Reinaldo Azevedo

Reinaldo Azevedo: Temos, sim, vacina contra o caos

A única saída é tentar resgatar o país dos escombros da legalidade

A entropia do sistema político elegeu Jair Bolsonaro. Ainda que um reacionarismo nada subterrâneo se manifestasse transversalmente na sociedade brasileira, este se mantinha mais ou menos à margem como força (des)organizadora do sistema. Os agentes da desordem eram neutralizados pelos da ordem.

No dia em que se estudar o sistema político a sério, o Brasil descobrirá razões para, por exemplo, lamentar o esfacelamento do núcleo duro do MDB. O partido atraía e digeria o monstro, hoje autônomo. O surto de moralismo barato, que investia e ainda investe na destruição de garantias legais, liberou as forças do caos. E, como já refletiu a filósofa, “depois que a pasta de dente sai do dentifrício, ela dificilmente volta para dentro do dentifrício”.

Bolsonaro virou o beneficiário e o monopolista desse caos. Pode não agir em nome de uma teoria do poder, mas se expande na ausência de uma força organizada que lhe faça oposição. Seria incapaz de redigir uma redação do Enem explicando o seu pensamento, mas intui que sua primeira tarefa é esmagar os adversários que estão em seu próprio campo ideológico.

A personalidade tirânica, e é o caso, não admite contestação em seu próprio terreno —e nisso ele não inova. Todos os beneficiários de movimentos disruptivos, ainda que pela via eleitoral, como ocorre, procuram eliminar primeiro os parceiros de trajetória. Construída a lenda pessoal, então pode se ocupar de alvejar os verdadeiros inimigos ideológicos, se é que Bolsonaro sabe quais são.

Suas formulações são tão primitivas e desinformadas que até seu extremismo de direita não passa de um vomitório para indignar adversários e manter unida a tropa. Observem que ele chega a inventar um passado de combatente contra a inexistente guerrilha do Vale do Ribeira. Quando aconteceram por lá não mais do que duas escaramuças, tinha 15 anos.

O “Mito” é um mitômano. É preciso que se pensem as circunstâncias que permitiram a um marginal chegar ao centro do poder. Não foi sem melancolia que li e ouvi, por exemplo, as reações à sabatina de Kassio Marques na CCJ, ministro aprovado do Supremo. Muitos sábios entortaram o nariz para o que fez de melhor: a defesa do garantismo.
Quando o establishment político, intelectual e jornalístico admite que possa haver em direito outra corrente que não a garantista —entendida esta como o cumprimento da letra da lei, com suas… garantia!—, então é preciso admitir que estamos vivendo, sim, uma nova era.

Que força relevante fazia a defesa da democracia naquele ancestral 1964, que resultou em golpe? A resposta, como é sabido, é esta: nenhuma. Não vivemos as vésperas de um rompimento institucional, mas há o risco de esgarçamento do Estado democrático e de Direito. Sem estrondo. Quem se atreve a falar em defesa das forças da ordem?

É evidente que Bolsonaro sabia das negociações empreendidas pelo seu soldado raso, o general Eduardo Pazuello, com o Instituto Butantan — e isso significa que também as Forças Armadas foram tragadas pelo movimento entrópico, viciadas que estão numa boquinha.

Nem tanto por cálculo, mas em razão da pressão da expedição interventora dos EUA que veio ao Brasil para buscar um aliado na guerra comercial contra a China, o presidente desautorizou o seu ministro da Saúde; atacou um adversário do seu campo ideológico; pôs em dúvida a qualidade de uma vacina sem ter elementos para isso; ameaçou, de forma velada, negar o registro à Coronavac e correu para colher os louros junto a seus lunáticos.

O que resta do antigo establishment político e intelectual, inclusive a imprensa, se queda paralisado, estatelado, mal acreditando no que ouve e vê. E o homem pode muito mais porque ele e o vácuo se contemplam. Bem-aventurados os que tentam resgatar o país dos escombros da legalidade. É nossa única saída.

“Kassio foi indicado por Bolsonaro, Reinaldo!” E daí? Edson Fachin foi indicado por Dilma.

Lembrando são Mateus, pelo fruto saberemos se é videira ou espinheiro. A ordem legal —com todas as mobilizações sociais cabíveis, claro!— é nossa única vacina contra as forças do caos.


Reinaldo Azevedo: Medo da cadeia faz Bolsonaro escolher Kassio, e isso é bom!

O garantismo assegura a Bolsonaro o devido processo legal, negado a seus adversários

Por que Jair Bolsonaro indicou Kassio Marques —para todos os efeitos, um garantista— para o Supremo? Porque, sendo inculto, não é burro e é capaz de aprender com a experiência, inclusive aquela que o levou à Presidência, fagocitando o juiz-celebridade dos tolos, que havia engaiolado seu adversário por meio de uma condenação sem prova, referendada pelos parças do TRF-4.

O “Mito” percebeu que, tudo o mais constante, seu destino inexorável é a cadeia. “Está acusando o presidente de ter cometido algum crime, Reinaldo? Seja claro!” Não neste artigo. Já o fiz dezenas de vezes. No dia 29 de março de 2019, diga-se, antes de ele concluir o terceiro mês de mandato, apontei aqui ao menos quatro crimes de responsabilidade então consumados. Na minha conta, já são 19.

O objeto deste artigo é outro. Mesmo que Bolsonaro fosse inocente como as flores, o encontro com o xilindró está em seu destino porque essa é a metafísica influente. E isso vale para qualquer governante. Este país manteve encarcerado um ex-presidente da República condenado sem prova e contra o que dispõem o artigo 283 do Código de Processo Penal e o inciso LVII do artigo 5º, cláusula pétrea da Constituição.

Ainda que Bolsonaro possa achar intimamente que seus olhos azuis deveriam lhe conferir certa vantagem comparativa sobre um nordestino moreno, sabe intuitivamente que, a depender do alarido, isso pode ser até um agravante. Lula, o maior líder popular da história do Brasil, foi alvo, “sob vara” (by Celso de Mello), de uma condução coercitiva espetaculosa e ilegal. A investigação que levou Sergio Moro a tomar essa decisão durou quase cinco anos e foi arquivada. Nem denúncia houve por falta de provas.

O presidente não leu Shakespeare, mas intui que a necessidade impõe estranhos companheiros de trajetória. Sua súcia de lunáticos na internet —da qual ele é cada vez menos dependente— não compreende e se ressente do que seria um flerte do líder com a “velha política”.

Bolsonaro riu de orelha a orelha quando viu Wilson Witzel cair em desgraça. Mas certamente não lhe escapou que o adversário incidental, alvo da fúria de seus aliados na Procuradoria-Geral da República, foi afastado do cargo sem ter tido a chance de ao menos apresentar a defesa. Foi punido antes da aceitação da denúncia. Não há uma miserável palavra impressa que justifique a decisão.

Se o presidente tiver realmente aprendido a lição, indicará no ano que vem, para a vaga de Marco Aurélio, um nome mais terrivelmente garantista —evangélico, católico, umbandista ou adorador da natureza, como os aborígenes australianos.

Moro, desgostoso com o insucesso da empreitada rumo ao poder, resolveu refletir no Twitter: “As tentativas de acabar com a Lava Jato representam a volta da corrupção. É o triunfo da velha política e dos esquemas que destroem o Brasil e fragilizam a economia e a democracia. Esse filme é conhecido. Valerá a pena se transformar em uma criatura do pântano pelo poder?”

Huuummm…

Antes da Lava Jato, entende-se, o Brasil era terra arrasada, com a economia em frangalhos e sem democracia, certo? Ele acredita ter deixado como legado uma fase de prosperidade, luzes e devido processo legal! Impressiona-me menos o ressentimento do que a parvoíce. Mas é a indagação final que desperta minha curiosidade. A quem se dirige?

Parece-me que é Moro falando com Moro —também Deltan Dallagnol mandava mensagens para si mesmo no Telegram. Ali está a confissão de que o objetivo era mesmo “o poder”. E criaturas “do pântano” são todas as que não concordam com o juiz universal, inclusive aquela a quem se aliou antes, durante e depois da eleição, vilipendiando o Poder Judiciário.

O presidente escolher garantistas para o STF não o preserva necessariamente de seus eventuais crimes, mas pode significar, ao menos, o direito ao devido processo legal, coisa negada a Lula e a Witzel. Desde a “Ilíada”, convém que o poderoso veja como exemplo, advertência e vaticínio o destino de seus adversários. “Bolsonaro nem sabe o que é ‘Ilíada’, Reinaldo”. Não faz diferença. Basta que intua.


Reinaldo Azevedo: O Kássio com K e teóricos da conspiração

Indicação de juiz para o Supremo junta interesses de Lula e Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro decidiu indicar Kássio Nunes para o Supremo. O que resta de lavajatismo na imprensa e em sites de "notícias & negócios especulativos" transformou o "Kássio com K" num super-Cássio com C, o da peça "Júlio César", de Shakespeare. É a personagem-símbolo da conspiração e da traição.

Aquele traiu um só. A conspirata deu certo no curto prazo e matou a República no médio. O conspirador quebrou a cara. O Kássio com K teria de se dar bem traindo uma penca de gente.

"Não entendi, Reinaldo!" Os criadores de fábulas também não. Eles ainda tentam inventar um roteiro de ficção para justificar as frustrações de Sergio Moro.

Segundo o mercado de conspirações, o ainda juiz federal do TRF-1 teria de fazer as vontades de vários padrinhos, além do próprio Bolsonaro: Gilmar Mendes, Wellington Dias, Dilma Rousseff, a juíza federal Maria do Carmo Cardoso (também do TRF-1), Flávio Bolsonaro, Davi Alcolumbre, todo o centrão, o PT, o PSDB, o PMDB, a OAB, advogados de pessoas investigadas pela Lava Jato e, bem…, ainda não se pronunciou a palavra mágica, mas é questão de tempo: "LULA". Deve-se escandir o nome com a baba do ódio nos cantos da boca.

"Ah, mas é isso mesmo! Trata-se do velho sistema". Assim, o Kássio com K conseguiria juntar num mesmo feixe de interesses Lula e Bolsonaro, o petismo e o bolsonarismo.

Não por acaso, Moro veio a público para dar uma dica: que o "Senado exerça seu crivo sobre o candidato para saber se há o comprometimento ou não com a agenda anticorrupção".

Obviamente, dele não se espera que sugira aos senadores que procurem saber se o candidato ao STF será ou não um fiel cumpridor da Constituição. Aquele que, quando juiz, atuou como coordenador do órgão acusador de suas futuras vítimas —e que desmoralizou o Poder Judiciário ao se colocar como esbirro do poder de turno-- posa agora de grande moralista.

Não custa lembrar: a vaga que ora se abre só não será preenchida por Moro porque, nomeado por Bolsonaro para o Ministério da Justiça, ele resolveu ambicionar o lugar do chefe. O presidente não é lá versado em Shakespeare ou nas balizas e sutilezas do Estado de Direito —Moro também não—, mas burro não é. Sentiu o cheiro da conspiração nas entranhas do seu governo. César também. O nosso ogro, quem diria?, foi mais rápido.

O ex-ministro da Justiça defendeu ainda, a exemplo do que ocorre nos EUA, que se tenha a figura de um promotor independente para investigar "pessoas que ocupam posições elevadas de poder". Sei.

Naquele país, um juiz que gravasse ilegalmente o presidente da República e divulgasse o conteúdo do grampo amargaria, deixem-me ver, uns 15 anos de cadeia.

Estávamos todos preparados para criticar uma indicação "terrivelmente evangélica", como André Mendonça, ou um "amigo dos meninos", como Jorge Oliveira.

A indicação de Kássio Nunes quebrou as expectativas e criou uma demanda: é preciso formular alguma teoria —qualquer uma.

Não deixa de ser espantoso que até a imprensa digna desse nome aponte como uma das fragilidades de Nunes a sua vinculação à corrente garantista do direito.

Circula freneticamente uma entrevista sua em que ele afirma que, em 2016, o Supremo autorizou a prisão após a condenação em segunda instância, mas não a impôs.

Não se trata de uma opinião, mas de um fato. E que se note: este escriba considera que o tribunal errou porque em desacordo com o mandamento expresso no inciso LVII do artigo 5º da Constituição: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Se o postulado serve a uma pletora de recursos que impedem a execução da pena, que se cuide desse assunto em vez de fraudar a Carta em nome da eficiência da Justiça.

Bolsonaro não se deixou intimidar pela patrulha liderada por Moro. Quando Kássio estiver no STF, prometo elogiá-lo todas as vezes em que se subordinar à Constituição e criticá-lo sempre que fizer o contrário. Assim é com todos.

O combate à corrupção, à saúva ou aos tarados mata a democracia caso se dê acima das instituições ou contra elas.


Reinaldo Azevedo: Como preservar a democracia da vontade do povo e das elites

Sistema, que vai além da escolha de governantes, está em perigo porque a paixão das facções chega às decisões de Estado

Pesquisa CNI-Ibope aponta recorde de popularidade do governo Bolsonaro. Acham seu governo ótimo ou bom 40% dos entrevistados. Apenas 29% dizem ser ruim ou péssimo. Estou com a minoria dos 29%. "Que é, Reinaldo, vai discordar da maioria do povo?" Já fiz isso muitas vezes.

Em 2006, no auge de embates com esquerdistas, escrevi um texto que me rendeu uma tempestade de insultos. Lá se lia: "Fico aqui queimando as pestanas, tentando achar um jeito de eliminar o povo da democracia. Ainda não consegui. Quando encontrar, darei sumiço no dito-cujo em silêncio. Ninguém nem vai perceber…".

Um amigo me censura pelo emprego, que considera excessivo, da ironia. Talvez tenha razão. Não costumo explicá-la. Com nota de rodapé, ela vira capim. Esquerdistas me mandaram para o "paredón" moral por aquele artigo. Direitistas aplaudiram. Corria o ano da graça de 2006, e Lula seria reeleito três meses depois, um ano após o mensalão.

Eu fazia uma citação coberta do Artigo 10, de "O Federalista", de Madison, que trata da necessidade de preservar a "Assembleia" das paixões do que ele chama "facções" —sejam majoritárias ou minoritárias. E daí se pode supor que o que ele entende por "República", que nós chamamos "democracia", é mais do que a vontade da maioria.

O governo era então de esquerda. Hoje, somos governados pela extrema direita, com um estoque de agressões à ordem constitucional e legal que supera, em um ano e nove meses, os 13 e poucos de gestões petistas. E eis-me aqui de novo a negar capim a ruminantes.

Nesta sexta, o país vai superar a marca dos 141 mil mortos por Covid-19. Estamos à frente dos EUA em óbitos por 100 mil e lideramos o ranking tétrico do G-20. As praias e os bares indicam que parte considerável dos brasileiros faz a sua própria leitura de "Os Lusíadas", de Camões. Entregam-se esses à urgência embriagada "e se vão da lei da morte libertando", ainda que possam efetivamente matar e morrer em suas obras nada valorosas.

Há um desprezo épico pelo saber testado e firmado, do tamanho das línguas de fogo que devastam o Pantanal e parte da Amazônia. Os investimentos estrangeiros despencam e fogem, levados pelos fumos da irresponsabilidade oficial e da morte. Jamais me acusem de ter dito um dia que a voz do povo é a voz de Deus. Já escrevi que, mais de uma vez, foi o capeta que soprou as escolhas aos ouvidos das massas.

"Tá tristinho, Reinaldo, com a vontade do povo?" Reproduzo pergunta que um petista fez em 2006 na área de comentários do blog quando escrevi o tal artigo. Nessas coisas, não sou alegre nem triste. Aponto o que vejo. Reservo os sentimentos para meus amores e meus amigos.

O auxílio emergencial, obra do Congresso, não de Bolsonaro, e a caça a governadores que combateram o vírus, com ou sem roubalheira, explicam parte do resultado da pesquisa. Há, pois, fatos que elucidam os números. Mas não era e não sou paternalista: a avaliação traduz agora, como traduziu no passado, escolhas que são também morais e éticas.

Todo o cuidado é pouco. A culpa não é só do povo, claro! Há a das elites, ainda mais importante, conforme também se depreende do citado Artigo 10. Escrevemos nosso próprio roteiro de "Como as Democracias Morrem". No livro, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt observam que uma das "normas cruciais" para a sobrevivência da democracia é a "reserva institucional".

Entende-se por isso "o ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito", pois tal ação "pode pôr em perigo o sistema existente". Ministério Público e Judiciário, nos últimos seis anos, têm mandado a autocontenção às favas e destruído o ambiente da "reserva institucional", pretextando o cumprimento da lei —o que, de resto, é falso.

A democracia, que é mais do que um sistema de escolha de governantes, está, sim, em perigo. Seja porque a paixão das facções chega às decisões de Estado, seja porque a elite do aparato investigativo-judicial perdeu a noção da importância que tem a "reserva institucional" na defesa de um regime de liberdades.

Pronto. O achincalhe pode começar, como em 2006, agora por novos autores.


Reinaldo Azevedo: TRF-2 diz que democracia ainda respira

Órgão Especial do tribunal deu um pequeno passo em favor do resgate do decoro do Poder Judiciário

Num país em chamas, em que o devido processo legal está sendo esturricado junto com as onças e os jacarés —enquanto doutores do punitivismo pisam nos astros desastrados—, o Órgão Especial do TRF-2 deu um pequeno passo em favor do resgate do decoro do Poder Judiciário. Decoro! Gosto dessa palavra nas lentes do direito ou em Paulo, o apóstolo. “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém.”

Por 12 votos a 1, com um impedimento, os juízes federais aplicaram a pena de censura ao juiz Marcelo Bretas, triunfando, por quase unanimidade, o voto do relator, Ivan Athié, que viu “superexposição e autopromoção” na conduta do chamado “juiz da Lava Jato do Rio” ao participar de eventos públicos, no dia 15 de fevereiro, em companhia do presidente da República e de outros políticos.

Em seu voto, Athié citou trechos de um texto que publiquei em meu blog, apontando a desconformidade da atuação de Bretas com o que dispõe resolução do Conselho Nacional de Justiça, que recomenda ao juiz “evitar expressar opiniões ou compartilhar informações que possam prejudicar o conceito da sociedade em relação à independência, à imparcialidade, à integridade e à idoneidade do magistrado ou que possam afetar a confiança do público no Poder Judiciário”.

O mesmo texto alerta que o magistrado deve “evitar manifestações que busquem autopromoção ou superexposição”. Os leitores desta coluna certamente conhecem ao menos parte das minhas reservas à atuação judicial e extrajudicial de Marcelo Bretas. De seu particularíssimo entendimento do artigo 312 do Código de Processo Penal, por exemplo, que regula a prisão preventiva, à exibição narcísica de sua, digamos, musculatura jurídica, não me parece que ele seja um bom discípulo de Paulo.

Seja no entendimento da Constituição, seja na interpretação que faz do Evangelho, entendo que o juiz é mais um a ignorar a letra explícita das leis, dos códigos e mesmo das escrituras. E o faz em favor do solipsismo estridente, de modo que seu subjetivismo e seu personalismo, embora alinhados com a metafísica influente destes tempos, atuam contra as garantias do devido processo legal e do Estado democrático e de Direito.

Não destaco por vaidade o fato de o juiz federal Athié ter citado um texto meu num voto que encontrou uma única dissensão, sendo referendado por 11 outros. Eu o faço em homenagem a uma postura —hoje minoritária no país e na imprensa—, que reconhece não haver saída para o Brasil fora do ordenamento legal e da prevalência das instituições.

E assim é porque vivemos num regime democrático, ainda que literalmente sufocado por fumaças, imposturas e omissões. Numa ditadura, numa tirania, a subversão é um dever moral e um imperativo ético. E me orgulho muito de, dentro das limitações do que me permitia a juventude, ter atuado para sabotar o estado ditatorial. Na democracia, um conservador preserva instituições. Se em desconformidade com elas, força os limites da moldura em favor de mudanças.

Considero inaceitável, aí sim, que quadros que integram o aparato da ordem —devendo, pois, atuar em defesa da sua permanência, assegurando, por óbvio, a eficácia dos mecanismos que lhe permitem a mudança— atuem como subversivos de toga, de sorte que as garantias que a própria Constituição assegura à magistratura ou ao Ministério Público são postas, então, a serviço da corrosão da institucionalidade.

Infelizmente, essa visão intervencionista, subversiva e corrosiva da Justiça já chegou às cortes superiores. Para quem sabe ler as linhas e as entrelinhas, o discurso de posse de Luiz Fux como presidente do STF acena para a condescendência com os métodos ilegais e heterodoxos da Lava Jato. A substituição da política pela polícia —de sorte que se pode falar hoje, em certos casos, de uma polícia política— abriu o caminho para o triunfo dos “hooligans” contra a ordem democrática.

Estão por aí, a crestar, real ou simbolicamente, tudo o que encontram pela frente: Constituição, bicho ou gente. Em meio à fumaça e à cultura da morte, o TRF-2 emprestou um respirador à democracia.


Reinaldo Azevedo: Fux chega ao topo com a advocacia sob a vara da Lava Jato

Que o ministro contribua para banir das terras nativas o direito criativo

Luiz Fux assumiu nesta quinta (10) a presidência do STF em meio a mais um espetáculo da Lava Jato-RJ, que vive seus dias de parceria física e metafísica com o bolsonarismo. Fez um strike contra Wilson Witzel e promete não deixar um só pino em pé com a Operação E$quema S, com esse cifrão que encanta os tiozões do WhatsApp que pedem golpe, com polo verde, ventre protuberante e meias e tênis pretos.

Leio que uma das missões do ministro seria manter as conquistas da Lava Jato, sua autonomia, seu poder, sei lá… Os objetos diretos variam de acordo com o entusiasmo do redator. Tomara que seja conversa mole. Sua tarefa é fazer valer a Constituição. Só.

Naquilo em que a Carta é explícita, deve fazê-lo sem margem para interpretações. Dou um exemplo: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Que seja em relação a isso tão aborrecido como o juiz de futebol que manda cobrar tiro de meta quando o atacante faz a bola escapulir pela linha de fundo do campo adversário —se for o defensor a fazê-lo, é escanteio.

Regras 16 e 17 da International Board. No caso da Carta, trata-se do inciso LVII do artigo 5º, cláusula pétrea que o próprio Fux ignorou ao validar um gol de mão da Lava Jato, que conseguiu manter Lula na cadeia contra a regra do jogo, num exercício de criatividade jurídica.

Que o ministro contribua para banir das terras nativas o direito criativo, que se assenta ou no solipsismo ou nas vagas de opinião que tornam a sociedade refém de facções organizadas, contra as quais Madison já chamava a atenção no artigo 10 de “O Federalista”. Elas destroem a República.

Ouso sugerir que leia também o artigo 51. Fôssemos anjos, não seria necessário haver governos. Como não somos, estes têm de ser dotados de instrumentos para exercer seu ofício. Dado que os próprios governantes seres angelicais não são, têm de ser obrigados a controlar a si mesmos —e, pois, não podem ser eles a comandar os tribunais por vias oblíquas.

Preservar a Lava Jato? Exatamente o quê? O conluio entre juiz e órgão acusador? A subordinação da agenda anticorrupção a candidaturas? A condenação sem provas? O uso das prisões preventivas como instrumento para obter delações? A entrega dos destinos do país a um criminoso premiado, que decidirá quem vive e quem morre na República?

Hora de retomar um fio lá do primeiro parágrafo. O “Espetáculo da Corrupção” —título de um livro do advogado Walfrido Warde— viveu um de seus dias de gala nesta quarta (9), agora que o próprio direito de defesa está sendo alvejado junto com sem-vergonhices óbvias. É certo que houve pilantragens na Fecomércio. O bandido da hora, Orlando Diniz, o admite para se safar. Ocorre que a operação já nasce sob o signo da exceção.

A Lava Jato sustenta, por exemplo, que o advogado Eduardo Martins, filho de Humberto Martins, presidente do STJ, recebeu entre R$ 40 milhões e R$ 82 milhões —a denúncia-cartapácio tem tantas ilações e alvos que permite ao leitor o livre exercício da calculadora— para influenciar decisões da corte.

Se Eduardo comprava sentenças no STJ, ministros as vendiam. Se o escândalo tem esse grau de comprometimento, o foro não é a Justiça federal de primeira instância, mas o STF. “Ora, Reinaldo, trata-se de tráfico de influência, não de compra de sentença”. É mesmo? A R$ 40 milhões? Ou R$ 78 milhões? Ou R$ 82 milhões? Ou é piada ou é má-fé.

Bolsonaro ri de orelha a orelha. A Lava Jato já depôs um inimigo seu e agora intimida um tribunal superior. No passado, impediu que ele tivesse de concorrer com Lula, que volta a ser alvo, agora por intermédio do advogado Cristiano Zanin.

“Ah, não importa! Aconteceu a sacanagem na Fecomércio, Reinaldo?” Certamente sim. Dada a denúncia, essa não é, no entanto, tarefa para a Lava Jato-RJ, mas para a PGR, uma vez que, obviamente, ministros do STJ estão sob investigação, o que desloca o foro da 7ª Vara Federal do Rio para o STF.

Qual Lava Jato Fux pretende preservar? O livro de Warde a que me referi tem um subtítulo: “Como um sistema corrupto e o modo de combatê-lo estão destruindo o país”.


Reinaldo Azevedo: STJ e STF inaugurarão a execução sumária na política? Fascistoides ganham!

Sob o pretexto de se combater a corrupção a ferro e fogo, o Brasil foi se tornando um país arreganhadamente despudorado.

Ficamos sabendo — e é fato — que o governo Bolsonaro intensifica seu lobby junto ao Superior Tribunal de Justiça para que a Corte Especial que vai avaliar o recurso da defesa de Wilson Witzel endosse o seu afastamento cautelar, imposto, monocraticamente, pelo ministro Benedito Gonçalves.

Atentem para uma questão importante: o problema não está apenas no fato de a decisão ser monocrática. Se o STF decidiu, em 2017, que um governador pode ser afastado sem prévia autorização da Assembleia — o que é um erro —, está mantida, no entanto, a exigência de que haja ao menos a aceitação da denúncia — o que tornaria o governador réu. E ele ainda não é réu porque nem sequer foi ouvido.

Não se constrói democracia sólida assim. O que se tem é bagunça.

A defesa recorreu, claro!, à Corte Especial do STJ contra a decisão. A coisa deve ser votada na quarta-feira. Até onde se sabe, vai endossar a decisão de Gonçalves. "Ah, aí a coisa não será mais monocrática, então!" Não resolve nada, minhas caras, meus caros! Um governador eleito diretamente está sendo retirado do cargo sem nem ainda ser réu; sem que o próprio STJ tenha apreciado a denúncia. E não se pode tomar o endosso a uma liminar como sinônimo de denúncia aceita.

Há algo de errado num país em que é mais fácil tirar do cargo um governador do que um deputado estadual.

Sim, um deputado estadual está submetido à jurisprudência do Supremo que vale para parlamentares federais: enquanto conservar o mandato, não pode ser submetido a medidas cautelares que impeçam o livre exercício do mandato sem a concordância da Assembleia. Que sentido faz impor a um governador uma sanção antecipada como essa?

A defesa também recorreu ao STF para derrubar a liminar. A decisão cabe ao presidente da Corte, Dias Toffoli. Ele deu 24 horas para o STJ se manifestar e depois igual prazo para a PGR — cuja resposta já sabemos. Vale dizer: só vai decidir depois da votação da Corte Especial, cujo resultado é conhecido de antemão.

Vamos ver o que fará Toffoli se a Corte Especial endossar a decisão de Benedito. Um caminho é considerar o recurso prejudicado porque o que se pedia era a derrubada de decisão monocrática, que monocrática não será mais. Nesse caso, a defesa de Witzel deverá voltar ao Supremo com outro recurso, cuja natureza precisa ser estudada.

Insista-se: o governador Wilson Witzel nem sequer foi denunciado. "E por que não se denuncia logo?" Porque se está ainda na fase da investigação. Não houve tempo.

Deixo aqui uma questão para reflexão: se, do concerto entre STJ e STF resultar uma decisão em que um governador de Estado pode ser afastado do cargo com base em declarações de um delator, sem nem ao menos ter sido ouvido e antes que tenha se tornado réu — já que não existe a denúncia —, então teremos as cortes superiores investindo no baguncismo.

Tanto pior quando se sabe que uma dessas cortes, o STJ, está sob o cerrado assédio do Poder Executivo.

Os dois tribunais vão inaugurar a fase da execução sumária para políticos?

Quem ganha?

Os fascistoides.


Reinaldo Azevedo: Guedes e Bolsonaro são reacionários desiguais e combinados

No idílio passadista do presidente, filho de pobre trabalha e o do rico estuda

Paulo Guedes salta na frigideira porque seu modo de ser reacionário não combina com o de seu chefe, Jair Bolsonaro. O tal "Big Bang" do ministro da Economia —o dito "plano econômico-social"— promove uma redistribuição da pobreza entre os pobres. Seu chefe achou a coisa explícita demais, com potencial eleitoral danoso.

No universo recriado por Guedes, o Brasil continuará a ser o país em que, segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, os 10% mais ricos ficam com 55% da renda. O problema não está aí. Ocorre que o 1% dos ricos de verdade —coisa de 1,4 milhão de adultos— ficam com mais da metade: 28,3%.

Não fiz a conta. Talvez seja o caso de saber quanto detêm do tal bolo aqueles que formam o 0,1%, a "crème de la crème" da concentração de renda. Os liberais de fancaria que andam por aí a vomitar obscenidades logo vociferam: "Ninguém é pobre porque o outro é rico. É preciso esforço!".

Fruto da indolência, quem sabe?, os 50% mais pobres têm de se contentar com 13,9% do conjunto de todos os rendimentos. A seu modo, Guedes até quer fazer alguma correção. Pretende acabar com a dedução no Imposto de Renda dos gastos com saúde e educação. Topa mexer naqueles 10% que concentram 55% da renda, mas nunca no 1% que abocanha 28,3%. Quanto ao 0,1%, bem…

O ministro é um reacionário antipopulista. E é aí que seu modo de fazer o Brasil andar para trás se choca com o do chefe. O "Mito" descobriu o potencial eleitoral do assistencialismo agressivo e precisa do voto de milhões. Ao comandante da Economia, basta o apoio da Faria Lima, com a concordância, é certo!, do presidente.

A questão, por enquanto sem resposta, é como "tirar dos pobres para dar aos paupérrimos" sem que os primeiros reajam nas urnas. Será Bolsonaro, no confronto com Guedes, um pouco mais, digamos, "progressista"? Respondo com um fato. Na terça (25), ao falar na abertura do congresso nacional da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), o presidente lembrou que começou a trabalhar aos dez anos, num boteco, por decisão de seu pai, e fez a defesa aberta do trabalho infantil.

Com gramática sempre peculiar, mandou brasa: "Meu primeiro emprego, sem carteira assinada obviamente, eu tinha dez anos de idade. Foi no bar do seu Ricardo, em Sete Barras, no Vale do Ribeira. (…) E bons tempos, né?, onde (sic) menor podia trabalhar. Hoje ele pode fazer tudo, menos trabalhar, inclusive cheirar um paralelepípedo de crack, sem problema nenhum". Aplausos.

Antes ainda da posse, em dezembro de 2018, Guedes afirmou que os 30 anos de ineficiência da social-democracia seriam interrompidos por ao menos quatro anos de liberalismo associado ao conservadorismo. É mesmo?

Numa democracia, conservadores aceitam o progresso social e buscam conservar o molde institucional. Já os reacionários pretendem fazer o país marchar para trás, conservando não instituições, mas iniquidades —e, se possível, ressuscitando fantasmas. A depender do caso, podem ser disruptivos, golpistas.

No idílio passadista bolsonariano, filho de pobre trabalha e o do rico estuda, reproduzindo, assim, um e outro, o ciclo de desigualdade. Nessa perspectiva, dispensa-se um Estado que possa já nem se diga corrigir as injustiças, mas, ao menos, capacitar um pouco mais a criança pobre para uma disputa de… desiguais.

Ainda que aos trancos e barrancos e, às vezes, recuos, o mundo caminha tendo como norte a justiça social. Logo, toda ação reacionária será sempre contra os desvalidos, os que podem menos, os injustiçados. Existe, sim, o bom conservador. Mas inexiste o reacionário virtuoso.

Bolsonaro cobra de Guedes que coloque uns tostões a mais no bolso dos pobres para que as urnas sustentem seu propósito de resgatar aquele passado idílico, em que filho de pobre trabalha feliz para honrar a sujeição histórica de seu pai. Vivemos o momento glorioso de uma tensão entre reacionarismos distintos e combinados.


Reinaldo Azevedo: O Congresso é bom; o governo, horrível

Bolsonaro e Guedes falam asneiras, e depois cabe ao Parlamento corrigir os desatinos

Pois é… Jair Bolsonaro e Paulo Guedes fazem e falam asneiras —iguais ou desiguais, elas sempre se combinam—, e cabe ao Congresso, particularmente a Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, corrigir os desatinos. É o caso do reajuste de algumas categorias profissionais dos servidores. Às vezes, dá certo, como nesta quinta. O veto presidencial foi mantido por 316 votos a 165.

Mas Guedes não sossega. Ele já está cavando uma nova crise com a sua proposta da “PEC-Combo”, que pretende juntar tudo ao mesmo tempo agora: PEC emergencial, pacto federativo e, de aperitivo, a nova CPMF bombadona. Quem não sabe aonde vai escolhe qualquer caminho. E o Congresso que se vire.

Voltemos ao veto. Não se chega a bom lugar com dados falsos. Era mentira que “o dinheiro da Saúde seria usado para pagar servidores”. Isso é facilitação estúpida. O auxílio emergencial repõe parte do ICMS e do ISS e não sai com carimbo.

Mais: se todas as categorias excepcionadas na proposta aprovada pelo Congresso tivessem o reajuste, em todas as esferas, a conta chegaria a R$ 98 bilhões, não a R$ 130 bilhões. Mas quem disse que seria assim? É um chute. União, governadores e prefeitos agiriam como ordem unida? Aplicando o mesmo índice? Ora…

Os tais R$ 130 bilhões eram tão verdadeiros como os supostos R$ 280 bilhões que a União teria de desembolsar caso tivesse vingado o texto aprovado na Câmara no dia 13 de abril, que previa reposição a estados e municípios por seis meses, tendo como referência o arrecadado em 2019.

O Planalto não gostou e foi bater às portas do Senado. E lá se fechou a proposta que acabou aprovada: o governo impôs o congelamento como condição para a reposição —e olhem que o Congresso, na prática, não precisava de aval nenhum— e concordou em excluir as categorias profissionais que lidam diretamente com a Covid-19.

E aí Guedes estrilou a passou a pregar o veto àquilo que o próprio governo havia negociado. Na malfadada reunião ministerial do dia 22 de abril, o ministro, com aquele seu jeito desassombrado de quem não sabe o que fazer, mas tem sempre uma metáfora explosiva, definiu o congelamento: “Nós já botamos a granada no bolso do inimigo; dois anos sem aumento de salário”.

O radicalismo de Guedes não é coragem. Costuma se voltar contra quem pode menos. É falsa a informação de que o congelamento alcança todos os servidores. O governo garantiu, por MP, o reajuste a policiais militares, civis e bombeiros do DF e a parte dos PMs de Amapá, Roraima e Rondônia.

Atenção! A MP foi enviada um dia antes de o presidente sancionar o texto com os vetos pedidos por Guedes. Às enfermeiras que enfrentam a Covid-19, granada; aos policiais do DF, grana. Bolsonaro sabe ser essa a PM mais bem paga do Brasil, porque os recursos saem da União. A concessão do reajuste cria demanda por aumento nas PMs dos demais estados, e os governadores que se virem com o congelamento.

Noto adicionalmente que os Catões da moralidade pública e da severidade com o cofre assistem impassíveis à esbórnia com o orçamento da Defesa. E ninguém diz que se tira verba da Saúde para investir em canhão, não é mesmo, Guedes?

Então ficamos assim: o governo trapaceou, desde sempre, no congelamento dos salários. E, quando algo dá errado, apela-se a Rodrigo Maia, sempre ele!, para tentar resolver o problema. Até porque Guedes já saiu chutando os países baixos dos senadores.

Sim, há lá no Congresso notáveis nulidades e muita gente mixuruca que foi eleita porque tornada celebridade nas redes. Na média, no entanto, essa legislatura tem sido notavelmente eficaz. Em vez de ofender os parlamentares, Guedes deveria lhes ser grato pela reforma da Previdência, pela PEC do Orçamento Paralelo e pela aprovação do auxílio emergencial.

Memória rápida: perplexo, o ministro não sabia o que fazer. No auge da alienação, propôs mandar para casa, sem salário, trabalhadores formais e pagar três mensalidades de R$ 200 aos informais. Bolsonaro já teria sido pendurado pelos pés em praça pública.

O Congresso os salvou. E o fez de novo nesta quinta.


Reinaldo Azevedo: Chega de autoengano! O governo Bolsonaro funciona

A Amazônia arde e, na Saúde, um general tenta esconder montanha de mortos

Salim Mattar e Paulo Uebel, membros até esta terça-feira (11) da ala dita liberal daquele ajuntamento que toma Brasília, resolveram deixar suas respectivas secretarias. E, então, se falou em crise do governo Bolsonaro. Será mesmo? De qual governo?

Uma ilustração. Nesta quinta, já em campanha eleitoral, o presidente foi ao Pará. Discursou: “[Mandei] a esse estado maravilhoso aqui, mesmo sem comprovação científica, mais de 400 mil unidades de cloroquina para o tratamento precoce da população. Eu sou a prova viva de que deu certo. Muitos médicos defendem esse tratamento. E sabemos que mais de 100 mil pessoas morreram no Brasil. Caso tivesse sido tratado (sic), lá atrás, com esse medicamento, poderiam essas vidas terem (sic) sido evitadas (sic). E mais ainda: aqueles que criticaram a hidroxicloroquina não apresentaram alternativas”.

Emprega-se o advérbio latino “sic”, que significa, em tradução adaptada, “assim mesmo, com exclamação!”, quando uma transcrição traz erros, absurdos, disparates. Reparem que, em seu gramaticocídio homicida, Bolsonaro tentou dizer “vidas poupadas”, mas saiu “vidas evitadas”. Na sua fala, a diferença entre viver e morrer é um lapso.

A primeira tentação é recorrer à metáfora do hospício para definir o que vai em Brasília. Seria um erro. Um ajuntamento de malucos não deve ser coisa bonita de se ver, mas a fealdade, suponho, é algo compensada pela inocência culposa. Fala-se aqui de atos dolosos.

Oportunismos distintos resolveram se combinar na certeza de que dispunham de esperteza o suficiente para instrumentalizar o adversário interno e impor a sua, vá lá, agenda. Amalgamaram-se, assim, o reacionarismo delirante, o liberal-passadismo e o nacional-estatismo de uniforme.

Já volto ao ponto. Não sem antes, adaptando Eça de Queirós aos fatos, retirar o manto diáfano da fantasia que cobre a nudez forte da verdade. E a verdade é que o governo Bolsonaro, à diferença do que dizem por aí, funciona e cumpre suas promessas.

A Amazônia arde, e os investidores fogem. A Cultura tem a gramática do tal Mário Frias. A Educação está entregue a um defensor de castigos físicos para infantes, depois de ter sido ocupada por um lunático e por um analfabeto agressivo. O Itamaraty transformou a política externa na cloaca do mundo.

Na Justiça, brilha um híbrido de Beria latino-americano com pastor de periferia. Na Saúde, um general tenta esconder, com sua feição opaca e seu corpanzil de burocrata do antigo Partido Comunista Búlgaro, a montanha de quase 106 mil mortos.

Na coordenação política, outro general produz um ranking sobre a Covid-19 que tenta transformar em vitória a omissão oficial, buscando responsabilizar pela tragédia adversários políticos que, afinal, procuraram seguir as orientações da ciência.

O saber técnico não tem importância na Esplanada em que Damares Alves brilha como peça de resistência. O que havia de política social no país foi para o ralo.

Portarias, com a qual condescendeu Sergio Moro, o extremista de direita agora candidato a beato, armaram o país até os dentes. As Polícias Militares nunca mataram tantos pretos e pobres, é claro! Como o vírus. O governo Bolsonaro é, em suma, o que estava destinado a ser. O “Mito” foi eleito para isso.

Então agora retomo o fio lá do primeiro parágrafo. Mattar e Uebel, os “liberais”, resolveram cair fora. Paulo Guedes gritou, pedindo socorro: “Debandada!” Os “Faria Limers” saíram em seu socorro.

E fica combinado, para pacificar também o tal jornalismo econômico, que o teto de gastos será respeitado, que a agenda de reformas será retomada, que até se vai privatizar alguma coisa. Não vai dar certo, mas acalma.

É claro que liberais de verdade não tentam emprestar luzes a reacionários com ou sem coturno. Nem em nome do mal menor.

“E os que lá restaram, Reinaldo?” Não são liberais nem os que saíram nem os que ficaram. O liberalismo tem, sim, os seus pecados. Toda vez, no entanto, em que um dito liberal estiver servindo ao obscurantismo em nome das luzes, desconfie. Trata-se apenas de um obscurantista com uma lanterna na mão.


Reinaldo Azevedo: Não há diálogo com os walking dead verde-amarelos

Procuradores não são pagos para agir contra delinquentes

Já desisti de convencer os citadores sem lastro de que, em "O Príncipe", Maquiavel não escreveu ou deu a entender que "os fins justificam os meios". Apelo, então, à suavidade honestamente pueril de outra obra: o Pequeno Príncipe jamais desistira de uma pergunta. E eu nunca desisto de uma porfia. Volto, pois, aos embates entre a Lava Jato e Augusto Aras, procurador-geral da República.

"Promover a realização da justiça, a bem da sociedade e em defesa do Estado Democrático de Direito." Eis a missão do Ministério Público Federal, segundo o que está escrito em seu site, sintetizando o que vai na Constituição. Não! Procuradores não são pagos para agir contra delinquentes, como quer certa… delinquência ignorante.

Essa até poderia ser a definição da função da polícia, mas ainda carregaria certa carga de truculência protofascistoide. Ela existe para proteger os cidadãos. E só por consequência atua contra os tais delinquentes. De resto, uma das atribuições do Ministério Público é fazer o controle externo da polícia, não excitar a sua discricionariedade. Não sei se a estupidez é doce, mas é certamente saliente.

Não com o propósito de contestar o hálito fétido que emana das catacumbas —posto que não há diálogo possível com os "walking dead" verde-amarelos—, lembro, então, que os membros do Ministério Público têm o dever de zelar também pelos direitos dos criminosos, distintos dos nossos. Se aquele que se encontra sob a guarda do Estado é submetido ao vale-tudo, o que pode acontecer a quem não se encontra?

Nada mais distante da ação de justiceiros do que o papel reservado ao promotor e ao procurador. Há aí a diferença que distingue o "Estado democrático e de Direito" (gosto com o conectivo "e"), que aparece lá na página oficial do MPF, da barbárie miliciana.

Não há nenhuma evidência de que a abertura da caixa-preta da Lava Jato atenderia a interesses de Jair Bolsonaro. Essa é só uma reserva de falso temor, simulada por aqueles que exibem neutralidade na disputa entre a corda e o pescoço, numa expressão desprezível de covardia.

Faço aqui um desafio: evidenciem, ainda que por hipóteses plausíveis apenas, por quais caminhos a criação de uma Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), no âmbito do MPF, poderia degenerar em uma polícia política.

Lembro que a Unac não eliminaria ou tisnaria nenhuma das prerrogativas dos senhores procuradores, notadamente a inamovibilidade, a vitaliciedade e a irredutibilidade dos salários. Tampouco criaria circunstâncias que obrigariam um deles a desistir de uma investigação. O máximo que pode acontecer, em benefício da institucionalização de procedimentos, é a redução do espaço da arbitrariedade.

De resto, alinhar-se com o atual estado de coisas em nome do risco de que a mudança poderia ser instrumentalizada pelo atual governo corresponde a escolher a atuação degenerada da Lava Jato. Foi ela, em grande medida, a catalisadora do reacionarismo que conduziu Bolsonaro à Presidência.

Permitiremos que, mais uma vez, ao arrepio da lei, essa máquina de erigir e destruir reputações defina quem vai governar o país? Já conhecemos as consequências. Vamos ao "é da coisa": o beneficiário direto dos desmandos em voga é Sergio Moro. Sua pré-campanha à Presidência já está em gestação nos subterrâneos das redes sociais.

E o mote é precisamente a "defesa da Lava Jato" como sinônimo de combate à corrupção. Não é preciso fazer grande esforço interpretativo para entender que, nessa perspectiva, a operação, mera fração de um ente do Estado —o MPF—, resolve tomar o seu lugar.

Os meios qualificam os fins. Os empregados pelo lavajatismo corroem instituições e o devido processo legal. Existem provas robustas a respeito, não suposições. Não há desfecho virtuoso possível.
É imoral a isenção na disputa entre a corda dos justiceiros e o pescoço de suas vítimas, culpadas ou inocentes. Umas e outras têm de ser protegidas pelo devido processo legal. Parte da própria imprensa ainda não entendeu esse fundamento —e, portanto, não entendeu nada.


Reinaldo Azevedo: A democracia pede o fim da Lava Jato e a criação da Unac

Nada é mais importante no país do que resgatar o devido processo legal

Nada é mais importante no país do que resgatar o devido processo legal, soterrado pelo imoralismo lavajatista, que destruiu princípios, valores e procedimentos sob o pretexto de combater o malfeito. Assim, a criação da Unac (Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado) é uma prioridade.

Depois será preciso mudar as leis 12.846 (de leniência) e 12.850 (das delações) para que o país deixe de ser governado por agentes do Estado convertidos em achacadores de chantageados convertidos em delatores. O terceiro passo é desmilitarizar a política. Há uma "trilha clara para o meu país, apesar da dor" (Caetano).

A Unac tem de ser criada pelo MPF não para que se erija um ente estatal opaco, constituído por superprocuradores que se imponham ao arrepio da lei, munidos de espírito punitivo-salvacionista, empenhados em driblar a Constituição e os códigos e, por consequência, esbulhando direitos, impondo penas extrajudiciais, substituindo o escrito por arbitrariedades ditadas por solipsismos de justiceiros ensandecidos.

Eis a Lava Jato, cujo ilegalismo devorador de instituições remonta já a 2014, ano de sua criação, como comecei a apontar, então, neste espaço. Minha crítica não é ideológica nem nova. Insisto nela por obcecação? Talvez sim, mas não por obsessão. Sou obcecado pela ideia de que o direito sem a forma é mero valor que degenera em arbítrio.

Vejo com assombro vicejar até no STF certo consequencialismo inconsequente, disposto a fraudar a forma em favor da suposta eficácia da lei —que, nessa perspectiva, só se dá com o desrespeito à própria lei. Obsessivos são os partidários do demônio da desordem.

Temos de debater em que condições se criará a Unac para que se possa submeter o MPF ao controle democrático. "Ah, Reinaldo, você não teme que esse ente possa ser o núcleo de um estado policial?"

Estado policial é o que se tem hoje. A Lava Jato, como resta claro nos seus embates com Augusto Aras, procurador-geral da República, atua com uma autonomia que não encontra respaldo na Constituição, na lei complementar 75 e em nenhum outro diploma legal. A força-tarefa corrompe o MPF assim como a milícia corrompe a polícia.

A Unac pressupõe o fim dessas operações excrescentes, ocupadas em fortalecer a si mesmas, com seus justiçamentos e fases de nomes pretensiosos. Trata-se do avesso da Justiça, que, por princípio, tem de cultivar a contenção e o comedimento.

Se queremos um bom modelo de controle de informações, a fim de que não se crie, como há hoje, um mercado paralelo de investigações extrajudiciais e vazamentos de dados sigilosos, a Receita Federal pode servir de modelo.

Exceto quando molestado pela Lava Jato, o órgão é eficiente em manter o sigilo fiscal dos brasileiros. É impossível a qualquer servidor acessar dados de contribuintes sem que a consulta deixe um rastro e uma marca. A eventual instrumentalização de apurações fica registrada.

Os dados sobre a Lava Jato revelados por Aras, em debate com representantes do grupo Prerrogativas, são assombrosos. E, à diferença do que faz supor a retórica jacobina da força-tarefa, não foram contestados, mas referendados.

Não poderia encerrar de outro modo: apoio uma quarentena de oito anos para membros do Judiciário e do Ministério Público que queiram concorrer a cargos eletivos. Vou mais longe: que pretendam exercer função pública de indicação política. Que a lei seja votada logo, com eficácia imediata.

Políticos não mandam juízes e procuradores para a cadeia. Mas procuradores e juízes mandam políticos para a cadeia. A titularidade da ação penal e a toga, sob os auspícios da vitaliciedade e da inamovibilidade, não podem servir de palanque sem que se viole a noção mais elementar de justiça.

Ou este país ainda assistiria a um juiz que condenaria um presidenciável à cadeia e depois iria servir de ministro da Justiça àquele que foi o beneficiário direto da condenação. E com pretensões a ser ele próprio o supremo mandatário. E ainda posando de herói. Seria coisa de republiqueta bananeira, povoada por pilantras e babacas, não é mesmo?