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Adriana Fernandes: Renda Cidadã x Renda Brasil

Quem acredita que vai dar tempo para erguer um novo programa social até o fim de novembro?

Para tudo! O presidente Jair Bolsonaro decretou que até as eleições “não se fala mais nisso daí”. O isso daí são as medidas que precisarão ser tomadas para solucionar um problema que está estampado numa reportagem do Estadão desta semana: o fim do auxílio emergencial deve devolver 15 milhões de brasileiros à pobreza no próximo ano. A previsão foi feita pela FGV Social em levantamento coordenado pelo economista Marcelo Neri, que constata: é cristalino que isso vai acontecer.

Para “varrer o PT do Nordeste”, na expressão de um auxiliar do governo, o presidente e aliados promoveram a prorrogação do auxílio emergencial até dezembro. Mas agora é hora dos aliados ganharem a eleição.

Todos contam com a falta de tempo para a solução do problema para empurrá-lo para 2021 quando o cenário político poderá ser outro com um rearranjo de forças. Quando a eleição acabar (o segundo turno está marcado para o dia 29 de novembro), quem acredita que até lá vai dar tempo para erguer o novo programa social? No Palácio do Planalto, espertamente, já se fala em mudanças por meio de dois programas: Renda Cidadã e Renda Brasil.

É por isso que não há confusão de nomes quando o ministro Paulo Guedes prefere usar Renda Brasil ao se referir ao programa social. Muitos viram no uso do nome mais antigo falha ou esquecimento do ministro. Foi proposital.

O Renda Brasil é o programa que a sua equipe trabalha e que estaria tecnicamente pronto, só faltando a coragem dos políticos para fazê-lo. Uma reformulação de 27 programas já existentes. Ao longo da semana, o ministro repetiu esse ponto várias vezes como quem diz: prestem atenção! Não foi confusão.

O Renda Cidadã pode se transformar na ponte até o Renda Brasil. Um Bolsa Família melhorado até que o Renda Brasil chegue mais adiante. Esse, sim, o programa-plataforma para reeleição de Bolsonaro.

Com o impasse do que cortar e a pressão do mercado para manter o teto, essa estratégia pode dar um pouco mais de fôlego para a equipe econômica conseguir apoio às medidas de corte de despesas e, assim, colocar o programa social dentro dos limites do teto.

Diante da urgência que o momento exige com a proximidade do fim do auxílio, porém, ganha força no Congresso a proposta de deixar os recursos extras do novo programa social (além dos R$ 35 bilhões já previstos no Orçamento de 2021) fora do teto de gastos. Uma exceção temporária até que o Congresso aprove medidas de ajuste mais duras e que não têm tempo de avançar até o fim do ano. Para mostrar compromisso com austeridade fiscal mesmo com essa flexibilização do teto de gastos, os recursos do programa fora do teto seriam compensados com aumento da carga tributária, corte de renúncias fiscais ou outras medidas que melhorem a arrecadação.

Funcionaria com um benefício variável temporário para superação da crise com um valor próximo aos R$ 300 dessa terceira e última rodada do auxílio. A vantagem para quem defende a ideia é que essa despesa adicional poderia fugir do conceito de despesa de caráter continuado e permanente, de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, exigindo um nível de redução para fins de compensação orçamentária menor.

Esse tipo de saída vai na direção proposta pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em artigo publicado pelo Estadão, FHC sugere que o governo poderia mexer na regra fiscal para, ao mesmo tempo, abrir espaço orçamentário para o gasto e não provocar uma reação muito negativa do mercado. Uma saída organizado desse tipo para o impasse atual ainda encontra resistência dos defensores puristas do teto de gastos no mercado, governo e Congresso, entre eles Paulo Guedes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Maia e Guedes se alinharam na defesa do teto de gastos sem mudanças, que ajudou a diminuir o nervosismo, mas não tirou do radar as incertezas fiscais, que estão colocando o País à beira de uma crise da dívida na sequência da provocada pela pandemia da covid-19.

Políticos e até mesmo economistas experientes do mercado já viram que esse caminho está cada vez mais próximo. A dúvida é saber qual imposto vai subir ou isenção acabar. Se Maia começar a aceitar, vai ser a senha para a mudança. Quando novembro chegar e a eleição acabar, a pressa de dar uma solução deve levar à essa mudança de rota.


Vinicius Torres Freire: Pedalada de Bolsonaro e Guedes bota fogo nos mercados do Brasil dos incêndios

Governo quer dar calote, furar o teto e passar a conta dessa mutreta para o Congresso

A gente esperava que o governo inventasse uma gambiarra a fim de arrumar dinheiro para o Renda Cidadã. Isto é, uma malandragem qualquer para furar o teto de gastos e tentar fingir que não aconteceu nada. Mas a cara de pau foi grande. O governo quer fazer uns R$ 40 bilhões de dívida extra, 0,5% do PIB, fingindo que não. É pedalada.

A esperteza é que Jair Bolsonaro quer pôr essa mutreta na conta do Congresso. Não quis cortar o abono salarial ou congelar os benefícios do INSS, necessário para fazer o Renda Cidadão e manter o teto de gastos. Também não teve coragem e capacidade de propor uma reforma séria do teto. O que sugere então? Calote e mão grande.

Quase todo mundo percebeu a picaretagem, principalmente os colegas de profissão de Paulo Guedes, negociantes de dinheiro. Com o anúncio do novo “plano infalível”, as taxas de juros de longo prazo foram às alturas do pânico da pandemia, em abril. O povo do mercado fugiu da Bolsa e comprou dólar. Enfim, do que se trata?

O governo pretende deixar de pagar R$ 39,4 bilhões dos R$ 55,2 bilhões de precatórios e sentenças judiciais devidos e previstos no pré-Orçamento de 2021. É dinheiro que o governo deve, por decisão da Justiça, para gente que recebe do INSS (43% do total dessas dívidas), para servidores (19% do total) e débitos diversos.

Com esse calote, quer pagar os benefícios de um Bolsa Família encorpado, o Renda Cidadã. Nos planos vagos do governo, o programa chegaria a 24,3 milhões de famílias, que receberiam R$ 260 por mês (ante R$ 191 do Bolsa Família de antes da pandemia).

Na prática, o governo quer fazer uma dívida extra sem dizer que é dívida extra: fazer dívida “escondida” para bancar gastos além do permitido pelo teto. O dinheiro viria dos precatórios que deixam de ser pagos. Essa é a gambiarra: esse empréstimo forçado, arrancado de quem tem dinheiro a receber do governo por sentença judicial. É moratória ou “reestruturação forçada” de dívida.

Para o Renda Cidadã, o governo também vai pegar parte do dinheiro que é obrigado a transferir para estados e municípios gastarem em educação. Quer tomar 5% do Fundeb, o que dá mais R$ 980 milhões, em 2021. O gasto no Fundeb não está sob o limite do teto. O governo vai, pois, gastar um dinheiro em despesas que estão sob o teto (como o Bolsa Família), mas fingindo que não está fazendo tal coisa. É pedalada.

“Tecnicamente”, o governo quer se limitar a pagar precatórios no valor equivalente a 2% da receita corrente líquida da União, o que dá R$ 16,09 bilhões em 2021. O restante dos precatórios devidos fica para ser pago “um dia”, a perder de vista. Vira mais dívida.

Como lembra Josué Pellegrini, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), precatórios não pagos são contados na dívida consolidada, diz a Lei de Responsabilidade Fiscal.

A IFI é um órgão independente de acompanhamento e avaliação das contas públicas, ligado formalmente ao Senado. Felipe Salto, diretor-executivo da instituição, observa ainda que tirar dinheiro do Fundeb é tentativa de driblar o teto de gastos e que o governo se furtou a cortar gastos para arrumar fundos para o Renda Cidadã.

É legítimo querer mudar o teto constitucional de gastos. Dada a situação do governo e do país, no entanto, fazer tal mudança exige grande capacidade técnica e política de modo que a emenda não saia pior do que o soneto. Exige um acordo nacional. Bolsonaro está propondo apenas maracutaia fiscal. Para os donos do dinheiro, é um sintoma de que o governo pode aprontar inclusive para cima deles.

A pressão da sociedade e o Congresso criaram o auxílio emergencial de R$ 600, o que evitou fome, convulsão social e recessão ainda maior. Foi um presente para Bolsonaro. O que ele faz agora? Tumulto picareta, que dá em tensão financeira, que prejudica uma retomada econômica que já seria difícil.

Queima a Amazônia, queima o Pantanal, queima a educação, tem morticínio, tem insulto de humilhados e ofendidos. Agora queima também o mercado. Isto é o Brasil de Bolsonaro.​


Adriana Fernandes: Cansaço

O Renda Brasil não sai sem medidas duras que terão de ser aprovadas pelo Congresso

O Renda Brasil se transformou no estranho caso do programa que nem mesmo nasceu, morreu e ressuscitou no dia seguinte. O disse me disse desta semana em torno do Renda Brasil do presidente Bolsonaro revelou a dificuldade que é colocar de pé um programa social com mais dinheiro e beneficiários, sem uma afinação entre as área econômicas e social, o Palácio do Planalto, líderes partidários e os parlamentares.

O cansaço do debate está visível, como reclamou a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Simone Tebet. As semanas começam e terminam no mesmo ponto. Não há avanço concreto. Em alguns casos, retrocesso. E já estamos no final de setembro com o fim do auxílio emergencial chegando junto com o aumento da fome.

É um erro achar que agora, com o apoio do Centrão, tudo poderá ser aprovado. O Centrão vai até aonde a corda estica. O imbróglio em torno da desindexação dos benefícios previdenciários, medida já tentada no passado e sempre abortada, mostrou o deslocamento entre o desejo antigo da equipe econômica e a realidade.

Do jeito que está hoje o arranjo da política fiscal e o teto de gastos, o programa não sai sem medidas duras que terão que ser apresentadas pelo Congresso e aprovadas.

Bolsonaro quer que os parlamentares aprovem o novo programa sem patrocinar nenhuma delas: nem para tirar dos “pobres para os paupérrimos” e nem para tirar dos “ricos e privilegiados para os pobres e paupérrimos”. Não tem jogo, embora a segunda opção esteja sendo cobrada pela sociedade e a maioria dos políticos continue cega para essa demanda.

Tem muito negociador político que parece não entender esse ponto ou está de má-fé empurrando com a barriga a confusão para ver quem cai primeiro.

A sucessão no início de 2021 do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM RJ), que abraçou a pauta econômica de Guedes e do mercado, deve ser o ponto final da inflexão de política econômica que começou com a pandemia. Quando fevereiro chegar lá, veremos o time mudar de campo de vez. Essa é o cálculo político de quem está embaralhando as cartas. Se nada mudar, provavelmente ficaremos nesse rame-rame até lá.

Ganha força agora a ideia de aprovar o Renda Brasil no Orçamento com despesas condicionantes. A estratégia já foi usada na “regra de ouro” (que impede o governo de fazer dívida para pagar despesas correntes).

Funciona assim: a fonte de financiamento fica carimbada no Orçamento com a condicionante de aprovação de uma determinada medida. O gasto só pode ser feito se a medida de corte de despesa for aprovada. Ou seja, o Renda Brasil aumenta além dos recursos destinados ao Bolsa Família em 2021 – R$ 35 bilhões – se as medidas forem votadas.

Se for esse o caminho para arrumar mais dinheiro para a para a área social e os investimentos necessários à retomada, o Congresso deveria aproveitar o impasse fiscal em torno da criação do programa social para aprovar o projeto de revisão periódica de gastos. Resolveria de cara um problema recorrente: planejamento.

É bom esclarecer que revisão de gastos não é o mesmo que avaliação da eficiência dos programas governamentais.

A revisão (spending reviews, em inglês) tem como produto a obrigatoriedade de cortar os gastos, explica o economista do Senado Leonardo Ribeiro, que estuda o tema há quatro anos. Ribeiro ressalta que essa prática institucionalizada como regra passou a ser adotada por vários países depois da crise financeira internacional de 2008.

Antes da crise, alguns países da Europa, como Dinamarca, Finlândia, Reino Unido, e a Austrália, já usavam esse modelo. Mas foi depois do terremoto financeiro que a maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) passou a adotar a revisão. Historicamente, o Brasil tem dificuldade em cortar despesas e renúncias fiscais. Um ponto de partida importante foi essa semana inclusão da necessidade de uma revisão periódica de gastos no relatório da Comissão Mista do Congresso da covid-19. Pode ser um começo. Ou recomeço.


Rosângela Bittar: A segunda metade

Guedes foi tragado pelo confronto do projeto liberal com o projeto populista

Sem rodeios: com a transferência do eixo de poder para a comissão técnica da reeleição, o presidente Jair Bolsonaro completa a erosão política a que vinha submetendo o outrora superministro Paulo Guedes. Ao contrário dos processos de desgaste de outros colaboradores, o do ministro da Economia foge aos costumes. Ele não cai, obrigatoriamente. Sua permanência é facultativa. Por enquanto, a decisão é ficar.

As negociações políticas passaram a ser feitas por um grupo de que fazem parte o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP), e os ministros Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). Com a participação acidental de Jorge Oliveira (Secretaria-Geral), Braga Netto (Casa Civil) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura).

Alguns ministros continuarão atuando nos seus nichos temáticos: Tereza Cristina (Agricultura), Fábio Faria (Comunicações) e André Mendonça (Justiça e Polícia). Resguardada a livre intervenção de Bolsonaro nessas áreas. Exemplos, o caso recente do etanol americano e as questões domésticas de Queiroz e companhia.

Os militares continuam avançando. Chegaram à Funarte e assumiram definitivamente a Saúde. Acampam, bivacam e conquistam o terreno. As reformas da Previdência e da administração, bem como outras restrições, não os alcançam.

Tudo guarda coerência com o deslocamento das preocupações do presidente para o vale-tudo da campanha.

O governo não adota uma lógica na administração da Economia. Se for preciso alguma solução orçamentária, faz-se o que a política julgar conveniente.

Já não se falam das teses acadêmicas de Paulo Guedes. Ele não é mais o anjo da guarda (aliás, arcanjo) de um capitão-presidente ignorante em economia e finanças.

Guedes foi tragado pelo confronto do projeto liberal com o projeto populista. Nada surpreendente. O nacionalismo dos militares sempre esteve no lado oposto ao seu e não fascina mais o presidente e seu grupo próximo.

Desautorizado por Bolsonaro, vítima de rasteiras de colegas ministros, Guedes perdeu também o apoio pessoal do Congresso, ao adotar a violência verbal e a soberba no diálogo com os parlamentares, o que lhe criou antipatias profundas. Ali, a cada investida ele perde todas.

Nenhuma das suas posições sofreu golpe maior do que o pedido do presidente para ser derrotado no veto à anistia às dívidas das igrejas. Nem a troca de interlocutores na cobrança ao preço abusivo do arroz. O caso do Big Bang, trunfo de Paulo Guedes para se recuperar do Pró-Brasil, lançado à sua revelia, morreu na praia. E o dilema de furar ou não o teto foi desfeito com o presidente admitindo estudos para romper limites do orçamento.

Guedes teve recusadas, por estapafúrdias, sugestões sobre de onde tirar recursos para o Renda Brasil, programa do qual o presidente parece ter temporariamente desistido. Todas as fórmulas sugeridas avançavam no bolso ralo dos pobres. Ainda anteontem, surgiu mais uma: o congelamento das aposentadorias por dois anos. Ideia que ainda mantém sob reserva a informação fundamental, se vai ou não atingir e em que proporções os militares e os funcionários civis. E o que ocorrerá quando terminar os dois anos de prazo fixado.

Dificuldades que sugerem ser a proposta mais um bode de anedota na sala da CPMF. Todas soluções sem imaginação que não conferem com os celebrados títulos de Chicago que ornam a biografia do ministro.

Se Guedes decidir mesmo ficar, será como chefe de uma equipe técnica que trabalhará sob demanda.

Se sair, sua substituição é o que melhor explicará a natureza da segunda metade do mandato.

O populismo desbragado do momento dispensará explicações, como já aconteceu nas substituições da Educação, Saúde e Cultura. O ministro da Economia também poderá ser qualquer um. É infindável a reserva de anônimos do presidente.


Fernando Gabeira: Dinheiro, não, um certo rumo

Salário mínimo não tem aumento. Debate é se militares podem passar o teto do funcionalismo

Neste momento se discute muito o Orçamento. É uma discussão tediosa se nos concentramos apenas nos números.

Na verdade, o que se discute agora é basicamente a ajuda emergencial até dezembro. Não dava para pagar os R$ 600. Caiu para R$ 300. Daqui a pouco surgirá a nova discussão, agora sobre o programa Renda Brasil, que pretende ser um serviço continuado, nos moldes do Bolsa Família.

Tudo isso é estimulado pela campanha à reeleição de Bolsonaro. Esses programas foram sempre necessários, mas no passado ele se opunha a eles, chamava-os de Bolsa Farinha e os via como uma forma de comprar votos. É sempre assim: no governo dos outros é suborno, no nosso é medida necessária para atenuar as duras condições de vida da população mais pobre.

Por causa do seu apelo eleitoral, só se discute mais intensamente a ajuda aos pobres. Mas sabemos que, apesar de garantir votos, o Brasil precisa de mais: de um projeto de retomada econômica com abertura de empregos.

Ainda assim, é pouco. Em cada momento histórico é preciso definir um rumo, sobretudo depois de uma tenebrosa pandemia, com todas as suas consequências.

Ter um rumo correto faz a diferença. Os europeus optaram por uma retomada verde e também por avançar no processo de modernização digital. Isso define investimentos e repercute até nas decisões tributárias, que estimulam as atividades de baixo carbono e penalizam as mais problemáticas numa época de aquecimento global.

Não se trata de afirmar que o Brasil precisa ter o mesmo rumo, embora esteja envolvido no mesmo contexto globalizado. É um dos raros países que são uma potência ambiental, não poderia perder esse bonde, uma vez que dificilmente passará outro tão promissor nas próximas décadas.

Uma das lacunas na chamada reforma tributária, em nosso país, é ser vista apenas sob um ângulo superficial da racionalização. O único objetivo parece ser a simplificação, que já é algo importantíssimo para o crescimento. Mas crescer para onde? E como crescer?

Tradicionalmente, as questões ambientais ficam um pouco à margem do debate tributário. Às vezes o simples princípio poluidor pagador já é visto como uma grande vitória.

No entanto, a questão das atividades de baixo carbono passa a ocupar um espaço novo. O aquecimento global transformou o carbono neutralizado numa espécie de moeda. Alfredo Sirkis, amigo morto recentemente, tinha o sonho de transformar o carbono numa referência monetária, como foi o ouro até a conferência de Bretton Woods.

Existe outro ponto em que o Orçamento se poderia transformar de discussão burocrática em debate vivo. Refiro-me também ao dinheiro destinado à defesa nacional. Ele foi ampliado por Bolsonaro, embora não a ponto de suplantar educação ou saúde, como o presidente queria.

Não custava nada um debate sobre as verbas da defesa não escorado apenas em cifras, mas em rumos. Que tipo de guerra esperamos, como nos preparamos para ela, os recursos são adequados? Parece uma heresia trazer esse debate da defesa para a sociedade.

Sabemos que os militares se preocupam com a defesa da Amazônia, num momento em que o mundo está muito interessado no destino da região.

Até que ponto vão investir na Amazônia? Que concepção de defesa têm para a área?

Teoricamente, fica mais fácil tomar conta de uma região sem a floresta em pé. Mais simples ainda seria essa tarefa se os povos indígenas fossem fundidos num só povo, o brasileiro.

Mas o problema central é que a floresta terá de ser explorada sem destruição e os povos indígenas são considerados hoje também uma riqueza da humanidade. Aliás, essa já é uma visão mais antiga. Durante a conferência de 1992 no Rio, houve o encontro dos líderes mundiais e um encontro paralelo, no Aterro do Flamengo, reunindo organizações e personalidades. Neste encontro foi definido que a diversidade cultural é tão importante para o futuro comum como a biodiversidade.

É esse quadro complexo de biossociodiversidade que a defesa da Amazônia nos apresenta. Nada mais interessante antes de abordar cifras do que conhecer exatamente o tipo de escolha que o Brasil fará. Mesmo porque as notícias que surgem são muito inquietantes. Fala-se na compra de um satélite de R$ 145 milhões, quando sabemos que o Inpe monitora adequadamente a região. Por que essa redundância? No passado fizemos um investimento gigantesco para a época no Sivam, o Sistema de Vigilância da Amazônia. Fala-se muito pouco dele, mas seria um instrumento até mesmo de nossa diplomacia amazônica, por sua possibilidade de coletar e compartilhar dados.

Enfim, todas essas dúvidas são pertinentes para quem se interessa em examinar como o País gasta o seu dinheiro. Vimos que a economia é bastante severa quando se trata de salário mínimo: não há aumento real. No entanto, o debate é se os militares podem ou não ultrapassar o teto do funcionalismo público. Isso é tão desapontador que prefiro acreditar que um verdadeiro debate sobre Orçamento ainda virá, ou já existe e minhas antenas ainda não o captaram.


Míriam Leitão: Bolsa Família e Bolsonaro

“O voto do idiota é comprado pelo Bolsa Família”, disse Jair Bolsonaro, certa vez. Ele já definiu esse programa como a forma de “tirar dinheiro de quem produz para dar para quem se acomoda”, e pediu que fosse extinto. Em 2017, em Barretos, afirmou que “para ser candidato a presidente tem que falar que vai ampliar o Bolsa Família”. No mundo inteiro, o Bolsa Família sempre foi elogiado por ter foco, baixo custo, e porque através dele foi criada uma rede de proteção social aos mais vulneráveis no Brasil. Esse presidente, que tem tal desprezo por essa política social, fará agora o Renda Brasil. Seu objetivo é um só: o de se reeleger.

Todas as ações anteriores de Bolsonaro negam qualquer compreensão da importância de políticas de transferência de renda. Em março, foram cortados 158 mil beneficiários do Bolsa Família, 61% eram no Nordeste. Os governadores, então, foram ao Supremo, que na semana passada confirmou a decisão do ministro Marco Aurélio de proibir novos cortes enquanto durar a pandemia. Em junho, o governo tentou tirar dinheiro do Bolsa Família para gastos com publicidade do Planalto. Na quinta-feira passada, o ministro Paulo Guedes, em entrevista a um instituto espanhol, revelou que haverá um acréscimo de seis ou sete milhões de beneficiários. No dia da reunião sobre o teto, Guedes gastou um bom tempo falando no Alvorada que o Renda Brasil será criado. Era uma forma de dizer para o presidente que cortaria gastos, mas daria para ele o Bolsa Família com outro nome.

O mais popular e mais bem-sucedido programa social do Brasil foi tecnicamente bem feito, resultou de estudos de especialistas e nasceu dos programas definidos como Bolsa Escola. Algumas vezes, foi usado nas campanhas, quando se disseminavam boatos de que um determinado candidato acabaria com ele. No caso de Bolsonaro, parecia possível porque ele sempre fez críticas. Mas hoje o programa foi incorporado ao rol das políticas públicas que permanecerão. O que se quer agora é reempacotá-lo para servir à reeleição de Bolsonaro. A equipe econômica tem trabalhado com esse objetivo declarado.

Num vídeo postado por Bolsonaro na segunda-feira, o presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), Pedro Guimarães, está no aeroporto, faz uma chamada de vídeo para o presidente e diz: “Tem uma história interessante da dona Maria José aqui.” E, pelo celular, mostra o presidente à mulher. Ela diz que é “apaixonada, louca” por ele. E agradece “tudo o que você tem feito por nós, principalmente os amapaenses”. Pedro Guimarães, no papel de garoto-propaganda, pergunta: “E quanto você vai receber hoje aqui?” Ela diz que são duas parcelas. “Eu vendo bombom trufado aqui no Amapá e tem me ajudado muito a sua ajuda”, ela fala se dirigindo ao presidente. Conta que é evangélica. No encerramento do vídeo, Guimarães, em voz bem alta, em local público, para confirmar com quem está falando, diz: “E aí presidente tudo bem?” Tudo foi filmado por um outro celular, talvez de um assessor de Guimarães. Bolsonaro postou o vídeo com o texto: “Auxílio de R$ 600 salvando vidas.”

Dona Maria José está gerando renda com o auxílio que recebeu, ao fazer o bombom trufado. Um caso realmente interessante, mas Bolsonaro e Guimarães mostram que estão interessados em propaganda eleitoral, em tirar proveito da história dela. O uso político da CEF supera os abusos do passado.

O país precisará de uma ampliação do Bolsa Família. E seria bom que ele ocorresse dentro de um planejamento técnica e fiscalmente bem feito, para continuar sendo sustentável. O palanque, contudo, vai desvirtuar o programa. A pesquisa do Datafolha mostra que o auxílio emergencial, que era de fato necessário, reduziu sua rejeição e aumentou a aprovação.

Bolsonaro é um populista. E tem um projeto autoritário. Como no chavismo, que distribuía o dinheiro do petróleo para se perpetuar. Bolsonaro esqueceu o que dizia do Bolsa Família e usará qualquer programa social que for formatado como alavanca eleitoral. Não é possível deixar os pobres sem proteção. Não é aceitável ver um candidato a ditador usando recursos públicos como se fosse dinheiro dele doado aos pobres, como Bolsonaro e Pedro Guimarães quiseram fazer crer à dona Maria José.