reportagem

Política Democrática online faz raio-x da pobreza na maior favela do Brasil 

Sol Nascente tem área equivalente a 1.320 campos de futebol do tamanho do que existe no estádio Mané Garrincha 

Cleomar Almeida 

A reportagem especial da sétima edição da revista Política Democrática online faz um raio-x da maior favela do Brasil. Sol Nascente está localizada na cidade-satélite de Ceilândia, a 35 quilômetros do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto. Vive uma explosão populacional sem precedentes na história, de acordo com estimativas da administração local.

» Acesse aqui a sétima edição da revista Politica Democrática online 

A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao Cidadania. Sem infraestrutura básica para a população, Sol Nascente abriga 250.000 pessoas, segundo dados da administração de Ceilândia, a maior cidade-satélite de Brasília. Os moradores são castigados pela falta de serviços de segurança, educação e saúde públicas, por exemplo, conforme relata a reportagem.

Apesar de já ser a mais populosa do DF, a comunidade é a que mais recebe novos moradores de outras regiões do país. Em 2010, abrigava 56.483 pessoas e, naquele ano, só tinha menos habitantes que a Rocinha, no Rio de Janeiro, onde moravam 69.161 pessoas, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que deve realizar novo levantamento no próximo ano.

Devido à sua localização em um morro, segundo a reportagem, a favela carioca passou a ter dificuldade para novas explosões populacionais, após registrar surtos de crescimento nas décadas de 1970 e 1980 e no início dos anos 2000. Sol Nascente, que completou 19 anos no dia 11 de maio, tem uma área plana de 943 mil hectares, o equivalente a 1.320 campos de futebol do tamanho do que existe no Estádio Mané Garrincha. Ceilândia, onde fica a favela, terá 448.000 habitantes em 2020, aponta projeção da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) com base em dados do IBGE.

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El País: O Brasil de Bolsonaro, segundo cinco famílias

O presidente acaba de entrar no terceiro mês de Governo. O EL PAÍS entrevistou, em cinco cidades, vários de seus eleitores e uma família que não o apoia para saber o que pensam de seus primeiros passos no Governo e sua expectativa para o futuro sob o mandatário

Por Joana Oliveira, Naiara Galarraga Gortázar, Afonso Benites, Liege Albuquerque e Naira Hofmeister, do El País

Há muitas décadas o Brasil não tinha um presidente como ele. Ultradireitista, militar da reserva, nostálgico da ditadura, linguarudo, abertamente homofóbico, racista e misógino. Mas também fazia anos que um chefe de Estado não gerava tanto entusiasmo (e tantos temores) no país. Jair Messias Bolsonaro completou dois meses no cargo, incluindo os 17 dias em que esteve hospitalizado, com uma aprovação pessoal de 57% e uma avaliação positiva do Governo de 39%, números que empalidecem em comparação com os 83% do Governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua despedida, mas que representam um aumento de otimismo depois do desencanto e do ceticismo que marcaram o período anterior.

Para sondar o Brasil de Bolsonaro, o EL PAÍS viajou a cinco cidades(Salvador, São Paulo, Manaus, Porto Alegre e Brasília), onde entrevistou famílias que encarnam os quatro pilares de seu programa de Governo (segurança, valores, economia e combate à corrupção) e uma quinta que representa o eleitorado que não votou nele nas eleições —Bolsonaro foi eleito com 55% dos votos contra 45% do adversário, Fernando Haddad (PT).

Salvador

Governo Jair Bolsonaro
O casal Rita Paim e Sérgio Pretto, de Salvador. RENATO ALBAN

SEGURANÇA | FAMÍLIA PAIM-PRETTO

Rita Paim, 52 anos; Sérgio Pretto, 60 anos.
Residência
: Salvador.
Prioridades: "Primeiro tem que colocar ordem e depois buscar o progresso. Isso é o mais importante para o Brasil agora"

Quando a Rita de Cássia Paim, representante farmacêutica de 52 anos, escutou pela primeira vez Jair Bolsonaro falar sobre segurança pública durante a campanha eleitoral, lembrou-se imediatamente do assalto à mão armada que sofreu na porta de sua casa, em Salvador. “Levaram meu carro, levaram tudo. Foi uma experiência horrível. Por isso votei no presidente: pensando em segurança”, conta, em seu apartamento de um bairro de classe média-alta de Salvador, a poucos metros da orla da capital baiana.

Em 2017, o Brasil bateu um novo recorde de mortes violentas, com 63.880 homicídios (sete por hora), e houve um aumento também no número de estupros (60.000). A Bahia é um dos Estados mais perigosos: detém o recorde de mortes violentas de jovens entre 15 e 29 anos, segundo o último Atlas da Violência. Somente em Salvador, com 2,6 milhões de habitantes, houve 80 latrocínios (roubo com morte) —um aumento de 27%— e cerca de 2.000 assaltos a ônibus, segundo as autoridades.

Rita e o namorado, o designer gráfico Sérgio Pretto, de 60 anos, fazem parte da minoria soteropolitana que votou em Bolsonaro no ano passado. Em Salvador, o então candidato do PSL perdeu em todos os colégios eleitorais e obteve apenas 31% dos votos válidos, contra 68% do candidato petista, Fernando Haddad. O agora presidente obteve seus melhores resultados nos bairros mais nobres da cidade, entre eles, a Pituba (onde vive o casal), e onde a crescente violência preocupa os moradores. “Somos nós que vivemos presos. Os comerciantes estão atrás de grades, nós trancados dentro de casa, temos medo de sair. Meu filho tem um comércio e vive assustado, deixa de abrir a loja no carnaval por medo do aumento de assaltos”, lamenta Sérgio, em uma sala com um grande oratório barroco, onde tem destaque a figura de um Cristo crucificado.

Ambos votaram no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante anos, até ele ser eleito, acreditando que “ele iria salvar o mundo”. Hoje, dizem-se decepcionados com o “desastre que foram os Governos Lula” e evitam até mesmo mencionar o nome do ex-presidente e do Partido dos Trabalhadores. Bolsonaro ganhou a confiança e admiração deles com suas propostas como a redução da maioridade penal (de 18 para 16 anos) e promessas de endurecimento das penas para criminosos. O casal, entretanto, ridiculariza o uso do termomito.“O cara tinha umas tiradas meio de doido, quando dizia que ‘tem que matar mesmo’, mas hoje ele expressa melhor essas ideias”, avalia Sérgio.

Ele e sua companheira celebraram a assinatura do decreto que facilita o posse de armas —a Bahia é o Estado com o maior número de mortes por arma de fogo (5.450, em 2016), de acordo com o Atlas da Violência—. “Bolsonaro está certo, porque o pessoal já tem arma, agora só vai legalizar isso. Você estará munido para defender-se”, diz Rita, que não se considera “capacitada” para ter uma arma de fogo. “As pessoas que são contra até falam que a violência contra a mulher aumentaria, mas as mulheres que são espancadas, que são vítimas de feminicídio, infelizmente continuarão morrendo com ou sem uma lei de posse de armas. É uma questão cultural, de educação da sociedade”, acrescenta o designer.

O casal também avalia positivamente o projeto de lei anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro (o primeiro juiz a condenar Lula por corrupção), que altera 14 legislações e endurece o combate à corrupção, ao crime organizado e a crimes praticados com violência.

E discordam dos opositores que, em defesa dos direitos humanos, discordam do presidente. “Esse negócio de ser bonzinho não dá certo. Direitos humanos para marginal? Bolsonaro está extremamente correto quando diz que vai ter tolerância zero e que os policiais poderão agir”, diz Rita. “Os direitos humanos são uma coisa que não sei para quê existe, sinceramente”, acrescenta Sérgio.

São Paulo

O pastor evangélico Marcelo Galdino com seu filho Levy em São Paulo.
O pastor evangélico Marcelo Galdino com seu filho Levy em São Paulo. LELA BELTRÃO

VALORES | FAMÍLIA GALDINO

Marcelo Galdino, 34 anos; Liliana Galdino.
Residência: São Paulo.
Prioridades: Que o Governo "desideologize as escolas"

O pastor evangélico Marcelo Galdino Júnior logo soube que Bolsonaro era seu candidato. Gostou dos valores que ele defendia, de seu discurso e suas promessas.

Galdino, de 34 anos, e sua mulher, Liliana, tinham vinte e poucos anos quando começaram a formar uma família que hoje inclui três filhos. Para eles, é prioridade que o novo Executivo se concentre na educação. E que, como dizem os bolsonaristas, "desideologize as escolas", explica ele no templo da Igreja Assembleia de Deus, em um bairro no sul de São Paulo, onde lidera 100 mil paroquianos. E isso significa que a escola dê a Giovanna (12 anos), Marcelo Levy (4 anos) e o bebê Pedro (18 meses) educação básica, mas não os eduque em valores. Esse capítulo da formação tem de permanecer em casa. E se forem falar sobre sexualidade na escola, que falem sobre biologia, não de ideologia, ele diz. "Nós educamos nossos filhos em valores cristãos. Se outras famílias querem educar os seus em outros, tudo bem, mas que façam isso em casa", enfatiza.

Este pastor explica assim qual é a primeira coisa que se espera do Governo de Bolsonaro em matéria de valores: "acabar com a ideologia implementadas pelo Governo anterior, que pretendia ocultar da mente de nossos filhos o que está na Constituição, que diz que a família é a união de um homem, uma mulher e seus filhos". Assim consta no artigo 226.3 da Lei Fundamental, mas há seis anos o Poder Judiciário legalizou as uniões gays. É precisamente por causa de decisões como essa que incomoda a Galdino que "o Supremo Tribunal legisle" sem que o Congresso se pronuncie. Ele argumenta que, se o Estado quer falar sobre "a questão de gênero" ou famílias com duas mães ou dois pais, deve fazer isso na universidade, "onde os alunos já têm discernimento", não com crianças como seu pequeno Marcelo Levy.

Galdino e seus fiéis encarnam o voto evangélico no Brasil, a pujança de uma comunidade que não para de alcançar novos patamares de poder social e político. Eles apoiaram Bolsonaro em massa até colocar os valores, a moral, no topo da agenda política. Se em 1991 representavam 9% dos brasileiros, duas décadas depois já eram 20%, segundo o último censo.

O templo de Galdino impressiona mesmo vazio. Pode abrigar até 2.700 pessoas. O pastor explica que este distrito de Santo Amaro é de comerciantes, "o que chamamos de classe B, mas pessoas de classes C e D vêm até aqui", porque a igreja está estrategicamente localizada ao lado da estrada, em um ponto de fácil acesso para muitos lugares da metrópole.

Este líder evangélico (e muitos outros como ele) encontrou na Internet um púlpito para falar sobre política a quem quiser ouvir (incluindo seus fiéis), sem infringir a lei. Galdino dedicou nada menos que 17 transmissões ao vivo de sua página no Facebook (que tem mais de 10 mil seguidores) a Bolsonaro e suas propostas eleitorais. Foram 17 porque esse era o número da candidatura do ex-capitão, que cresceu como candidato na rede social.

"Eu realmente gostei que no início deste Governo o ministro da Educação tenha anunciado que voltarão a dar português, matemática ...". Mas, agora, esses assuntos não são ensinados? "Sim, são, mas as escolas reforçaram o ensino da ideologia", insiste.

O pastor não tem urgência em mudar as leis que amparam o casamento homossexual ou o aborto (permitido em três casos). É tradicional, mas não fundamentalista. "Sou contra o aborto. Acredito que a lei atual já serve muito bem à sociedade", explica. Acha que seria bom que a norma fosse abolida, mas, para ele, é mais urgente no momento estimular a economia e combater o crime.

Galdino enfatiza que ele e sua mulher ensinam os filhos "que devemos respeitar todo mundo, seja qual for sua opção sexual, se são ricos ou pobres, se são negros ... somos todos iguais". O respeito pelos outros e à lei vigente são inegociáveis para ele. Também não se incomoda que Bolsonaro seja católico. Está animado que ele tenha transformado famílias como a sua em uma bandeira da mudança.

Porto Alegre

A família Prado Neves em sua casa, em Porto Alegre.
A família Prado Neves em sua casa, em Porto Alegre. TANIA MEINERZ

ECONOMIA | FAMÍLIA PRADO NEVES

Ereni (57), Gessian (29) e Anriel (24 anos)
Residência: Porto Alegre
Prioridades: Crescimento econômico e estabilidade de emprego para a família. Só a matriarca tem um emprego com carteira assinada na família

A família Prado Neves vive na periferia de Porto Alegre. “É a última travessa da Rua 9 de Junho antes de ela virar chão batido”, explica Anriel, 24 anos, referindo-se a uma das poucas vias que cortam a comunidade de cima a baixo. Partilham do mesmo otimismo com o que a maioria dos brasileiros encaram o início do Governo que acaba de começar, segundo as pesquisas. O que os Prado Neves realmente querem é que a economia brasileira cresça nos próximos anos. Esse é o grande desafio do novo presidente e os últimos dados foram piores que o esperado.  A economia brasileira cresceu 1,1% em 2018 em relação ao ano anterior, e a pífia expansão do Produto Interno Bruto (PIB) no último trimestre do ano anterior não refletem o otimismo do mercado e do setor privado com o presidente.

A matriarca, Ereni, é a única com contrato de trabalho registrado. Cuidadosa de idosos, lembra que já atendeu pacientes com bolsa de colostomia, como a que o presidente utilizava o final de janeiro, e se comove pensando que o presidente manteve a rotina de trabalho mesmo com essa limitação. “Não é fácil”, assegura. Seu filho, Anriel, dirige Uber. E sua filha, Gessian, 29 anos, foi mãe pela terceira vez e ainda não voltou a trabalhar. Somando os salários dos três, incluindo a ajuda social que Gessian recebe pelo Bolsa Família, este lar de seis pessoas se mantém com uma média de 3.000 ao mês.

Gessian espera sua filha Lara, de 10 meses, completar um ano, a idade mínima exigida pelas creches municipais de Morro da Cruz, para buscar emprego.“Se eu for pagar uma creche privada são 800 reais, vale mais a pena ficar em casa com ela”, diz. Ainda assim, está animada. Acha que a era Bolsonaro será positiva para encontrar uma colocação. Gessian tem experiência como vendedora no comércio local e em uma loja de departamentos, mas não faz questão de voltar para essa área. Pensa em fazer um curso que lhe abra portas em outro segmento com demanda, talvez técnica em enfermagem ou outra profissão na área da saúde, seguindo os passos de dona Ereni. E também espera que seu filho mais velho, Gabriel (14 anos), consiga começar a trabalhar pelo programa Jovem Aprendiz.

O que a matriarca da família Prado Neves quer para este ano é que a reforma da previdência —prioritária para o Governo controlar os gastos públicos— não atrapalhe seus planos de aposentadoria. Somando o tempo de juventude em que trabalhou na lavoura, plantando milho, soja e aipim, conseguiria se aposentar dentro de dois anos. “Vi que agora querem que as mulheres trabalhem até os 62, eu pretendo me aposentar com 57, mas acho que não vai dar problema para mim. Vai mudar mesmo para quem está começando”.

Anriel, o caçula de dona Ereni, foi um dos mais ativos defensores da candidatura de Bolsonaro em seu bairro na capital gaúcha. Contrariando as orientações da Uber de não mencionar suas preferências políticas aos passageiros, colocou um adesivo com a cara do agora presidente na traseira do seu automóvel —o que lhe rendeu algumas avaliações ruins por parte dos passageiros. Influenciada pela vitória do capitão reformado, o preço do dólar baixou desde as eleições. E isso é importante para Ariel, porque agora ele pode sonhar em comprar um kit multimídia para o carro e porque, supõe Anriel, isso pode ajudar a diminuir o custo de vida da família. “Com o diesel mais barato, a pessoa consegue fazer uma comida decente, porque tudo no Brasil é a base de caminhão".

Já não usa mais o adesivo no carro. O episódio da facada, que feriu o agora presidente gravemente, e a animosidade eleitoral o motivou Anriel a silenciar os gruposde WhatsApp pró-Bolsonaro.“A gente vê que não está em um país normal”, lamenta. Apesar das polêmicas e as suspeitas de corrupção envolvendo pessoas ligadas ao Governo, Anriel se mantém confiante. “Ele mesmo avisou que o começo seria ruim, duro, que poderia até piorar a situação, porque a dificuldade era muito grande”, justifica.

Brasília

Adalcyr Luiz da Silva em Brasília.
Adalcyr Luiz da Silva em Brasília. CADU GOMES

CORRUPÇÃO | ADALCYR LUIZ DA SILVA

Adalcyr Luiz da Silva (54), dentista e professor
Residência: Brasília
Prioridades: reformular o sistema político corrompido pela corrupção

Há quase quatro anos o ortodontista e professor universitário Adalcyr Luiz da Silva Júnior, de 54 anos, morador de Brasília, só liga a TV para assistir Netflix ou alguns poucos jogos de futebol. Antes, via pelo menos três telejornais diários. Agora, sua principal fonte de informação é a internet, além, é claro, as mensagens que chegam diariamente pelo WhatsApp – muitas das quais ele desconfia. Eleitor convicto do presidente, Adalcyr Júnior escolheu votar no capitão reformado principalmente por acreditar que estava no momento de alterar o sistema político que julgava estar corroído pela corrupção. “A maneira que eu encontrei de mudar esse mecanismo foi escolhendo um novo candidato. E, necessariamente, o candidato que estava mais distante do PT, que era o Governo então vigente, era o Bolsonaro”.

E o que ele espera do homem que, há pouco mais de dois meses despacha com sua caneta BIC no Palácio do Planalto? “O que eu quero de um presidente é que ele não tenha rabo preso. Eu não tenho presidente de estimação. Não tenho político de estimação”. Para os próximos anos, Adalcyr diz esperar uma melhora no combate à corrupção devido às propostas do presidente para a área. Mas ainda é um tanto cético. Afinal, na sua avaliação, a corrupção não acaba do dia para a noite, já que está arraigada na sociedade brasileira, sacudida pela Operação Lava Jato, que afetou vários partidos e empresas. Segundo a Transparência Internacional, a sociedade brasileira tem uma das piores percepções em relação à corrupção no país: ocupa a posição 105 entre 180 países, o pior resultado em anos.

“A corrupção no Brasil é um processo que está em todas as instituições. Não é só no Governo. No meu meio, mesmo, alguns colegas recebem um incentivo para poder estar indicando um determinado produto ou determinado medicamento. Isso não deixa de ser uma corrupção, porque você está tentando enganar as pessoas para que isso seja algo vantajoso”, disse. E resumiu: “Eu não acho que vá mudar, em quatro anos, toda uma cultura que já existe. Eu avalio que é um processo lento”.

Seu apoio a Bolsonaro, contudo, não é irrestrito, tampouco cego. Por exemplo, quando indagado qual nota (de 1 a 5) daria para as propostas de Bolsonaro no combate à corrupção ele foi relutante: “nota 3”. E explica a razão, dizendo que essa é uma média aritmética: “Se pegar sob o aspecto que corresponde o combate à corrupção e proposta, eu daria nota 5. Agora, quando eu vejo, situações relacionadas às atitudes de nosso presidente, principalmente no caso do [ex-ministro Gustavo] Bebianno eu daria nota 1”. Bebbiano, que foi chefe de sua campanha, foi demitido por Bolsonaro sob a suspeita de ter patrocinado um esquema de candidaturas laranjas do PSL no ano passado. A lógica de Adalcyr Júnior é que a mesma medida valeria para os filhos do presidente, caso se comprove alguma irregularidade cometida por eles.

Para a reportagem chegar ao ortodontista Adalcyr foi preciso percorrer uma espécie de périplo. Duas entrevistas antes da dele foram desmarcadas por razões semelhantes. Um dos eleitores que falaria com o EL PAÍS era um segurança de uma empresa particular que presta serviço para órgãos públicos. O outro, um gestor público da área de saúde. Ambos alegaram que seus chefes pediram para não tratarem de “assuntos espinhosos”.

O clima quase bélico das eleições do ano passado, em que o país se dividiu entre eleitores do PT e anti-petistas – ou bolsonaristas e anti-Bolsonaro – causaram um certo desconforto na família de Adalcyr. Ele, sua atual mulher, sua ex-mulher (com quem dois filhos) e seus cunhados votaram convictamente em Bolsonaro. Seus filhos, não. “Até hoje tenho uma relação um pouco estremecida com um dos meus filhos, que não concordava com a minha escolha”.

Manaus

Ana Claudia e Allan com suas filhas e a cachorrinha, em Manaus.
Ana Claudia e Allan com suas filhas e a cachorrinha, em Manaus. ALBERTO ARAÚJO

OS QUE NÃO VOTARAM | FAMÍLIA FILHO-CHAVES

Allan Kardec Filho (37 anos) e Ana Cláudia Chaves (38)
Residência: Manaus
Prioridades: Para o casal, quem conhece o passado de Jair Bolsonaro não teria votado nele. Casal não vê com otimismo o Governo

São empresários e votaram na contramão do Brasil e de Manaus, capital do Amazonas que detém 50% do eleitorado do Estado, onde vivem. Allan Kardec Filho, de 37 anos e Ana Claudia Chaves, de 38 anos, casados desde 2010, ex-vizinhos e namorados há mais de 20 anos, o casal tem origens diferentes, ele filho de empresários, ela filha de professor universitário, que convergiram num pensamento uno de esquerda. Ambos votaram em Fernando Haddad.

“Costumo dizer que Ana Claudia não é só a mulher que eu amo, é a que me salvou de um pensamento umbiguista”, diz Allan Kardec. Eles têm duas filhas: Ana Luiza, Raquel, uma cadela boxer (Greta) e seu filho Lula (em homenagem ao ex-presidente), e três gatinhos. O casal diz que não votou em Bolsonaro por considerar que qualquer pessoa que tenha estudado sua vida vida não votaria nele.

Para Ana Claudia, o discurso de Bolsonaro revela preconceitos contra as mulheres negras, algo que ela sentiu e combateu em sua vida. Toda suas expectativas em relação ao Governo são ruins. Só divergem entre eles em relação a quanto tempo irá durar. “Não vejo como esse Governo com decisões em WhatsApp e que usa Damares para distrair da reforma da Previdência possa durar mais que até o fim deste ano”, considera Ana Claudia. Já Allan Kardec acha que ele vai até o fim dos quatro anos. “A classe que o elegeu é teimosa e vai continuar apoiando seus atos, inclusive seu despreparo travestido em simplicidade tosca”.

Ex-chefe de gabinete em Brasília do então presidente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Jecinaldo Cabral, em 2012, Ana Cláudia estava no plenário quando Jecinaldo cuspiu no então deputado Bolsonaro, quando este lhe disse que deveria "comer pasto fora [do Congresso] para manter suas origens". "O que ninguém imaginaria àquela época é que ele pudesse ser o presidente da República um dia", disse a empresária.


Metrópoles: A tragédia de Mariana (MG) vista pela janela do trem EFVM

Metrópoles percorreu os 905 km da Estrada de Ferro Vitória a Minas para mostrar como a exploração mineral mudou a paisagem e rotina dos moradores da região

Por Eumano Silva, Portal Metrópoles

Todos os dias, à tarde, os irmãos Guilherme, 11 anos, e Vinícius, 7, sobem a passarela acima dos trilhos para ver o trem passar. Os dois garotos moram em uma casa verde construída ao lado da linha férrea, em Governador Valadares (MG), e se divertem com a gigantesca máquina em movimento sob seus pés. Acompanhados do pai, o motorista Ivair Silva dos Santos, 45, eles observam com atenção o trânsito de vagões carregados de minério de ferro ou de passageiros.

Estudiosos, falantes e cheios de planos, os dois meninos convivem bem com a proximidade da linha férrea. “A vida aqui é um pouco perturbada por causa do barulho, mas gosto de ver os trens para entender como funcionam”, conta o mais velho. “Tenho até vontade de ser maquinista”, diz o caçula, em alusão ao profissional responsável por conduzir os enormes aparatos mecânicos.

Igo Estrela/Metrópoles

Placehold

Guilherme e Vinícius, acompanhados do pai, Ivair Silva dos Santos, observam com atenção o trânsito de vagões da EFVM

Como acontece com boa parte dos habitantes da região, a família Santos aprecia os trajetos de trem. De vez em quando, pais e filhos percorrem o trecho até Vitória. “Não gosto muito da comida, mas a viagem é confortável e a gente pode ver a paisagem”, enfatiza Guilherme. “Vale a pena fazer esse passeio por causa da satisfação de olhar pela janela e por também poder andar nos vagões”, acrescenta Ivair.

A Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM) está presente no cotidiano da população de Governador Valadares e de dezenas de cidades desenvolvidas ao longo dos trilhos. Construída a partir de 1902 por iniciativa de empresários mineiros e capixabas, teve o primeiro trecho inaugurado dois anos depois. Desde então, os comboios carregam pessoas, bagagens e minérios em um percurso sinuoso – traçado, sobretudo, em função das margens do Rio Doce.

Estrada de Ferro Vitória a Minas

1904

Inauguração do primeiro trecho da Estrada de Ferro Vitória a Minas, construída por empresários de Minas Gerais e do Espírito Santo. Traslado entre os dois estados, principalmente de madeira extraída das matas

1906

Inauguração da Estação Colatina

1915-1918

Interrupção da obra em decorrência da Primeira Guerra Mundial

Década de 1920

Inauguração da estação de Ipatinga (MG)

1940

Na Estação Desembargador Drummond, no município de Nova Era (MG), primeiro trem carregado de minério de ferro de Itabira (MG). Exportação de 5.750 toneladas do porto de Vitória para os Estados Unidos

1942

Nacionalização da EFVM pelo governo Getúlio Vargas. Fundação da estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)

1944

Inauguração da Aços Especiais de Itabira (Acesita). Aço produzido na fábrica segue, pela ferrovia, para os portos de Vitória

1950

Troca das locomotivas a vapor pelas movidas a diesel. EFVM compra cinquenta dessas máquinas

1954

Vagões de aço substituem os de madeira

1958

Criação da Usiminas, em Ipatinga (MG)

1968

Inauguração de um estaleiro de soldas em Governador Valadares (MG), para auxiliar na montagem de trilhos

Década de 1970

Duplicação de toda a ferrovia da EFVM e instalação do Controle de Tráfego Centralizado, para supervisionar todas as operações da via férrea

1984

EFVM atinge a marca de 1 bilhão de toneladas transportadas desde a inauguração

1997

Privatização da Companhia Vale do Rio Doce

2007

CVRD passa a se chamar Vale

2014

Aquisição de novos trens, da Romênia, mais seguros e confortáveis

No final de 2018, a EFVM é a única linha ferroviária de passageiros que opera diariamente no Brasil. Todas as manhãs, às 7h, um trem sai de Cariacica, na grande Vitória, com destino a Belo Horizonte. Meia hora depois, um comboio semelhante deixa a capital mineira rumo ao Espírito Santo.

Pelas janelas dos vagões, os viajantes vivem um pouco do ambiente que, no passado, inspirou poetas e compositores. Em 1960, Manuel Bandeira escreveu o poema Trem de Ferro, eternizado na música de Tom Jobim: “Foge, bicho/Foge, povo/Passa ponte/Passa poste/Passa pato/Passa boi/Passa boiada/Passa galho/De ingazeira/Debruçada/Que vontade/De cantar!”.

Igo Estrela/Metrópoles

Placehold

A Estrada de Ferro Vitória a Minas faz parte do cotidiano da população mineira

Em outro clássico do século passado, o poeta Ferreira Gullar fez a letra de Trenzinho do Caipira, composição do maestro Heitor Villa-Lobos. “Lá vai o trem com o menino/Lá vai a vida a rodar/Lá vai ciranda e destino/Cidade e noite a girar/Lá vai o trem sem destino/Pro dia novo encontrar/Correndo vai pela terra.”

Cerca de um milhão de pessoas embarcam e desembarcam todos os anos nas 30 estações distribuídas pelos 905 quilômetros da EFVM. Os trens transportam mais de 100 milhões de toneladas de 40 tipos de produtos, com destaque para o minério de ferro extraído e exportado pela Vale S.A., antiga Vale do Rio Doce, ex-estatal, privatizada em 1997.

Mapa

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No mesmo ano, a empresa tornou-se concessionária da Estrada de Ferro Vitória a Minas, contrato válido por três décadas. Na perspectiva da população local, a Vale e os trens proporcionam momentos de alegria para crianças e têm significativa importância no transporte das famílias.

Os vagões carregados de pedra também simbolizam adversidades traumáticas para os moradores das cidades e fazendas ribeirinhas. O rompimento da barragem do Fundão, no município de Mariana (MG), em novembro de 2015, provocou a inundação do Rio Doce com lama de rejeitos de mineração.

A Vale é sócia da Samarco, empresa responsável pela represa rompida. As pedras retiradas das minas produtoras de despejos iguais aos que entupiram mais de 600 km do Rio Doce e chegaram ao Oceano Atlântico são escoadas pela ferrovia como commodities.

Igo Estrela/Metrópoles

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O avanço da atividade mineradora foi ancorado no transporte sobre os trilhos da EFVM

Maior desastre ambiental do país, a tragédia destruiu povoados, matou 19 pessoas e arrastou os detritos das escavações realizadas nas montanhas mineiras até o Oceano Atlântico, mais de 600 km abaixo da obra rompida. Para arrancar milhões de toneladas de pedras transportadas pelo trem Vitória-Minas, as mineradoras têm construído gigantescas represas, como a do Fundão, para despejar rejeitos.

Tragédia de Mariana

1973

Criação da empresa Samarco, sociedade entre a brasileira Samitri, pertencente à Belgo-Mineira, e a norte-americana Marcona Mining Company

1984

Grupo australiano The Broken Hill Proprietary Company Limited (BHP) adquire controle da Marcona

2000

Privatizada, a Companhia Vale do Rio Doce compra a Samitri

2008

Início das obras da barragem do Fundão

5 de novembro de 2015

Estouro da barragem provoca avalanche de lama e rejeitos e invade os primeiros povoados

Novembro de 2015

Nos dias seguintes, indígenas da reserva Krenak, cortada pelos trilhos, fecham a ferrovia no município de Resplendor (MG) e fazem manifestação contra o impacto da sujeira no Rio Doce

21 de novembro de 2015

Pelo leito do Rio Doce, lama da Samarco chega ao Oceano Atlântico

Março de 2016

No município de Belo Oriente (MG), moradores bloqueiam a linha férrea para cobrar ações da Samarco

Maio de 2016

Em Baixo Guandu (ES), habitantes interditam a linha férrea para exigir pagamentos e auxílios da Samarco

Lançado em outubro deste ano, o livro Tragédia em Mariana: a história do maior desastre ambiental do Brasil Escrito, de autoria da jornalista Cristina Serra, faz uma reconstituição minuciosa e primorosa da catástrofe. A obra conta o drama das comunidades assoladas pelos destroços e revela as falhas de engenharia e gerenciamento que levaram ao rompimento da barragem.

A jornalista fez um resumo dos danos causados na zona rural. “Das 195 fazendas atingidas, 25 foram totalmente destruídas. A lama arrastou tratores, ordenhadeiras, motores, bombas, tanques de leite e balanças, num total de 293 máquinas e equipamentos. Mais de 160 mil metros de cerca e 1.596 animais, a maioria gado, foram levados na enxurrada”, relata Cristina.

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Antes de trafegar com os vagões abarrotados de minério de ferro, a EFVM firmou-se, na primeira metade do século 20, no escoamento de madeira extraída das matas de Minas Gerais e do Espírito Santo. Em 1943, depois de estatizada, a ferrovia ganhou um ramal até Itabira.

A expansão da mineração na região central de Minas Gerais e no vale do Rio Doce a partir da década de 1960 preservou a importância econômica da ferrovia. Os professores Bruno Milanez, da Universidade Federal de Juiz de Fora, e Cristiana Losekann, da Universidade Federal do Espírito Santo, produziram o livro Desastre no Vale do Rio Doce: antecedentes, impactos e ações sobre a destruição, lançado em 2016.

Na obra, os dois acadêmicos apresentam um histórico detalhado do avanço da atividade mineradora, ancorada no transporte sobre os trilhos da EFVM, e das consequências do rompimento da barragem do Fundão.

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“Na trajetória da exploração mineral, a Segunda Guerra Mundial promoveu novas funções econômicas para a bacia do Doce, especialmente com a intervenção do governo brasileiro ao assumir a EFVM por meio da Companhia Vale do Rio Doce, criada com o fito de explorar o minério de ferro de Itabira”, diz trecho da publicação.

Essa nova frente de exploração das riquezas naturais patrocinou a instalação, em 1943, de um ramal ferroviário até Itabira (MG). O governo Getúlio Vargas tinha interesse em extrair o minério de ferro até a cidade imortalizada nos versos de Carlos Drummond de Andrade no poema Confidência do Itabirano: “Itabira é apenas uma fotografia na parede/Mas como dói”.

Três anos depois da tragédia, o verde da vegetação ocupa as áreas cobertas de lama em 2015. Parte da reconstituição se deve aos trabalhos da Fundação Renova, instituição criada pela Samarco para executar medidas que atenuassem os danos acarretados pelo barro e reduzissem os prejuízos causados à imagem da empresa.

Desde o fatídico episódio, a comunidade de Governador Valadares não confia no líquido das torneiras – seja para beber ou cozinhar. Muitas famílias compram água mineral. Outras recorrem a poços artesianos ou a nascentes da região. “Busco em uma mina a uns seis quilômetros de distância. Às vezes, tenho até vontade de mudar daqui por causa dessa situação”, conta o motorista Ivair.

Em Colatina (ES), a sujeira produzida pela mineradora Samarco complicou a vida do agricultor Gilberto Pereira Freitas, 41, e de sua companheira, Rosa Cordeiro, 48. O incômodo perdura três anos depois do rompimento da barragem do Fundão.

Sem confiança para utilizar a água disponibilizada pela prefeitura, duas vezes por semana o casal recorre a uma mina na periferia da cidade a fim de pegar cerca de 60 litros do líquido. “Usamos para beber e fazer comida”, explica Gilberto, enquanto enche os garrafões.

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Em Colatina (ES), a sujeira produzida pela mineradora Samarco complicou o acesso à água

Os danos provocados pela tragédia estimularam protestos da população atingida. Em três momentos, a regularidade do trem restou prejudicada. Ainda em novembro de 2015, no município de Resplendor (MG), os indígenas da reserva Krenak, que é cortada pelos trilhos, fecharam a ferrovia para se manifestarem contra o impacto da sujeira no Rio Doce. A vida e as tradições desse povo giram em torno do rio.

Nos municípios de Belo Oriente (MG), em março de 2016, e de Baixo Guandu (ES), em maio do mesmo ano, moradores bloquearam a linha férrea com o objetivo de cobrar da Samarco o pagamento de auxílio para vítimas da catástrofe e o restabelecimento da distribuição de água.

A presença da atividade econômica que motivou o estrago ambiental fica evidente na geografia vista da janela do vagão. Montanhas recortadas por máquinas escavadoras e leitos de rio tomados por resíduos das jazidas denunciam a agressividade da extração mineral em grande escala.

O desastre de Mariana matou quase toda a população de peixes do Rio Doce e afetou a vida dos ribeirinhos. Dentro do vagão, o pedreiro Roberto Carlos Siqueira, 51, se recorda de quando pescava para reforçar a renda da família. Depois da lama do Fundão, os cardumes praticamente desapareceram.

“Ninguém mais compra os peixes do Rio Doce, as pessoas pensam que estão contaminados”, reclama Roberto Carlos, que morou em uma ilha fluvial entre 1990 e 1994. Outra tragédia, desta vez pessoal, complicou ainda mais a sobrevivência do pescador. Ele também trabalhava como vaqueiro e pedreiro, isso até cair de um andaime e quebrar uma perna e os dois braços – após o acidente, foi obrigado a usar muletas.

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Roberto Carlos Siqueira perdeu renda, pois parou de pescar após os cardumes praticamente desapareceram do rio

Roberto Carlos mora em uma fazenda da família. Com frequência, pega o trem para ver um filho que reside em Ipatinga (MG), no Vale do Aço. As amplas acomodações facilitam os deslocamentos. “Enquanto Deus me der vida e saúde, vou usar essa ferrovia”, diz o ex-pescador. “A viagem é mais segura e mais barata do que se fosse de ônibus”, conclui.

O bilhete de Belo Horizonte a Cariacica, maior percurso, custa R$ 73,00 na classe econômica. Na Executiva, mais espaçosa, é cobrado o valor de R$ 105,00. De ônibus convencional, paga-se pelo menos R$ 119,00 – na categoria mais confortável, a mesma viagem sai por cerca de R$ 150,00.

Outra entusiasta das viagens de trem sofreu as consequências da enchente de sedimentos. Funcionária pública e moradora de Governador Valadares, Edna Aparecida de Souza, 56, precisou comprar galões de água para beber, fazer comida e lavar roupa. “Só resolvemos a situação depois que meu irmão mandou furar um poço artesiano”, diz.

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Edna Aparecida de Souza é passageira assídua do transporte ferroviário

Há mais de 30 anos, Edna usa os serviços da estrada de ferro. Na maioria das vezes, para fazer percursos curtos. Mas, recentemente, esticou a jornada até Belo Horizonte. “Gostei demais da cidade, vou pegar o trem para ir lá outras vezes”, comenta.

Raísa Zan tem 27 anos e, desde os dois, conhece os vagões da Estrada de Ferro Vitória a Minas. Ela nasceu e vive em Resplendor (MG). Regularmente, visita a avó em Ipatinga. As duas cidades ficam na beira da ferrovia. “Este trem marcou todas as gerações daqui, desde meus avós. Faz parte da nossa cultura”, ressalta a jovem, enquanto olha para a geografia do vale do Rio Doce.

Formada em Relações Internacionais, Raísa morou, nos últimos anos, na Colômbia e nos Estados Unidos, onde se acostumou com o transporte ferroviário. “Eu ia muito de Peabody, no estado de Massachussets, para Boston”, relata.

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“Este trem marcou todas as gerações daqui, desde meus avós. Faz parte da nossa cultura”, salienta Raísa Zan

Na memória de Raísa, porém, permanecem nítidas as lembranças dos passeios de infância sobre os trilhos mineiros. “Para falar a verdade, tenho saudade do tempo em que não tinha ar-condicionado. As janelas eram abertas e os moradores de Tumiritinga vendiam cocada e pé-de-moleque para os passageiros”, recorda-se, ao fazer alusão a mais um município de Minas Gerais cortado pela linha de ferro.

Dos tempos de criança, ela também se lembra do pó de minérios que entrava pelas laterais dos vagões. “Chegávamos em casa com o corpo coberto por uma camada brilhante, isso era uma grande brincadeira para a meninada”, menciona.

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A mudança que permitiu a refrigeração da viagem ocorreu em 2014, quando a Vale comprou 56 novos vagões para substituir os antigos. Fabricados na Romênia, os carros importados têm padrão semelhante ao dos trens que circulam na Europa. Os vidros fechados acabaram com o comércio informal de comida.

Hoje, os passageiros têm um vagão-restaurante e outro com lanchonete para comprar alimentos e bebidas sem álcool. O almoço simples – arroz, feijão, farofa e carne – é servido ao preço de R$ 16,00. Um carrinho com biscoitos, sucos e café circula pelos vagões.

Para Tania Marcia da Silva Dornelas, 56, os deslocamentos de trem sempre fizeram parte da programação da família. Depois de se casar, mudou-se para Pompéu (MG), cidade beneficiada por uma ferrovia conectada à Vitória-Minas. Como os pais dela tinham fazenda em Resplendor, as idas ao local eram frequentes.

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De acordo com Tania Marcia da Silva Dornelas, viajar sobre os trilhos era sinônimo de diversão para a garotada

Muitas vezes, Tania levou turmas de sobrinhos para passear de trem. Chegou a viajar com 16 crianças. “As viagens eram as melhores para a meninada, pois podiam brincar. Os pais também ficavam tranquilos, por causa da segurança”, diz a passageira. Mais de uma vez, ela convidou vizinhos de Pompéu para conhecer as belezas naturais da propriedade rural.

No mesmo vagão, viaja Madalena Zeferino de Oliveira, 60, moradora de Juatuba (MG). A aposentada usa a ferrovia desde os 13 anos e guarda na memória as mudanças no trem e na paisagem. No dia da entrevista concedida ao Metrópoles, ela estava acompanhava os pais, que moram em Conselheiro Pena, outra cidade do vale do Rio Doce.

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“A vantagem das janelas fechadas é que não entra mais poeira dentro dos vagões”, conta Madalena Zeferino de Oliveira

Apesar do tom nostálgico usado para falar do passado, Madalena aprecia as novidades. “A vantagem das janelas fechadas é que não entra mais poeira dentro dos vagões. Às vezes, a gente ficava sujo com o carvão dos vagões de carga. Agora, é tudo mais limpinho”, pontua.

Manifestações saudosistas são comuns entre usuários e profissionais das ferrovias. O mecânico aposentado José Idemar Nunes, 68, vive desde a infância em uma casa colada à linha de trem, do outro lado da passarela usada pelos garotos Guilherme e Vinícius. “Sou do tempo da maria fumaça”, diz, referindo-se às locomotivas movidas a lenha, usadas até meados da década de 1950.

Ativas desde o início da ferrovia, essas máquinas foram substituídas por outras mais modernas, a diesel ou elétricas. “Com tanto tempo aqui, para mim, o barulho do trem é como canção de ninar”, acrescenta.

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José Idemar Nunes vive desde a infância em uma casa colada à linha de trem

Com boa parte do tempo ocupada nos cuidados com a mulher, que se encontra doente, Idemar cruza quase todos os dias a ferrovia pela passarela para, do outro lado, tomar uma dose de cachaça em uma mercearia. Dos tempos de criança, ele guarda as lembranças do futebol jogado com os amigos perto da ferrovia.

Hoje, muros paralelos aos trilhos impedem esse tipo de diversão arriscada. A meninada tinha outro hábito, ainda mais perigoso. “A gente costumava jogar pedras no trem, só de brincadeira”, revela.

A melancolia aparece com mais força nas palavras de João Batista Lima Freitas, 66, ex-maquinista das locomotivas da Vale. Depois de trabalhar por 23 anos na empresa, ele se aposentou da profissão que escolheu muito cedo. “Desde menino, eu sonhava em conduzir esses trens”, confidencia.

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“Desde menino, eu sonhava em conduzir esses trens”, confidencia João Batista Lima Freitas ex-maquinista das locomotivas da Vale

Em entrevista concedida ao Metrópoles na praça em frente à estação de Governador Valadares, João Batista deu algumas explicações básicas sobre a máquina de ferro. Contou, por exemplo, que os trilhos da estrada Vitória-Minas são de bitola estreita, adequada para uma linha que serpenteia no caminho traçado pelo Rio Doce.

“Bitola” é o padrão adotado por uma ferrovia para definir a largura entre os trilhos. No caso da EFVM, a distância é de um metro. Com essa característica, as curvas não podem ser tão fechadas e a velocidade máxima é inferior à das linhas de bitola mais larga. A Estrada de Ferro Carajás, entre o Pará e o Maranhão, por exemplo, usa outro padrão, com 1,6 metro de largura.

As memórias do ex-maquinista preservam um episódio angustiante vivido em Aymorés (MG). Certa noite, João Batista conduzia o trem a uma velocidade de 47 km/h na travessia da cidade quando um homem pulou na frente da locomotiva. Sem tempo para frear, atropelou o cidadão, jogado a muitos metros de distância.

Sem saber o que tinha acontecido, seguiu viagem e, somente no dia seguinte, soube detalhes da ocorrência. Antes de se jogar nos trilhos, o homem tentou suicídio ao pular de um caminhão em movimento, mas, ao cair em cima de umas plantas, sobreviveu.

Em mais uma tentativa de tirar a vida, o sujeito saltou dentro de um rio. Embora não soubesse nadar, fracassou novamente em seu intuito, pois foi parar em um banco de areia.

Para surpresa do maquinista, o homem também havia falhado na noite anterior. Por mais incrível que pareça, depois do impacto do trem, ele se levantou e, em seguida, saiu do local caminhando. A descoberta foi um alívio para João Batista.

Casos alegres e tristes compõem o vasto repertório vivido por viajantes frequentes ou esporádicos, de todas as idades, levados pelos trilhos da EFVM nas montanhas de Minas e do Espírito Santo. O movimento cadenciado dos vagões embala os sonhos de crianças, a exemplo de Guilherme, o menino que quer conduzir locomotivas, e também de pessoas já adultas, como João Batista, o ex-maquinista que sente saudade do tempo em que comandava comboios de até três quilômetros de comprimento.

De suas poltronas, os passageiros contemplam cenários cinematográficos. Montanhas verdes, rios, cachoeiras, fazendas e faixas de reservas florestais. Os viajantes veem também matas devastadas devido à retirada de madeira e aos morros esburacados pelas máquinas da mineração, imagens que testemunham a ocupação, desde o início do século passado, do corredor de exploração econômica aberto em torno da EFVM.

Tragado pela enchente de lama da Samarco, o Rio Doce segue seu curso e arrasta, há três anos, os despojos da terra escavada durante a mineração descontrolada. Nas suas margens, o povo padece em razão da falta de água limpa. Pela janela do trem, passa um pouco da história do Brasil.