comitê destinado a financiar suas futuras atividades políticas, sob o nome de Salvar a América.

É mais um sinal de que o magnata nova-iorquino não pensa em desaparecer do cenário político depois de 20 de janeiro, quando Biden assumirá o mandato. Ele quer manter mobilizados esses 74 milhões de pessoas que votaram nele. A possibilidade de uma nova candidatura de Trump em 2024 começou a ser mencionada pouco depois da votação de 3 de novembro, a partir de declarações de seu círculo, sob condição de anonimato. Também amigos e outras pessoas próximas à sua filha, Ivanka Trump, que desempenhou o cargo de assessora presidencial nestes quatro anos, afirmaram a diferentes veículos de comunicação que ela também cogita um voo próprio na política. Outros Trumps ―como Donald Júnior, o mais velho entre os homens, e Lara, esposa de seu filho Eric —já consideraram a possibilidade de se lançar a diversos cargos eletivos.

A declaração de terça à noite foi a primeira manifestação pública das futuras intenções de Trump, de quem, em todo caso, não se espera uma aposentadoria discreta em sua mansão de Mar-a-Lago, na Flórida. O perfil que ele adotar, mais ou menos influente, marcará o processo de transição a ser aberto no Partido Republicano para as próximas eleições, algo semelhante ao que o Partido Democrata viveu após sua derrota de 2016.


Rubens Barbosa: Judicialização do processo

O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos

Na eleição presidencial de 2000, acompanhei de Washington o impasse na apuração dos votos na Flórida, que gerou pedido de George Bush à Suprema Corte para suspender a contagem dos votos. Depois de um mês de incertezas, o Judiciário, por um voto, decidiu suspender a apuração e, com isso, o candidato republicano venceu a eleição naquele Estado e tornou-se presidente dos EUA.

A situação hoje é diferente. O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados (Pensilvânia, Geórgia, Nevada e Michigan) e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos. Como a Suprema Corte decidiu recentemente que todos os votos devem ser contados, dificilmente a judicialização favorecerá o atual presidente.

Trump tem repetidamente colocado em dúvida o sistema eleitoral, prevendo fraudes e contestando o sistema de votos pelo correio, sem nenhuma evidência. Na noite do dia 3, à frente na maioria dos Estados, afirmou que havia vencido, mas que havia uma manobra para “roubar” a eleição e dar a vitória para o candidato democrata.

O resultado da apuração mostrou o alto grau de divisão existente hoje nos EUA. A pequena margem entre os dois candidatos encoraja a alegação de Trump. Duvidar da legitimidade eleitoral pode abalar a confiança pública no sistema, embora tenham sido raros os casos de ilícitos comprovados ao longo da história política dos EUA e nenhum deles afetou o resultado final.

Apesar de o sistema eleitoral americano não dispor de uma Justiça Eleitoral nacional, mas estadual, é constrangedor ver um presidente, no exercício de suas funções, questionar a lisura das apurações com acusações sem provas. Trata-se de um mau exemplo, vindo de um país que tem a pretensão de ser um modelo democrático para o mundo. Essa atitude representa um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral no futuro, pelas incertezas que desperta, mas não chega a ameaçar nem a democracia nem a credibilidade do país.

A repetição desse recurso, em prazo tão curto, começa a despertar discussões sobre a necessidade de revisitar o sistema eleitoral. Deverão aumentar as críticas à eleição indireta por um colégio eleitoral, com regras que variam de Estado a Estado, e a apuração manual, longe das urnas eletrônicas. As mudanças, contudo, serão difíceis, sobretudo se, com Joe Biden, o Senado continuar com maioria republicana.

A Suprema Corte também poderá começar a ser visada, sobretudo em relação à forma como os juízes são escolhidos. Como no Brasil, a escolha é feita por indicação do presidente, com forte influência ideológica. Sistema eleitoral e Suprema Corte passarão a ser temas de discussão no cenário político americano e poderão estimular esse debate também no Brasil.

*Foi embaixador do Brasil nos EUA


Míriam Leitão: Negros, latinos e jovens decidem

A eleição americana, que hoje tem seu dia D, está sendo marcada pelo acirramento do conflito racial. Foram mortes em série, desde George Floyd, e manifestações constantes. O que agravou a tensão foi a atitude do presidente Donald Trump de não manifestar solidariedade às vítimas e ainda se recusar a condenar grupos supremacistas brancos. O voto dos negros sempre foi majoritariamente contra os republicanos. Negros, latinos e jovens serão decisivos, indo ou não indo votar.

Os latinos também votam mais azul que vermelho, mas numa proporção menor que os negros. O banco de dados da Universidade de Cornell registra que, em 2016, 89% dos eleitores negros votaram na candidata democrata e 66% dos latinos. Juntos, negros e latinos são 34% do eleitorado. O grupo latino é tratado como unidade apenas para efeito estatístico, mas é muito heterogêneo. Há uma enorme diferença entre um brasileiro que foi para Nova York, um cubano de Miami ou o mexicano da Califórnia.

A tendência demográfica é de crescimento dos latinos. Para se ter ideia, 52% do acréscimo da população americana na última década foi de latinos. Eles são hoje 61 milhões, 10 milhões a mais do que em 2010, segundo o Census Bureau. E é o grupo étnico mais jovem, de idade mediana mais baixa. Os aptos a votar chegam a 32 milhões de eleitores, 18% do eleitorado. Nem todos votam, e nem todos os que podem votar estão interessados em fazê-lo. Uma pesquisa do Pew Research Center revela que apenas 54% da comunidade latina estava “extremamente motivada a votar”, enquanto no resto da população esse percentual chegou a 69%.

O que isso significará numa eleição em que o presidente é defensor dos valores mais radicais dos brancos não latinos, e que aprofundou a divisão racial, produzindo um movimento contrário de estímulo ao comparecimento às urnas?

Alguém pode concluir que, como sempre votaram mais nos democratas, isso não fará diferença. Mas nesta dramática eleição em que se joga o futuro do mundo, cada voto conta. Na Flórida, onde o eleitor latino tem mais inclinação republicana, houve um aumento de meio milhão de eleitores registrados em relação à última eleição, saíram de 2 milhões para 2,5 milhões. Porém há mais eleitores democratas entre os que se registraram. Há quase um milhão de eleitores latinos democratas na Flórida contra 640 mil republicanos. Flórida é um dos estados decisivos e é o terceiro em voto latino, depois da Califórnia e do Texas.

O eleitorado jovem deve bater este ano o recorde de comparecimento às urnas. O grupo etário não se dispõe muito para o ato de votar, mas as pesquisas feitas pelo Center for Information and Research on Civic Learning and Engagement (Circle) da Universidade de Tufts, mostravam, no dia 30, que em oito estados os eleitores jovens (18-29 anos) que anteciparam o voto já tinham superado o total de comparecimento desse grupo etário em 2016. Ao todo, sete milhões a mais do que os eleitores que compareceram às urnas na última eleição. Em 14 estados-chave eles podem decidir tanto a presidência quanto a disputa para o Senado. Um seminário em Harvard com vários especialistas chegou à mesma conclusão. Desta vez, os jovens estão indo às urnas.

Se não fossem todos os motivos para considerar que a derrota de Trump é o melhor desfecho para esta eleição, há ainda o fato de que a diversidade americana se amplia e o candidato republicano não consegue representar essa sociedade. Se os democratas vencerem, o posto de vice-presidente será ocupado pela primeira mulher, a primeira negra, a primeira pessoa descendente de mãe asiática e pai jamaicano a chegar nessa posição. E pela primeira vez haverá um second gentleman no país. Doug Emhoff será o primeiro judeu nesse quarteto, de presidente, vice-presidente e seus cônjuges. Emhoff deu uma pausa na sua carreira de advogado para se dedicar à campanha e é considerado uma das armas secretas por atrair também a comunidade judaica. O jornal “Washington Post” fez uma divertida matéria sobre ele, contando da amizade entre Kamala Harris e a ex-mulher dele, uma produtora de cinema de Los Angeles, Kerstin Emhoff. A matéria mostrava que ele tem feito perfeitamente o papel do “homem por trás de uma grande mulher”, invertendo a expressão sempre usada sobre as mulheres de homens públicos.


Rubens Ricupero: Maré antidemocrática está em jogo

Nenhum país possui a capacidade de pautar a agenda mundial como os Estados Unidos. A última vez em que isso aconteceu de maneira brutal e instantânea foi em 2016, com a eleição de Donald Trump. Antes, ao menos em duas ocasiões sucedera algo parecido: em 1932, com a eleição de Franklin Roosevelt, e em 1980, com a de Ronald Reagan. O que existe em comum entre personalidades tão contrastantes?

Todos foram homens de ruptura com o que se vinha fazendo até então, todos chegaram ao poder em meio a crises graves, todos tinham total autoconfiança na capacidade de mudar os acontecimentos. Os outros presidentes, mesmo Barack Obama, não foram homens de ruptura, não inauguraram novas eras, não mudaram o mundo.

Roosevelt encontrou um país prostrado pela Grande Depressão e o capitalismo em crise profunda. Reformou com o New Deal o sistema capitalista, inaugurou o Estado do bem-estar e o ativismo do governo em matéria social e econômica. Liderou os aliados na derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.

Sua influência só foi superada com Reagan, que abandonou o keynesianismo, sustentou que o governo era o problema, não a solução, desregulamentou as finanças, acelerou a globalização. Peitou Moscou na corrida armamentista, contribuindo para o fim da Guerra Fria e da União Soviética.

Esse poder americano de definir a agenda não depende só da riqueza ou da força militar. Tem muito a ver com o fato de que, há mais de 100 anos, os americanos fazem a cabeça do mundo com o cinema, a música, a TV, as histórias em quadrinho, o streaming, a internet, as mídias sociais. É um poder para o bem e para o mal, para construir e destruir.

No caso de Trump, tem sido para botar abaixo, destruir tudo, para começar virando pelo avesso as realizações de Obama. De um dia para o outro, a política internacional sofreu um terremoto.

Os EUA saíram do Acordo do Clima de Paris, repudiaram o acordo com o Irã, voltaram atrás no relacionamento com Cuba, atropelaram as regras da Organização Mundial de Comércio. A relação com a China virou confronto permanente, a Organização Mundial de Saúde foi abandonada. A maré populista antidemocrática, antiliberal, atingiu o apogeu.

Uma derrota de Trump agora truncaria a obra de demolição pela metade. Permitiria não voltar a 2016, mas reconstruir o mundo em novas bases com economia verde, mais igualdade, mais cooperação e menos confronto, prevenção de epidemias, avanço em direitos humanos, política de gênero, superação da guerra cultural fomentada pelo fanatismo religioso.

Está em jogo, como se vê, a própria possibilidade de futuro, pois quatro anos mais de negativismo de Trump talvez tornem irreversível a catástrofe do aquecimento global. Sairemos todos perdendo se Trump ganhar. Como não podemos votar nas eleições de 3 de novembro, resta-nos esperar que os americanos tenham sabedoria para salvar seu país e devolver ao mundo um mínimo de esperança.

*Rubens Ricupero é diplomata aposentado, jurista e historiador da política externa brasileira. Foi ministro da Fazenda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.


Folha de S. Paulo: 'Reeleição de Trump traria dúvidas até sobre eleições livres nos EUA em 2024', diz Yascha Mounk

Autor de 'O Povo Contra a Democracia' afirma que vitória de Biden seria batalha mais crucial que democracia terá conseguido vencer

Marcos Augusto Gonçalves – Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Num pleito presidencial épico, que mobiliza como nunca as atenções dos Estados Unidos e do mundo, a escolha entre a permanência do republicano Donald Trump na Casa Branca ou a eleição do democrata Joe Biden representará uma decisão histórica sobre o futuro da democracia.

“Uma vitória de Biden seria uma enorme dádiva para a democracia americana”, diz o cientista político Yascha Mounk, professor associado da universidade Johns Hopkins e autor de “O Povo contra a Democracia” (Companhia das Letras, 2019).

Em entrevista à Folha, ele avalia que uma eventual reeleição de Trump, o mais valioso aliado de governantes hostis às instituições democráticas, em países como Índia, Polônia, Filipinas e Brasil, aprofundaria a crise existencial das democracias e lançaria incertezas até mesmo sobre as perspectivas de eleições livres e justas nos EUA em 2024.

Mounk considera que Biden, caso eleito, enfrentaria dificuldades, mas tenderia a manter seu perfil moderado no governo, em que pesem as pressões que sofrerá, a começar pelas da ala mais à esquerda do Partido Democrata.

O cientista político também opina sobre o papel de um Trump relegado à oposição e levanta hipóteses sobre o futuro do Partido Republicano. Analisa, ainda, as possíveis mudanças nas relações que uma administração democrata teria com Rússia e China.

Uma vitória de Trump provavelmente reforçaria a onda conservadora internacional. No Brasil, seria quase uma vitória pessoal do presidente Jair Bolsonaro. No plano internacional, seriam mais quatro anos de ataques ao multilateralismo. A ameaça às democracias seria renovada? 

Nos últimos quatro anos Donald Trump enfraqueceu significativamente as instituições democráticas nos Estados Unidos. Além disso, tem sido o aliado mais valioso de populistas autoritários que procuram enfraquecer a democracia, em países que vão da Índia às Filipinas.

Se ele for reeleito, a crise existencial da democracia vai se intensificar. Nesse caso, deixaremos de ter a certeza de eleições livres e justas nos EUA em 2024 e será ainda mais provável que a democracia seja enfraquecida nos países onde ela está lutando para sobreviver neste momento.

Na hipótese de uma derrota de Trump, o populismo de direita tenderia, em tese, a se enfraquecer. Mas a polarização vai prosseguir de alguma forma. Você acredita que um Trump derrotado exerceria algum papel como opositor ou tenderia a sair de cena, como costuma ocorrer com ex-presidentes americanos? 

Uma derrota de Donald Trump será uma enorme dádiva para a democracia americana. Embora muitos dos problemas do país provavelmente devam continuar refratários, teríamos uma administração progressista, decente, de visão humanitária, que respeita os direitos de seus adversários no poder. Também seria a expressão do desejo de muitos americanos de superar o clima de confrontação e ódio mútuo dos últimos quatro anos.

Joe Biden venceu as primárias e pode vencer a eleição geral porque desde o primeiro momento sua candidatura apostou na ideia de que esta é uma luta pela reconciliação e pela alma da América. É claro que Donald Trump provavelmente se recusará a aceitar a legitimidade da eleição e fará o que puder para instigar a divisão por meio do Twitter.

Eu imagino, porém, que se for derrotado por uma margem mais ou menos ampla ele conseguirá atrair menos atenção do que tem sido o caso até agora. A atração que ele exerce sempre foi a do vencedor, mas, se ele perder e for rejeitado pela maioria da população americana, isso enfraquecerá sua posição seriamente.

Que cenários você imagina para o Partido Republicano em caso de uma derrota de Trump? Grupos mais moderados tenderiam a assumir o controle ou a resposta seria mais conflito e polarização? 

Nos Estados Unidos, um partido político só tem um líder claro, realmente, quando ocupa a Presidência ou está no meio de uma eleição presidencial. Assim, pelos próximos três anos, pelo menos, não estará claro qual seria a real situação pela qual o Partido Republicano estaria passando.

Haverá alguns republicanos tradicionais que tentarão levar o partido de volta para o terreno do conservadorismo, das políticas pró-empresas, dos impostos mais baixos e de algum grau de posições conservadoras em questões sociais. Em segundo lugar, haverá um campo populista que procurará sistematizar alguns dos instintos políticos reais de Trump.

Esse campo poderá, por exemplo, continuar a colocar pressão sobre as empresas de tecnologia, a tentar impelir o Partido Republicano a adotar políticas econômicas mais favoráveis à classe trabalhadora americana, a focar esforços na oposição à imigração. Em terceiro lugar, provavelmente haverá um campo de seguidores fiéis que continuará a derramar-se em elogios ao próprio Donald Trump ou que tentará instaurar um sucessor escolhido a dedo, que pode ser um dos membros da família do atual presidente.

É muito difícil prever qual desses três campos acabará vencendo em 2024. Há uma possibilidade de o Partido Republicano se moderar e retornar à sua forma tradicional, mas também é possível que seu líder seja Donald Trump Jr. ou alguém como o apresentador da rede Fox News Tucker Carlson. Portanto, serão quatro anos interessantes para observar os rumos do Partido Republicano.

Apesar das ameaças, ao menos em parte as democracias parecem resistir, como ocorre no Brasil. A ideia de que caminhamos para o fim das democracias ainda está viva? 

No último ano, mais ou menos, observamos a resiliência de democracias, mas também observamos o poder de resistência e permanência de populistas em todo o mundo. Em uma eleição muito importante, na Polônia, o partido populista conseguiu reeleger seu presidente.

Na Índia, Narendra Modi conquistou uma grande vitória recentemente nas eleições nacionais e agora está agindo com vigor renovado para enfraquecer a liberdade de expressão e os direitos da oposição. Nas Filipinas, a democracia, na prática, já morreu.

Se Biden ganhar nesta terça-feira, essa será sem dúvida a batalha mais importante que a democracia terá conseguido vencer, e isso deverá nos deixar otimistas quanto à nossa capacidade de travar batalhas futuras. Mas acho que ainda é cedo para previsões seguras sobre o desenlace dessa guerra futura.

Parece claro que o liberalismo como ideologia e proposta econômica vem demonstrando dificuldades em dar respostas para os desafios contemporâneos e para promover o desenvolvimento de nações emergentes. Há uma perspectiva em cena de governos com tendência a promover mais presença do Estado na vida econômica e social? Um vitória democrata nos EUA levaria a um governo mais preocupado com o Estado de bem-estar social? 

Precisamos distinguir os dois significados muito diferentes do termo “liberalismo”. O liberalismo, do modo como eu tendo a falar dele, é um elemento fundamental de nosso sistema político democrático.

É a insistência na ideia de que o presidente ou o primeiro-ministro não podem tomar todas as decisões ou qualquer decisão, de que haverá limites ao seu poder. A ideia de que é necessário conservar os direitos da oposição. De que precisamos que especialistas possam tomar decisões ou influenciar decisões sobre questões como saúde pública no meio de uma pandemia global. De que precisamos respeitar os direitos mesmo de indivíduos impopulares ou de minorias.

A importância do liberalismo nesse sentido foi comprovada ao longo dos últimos anos, quando vimos o impacto terrível causado por pessoas como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, que ignoram esses direitos.

Você parece estar empregando “liberalismo” em um sentido um pouco diferente, que talvez seja mais comum na América Latina, como um conjunto de ideias sobre o papel do governo na economia. E com certeza houve uma espécie de consenso nos anos 1990 e início dos anos 2000 de que o governo deveria se retirar da vida econômica e que o Estado deveria exercer o menor papel possível.

Esse consenso, na medida em que existiu, foi claramente equivocado de algumas maneiras importantes. Estamos vendo mais uma vez que precisamos de equilíbrio entre uma expansão da economia que ofereça, às pessoas de talento, oportunidades de criar novas empresas e produtos para ajudar no crescimento, e um Estado de bem-estar social muito robusto que garanta que os ganhos auferidos com esse crescimento sejam distribuídos justamente e que cada cidadão, independentemente de seu grau de êxito econômico, consiga levar uma vida digna, tenha acesso a atendimento médico decente, a uma moradia, à alimentação e à educação.

Existe certamente a esperança de que uma administração Joe Biden nos Estados Unidos possa ajudar a completar o Estado americano de bem-estar social. E isso talvez ajude a concretizar a mudança no tom prevalente sobre a política econômica.

Como você vê a crescente influência chinesa nesses cenários de redefinição das democracias? Já estamos no limiar de um século chinês? Ele será mais coletivista, tecnológico e autoritário? 

A China está claramente ganhando influência e autoconfiança crescentes. O país agora está mais interessado do que esteve no passado em influenciar as relações internacionais e a política interna. Isso inclui, em alguns casos, ataques reais contra a liberdade de expressão em democracias ocidentais. Essa influência é perigosa para a persistência dos valores liberais dentro dos países e entre eles. Precisamos fazer o que pudermos para resistir à influência chinesa indevida em nossos próprios países.

Ao mesmo tempo, acho que também existe uma oportunidade potencial aqui, porque o desafio a esses valores, a ameaça que vem do exterior à persistência da democracia, além do âmbito interno, pode facilitar a cooperação entre democracias do mundo em defesa do nosso modo de vida. Assim, o modo como nos contrapomos à ascensão do poder da China vai determinar se o mundo se tornará mais coletivista e autoritário ou se poderemos aproveitar isso como inspiração para lutar pelos valores democráticos.

Caso Biden vença, as relações com a Rússia e a China mudariam? 

Donald Trump gostou de Vladimir Putin, mas também de Xi Jinping. Teve relações calorosas com o general Sisi, mas também com Kim Jong-un. Mesmo em democracias ele tem preferido candidatos e líderes populistas, incluindo Jair Bolsonaro, a suas contrapartes mais moderadas.

Uma administração Biden certamente ficará mais do lado da democracia que da autocracia e mais do lado dos moderados que dos extremistas. Mas há uma questão à parte sobre o quanto os EUA realmente poderão fazer para se contrapor à influência russa e chinesa no mundo e até que ponto uma administração Biden se disporia a lançar mão de todos os meios para isso. É uma questão difícil, que teremos que observar nos próximos anos.

Você acredita que Biden conseguirá manter uma posição mais moderada se chegar ao poder? Ou ele seria pressionado a ceder terreno para a esquerda?

Joe Biden ganhou a indicação do Partido Democrata porque era o único candidato que não achou necessário ir muito longe à esquerda para conquistar os corações e mentes dos democratas. Durante a campanha eleitoral ele resistiu inúmeras vezes à ala radical de seu partido, por exemplo, mostrando-se muito mais disposto que outros a condenar a violência em alguns dos protestos que ocorreram nos EUA.

Assim, é muito provável que ele procure governar como moderado. Se ele obtiver uma vitória convincente, isso será mais fácil, sob alguns aspectos, na medida em que um número maior de deputados e senadores virá de distritos e estados indecisos que também precisam permanecer no centro da política. Ao mesmo tempo, é provável que a insatisfação da esquerda com Biden domine boa parte da esfera pública e seja expressa com destaque pela mídia.

Ele vai precisar preencher milhares de cargos e é provável que muitos dos indicados se situem à esquerda dele. Desse modo, ele poderia acabar empurrado para a esquerda. Se isso acontecer, temo que possa criar condições para o ressurgimento do Partido Republicano nas eleições parlamentares de 2022 e, potencialmente, na presidencial de 2024.

*Yascha Mounk, 38 Cientista político, com doutorado em Harvard, é professor associado da universidade americana Johns Hopkins, em Baltimore. É autor de “O Povo Contra a Democracia” (Companhia das Letras, 2019), livro que se tornou referência internacional nos debates sobre a ascensão do populismo autocrático em diversos países. Assina coluna mensal na Folha.


Ricardo Noblat: Na reta final, Trump une-se aos democratas contra os republicanos

Coisas da política americana

Imagine a seguinte situação. A poucos dias do segundo turno da eleição de 2022, ameaçado de não se reeleger, Jair Bolsonaro, aconselhado por assessores, concorda em negociar com a oposição um pacote de socorro aos brasileiros que mais sofreram com os efeitos da pandemia do coronavírus.

A oposição no Congresso quer um pacote o mais generoso possível. Bolsonaro está de acordo porque seria uma chance de não ser derrotado. Mas, o conjunto de partidos que apoia o governo é contra. Alega que suas bases eleitorais, predominantemente conservadoras, acham o pacote um exagero. Questão de ideologia.

Essa é a situação que vive neste momento o presidente Donald Trump. Ele e o Partido Democrata negociam um pacote que poderá injetar na economia algo como pouco mais de dois trilhões de dólares além do que já foi gasto até aqui com os americanos mais afetados pelo Covid-19. O Partido Republicano discorda.

Segundo o jornal The New York Times, o senador Mitch McConnell, líder dos republicanos, disse ontem a seus colegas que havia alertado a Casa Branca para não chegar a um acordo pré-eleitoral com a presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, a democrata Nancy Pelosi.

Pelosi e o Secretário do Tesouro, autorizado por Trump, já ultrapassaram a casa dos 1,8 trilhão de dólares na discussão sobre o tamanho da ajuda. Trump quer mais. McConnell garante que o máximo que os republicanos poderiam tolerar seria um pacote de 500 bilhões. Sem os votos dos democratas, não haverá pacote.

Em outra frente, Trump pressiona o Secretário de Justiça William Barr a abrir uma investigação sobre um novo e suposto escândalo que envolveria Joe Biden, candidato do Partido Democrata a presidente, e o laptop de seu filho Hunter. “Temos de fazer o Secretário de Justiça agir”, disse Trump à Fox News.

Um e-mail encontrado em um laptop que Hunter Biden teria deixado em uma assistência técnica daria conta que ele marcara uma reunião entre seu pai, à época vice-presidente de Barack Obama, e um funcionário da Burisma, empresa ucraniana de energia que pagava para ter Hunter no seu conselho de acionistas.

O jornal New York Post publicou a história cuja fonte original é Rudy Giuliani, advogado de Trump. O FBI investiga se o material entregue ao jornal está ligado a um esforço de desinformação russo. Biden afirma que o encontro nunca ocorreu. Trump abordará o assunto no debate de amanhã com Biden, o último.

Para Trump, na reta final da campanha, vale tudo para dar a volta por cima. As pesquisas de intenção de voto apontam Biden como favorito.


Ruy Castro: Perguntas à queima-roupa

Ver os repórteres em ação nas eleições americanas é um espetáculo instrutivo

A sucessão presidencial nos EUA tem oferecido um espetáculo instrutivo: ver repórteres americanos em ação. Ao entrevistar os candidatos ou assessores, eles não vacilam —um de cada vez, disparam à queima-roupa uma pergunta de, se tanto, dez palavras. O entrevistado não tem tempo para pensar. O ritmo da pergunta determina o ritmo da resposta. E esta nem sempre é a que o entrevistado pensava dar.

Entre nós, com respeitáveis exceções, é diferente. Nenhuma pergunta leva menos de um minuto. É precedida de um introito que esmiúça a questão, estende-se nos prolegômenos e sugere alternativas. O entrevistado escuta com a maior atenção. Quando a pergunta parece estar chegando à sua formatação final, com o esperado ponto de interrogação —“O que o senhor diria disso ou daquilo?”—, o repórter, para arredondar, envolve-a com duas ou três outras, que ele próprio responde, e só então cede a palavra ao entrevistado. O qual já teve tempo para burilar seu discurso e adequá-lo ao que sabe ser a forma ideal: falar sem dizer nada.

Bem, essa é só uma variação. Há outra, não menos comum: a das duas ou três perguntas feitas em sequência, cada qual sobre um assunto. Esse é o formato favorito de todo entrevistado —permite-lhe responder apenas a última pergunta ou a que lhe for mais conveniente. E, quando isso acontece, raramente se ouve uma insatisfação com a resposta ou um repique. Fica por isso mesmo, como se o importante não fosse a resposta, mas a pergunta.

Alguns entrevistados se dão ao trabalho de tentar responder a essa série de perguntas, indo ao fundo da memória para se lembrar de qual tinha sido mesmo a primeira, depois a segunda, a terceira etc. Mas só porque sabem que isso lhes garantirá mais tempo de câmera.

Os repórteres americanos podem aceitar como resposta um simples “Sim” ou “Não”. É o que basta para, às vezes, até derrubar um presidente.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Vinicius Torres Freire: A teoria do esgoto de Bolsonaro e Russomanno

Problemas graves borbulham, podem ferver e país parece ainda mais anestesiado

Celso Russomano (Republicanos) é o candidato de Jair Bolsonaro e da Igreja Universal à prefeitura de São Paulo. Disse a empresários da Associação Comercial desta cidade que os moradores de rua podem ser “mais resistentes do que a gente” ao coronavírus. Como não pegaram Covid em massa, diz o candidato, talvez tenham a imunidade das ruas, onde “convivem o tempo todo” e não têm como tomar banho todos os dias.

Para dizer a coisa de modo sarcástico, é uma teoria higienista ao contrário. Existe “a gente” e existem “eles”, os sem-banho, talvez imunizados pela aglomeração em uma espécie de espurcícia salubre. É uma variante da teoria do esgoto, de Bolsonaro.

Em 26 de março, quando ainda estavam para morrer 150 mil pessoas de Covid, o presidente desta República esgotada dizia o seguinte: “… o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele. Eu acho até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí”.

Bolsonaro e Russomano devem se banhar em alguma fonte de sabedoria estranha para “a gente” que esperava alguma revolta ou pelo menos comiseração por causa do morticínio. A indiferença, quando não troça, não causa danos relevantes ao prestígio “deles”. Não há organização ou interesse políticos suficientes para cobrar consequências dessas barbaridades.

Os poucos sinais de ira manifesta e coletiva contra o governo se esvaneceram desde julho. Não houve tumulto social algum, menos ainda saques, o que é fácil de entender. Os auxílios emergenciais mais do que cobriram a perda de renda dos mais pobres, na média, embora pesquisas registrem o aumento do número de pessoas que padecem de fome e o emprego para o povo miúdo não venha reaparecendo.

Mesmo as tretas, sururus e indignações entre as elites se dissipam rapidamente, embora alguns de seus motivos continuem a queimar ou ferver nos subterrâneos. Assim que chegaram algumas chuvas, foram passando os protestos mais ruidosos contra as queimadas e outras destruições da natureza. Parece que faz tempo, mas foi no final de setembro que o governo e seu centrão anunciou com estrondo e cara de pau que financiaria um Bolsa Família encorpado com uma pedalada, com o calote dos precatórios.

Como não há oposição política organizada ou partidos políticos com alguma articulação social mais relevante e extensa, tais reações em parte se dissolvem na espuma das mídias sociais, onde a cada minuto há nova maré alta de sujeira e bobagem.

É ilusão de que tudo passa, porém. Parte da finança e da grande empresa se organizou para evitar danos maiores da política do mau ambiente de Bolsonaro, por exemplo. Por falar em finança, as taxas de juros estão quase no mesmo nível para onde pularam no anúncio da pedalada dos precatórios. A degradação financeira e a desconfiança no país estão borbulhando e podem ferver.

Decisões sobre assuntos centrais e urgentes da política econômica foram adiados “sine die”: se haverá burla do teto, se o talho de mais de meio trilhão no gasto federal pode provocar recaída econômica, se haverá “reformas”, se haverá auxílios para os famintos de 2021, sem emprego, se o Brasil será rebaixado à última categoria dos párias ambientais e diplomáticos etc.

O país está anestesiado, imune à indignação geral, talvez por ter se acostumado à aglomeração de sujeira juntada por governantes e candidatos bárbaros.


Hélio Schwartsman: Trump e o espírito santo

Ou ele é um dos piores empresários do país ou um sonegador contumaz

Num furo histórico, o jornal The New York Times obteve as declarações do imposto de renda de Donald Trump, que, contrariando uma tradição de décadas entre candidatos e presidentes, ele sempre recusara mostrar. O resultado é arrasador.

Em 2016, ano em que foi eleito, ele pagou US$ 750 em impostos federais, uma ninharia não apenas para um suposto bilionário, mas para qualquer contribuinte. Eu próprio, no ano em que passei como "fellow" numa universidade americana, recebendo uma bolsa, gastei mais do que ele em tributos federais.

E fica pior. Trump pagou tão pouco porque alega sofrer enormes prejuízos em seus negócios. Se diz a verdade, é um dos piores empresários do país; se mente, é um sonegador contumaz. Não obstante, analistas não prognosticam nenhum efeito devastador sobre a corrida eleitoral. O presidente já disse que a reportagem é "fake news", e seus apoiadores tendem a acreditar nisso.

Parece haver uma classe de políticos que é quase invulnerável a escândalos e declarações absurdas. São às vezes chamados de candidatos teflon, pois nada grudaria neles. Trump está nessa categoria, assim como Bolsonaro, Lula, Maluf, Ademar de Barros. Eles sobrevivem a coisas como fama de ladrão, condenações judiciais e podem sem temor defender o indefensável. Não raro transformam tais passivos em ativos, que vão compondo uma espécie de mitologia pessoal. Por quê?

O primeiro a ensaiar uma resposta foi o sociólogo alemão Max Weber. Para ele, algumas lideranças, que chamou de carismáticas, são postas à parte do universo das pessoas comuns e passam a ser tratadas, ao menos por seus seguidores, como se tivessem poderes especiais ou mesmo sobre-humanos. Não é coincidência que Weber tenha ido buscar o termo "carisma" na teologia cristã. Só o espírito santo explica por que alguns "escolhidos" se livram tão facilmente de pecados que seriam fatais para políticos mais normais.


Dorrit Harazim: Trump coroado

O país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca

Leonard Cohen fez bem em morrer na véspera da eleição de Donald Trump em 2016. Deixou um vasto tesouro feito de palavras e música, entre elas a sublime “Aleluia”, canção-reflexão sobre amor e perda, espiritualidade e empatia. Muito da força desse hino à humanidade está no que ele deixa em aberto para interpretações múltiplas do que é ser, do que é viver. Difícil imaginar que Trump tenha sido fã do compositor canadense. Mais difícil ainda cogitar que Cohen algum dia se resignaria ao triunfo trumpista. Daí a vilania da rasteira post-mortem dada no artista por ocasião do festão de quinta-feira na Casa Branca: “Aleluia” foi entoada duas vezes, sem autorização dos herdeiros, na coroação do presidente-candidato à reeleição em novembro próximo. Nada transcendental, apenas um detalhe da grosseria em tudo o que leva a logomarca Trump.

Na cerimônia de encerramento da Convenção Republicana faltou apenas rebatizar o partido para Trump Party. De resto —da apropriação da Casa Branca como imobiliário do ocupante aos fogos de artifício proclamando “Trump 2020” sobre o Monumento a Washington —, o evento todo foi de adulação personalista. Nos jardins da “casa do povo americano” haviam sido plantadas 1.500 cadeiras para familiares e servidores públicos, não por servirem ao Estado, mas por serem servos de Trump. E, ao final de quatro dias de elegias, coube ao entronizado apresentar a sua versão fantasia de si mesmo.

Foi um discurso de 70 minutos que arrebatou a plateia. Mesclando fatos e ficção, o presidente proclamou-se predestinado guardião da Constituição e acenou com um futuro de grandeza nacional. Sobretudo, Trump incitou medo, recurso de eficácia comprovada em tantas eleições mundo afora. Richard Nixon disse o essencial em 1968 ao conquistar a Casa Branca: “As pessoas reagem a medo, não a amor. Ninguém aprende essas coisas em aula de catecismo, mas a verdade é essa.”

Na semana anterior, a Convenção Democrata também procurara definir Donald Trump como uma ameaça nacional — mas à democracia. O partido do presidente optou por retratar o país como uma presa da violência urbana. Uma escumalha de foras da lei e da ordem estaria a rondar os subúrbios brancos, governantes democratas seriam incapazes de conter o caos urbano, a China acabará com a bonança americana e, resumiu Trump, “ninguém mais estará em segurança nos Estados Unidos de Joe Biden”.

O presidente referiu-se ao adversário Biden 41 vezes, ora como incompetente desvertebrado — “está há 47 anos no Congresso e nunca fez nada” —, ora como “cavalo de Troia” a serviço da extrema-esquerda socialista.

Mas a estocada de Trump mais letal contra o adversário, e talvez a mais temida pela campanha democrata, ainda está por vir. Trata-se da reiterada insinuação do presidente de que Joe Biden, aos 77 anos, estaria com a acuidade cognitiva comprometida, portanto sem condições de liderar a nação.

Dias atrás Trump chegou a sugerir que os dois candidatos se submetessem a testes toxicológicos antes do primeiro debate presidencial, marcado para 29 de setembro, com divulgação dos remédios que cada um toma. Alegou ter observado que Biden apresentou-se apagado e confuso nos dez debates democratas coletivos, e que apenas no último, contra Bernie Sanders, apresentara vigor cerebral. O repórter do ultraconservador “Washington Examiner” quis saber se Trump estava sugerindo testes como os que lutadores fazem antes de subir no ringue.

“Sim”, respondeu o presidente, “debate é como uma luta entre gladiadores. Só que no debate você usa o cérebro e a boca. E também seu corpo. Quero debater em pé, não sentado como quer a comissão organizadora.”

A esse contexto que, por si, já parecia insólito, veio se juntar, também esta semana, um inesperado conselho público da presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, para Biden: recusar-se a debater com Trump no formato habitual. A falta de civilidade e a notória enxurrada de afirmações falsas do presidente tornariam o debate inútil, argumentou Pelosi. Por ora, Joe Biden descartou a sugestão. Ainda bem.

A tática do medo adotada por Trump contém um risco evidente — alardear para o caos num país que está sob seu comando há três anos e meio. O papel de presidente como espectador, não responsável pelas desgraças nacionais, só existe no planeta Trump, porque o país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca. Mas esse país real existe — ele tem 180 mil mortos por Covid, é formado por uma sociedade dilacerada pelo racismo, pela violência policial, esgotamento e desgoverno. É esse o país que vai votar. Ou deixar Donald J. Trump se reeleger. Rest in Peace, Leonard Cohen.