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El País: Rebelião contra as redes sociais

Manipuladoras da atenção. Veículo de notícias falsas. Oligopólios sem controle. As redes sociais tiveram seu ‘annus horribilis’ em 2017. O que fazemos com elas?

Rebelião contra as redes sociaisAmpliar foto

Sean Parker sempre foi uma pessoa polêmica. Não por acaso foi o criador do Napster, a plataforma de downloads que deu uma rasteira na indústria fonográfica nos anos noventa. Quando em 8 de novembro pediu a palavra em um ato da empresa Axios na Filadélfia para dizer que se arrependia de ter impulsionado o Facebook, jogou mais lenha na fogueira que está queimando as redes sociais em 2017, seu particular annus horribilis. No final das contas, ele foi em 2004 o primeiro presidente da plataforma comandada por Mark Zuckerberg. Explicou que para conseguir com que as pessoas permanecessem muito tempo na rede, era preciso gerar descargas de dopamina, pequenos instantes de felicidade; e que esses viriam pelas marcações de “gostei” dos amigos. “Isso explora uma vulnerabilidade da psicologia humana”, afirmou. “Os inventores disso, tanto eu, como Mark [Zuckerberg], como Kevin Systrom [Instagram] e todas essas pessoas, sabíamos. Apesar disso, o fizemos”.

Parker se declarou nesse dia opositor das redes sociais. Finalizou sua intervenção com uma frase inquietante: “Só Deus sabe o que isso está fazendo com o cérebro das crianças”.

Houve um tempo em que quem renegava essas plataformas era tachado depreciativamente de resistente à mudança, de velho. Esse tempo passou. Uma autêntica tempestade está se criando em torno do papel desempenhado pelas redes sociais em nossa sociedade. E são os grandes papas do Vale do Silício os que começaram a levantar a voz. O Facebook e o Twitter são acusados de se transformarem em espaços que aumentam o debate e o contaminam com informação falsa. Já circula a ideia de que é preciso desabituar-se do uso de plataformas projetadas para que passemos o maior tempo possível nelas, que causam vício; as redes (combinadas com o celular) como invenção contaminante, viciantes, o novo tabaco. Um problema de saúde pública. Um problema de saúde democrática.

O grupo de arrependidos das redes foi aumentando nos últimos meses. Em 12 de dezembro, um ex-vice-presidente do Facebook, Chamath Palihapitiya, afirmou que as redes estão “partindo” o tecido social. “Os ciclos de retroalimentação a curto prazo impulsionados pela dopamina que criamos está destruindo o funcionamento da sociedade”, declarou em um fórum da Escola de Negócios Stanford. Em 23 de janeiro, Tim Cook, executivo-chefe da todo-poderosa Apple, afirmou que não quer que seu sobrinho de 12 anos tenha acesso às redes sociais. Em 7 de fevereiro, o ator Jim Carrey vendeu suas ações da plataforma e pediu um boicote ao Facebook por sua passividade diante da interferência russa nas eleições.

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A percepção que temos das redes sofreu uma mutação. Nasceram como um instrumento para se conectar com amigos e compartilhar ideias. Atenuavam o suposto isolamento causado pela Internet. E se transformaram em uma força democratizante ao calor da Primavera Árabe. Pareciam uma ferramenta perfeita à mudança social, empoderavam a pessoa. “Davam voz aos que não tinham voz”, frisa em conversa por telefone do Reino Unido Emily Taylor, executiva do Oxford Information Labs que há 15 anos trabalha em assuntos de governança na Rede. “Em somente sete anos, tudo mudou. São preocupantes essas campanhas políticas de anúncios dirigidas a alterar os processos eleitorais”.

Se o Facebook filtra a informação, no final ele te mostra somente uma visão dos fatos, você se radicaliza”, diz a pesquisadora Mari Luz Congosto

A vitória do Brexit nas urnas e a eleição de Donald Trump são dois dos fenômenos que levaram o mundo inteiro a se questionar: como ninguém viu isso chegar? A resposta, em parte, foi procurada e encontrada nas redes.

O Facebook foi chamado em outubro pelo Comitê de Justiça do Congresso norte-americano para explicar seu papel na interferência russa nas eleições nos EUA em 2016. Admitiu que 126 milhões de pessoas puderam acessar conteúdos gerados por supostos agentes russos (A Internet Research Agency), que também publicaram aproximadamente mil vídeos no YouTube e 131.000 mensagens no Twitter. Entre todas essas notícias falsas apareciam histórias delirantes como a de que Hillary Clinton vendeu armas ao Estado Islâmico.

Mas essa não foi a única polêmica. As redes estiveram no foco pela compra de seguidores fictícios por parte de influencers; pelos linchamentos públicos de pessoas que são denunciadas nas redes e que são condenadas ao ostracismo sem julgamento; por sinistros episódios como crimes transmitidos ao vivo. E em Myanmar, o Facebook viveu um de seus piores episódios: no ano passado a empresa foi acusada de se transformar no vetor fundamental da propaganda contra a minoria rohingya, vítima de um genocídio. Annus horribilis.

Uma reportagem de investigação publicada na semana passada pela revista Wired revela o inferno que a organização viveu nos últimos dois anos. A tensão sobre o que fazer uma vez embarcados no que era uma realidade – sua condição de veículo informativo global –, as disputas sobre como enfrentar a avalanche de notícias falsas e o enraivecimento que inundava suas páginas ceifou o otimismo reinante, incluindo o do próprio Zuckerberg.

É um fato. O Facebook é a plataforma líder em redirecionar os leitores a conteúdos informativos desde meados de 2015, quando superou o Google nisso. Mais de 2,13 bilhões de pessoas fazem parte de sua comunidade. Existem 332 milhões no Twitter. Dois terços dos adultos norte-americanos (67%) declararam que se informam via redes sociais, de acordo com um estudo de agosto de 2017 realizado pelo Pew Research Centre.

O Facebook não cria conteúdos, mas os ordena. Primeiro decidiu realizar um trabalho editorial com uma equipe de jornalistas que escolhia as notícias mais populares. Depois, após vários escândalos durante a campanha, apostaram nos algoritmos, delegaram à máquina. O tiro saiu pela culatra.

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O problema é o modelo de negócio. É o que diz Emily Taylor. O usuário aceita ceder dados em troca de um serviço gratuito. Os algoritmos usam essa informação para determinar os interesses do usuário. As empresas de publicidade pagam por isso. “Não se extraem dados somente do que é postado publicamente”, afirma Taylor, “mas também da localização, das mensagens privadas”. Quanto mais tempo passamos na plataforma, mais dados podem ser extraídos. Uma notícia chocante, sensacionalista, até inverossímil, chama mais à leitura do que uma tranquila e equilibrada análise. Uma mudança de rumo que afeta tanto as redes como os veículos de comunicação tradicionais.

O Facebook não cria conteúdos, mas os ordena. Primeiro decidiu realizar um trabalho editorial com uma equipe de jornalistas que escolhia as notícias mais populares

Depois vem a questão do algoritmo. O usuário de uma plataforma como o Facebook não vê tudo o que os seus amigos publicam. Vê o que a máquina escolhe de acordo com uma fórmula que o Facebook não revela. “Ele te mostra o que o algoritmo quer, não sabemos com que objetivo, se perverso ou não”, diz Mari Luz Congosto, especialista em redes e pesquisadora do grupo de telemática da Universidade Carlos III. “Você perde uma parte de sua liberdade e a plataforma faz negócios com isso. Manipula o que as pessoas leem, marca o caminho”.

E o problema é que o algoritmo manda cada vez mais. Passamos de uma Internet que era acessada por computadores, nos quais a pessoa procurava, explorava, a uma Internet em que se entra por aplicativos instalados no celular. Algo que acontece, principalmente, com toda uma geração de jovens que vivem dentro de seu telefone. E que acontece em países pobres com muitos telefones e poucos computadores. “A Internet chega a você por um algoritmo, não é você que procura algo na Internet”, afirma em conversa por telefone de Bogotá a advogada e ativista digital guatemalteca Renata Ávila, assessora legal de direitos digitais da World Wide Web Foundation, organização presidida por Tim Berners-Lee, o inventor da world wide web. E utiliza uma metáfora: “Antes operávamos na rua, o mundo era nosso, entrávamos e saímos dos edifícios. Agora estamos trancados em um centro comercial com regras rígidas que só querem maximizar o modelo de negócio”.

“A Internet chega a você por um algoritmo, não é você que procura algo na Internet”, afirma a advogada e ativista digital guatemalteca Renata Ávila

Para Ávila, o problema não é exclusivo do Facebook, pelo contrário. Todas as plataformas funcionam da mesma foram: “O problema é a arquitetura do celular, dos apps. O modelo de negócio”.

Tudo isso ainda recebe o acréscimo do efeito bolha. O usuário lê o que seus amigos lhe mandam e as pessoas próximas ideologicamente: um estudo publicado na revista científica norte-americana PNAS e que analisou 376 milhões de interações entre usuários do Facebook concluiu que as pessoas tendem a procurar informação alinhada às suas ideias políticas. “Se o Facebook filtra sua informação”, diz a pesquisadora de redes Mari Luz Congosto, “no final você recebe somente uma visão dos fatos, reforçada, e, portanto, você se radicaliza”.

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O modelo de negócio também está por trás do problema do vício às redes, projetadas para conquistar o usuário. Algum dia pode ser que precisem responder por isso, como a indústria do tabaco precisou fazer.

Pessoas escravizadas por seu perfil, pela imagem que devem dar aos seus seguidores; garotas que com o passar do tempo se fotografam com cada vez menos roupa no Instagram para conseguir mais likes; adolescentes que não se separam do celular pela quantidade de mensagens que eles se veem obrigados a responder e cuja amizade parece ser avaliada em termos de tracinhos que marcam suas interações no Snapchat. A lista de críticas ao impacto social dessas plataformas é variada.

Na última edição do Fórum de Davos, o multimilionário George Soros resumiu em uma intervenção os problemas que, estima, as redes colocam. Disse que enquanto as empresas petrolíferas e de mineração exploram o meio ambiente, as redes sociais exploram o ambiente. Que, ao influenciar no modo em que as pessoas pensam e se comportam, significam um risco à democracia.

Agora as críticas chovem, mas têm muitas linhas de defesa. Quando em 10 de janeiro o escritor Lorenzo Silva anunciou que, cansado de barulho, tempo perdido e insultos, deixava o Twitter, a jornalista e prolífica tuiteira Carmela Ríos publicou um decálogo das razões que fazem com que se mantenha nessa rede social. Escreveu: “Estou no Twitter porque é uma ferramenta de comunicação política do século XXI”. E a partir daí desfiou seus motivos em 10 tuítes: “Porque as redes são necessárias na era da desinformação, não é possível detectar e combater notícias falsas sem conhecer seu ecossistema natural”; “porque aprendi ao longo dos anos a racionar seu uso”; “porque é uma maravilhosa fonte de conhecimento”; “porque aprendi a discriminar entre seus melhores usos (os menos interessantes, sem dúvida, a tertúlia e o debate político)”; e porque permite “conhecer pessoas cujas ideias, conhecimentos, projetos e sentimentos valem a pena”.

O EL PAÍS pediu para falar com algum porta-voz do Facebook e do Twitter para que pudessem responder algumas perguntas. As duas empresas ofereceram, em troca, enviar informação por e-mail.

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A questão é o que fazer. Porque mesmo que Zuckerberg tenha anunciado que está disposto a colocar limites a notícias, marcas e memes, ainda que modifique o algoritmo para que exista menos informação e mais relação entre os usuários, não vai querer perder os lucros em publicidade que entram em função do tempo que se emprega em sua rede.

Jonathan Taplin, empreendedor que publicou no ano passado o livro Move Fast And Break Things: How Facebook, Google And Amazon Cornered Culture And Undermined Democracy (Mova-se rápido e quebre as coisas: como o Facebook, Google e a Amazon arruinaram a cultura e enfraqueceram a democracia), tem todas as suas esperanças depositadas na União Europeia. “A Europa está liderando o mundo nisso”, declara em conversa por telefone da Califórnia o diretor emérito do Laboratório de Inovação Annenberg da Universidade da Carolina do Sul e ex-produtor de cinema. “Devemos agradecer, por exemplo, que o Google tenha sido multado [2,42 bilhões de euros (10 bilhões de reais) por abuso de posição dominante]”.

O produtor Jonathan Taplin quer a redução do tamanho desses impérios. O Facebook deve se desligar do Instagram e do WhatsApp

A nova Regulamentação Geral de Proteção de Dados da UE, esperada para maio, é vista por vários especialistas como um catalizador para fortalecer a proteção de dados das pessoas. “É preciso regulamentar”, afirma Taplin, “precisamos de leis, não é o mercado que irá solucionar o problema”. Taplin quer a redução por lei do tamanho desses impérios: obrigar o Google a vender o YouTube; o Facebook, que se deligue do Instagram e do WhatsApp; aplicar leis de concorrência, redimensionar.

A revista The Economist propôs em novembro em um artigo que as redes deveriam deixar mais claro se uma postagem vem de um amigo e de uma fonte confiável, manter controlados os bots que amplificam as mensagens e adaptar seus algoritmos para colocar as notícias caça-cliques [as que provocam muitos cliques] no final do muro para dessa forma evitar que os reguladores acabem impondo mudanças em um modelo de negócio baseado em monopolizar a atenção.

Os grandes do Vale do Silício, enquanto isso, enviaram um exército de lobistas a Washington. Temem que aconteça a eles o que ocorreu com a Microsoft, condenada por práticas abusivas de monopólio.

Existem vozes que pedem que as plataformas respondam pelo que se publica nelas. Algo que as redes respondem que se negam a se transformar em árbitros da verdade. Existem outras que pedem que os programas educacionais incluam elementos práticos que permitam aos mais jovens aprender a manejar o componente viciante das redes.

Há quem diga, por fim, em um claro alarde de otimismo antropológico, que as pessoas progressivamente prescindirão delas como da junkie food, optarão por dedicar seu tempo de leitura a escolhas mais seletas.

ENRAIVECIMENTO

Um estudo do Pew Research publicado em outubro de 2016 mostra que 49% dos usuários norte-americanos consideram que as conversas políticas nas redes sociais são mais furiosas do que na vida real. Contribuem ao enraivecimento.

“No Twitter” diz a pesquisadora Mari Luz Congosto, “nos últimos dois anos o tom é muito áspero. O tom ácido aumentou, antes era mais brincalhão. As mensagens se tornaram mais duras”.

Os responsáveis pelas redes argumentam que isso é algo imputável aos humanos, não aos veículos que as transmitem.

E os responsáveis pelo Twitter lembram que as redes estão sujeitas à lei e à legislação europeia e que, por exemplo, uma avaliação independente da Comissão Europeia diz que, em média, as empresas retiraram 70% dos discursos de ódio ilegais que lhes foram notificados.


Augusto Santos Silva: Será que as redes sociais estão substituindo os intelectuais?

Populismo e fake news ameaçam jornais e universidades, diz chanceler português
Augusto Santos Silva, especial para a Ilustríssima, Folha de S. Paulo

 

populismo e a desinformação constituem, hoje, ameaças muito sérias às nossas democracias. Seria um erro funesto ignorá-los.

Na esteira de Jan-Werner Müller, professor do Departamento de Política da Universidade de Princeton (EUA), caracterizo o populismo por sua contestação às elites, seu desprezo pelo pluralismo e sua representação moralista e emocional do povo.

Antielitista, o populismo combate as lideranças políticas e intelectuais, a quem acusa de distância e traição em relação aos anseios e sentimentos dos "de baixo". Antipluralista, rejeita a diversidade de interesses e opiniões, desqualifica os partidos e as instituições parlamentares e nega o direito à diferença e à dissidência. Moralista, arroga-se o estatuto de representante genuíno e único de um "verdadeiro povo" que ele próprio define, dele excluindo o que lhe pareça contrário e desqualificando-o como falso ou estrangeiro.

Por seu lado, designo como desinformação (fake news) a corrente que põe em causa três distinções fundamentais do jornalismo e em seu lugar cultiva o apelo populista.

A primeira distinção separa a informação da propaganda: esta é legítima, mas não se confunde com aquela, que faz depender o que diz do que apura com o máximo de rigor, objetividade e isenção possível.

A segunda é a distinção entre a notícia e o boato ou o rumor: a notícia não é o fato cru, muito menos o alarido imediato, mas sim o fato identificado, verificado e interpretado segundo regras cognitivas, éticas e profissionais próprias.

A terceira é a separação entre fatos e opiniões: embora a separação não seja estanque, porque as interpretações são situadas e influenciadas, ela constitui uma referência de que se aproximam todos os que entendem que os cidadãos necessitam, ao mesmo tempo, de informação atualizada e criteriosa e de opiniões livres e diversas.

A desinformação abomina estas distinções porque o seu propósito é militante, o seu fim é a inculcação de preconceitos e estereótipos e as suas armas são o recurso à psicologia de massas, a relação emocional com os destinatários e a ilusão de que essa relação não precisa de mediação nem de mediadores.

Por isso mesmo, a desinformação e o populismo alimentam-se um do outro, e ambos representam enorme perigo para a vida pública democrática. Une-os, em particular, o culto do chefe (por contraposição às elites cosmopolitas e abertas), o desamor pela esfera pública e, correlativamente, o desprezo pela racionalidade comunicacional que, como mostrou o filósofo Jürgen Habermas, se funda na argumentação pública entre as partes.

Seria outro erro fatal supor que essa alimentação recíproca entre populismos e fake news seja um perigo somente para os governos, os partidos políticos e as competições eleitorais. Dois outros pilares das democracias maduras se encontram também ameaçados, e a derrocada deles terá consequências devastadoras para a nossa cidadania. Refiro-me ao campo acadêmico (ou universidade, em sentido amplo) e ao jornalismo; ou seja, refiro-me aos intelectuais e à função intelectual.

Em primeiro lugar, o crescimento da influência do populismo e da prática da desinformação deslegitima a razão crítica, entendida como exercício analítico orientado para o conhecimento e dele esperando recursos para a ação reflexiva e o bem comum. Esse crescimento significa (ao mesmo tempo como causa e como efeito) o declínio da cultura científica (como exame crítico segundo protocolos de problematização, observação e prova) e do debate público (como troca de argumentos sujeitos a validações e falsificações cruzadas).

Em segundo lugar, desqualifica o esforço de mediação, a função mediadora e a prática profissional associada a ela.

Pouco haverá de mais contrário ao que pensam e fazem jornalistas, acadêmicos e outros intelectuais do que a ilusão populista do acesso instantâneo e da relação direta entre a pessoa comum e o conhecimento das coisas, como se fosse só necessário crer para que algo existisse, como se fosse possível tomar posição sem saber os dados do problema e, sobretudo, como se essas elites profissionais intrusas da adesão emocional imediata ao chefe fossem não só dispensáveis como também inimigas.

A mediação exige análise técnica, prática profissional e competências próprias, um trabalho que se submete a protocolos de método e deontologia, que se faz em instituições específicas e que prima pela comparação e confrontação de paradigmas e teorias rivais. O populismo e as fake news oferecem a alternativa do faça-você-mesmo-de-uma-só-maneira, em suposta ligação direta com o chefe.

AUTOCRÍTICA

O populismo não nasceu hoje. No sentido preciso que Jan-Werner Müller lhe atribui, e aqui perfilho, o populismo é "a sombra da democracia representativa".

Como sempre sucede com processos sociais complexos, o incremento da sua projeção pública não se deveu apenas à força própria; elementos disfuncionais realmente existentes nas democracias (como desvios oligárquicos, controles partidários ou défice de transparência perante os cidadãos) ajudaram a impulsionar as críticas populistas às elites alegadamente todo-poderosas ou aos partidos alegadamente indiferentes ao sentir do povo.

Coisa análoga aconteceu com os intelectuais: vários desempenhos negativos desse papel justificaram o ceticismo sobre seus méritos.

Não é possível, portanto, fazer a crítica do anti-intelectualismo populista sem identificar as responsabilidades próprias dos intelectuais.

homem teclando dentro de escada
Ilustração de capa da 'Ilustríssima' - Adams Carvalho

Primeiro, a culpa da arrogância, tão típica do "intelectual legislador" moderno, tipificado pelo filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017). A ideia de que o intelectual encarnava uma autoridade superior, superlegítima, quase transcendente, cuja razão de ser estaria numa ciência ou numa cultura inacessível às pessoas comuns, teve, como todos sabemos, consequências catastróficas nos séculos 19 e 20.

Os intelectuais que aumentaram deliberadamente o seu próprio distanciamento em relação ao povo não podem queixar-se de que o povo lhes pague em dobro.

Segundo, a culpa da traição. O nome é forte, mas o tempo não está para palavras mansas. Quando, no século passado, muitos acadêmicos, escritores e jornalistas levaram o conceito de "intelectual orgânico" a um limite que nem o próprio filósofo Antonio Gramsci (1891-1937) havia imaginado, diluíram por completo a capacidade crítica inerente ao seu trabalho. Aceitando tornar-se porta-vozes de ideologias diante das quais abdicavam de qualquer escrutínio e juízo crítico, puseram em xeque o fundamento mesmo da sua condição.

Terceiro, a culpa do descumprimento ostensivo da deontologia profissional. O que tem sido particularmente evidente e grave no jornalismo, onde todos os dias se repetem infrações descaradas a regras básicas de ética e deontologia, como a separação entre fatos e opiniões, o respeito pela intimidade e a vida privada, a obrigação do contraditório ou o dever de prova. Mas também acontece, infelizmente, no próprio meio universitário, onde se sucedem os casos de desleixo ou desprezo pelas regras de método e a confusão entre substância científica e retórica comunicacional.

Quarto, a culpa da autossatisfação. Quando a norma vira ritual e se toma ainda Versalhes por modelo de representação, cultivando pomposamente o espírito de corpo e reclamando permanentemente honrarias e privilégios, quando os jornalistas se acham o centro das notícias e os acadêmicos só falam de uns para os outros, a distância com o restante da sociedade vai-se cavando e a ligação com a cidadania (essencial ao papel do intelectual) vai-se deslaçando.

Em quinto lugar, sintetizando todos, a violência do poder simbólico, tão bem analisada pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002). Como todos os poderes, o poder das academias e, sobretudo, o da mídia, se não limitado nem escrutinado, gera exclusão e opressão. E chega sempre um dia em que os excluídos e os oprimidos se revoltam, mesmo que sob bandeiras erradas e lideranças perversas.

O CAMINHO

Portanto, não é possível fazer a crítica do anti-intelectualismo dos populistas sem fazer a (auto)crítica do intelectualismo dos intelectuais —quando são fechados, autocentrados, arrogantes, quando esquecem suas próprias normas profissionais ou as colocam convenientemente em suspenso.

Em poucas palavras: a primeira condição necessária para enfrentar o anti-intelectualismo é ser humilde na relação com outrem e exigente na relação consigo próprio e o seu ofício.

Há ainda uma segunda condição, igualmente indispensável. É não entrar em modo de negação diante da nova realidade social e comunicacional representada pelas redes sociais. Estas existem, são poderosas e nada indica que sua presença e influência vão regredir. É preciso fazer, portanto, um esforço sério de compreensão.

Comecemos pela comunicação. No princípio, ela era ponto a ponto, quer dizer, pessoa a pessoa, em contextos marcados pela copresença física e a interação direta. Depois, passa a se dar também através de meios de comunicação a distância (como a carta escrita).

A comunicação de massas, que terá seu apogeu no século 20, com a imprensa de distribuição maciça, o rádio e a televisão, multiplicará as audiências: um ponto emissor (o jornal, o canal de rádio ou de televisão) dirige-se a massas de leitores, ouvintes e espectadores. Comunicação ponto-multiponto, pois.

Claro que haveria muitas precisões e modulações a fazer neste esquema demasiado básico; no entanto, para o que aqui nos interessa, ele basta.

O que o modo de comunicação da nova mídia faz é repor formas de interação individualizada ou por grupo, agora em contextos não de copresença física, mas sim de comunicação digital que, no limite, dispensa qualquer outro conhecimento ou contato pessoal.

Depois, as funções de emissão e recepção tornam-se muito mais mescladas, porque a tecnologia permite a multiplicação das fontes de informação e agiliza a retroação de receptores sobre emissores e mediadores.

Finalmente, tudo isso ocorre numa enorme aceleração temporal, podendo ser praticamente instantâneo o acesso a dados e emoções sobre eventos ou pessoas localizadas nos confins do mundo.

As consequências no plano específico da informação e do conhecimento são óbvias. Maior variedade de fontes de informação, multiplicação dos canais de acesso, diversificação e concorrência recíproca das várias instâncias de legitimação, controle e interpretação da informação em circulação —e maior rapidez nesta circulação, em direções cruzadas.

Não são menos importantes os efeitos sobre os padrões de conduta social. De um lado, no que importa à entrada dos "leigos" no mercado de opinião, quer dizer, das pessoas comuns, que se podem reconhecer e ser reconhecidas como produtoras e difusoras de notícias e avaliações sobre a realidade circundante. Do outro, quanto à dependência muito menor dessas pessoas, quer no acesso, quer na interpretação, em relação aos mediadores institucionais ou profissionais, tais como, precisamente, jornais e academias, jornalistas e intelectuais.

No universo comunicacional atual, cada sujeito pode dizer e muitas vezes diz: "Eu sei mais depressa o que se passa, eu próprio posso dizer aos outros o que se passa, eu comento com os outros o que se passa, verifico eu próprio o sentido do que me dizem, eu falo sobre o que se passa, eu faço acontecer o que se passa, através da internet, da Wikipedia, do Facebook, do Twitter, do WhatsApp e de tantas outras aplicações e plataformas que me vão permitindo constituir a minha tribo, os meus pares, os emissores-mediadores-receptores do meu quadro de conhecimento, informação e comunicação; portanto, ouçam-me; e, se não me ouvirem, eu procurarei quem me ouça, neste mesmo quadro, fora das elites sociais e fora das instituições políticas que teimam em ignorar-me, ou tratar-me como se ainda estivéssemos na era da comunicação de ponto a multiponto".

Faço mais uma vez minhas as palavras de Jan-Werner  Müller: é um erro dramático recusar direitos de cidadania a este mundo e a estes sujeitos das redes sociais; é preciso compreendê-los e falar, não como eles, mas certamente com eles. Não vale a pena imaginar que eles são transitórios, ou vão ficando mais fracos. É realmente o contrário que se passa.

COMBATE

Que fazer, então?

Ter consciência lúcida da complexidade e das dificuldades da situação presente. É um fato que as redes sociais e a nova mídia estão aí, e para ficar. É um fato que elas ampliam o raio de ação e de socialização de cada sujeito social, e isso é coisa positiva.

É também um fato que, pela ilusão da ligação direta entre pessoa e mundo, e entre pessoas-no-mundo, assim como pela ilusão da soberania plena do homem e da mulher comum, aparentemente investidos de um poder de fornecer e recolher informação e formar opinião de que antes não dispunham, as redes sociais constituem um caldo de cultura muito favorável à germinação e à difusão das atitudes e mobilizações populistas, antielitistas e antipluralistas.

Finalmente, é ainda um fato que as redes sociais são especialmente vulneráveis às lógicas e práticas de manipulação por desinformação e tração moralista e emocional.

A questão é, pois: como podemos assumir a existência e a força das novas redes sociais e dos seus modos de comunicação e socialização e tirar vantagem da ampliação das capacidades e poderes das pessoas, sendo ao mesmo tempo eficazes no combate à manipulação que denega a cidadania e faz perigar a democracia, sem cair nos velhos erros da arrogância intelectual?

Na minha opinião, podemos e devemos fazer tudo isto. Se há um veneno que se está espalhando pelo tecido cívico e institucional —o veneno do populismo e da desinformação—, os antídotos a que devemos recorrer são os três seguintes.

Primeiro, defender e praticar uma razão hermenêutica e comunicacional (na linha de pensadores como Jürgen Habermas e Zygmunt Bauman). Quero dizer uma racionalidade crítica (diante do mundo e de si própria), compreensiva (respeitando e conhecendo os diferentes universos de pensamento) e fundada no diálogo e na argumentação pública. Esse é o melhor antídoto contra o moralismo e o emocionalismo. Esse é o melhor método de escrutínio e verificação dos fatos e dos projetos que circulam à nossa volta.

Segundo, defender e praticar a mediação. Contra a ilusão do imediato, da transparência e da plena evidência, isto é, contra a negação da complexidade das coisas e do trabalho necessário para definir os problemas e encontrar as respostas; e contra a sugestão tipicamente populista de que a "verdade" se daria a ver a si própria sem dificuldade nem questão, só não a atingindo os de condição estrangeira aos sentimentos e identidade do povo.

A informação, que permite dispor de elementos sobre o real, e o conhecimento, que permite interpretá-los, estão certamente ao alcance de todos. Mas no sentido em que todos podem aceder aos resultados e aos instrumentos de um processo intelectual específico, que requer regras, método e labor, que implica um esforço específico de análise e crítica, que requer mediação.

A qual —terceiro antídoto fundamental— não é apenas nem sobretudo tarefa de indivíduos, por mais talentosos que sejam, mas de instituições; ou seja, de indivíduos em instituições. Da imprensa à academia, da escola ao Parlamento, da comunidade local ao Estado, da organização não governamental à entidade pública, a nossa interpretação do real e a nossa ação sobre o real fazem-se em contexto e são tanto mais fortes quanto mais forte for o contexto institucional e os recursos coletivos que ele providencia.

O ser-no-mundo exige conhecer e contatar instituições diversas e plurais; exige respeitar e praticar os meios cognitivos que acrescentam rigor, profundidade e imparcialidade à informação de que todos necessitamos.

Numa palavra: não precisamos de menos, mas de mais intelectuais. De mais acadêmicos, mais professores, mais jornalistas. De mais cultura jornalística —como escrutínio crítico e organizado de fontes diferenciadas de informação— e de mais cultura científica —como forma específica e autodirigida de produzir e circular conhecimento.

Não vejo alternativa. Se queremos combater o populismo e a desinformação, não podemos querer ignorar, muito menos lançar anátema sobre as novas plataformas, tecnologias e modelos de informação e comunicação, e nomeadamente sobre as chamadas redes sociais. Devemos, isto sim, conhecê-las, compreendê-las e frequentá-las.

Não para subordinarmos à sua lógica hegemônica a função própria dos intelectuais no espaço público, mas para mobilizar todo o enorme poder de capacitação crítica que essa função transporta, para revigorar a cidadania e preservar a democracia.

Podem os intelectuais ser substituídos pelas redes sociais? Sem dúvida. Mas só se renunciarem à sua dupla responsabilidade: de conhecer e de agir.


Augusto Santos Silva, 61, doutor em sociologia e professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, é ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal.

Adams Carvalho, 38, é ilustrador.


El País: O obscuro uso do Facebook e do Twitter como armas de manipulação política

As manobras nas redes se tornam uma ameaça que os governos querem controlar

Por Javier Salas

Tudo mudou para sempre em 2 de novembro de 2010, sem que ninguém percebesse. O Facebook introduziu uma simples mensagem que surgia no feed de notícias de seus usuários. Uma janelinha que anunciava que seus amigos já tinham ido votar. Estavam em curso as eleições legislativas dos Estados Unidos e 60 milhões de eleitores vieram aquele teaser do Facebook. Cruzando dados de seus usuários com o registro eleitoral, a rede social calculou que acabaram indo votar 340.000 pessoas que teriam ficado em casa se não tivessem visto em suas páginas que seus amigos tinham passado pelas urnas.

Dois anos depois, quando Barack Obama tentava a reeleição, os cientistas do Facebook publicaram os resultados desse experimento político na revista Nature. Era a maneira de exibir os músculos diante dos potenciais anunciantes, o único modelo de negócio da empresa de Mark Zuckerberg, e que lhe rende mais de 9 bilhões de dólares por trimestre. É fácil imaginar o quanto devem ter crescido os bíceps do Facebook desde que mandou para as ruas centenas de milhares de eleitores há sete anos, quando nem sequer havia histórias patrocinadas.

Há algumas semanas, o co-fundador do Twitter, Ev Williams, se desculpou pelo papel determinante que essa plataforma desempenhou na eleição de Donald Trump, ao ajudar a criar um “ecossistema de veículos de comunicação que se sustenta e prospera com base na atenção”. “Isso é o que nos torna mais burros e Donald Trump é um sintoma disso”, afirmou. “Citar os tuítes de Trump ou a última e mais estúpida coisa dita por qualquer candidato político ou por qualquer pessoa é uma maneira eficiente de explorar os instintos mais baixos das pessoas. E isso está contaminando o mundo inteiro”, declarou Williams.

Quando perguntaram a Zuckerberg se o Facebook tinha sido determinante na eleição de Trump, ele recusou a ideia dizendo ser uma “loucura” e algo “extremamente improvável”. No entanto, a própria rede social que ele dirige se vangloria de ser uma ferramenta política decisiva em seus “casos de sucesso” publicitários, atribuindo a si mesma um papel essencial nas vitórias de deputados norte-americanas ou na maioria absoluta dos conservadores britânicos em 2015.

O certo é que é a própria equipe de Trump quem reconhece que cavalgou para a Casa Branca nas costas das redes sociais, aproveitando sua enorme capacidade de alcançar usuários tremendamente específicos com mensagens quase personalizadas. Como revelou uma representante da equipe digital de Trump à BBC, o Facebook, o Twitter, o YouTube e o Google tinham funcionários com escritórios próprios no quartel-general do republicano. “Eles nos ajudaram a utilizar essas plataformas da maneira mais eficaz possível. Quando você está injetando milhões e milhões de dólares nessas plataformas sociais [entre 70 e 85 milhões de dólares no caso do Facebook], recebe tratamento preferencial, com representantes que se certificam em satisfazer todas as nossas necessidades”.

E nisso apareceram os russos

A revelação de que o Facebook permitiu que, a partir de contas falsas ligadas a Moscou, fossem comprados anúncios pró-Trump no valor de 100.000 dólares colocou sobre a mesa o lado obscuro da plataforma de Zuckerberg. Encurralado pela opinião pública e pelo Congresso dos Estados Unidos, a empresa reconheceu que esses anúncios tinham alcançado 10 milhões de usuários. No entanto, um especialista da Universidade de Columbia, Jonathan Albright, calculou que o número real deve ser pelo menos o dobro, fora que grande parte de sua divulgação teria sido orgânica, ou seja, viralizando de maneira natural e não só por patrocínio. A resposta do Facebook? Apagar todo o rastro. E cortar o fluxo de informações para futuras investigações. “Nunca mais ele ou qualquer outro pesquisador poderá realizar o tipo de análise que fez dias antes”, publicou o The Washington Post há uma semana. “São dados de interesse público”, queixou-se Albright ao descobrir que o Facebook tinha fechado a última fresta pela qual os pesquisadores podiam espiar a realidade do que ocorre dentro da poderosa empresa.

Esteban Moro, que também se dedica a buscar frestas entre as opacas paredes da rede social, critica a decisão da companhia de se fechar em vez de apostar na transparência para demonstrar vontade de mudar. “Por isso tentamos forçar que o Facebook nos permita ver que parte do sistema influi nos resultados problemáticos”, afirma esse pesquisador, que atualmente trabalha no Media Lab do MIT. “Não sabemos até que ponto a plataforma está projetada para reforçar esse tipo de comportamento”, afirma, em referência à divulgação de falsas informações politicamente interessadas.

O Facebook anunciou que contará com quase 9.000 funcionários para editar conteúdos, o que muitos consideram um remendo em um problema que é estrutural. “Seus algoritmos estão otimizados para favorecer a difusão de publicidade. Corrigir isso para evitar a propagação de desinformação vai contra o negócio”, explica Moro. A publicidade, principal fonte de rendas do Facebook e do Google, demanda que passemos mais tempos conectados, interagindo e clicando. E para obter isso, essas plataformas desenvolvem algoritmos muito potentes que criaram um campo de batalha perfeito para as mentiras polícias, no qual proliferaram veículos que faturam alto viralizando falsidades e meia-verdades polarizadas.

“É imprescindível haver um processo de supervisão desses algoritmos para mitigar seu impacto. E necessitamos de mais pesquisa para conhecer sua influência”, reivindica Gemma Galdon, especialista no impacto social da tecnologia e diretora da consultoria Eticas. Galdon destaca a coincidência temporal de muitos fenômenos, como o efeito bolha das redes (ao fazer um usuário se isolar de opiniões diferentes da sua), o mal-estar social generalizado, a escala brutal na qual atuam essas plataformas, a opacidade dos algoritmos e o desaparecimento da confiança na imprensa. Juntos, esses fatos geraram “um desastre significativo”. Moro concorda que “muitas das coisas que estão ocorrendo na sociedade têm a ver com o que ocorre nas redes”. E aponta um dado: “São o único lugar em que se informam 40% dos norte-americanos, que passam nelas três horas por dia”.

A diretora de operações do Facebook, Sheryl Sandberg, braço direito de Zuckerberg, defendeu a venda de anúncios como os russos, argumentando que se trata de uma questão de "liberdade de expressão". Segundo a agência de notícias Bloomberg, o Facebook e o Google colaboraram ativamente em uma campanha xenófoba contra refugiados para que fosse vista por eleitores-chave nos estados em disputa. O Google também aceitou dinheiro russo para anúncios no YouTube e no Gmail. Não em vão, o Facebook tem pressionado há anos para que não seja afetado pela legislação que exige que a mídia tradicional seja transparente na contratação de propaganda eleitoral. Agora, o Senado pretende legislar sobre a propaganda digital contra a pressão dessas grandes plataformas tecnológicas, que defendem a autorregulação. Tanto o Twitter quanto o Facebook expressaram recentemente a intenção de serem mais transparentes nesta questão.

A responsabilidade do Twitter

Em meados deste ano, o Instituto de Internet da Universidade de Oxford publicou um relatório devastador, analisando a influência que as plataformas digitais estavam tendo sobre os processos democráticos em todo o mundo. A equipe de pesquisadores estudou o que aconteceu com milhões de publicações nos últimos dois anos em nove países (Brasil, Canadá, China, Alemanha, Polônia, Taiwan, Rússia, Ucrânia e Estados Unidos) e concluiu, entre outras coisas, que “os bots [contas automatizadas] podem influenciar processos políticos de importância mundial”.

Nos EUA, os republicanos e a direita supremacista usaram exércitos de bots para “manipular consensos, dando a ilusão de uma popularidade on-line significativa para construir um verdadeiro apoio político” e para ampliar o alcance de sua propaganda. E concentraram seus esforços nos principais estados em disputa, que foram inundados com notícias de fontes não confiáveis. Em países como a Polônia e a Rússia, grande parte das conversas no Twitter é monopolizada por contas automatizadas. Em estados mais autoritários, as redes são usadas para controlar o debate político, silenciando a oposição e, nos mais democráticos, aparecem as cibertropas para intencionalmente contaminar as discussões. As plataformas não informam nem interferem porque colocariam “sua conta em risco”.

“Os bots utilizados para a manipulação política também são ferramentas eficazes para fortalecer a propaganda on-line e as campanhas de ódio. Uma pessoa, ou um pequeno grupo de pessoas, pode usar um exército de robôs políticos no Twitter para dar a ilusão de um consenso de grande escala”, afirma a equipe da Oxford. E concluem: “A propaganda informática é agora uma das ferramentas mais poderosas contra a democracia” e é por isso que as plataformas digitais “precisam ser significativamente redesenhadas para que a democracia sobreviva às redes sociais”.

Zuckerberg diz que é “loucura” pensar que o Facebook pode definir eleições, mas se gaba de fazer isso em seu próprio site

O Twitter também deletou conteúdo de valor potencialmente insubstituível que ajudaria a identificar a influência russa na eleição de Trump. Mais recentemente, pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia alertaram sobre o desenvolvimento de um mercado paralelo de bots políticos: as mesmas contas que antes apoiaram Trump, tentaram mais tarde envenenar a campanha na França a favor de Le Pen e, depois, produziram material em alemão colaborando com o partido neonazista Afd. Zuckerberg prometeu fazer o possível para “garantir a integridade” das eleições alemãs. Durante a campanha, sete das 10 notícias mais virais sobre a primeira-ministra alemã Angela Merkel no Facebook eram falsas. O portal ProPublica acaba de revelar que a rede social tolerou anúncios ilegais que espalhavam informações tóxicas contra o Partido Verde alemão.

Galdon trabalha com a Comissão Europeia, a qual considera “muito preocupada” nos últimos meses em dar uma resposta a esses fenômenos, pensando em um marco europeu de controle que, atualmente, está muito longe de ser concretizado. “Há quem aposte pela autorregulação, quem acredite que deve haver um órgão de supervisão de algoritmos como o dos medicamentos e até mesmo quem peça que os conteúdos sejam diretamente censurados”, diz a pesquisadora. Mas Galdon destaca um problema maior: “Dizemos às plataformas que precisam atuar melhor, mas não sabemos o que significa melhor. As autoridades europeias estão preocupadas, mas não sabem bem o que está acontecendo, o que mudar ou o que pedir exatamente”.

SAIR DA BOLHA
Tem sido muito discutido o verdadeiro impacto do risco das bolhas de opinião geradas pelas redes, depois do alerta do ativista Eli Pariser. “Esse filtro, que acaba reforçando nossos próprios argumentos, está sendo decisivo”, alerta Galdon. Recentemente, Sheryl Sandberg, do Facebook, disse que a bolha era menor em sua plataforma do que na mídia tradicional (embora tenha negado categoricamente que sua empresa possa ser considerada um meio de comunicação). Cerca de 23% dos amigos de um usuário do Facebook têm opiniões políticas diferentes desse amigo, de acordo com Sandberg.

“Sabemos que as dinâmicas do Facebook favorecem o reforço de opiniões, que tudo é exacerbado porque buscamos a aprovação do grupo, porque podemos silenciar pessoas das quais não gostamos, porque a ferramenta nos dá mais do que nós gostamos. E isso gera maior polaridade”, diz Esteban Moro. Um exemplo: um estudo recente do Pew Research Center mostrou que os políticos mais extremistas têm muito mais seguidores no Facebook do que os moderados. “Vivemos em regiões de redes sociais completamente fechadas, das quais é muito difícil sair”, afirma. E propõe testar o experimento de seus colegas do Media Lab, do MIT, que desenvolveram a ferramenta FlipFeed, que permite entrar na bolha de outro usuário do Twitter, vendo sua timeline: “É como se você fosse levado de helicóptero e lançado no Texas sendo eleitor de Trump. Assim você percebe o quanto vivemos em um ecossistema de pessoas que pensam exatamente como nós”.

 

 


Revista Piauí: Você é o produto. Mark Zuckerberg e a colonização das redes pelo Facebook

Aos dados que ele próprio colheu, o Facebook acrescentou recentemente um gigantesco estoque de informações, ligado ao comportamento offline, no mundo real, de cada consumidor

Por John Lanchester

No final de junho deste ano, Mark Zuckerberg anunciou que o Facebook havia alcançado um novo patamar: 2 bilhões de usuários mensais ativos. Ou seja: 2 bilhões de pessoas diferentes acessaram o Facebook no mês anterior. É difícil aquilatar um conjunto desses. E pensar que “thefacebook” – o nome original do site – foi lançado para uso exclusivo dos alunos de Harvard em 2004. Nenhum empreendimento, nenhuma nova tecnologia, nenhum serviço jamais obteve tal difusão em tão pouco tempo.

A rapidez com que a rede social foi adotada excede com vantagem a velocidade de expansão da própria internet, sem falar de tecnologias mais antigas como televisão, cinema ou rádio. E também impressiona como, à medida que o Facebook cresceu, a confiança que inspira foi reforçada. A multiplicação de membros, ao contrário do que se poderia esperar, não significa menos comprometimento por parte do usuário. Mais não implica pior – pelo menos do ponto de vista do Facebook. Longe disso. No distante mês de outubro de 2012, quando a rede chegou a 1 bilhão de usuários, 55% deles já a acessavam todo dia. Hoje, que são 2 bilhões, os frequentadores diários chegam a 66%. Sua base cresce 18% ao ano – o que parecia impossível para uma empresa já tão gigantesca. O maior rival em matéria de inscritos é o YouTube, controlado pela Alphabet (a empresa antes conhecida como Google), sua concorrente implacável, que ocupa a segunda posição com 1,5 bilhão de usuários mensais. Os quatro maiores aplicativos – ou serviços, ou seja lá que nome tenham – que vêm em seguida são o WhatsApp e o Messenger, com 1,2 bilhão de usuários, o Instagram, com 700 milhões, e o aplicativo chinês WeChat, com 889 milhões. Os três primeiros têm um traço em comum: são controlados pelo Facebook. Não admira que a empresa-mãe seja a quinta mais valiosa do mundo, com um valor de mercado de 445 bilhões de dólares.

Ao comunicar o crescimento do Facebook, Zuckerberg ainda fez um anúncio que pode ou não ser significativo. Disse que a empresa havia decidido mudar a “declaração de princípios” – sua própria versão da hipócrita e cultivada afirmação de nobres preceitos da América corporativa. A missão do Facebook costumava ser “tornar o mundo mais aberto e conectado”. Um não usuário poderia se perguntar: a troco de quê? A conexão era apresentada como um fim em si mesmo, uma coisa boa pela própria natureza. Mas será mesmo? Flaubert falava dos trens com ceticismo, porque julgava (na paráfrase de Julian Barnes) que “as estradas de ferro simplesmente permitiram que mais gente se desloque daqui para lá, encontrando-se com outros e sendo, juntos, os idiotas de sempre”. E ninguém precisa ser um misantropo da magnitude de Flaubert para se perguntar se o mesmo não se aplicaria à tal conexão que o Facebook propõe. Por exemplo, acredita-se que a rede tenha desempenhado importante papel, crucial até, na eleição de Donald Trump. O benefício para a humanidade, no caso, não fica muito claro. Essa ideia, ou algo assim, parece ter ocorrido a Zuckerberg, pois sua nova declaração de intenções apontou uma razão para toda essa conectividade. Agora, a nova missão do Facebook seria “dar às pessoas o poder de construir comunidades e deixar o mundo mais próximo”.

Hummm. A declaração de intenções da Alphabet – “organizar a informação do mundo e torná-la universalmente acessível e útil” – era acompanhada da máxima “Não fazer o mal”, que rendeu muita risada: para Steve Jobs, não passava de uma “babaquice”.[1] É verdade, mas não é só isso. Muitas empresas, ou mesmo indústrias, baseiam seu modelo de negócios numa intenção perversa. O ramo dos seguros, por exemplo, funciona porque as empresas cobram bem mais do que seus clientes porventura venham a receber – o que é até justo, pois de outro modo as seguradoras não seriam viáveis. O que não é justo é o estratagema de recorrer a técnicas capciosas para evitar ao máximo os pagamentos devidos aos clientes. Basta perguntar a alguém que tenha tido uma propriedade atingida por algum sinistro importante.

Faz sentido, portanto, declarar a intenção de “não fazer o mal”, porque é assim que atuam muitos negócios. Sobretudo no mundo da internet, ambiente em que as empresas operam num campo mal compreendido pelos clientes e pelas autoridades reguladoras, se é que alguém de fato entende como funcionam. O que elas fazem, se competentes, é por definição inédito. E, nessa área em que novidade, desconhecimento e desregulação se sobrepõem, vale lembrar que os funcionários não devem fazer o mal, uma vez que, caso a empresa seja bem-sucedida, não faltarão oportunidades para que se pratiquem as mais variadas maldades.

Desde suas origens, mas com estilos diversos, Google e Facebook vêm palmilhando essa tênue linha divisória. Um conhecido meu já fez negócios com os dois. “O YouTube sabe que rola muita sujeira no site, e o pessoal sempre faz o possível para tentar melhorar e aliviar a situação”, ele disse. Perguntei o que ele entendia por “sujeira”. “Conteúdo extremista e terrorista, material roubado, violações de direitos autorais. Esse tipo de coisa. Mas o Google, na minha experiência, tem consciência das ambiguidades, da moral duvidosa que envolve boa parte do que fazem, e pelo menos tenta pensar numa resposta. Já o Facebook não está nem aí. Quando você tem uma reunião com eles, percebe na hora. Eles são (e por um instante ficou procurando a palavra certa) meio nojentos.”

Pode parecer um julgamento muito severo. Desde sua fundação, porém, o Facebook enfrenta problemas éticos e ambiguidades – sabe-se disso porque seu criador mantinha um blog e registrava tudo. E o nascimento da empresa ocorreu como se vê no filme de Aaron Sorkin, A Rede Social. Em seu primeiro ano em Harvard, Zuckerberg sofreu um revés sentimental. E quem não se vingaria com a criação de um site que exibisse lado a lado as fotos de todos os alunos, para que se votasse no mais atraente? (No filme, fica parecendo que só eram postadas fotos de moças; na vida real, eram de homens e mulheres.) O site chamava Facemash. Por ocasião do lançamento, seu criador disse:

Estou um pouco mexido, não vou negar. Ainda nem são dez horas, estamos numa terça-feira à noite. Como assim? O álbum do dormitório Kirkland está aberto no meu computador, e as fotos de algumas dessas pessoas são horríveis. Quase me dá vontade de pôr as fotos ao lado de imagens de animais de fazenda, para as pessoas votarem nos mais atraentes […] Vamos começar a hackear.

Como explica Tim Wu em seu novo livro The Attention Merchants [Os Mercadores de Atenção], vigoroso e original, o “álbum” a que Zuckerberg se refere aqui (chamado em inglês, justamente, facebook) é, “tradicionalmente, um folheto físico produzido nas universidades americanas para promover a socialização à maneira dos eventos em que cada um porta um crachá com o respectivo nome; as páginas são preenchidas por fileiras e mais fileiras de fotos de rostos acompanhados apenas do nome de cada um”. Harvard já vinha trabalhando numa versão eletrônica desses álbuns ou facebooks. A principal rede social existente à época, a Friendster, já tinha 3 milhões de usuários. A ideia de associar uma coisa à outra não foi de todo original, mas, como declarou Zuckerberg em certo momento, “acho ridículo a universidade precisar de anos para chegar a esse resultado. Faço isso melhor que eles, e no máximo em uma semana”.

Wu afirma que capturar e revender atenção vêm constituindo a base de grande número de negócios da era moderna, dos cartazes da Paris do fim do século xix, passando pela invenção de jornais de grande tiragem que lucram não com a circulação, mas com anúncios, até o advento das indústrias da publicidade e da tevê sustentada pela propaganda. O Facebook se filia a uma linhagem de empreendimentos desse tipo, embora talvez seja o exemplo mais puro, em todos os tempos, de empresa voltada unicamente à captura e à revenda da atenção. E quase não houve qualquer ideia nova envolvida em sua criação. Como observa Wu, é “um empreendimento com uma relação extremamente baixa entre taxa de invenção e sucesso”.

Em vez de buscar a originalidade, Zuckerberg cultivou a persistência em levar as coisas até as últimas consequências e a capacidade de distinguir as grandes questões em jogo. Para as empresas de internet iniciantes, o crucial é saber pôr os planos em prática e se adaptar às circunstâncias voláteis. E foi a habilidade de Zuck para esse tipo de direção – contratando técnicos talentosos e sabendo aproveitar as principais tendências de sua atividade – que levou sua empresa aonde se encontra. As duas imensas companhias-irmãs abrigadas sob as asas gigantescas do Facebook, o Instagram e o WhatsApp, foram compradas, respectivamente, por 1 bilhão e 19 bilhões de dólares – num momento em que não eram rentáveis. Nenhum banqueiro, analista de mercado ou adivinho poderia dizer a Zuckerberg o valor justo para essas aquisições; ninguém teria como avaliá-las melhor do que ele. Ele percebeu a direção que as coisas estavam tomando, e soube como fazê-las chegar lá. E este talento redundou num valor de várias centenas de bilhões de dólares.

O ator Jesse Eisenberg apresenta um retrato de Zuckerberg brilhante mas enganoso, segundo Antonio García Martínez, um antigo gerente da rede social, em Chaos Monkeys [Macacos do Caos] – um livro cáustico e divertido sobre o tempo em que o autor passou na empresa. O Zuckerberg do cinema é um personagem de alta credibilidade, um gênio da computação alocado em algum ponto do espectro autista, com um talento mínimo ou nulo para o convívio social. Na vida real, Zuckerberg estudava para obter dois diplomas, um em informática e o outro – o que todos tendem a esquecer – em psicologia.

As pessoas que se encaixam em algum ponto do espectro autista só têm uma noção limitada de como opera a mente alheia; os autistas, ao que se diz, não conseguem adquirir uma “teoria da mente”. Não é bem o caso de Zuckerberg. Ele conhece bem o funcionamento da psiquê, sobretudo a dinâmica social da popularidade e do status. No começo, o Facebook se dirigia apenas a quem tinha um endereço de e-mail de Harvard; àquela altura, pretendia-se tornar exclusivo o acesso ao site, e transformá-lo em objeto de desejo. (E também manter o tráfego limitado, de maneira que seus servidores jamais viessem a cair. A psicologia e a informática de mãos dadas.) Depois, a rede se estendeu a outras universidades americanas de elite. Quando foi lançado no Reino Unido, restringiu-se a Oxford e Cambridge, além da London School of Economics. A ideia era que o usuário satisfizesse a curiosidade quanto ao que outros como ele faziam, compartilhar suas conexões sociais, permitir a comparação, o autoelogio e o exibicionismo, dando plena vazão à ânsia e à inveja, mantendo o nariz pressionado contra a vitrine da loja de doces da vida alheia.

E foi isto que chamou a atenção do primeiro investidor externo do Facebook, Peter Thiel, hoje um conhecido bilionário do Vale do Silício. Também aqui o filme é fiel à história: o investimento de Thiel, de 500 mil dólares, em 2004, foi fundamental para o sucesso do empreendimento. Mas havia outro motivo, ligado aos apetites intelecuais de Thiel, que o levou a se interessar pelo experimento. Enquanto estudava em Stanford, onde se formou em filosofia, ele sentiu-se atraído pelas ideias do filósofo francês René Girard, residente nos Estados Unidos, expostas no mais influente de seus livros, Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo. A principal ideia de Girard é o que ele chama de “desejo mimético”. Seres humanos nascem precisando de alimento e abrigo. Uma vez atendidas essas necessidades básicas, espiamos ao redor para ver o que os outros estão fazendo e desejando, e nossa tendência é copiá-los. Em suma, disse Thiel, “a imitação se encontra na raiz de todos os comportamentos”.

Girard era cristão, e sua visão da natureza humana tem a ver com a noção da Queda. Não sabemos o que desejamos nem o que somos; não temos crenças nem valores próprios; o que nos domina é o instinto de cópia e comparação. Somos o Homo mimeticus. “O homem é a criatura que não sabe o que desejar, e precisa recorrer aos outros para se decidir. Desejamos o que os outros desejam porque imitamos seus desejos.” Olhai em volta, ó insignificantes, e comparai-vos uns aos outros.

O motivo pelo qual Thiel aderiu ao Facebook com tamanho entusiasmo foi por ter visto pela primeira vez um empreendimento essencialmente girardiano: escorava-se em nossa necessidade de nos copiarmos uns aos outros. “O Facebook começou a se espalhar pelo boca a boca, e funciona com base no boca a boca, de modo que é duplamente mimético”, disse Thiel. “As redes sociais se mostraram mais importantes do que pareciam à primeira vista porque têm a ver com essa nossa natureza.” Fazemos o possível para que nos vejam como queremos ser vistos, e o Facebook é a ferramenta mais popular que a humanidade já criou com essa finalidade.

Visão
Avisão da natureza humana implícita nessas ideias é bastante sombria. Se tudo que desejamos é olhar para os outros a fim de podermos nos comparar a eles e copiar o que nos der na telha – se é esta a verdade final e mais profunda sobre a humanidade e suas motivações –, o Facebook de fato não precisa se preocupar muito com o bem-estar da humanidade, uma vez que tudo de ruim que nos acontece se deve enfim a nós mesmos. Apesar do tom elevado da declaração de intenções da empresa, sua premissa essencial é misantrópica. E talvez seja por isso que o Facebook, mais que qualquer outro empreendimento das mesmas dimensões, tenha um veio claramente perverso correndo em sua trama. A versão mais visível disso, a mais corriqueira na imprensa marrom, toma a forma de incidentes como o streaming ao vivo de estupros, suicídios, assassinatos e matanças de policiais. Mas esta é uma das áreas em que o Facebook me parece relativamente isento de culpa. Os usuários transmitem essas coisas terríveis através do Facebook porque é lá que se encontra a maior das audiências; se o Snapchat ou o Periscope tivessem mais espectadores, seriam eles os preferidos.

Em muitas outras áreas, porém, o Facebook está longe de ser inocente. As críticas mais visíveis e mais recentes à empresa se devem ao papel que ela desempenhou na eleição de Trump. O que tem dois componentes, um dos quais implícito na natureza do site, que tende a separar e atomizar seus usuários em grupos de pensamento semelhante. A missão de “conectar” acaba significando, na prática, conectar pessoas que pensam como elas. Não há como provar o quanto essas “bolhas” produzidas por filtros diversos são perigosas para a sociedade, mas parece óbvio que vêm tendo um impacto considerável sobre nossa ordem civil cada vez mais fragmentada. A ideia que temos do que seja “nós” vem ficando mais e mais estreita com o passar do tempo.

Esta fragmentação criou as condições para a segunda vertente da culpabilidade do Facebook no que diz respeito aos desastres políticos anglo-americanos do ano passado. Esses desdobramentos são referidos, de maneira geral, como fake news[notícias forjadas] e “pós-verdade”, e se tornaram possíveis porque retrocedemos de uma ágora ampla do debate público para bunkers ideológicos isolados. Na mídia, as notícias forjadas podem ser rebatidas e denunciadas; no Facebook, se você não integrar a comunidade à qual essas mentiras são direcionadas, é provável que nem tome conhecimento delas. E isso porque o Facebook não tem qualquer interesse financeiro em só dizer a verdade. Nenhuma empresa ilustra melhor a máxima que rege a era da internet: se o produto for de graça, você é que é o produto. Os verdadeiros clientes do Facebook não são os frequentadores do site, mas os anunciantes que aproveitam sua rede e se beneficiam da capacidade dela de direcionar seus anúncios ao público mais receptivo. Para o Facebook, que diferença faz se as notícias postadas são verdadeiras ou falsas? Seu interesse está no direcionamento dos anúncios, no targeting, e não no conteúdo que os acompanha.

Este é um dos prováveis motivos para que a empresa tenha alterado sua declaração de intenções. Se seu único interesse é conectar as pessoas, por que se incomodar com a calúnia? Na realidade, os embustes podem até funcionar melhor que a verdade, pois ajudariam a identificar em menos tempo as pessoas que pensam parecido. A intenção recém-declarada de “construir comunidades” dá a impressão de que a empresa vem desenvolvendo um interesse crescente pelas consequências das conexões que propicia.

Fake News
A
fake news não foram, como o próprio Facebook reconhece, o único recurso que o site usou para influir no resultado das eleições presidenciais de 2016. Em 6 de janeiro de 2017, o diretor nacional de inteligência dos Estados Unidos divulgou um relatório afirmando que os russos haviam promovido uma campanha de desinformação pela internet visando prejudicar a candidatura de Hillary Clinton e contribuir para a eleição de Donald Trump. “A campanha de Moscou obedeceu a uma estratégia russa de mensagens que combina operações secretas de inteligência – como a esfera cibernética – aos esforços explícitos de órgãos do governo da Rússia, da imprensa financiada pelo Estado, de intermediários terceirizados e de usuários pagos das redes sociais, os chamados trolls”, dizia o relatório. No final de abril, o Facebook acabou admitindo a verdade (àquela altura) já bastante óbvia, num interessante estudo produzido por sua divisão de segurança interna. Fake news, diz o texto, é um termo vago e pouco útil, pois na verdade a desinformação se espalha de várias maneiras:

Operações de Informação (ou Influência) – Atitudes tomadas por governos ou atores organizados não estatais com a finalidade de distorcer o sentimento político doméstico ou estrangeiro.

Notícias Falsas – Artigos noticiosos que passam por factuais, mas na verdade contêm afirmações forjadas destinadas a despertar paixões, atrair a atenção pública ou enganar os leitores.

Amplificadores Falsos – Atividade coordenada por contas inautênticas com a finalidade de manipular a discussão política (p. ex. desestimulando certos grupos a participar da discussão, ou dando às vozes sensacionalistas destaque muito maior do que às demais).

Desinformação – Distribuição intencional de conteúdo inexato ou manipulado. Pode se limitar a notícias forjadas, ou envolver métodos mais sutis, como a atribuição infundada de autoria (as chamadas “operações de bandeira falsa”), o direcionamento de citações ou matérias inexatas a intermediários inocentes, ou a amplificação deliberada de informações tendenciosas ou francamente enganosas.

A empresa promete abordar esse problema, ou conjunto de problemas, com a mesma seriedade com que encara outros de natureza diferente, como o malware [software malicioso], o sequestro de contas alheias e a difusão de spam. Veremos. A fake news de um é a verdade do outro, e o Facebook se esforça ao máximo para evitar qualquer responsabilidade pelo conteúdo do seu site – exceto no que diz respeito ao conteúdo sexual, questão em que demonstra um rigor extremo. Mamilos femininos são banidos. A escala de prioridades é bizarra, e só faz sentido no contexto americano, em que a mais ligeira sugestão de sexualidade explícita é logo tingida de impureza moral. Mesmo fotos de mulheres amamentando seus filhos são banidas e eliminadas num átimo. Já mentiras e mera propaganda podem circular à vontade.

Para entender esse quadro, basta adotar o ponto de vista dos anunciantes: nenhum deles quer aparecer ao lado de uma foto de seios nus, pois isso pode prejudicar sua marca; mas não se incomodam em aparecer ao lado de mentiras, porque essas mentiras podem inclusive ajudá-los a encontrar os consumidores aos quais pretendem direcionar seus anúncios. No livro Move Fast and Break Things [Aja Rápido e Quebre as Coisas], em que polemiza contra os “barões gatunos da era digital”, Jonathan Taplin ressalta uma análise do BuzzFeed: “Nos últimos três meses da campanha presidencial americana, as principais matérias de fake news ligadas à eleição e divulgadas pelo Fa-cebook engendraram reações mais determinantes que as principais matérias publicadas por órgãos de imprensa como o New York Times, o Washington Post, o Huffington Post, a NBC News e outros.” Mas isso não parece um problema que o Facebook tenha pressa em corrigir.

Conteúdo forjado e conteúdo roubado pululam no Facebook sem que a empresa se incomode: não lhe interessa se incomodar com eles. Boa parte do conteúdo em vídeo do site é roubado de seus criadores. Um vídeo muito esclarecedor divulgado no YouTube pela Kurzgesagt, uma produtora alemã de filmes explicativos de alta qualidade, mostra que, em 2015, 725 dos mil vídeos mais assistidos no Facebook eram roubados. E esta é mais uma área em que os interesses do site vão contra os da sociedade. Podemos ter um interesse coletivo em sustentar o trabalho criativo e imaginativo em diferentes formas, e em muitas plataformas. Mas o Facebook não. Como explica Antonio García Martínez, ele só tem duas prioridades: o crescimento e a monetização. Não quer saber de onde vem o conteúdo. Só agora começa a se preocupar com a percepção de que boa parte de seu conteúdo é falsa, porque essa percepção, se generalizada, pode abalar a confiança no que exibe e, portanto, o tempo que as pessoas gastam no site.

O próprio Zuckerberg se pronunciou sobre o tema, no post “o Facebook e a eleição”, veiculado pela rede. Depois de certa embromação sentimentaloide e cheia de platitudes (“Nosso objetivo é dar voz a cada pessoa. Acreditamos profundamente nas pessoas”), Zuck afinal chega ao ponto: “De todo o conteúdo do Facebook, mais de 99% do que as pessoas veem é autêntico. Só uma proporção mínima é composta de mentiras e fake news.” No entanto, mais de um usuário do Facebook já assinalou que, em seus feeds de notícias, o post de Zuckerberg aparecia ao lado de um exemplo de fake news. Num dos casos, a história falsa alegava ter sido produzida pelo canal de esportes ESPN. Quando o usuário clicava no link, porém, era direcionado para um anúncio de suplemento dietético. Nas palavras do escritor Doc Searls, trata-se de uma fraude dupla, “uma mentira flagrante vinda de uma fonte falsa”, o que não deixa de causar impressão ao aparecer bem ao lado do post em que o dono do Facebook se gaba de não exibir nada de falso em seu site.

Evan Williams, cofundador do Twitter e fundador do site Medium, especializado em textos longos, deparou-se com o mesmo post de Zuckerberg entre outra matéria falsamente atribuída à espn e uma nota supostamente publicada pela CNN anunciando que o Congresso americano afastara Donald Trump da Presidência. Quando o usuário clicava no link, via que a notícia falsa tinha sido postada por uma empresa que oferecia um programa de doze semanas para o fortalecimento dos dedos dos pés. (Isso mesmo: o fortalecimento dos artelhos humanos.) De todo modo, agora ficamos sabendo que Zuckerberg acredita nas pessoas. E isso, no final, é o que importa.

Observador
U
m observador neutro poderia se perguntar se o Facebook é cumpridor em relação aos criadores de conteúdo. É óbvio que ele precisa de conteúdo, porque é o que seu site exibe: conteúdo produzido por terceiros. O único detalhe é que ele não faz muita questão de que alguém mais, além dele próprio, ganhe dinheiro com esse conteúdo. Ao longo do tempo, essa atitude vem tendo consequências profundamente destrutivas para as indústrias criativas e de mídia. O acesso a um grande público – esses inéditos 2 bilhões de espectadores – é uma coisa ótima, mas o Facebook não demonstra a menor pressa em ajudar qualquer outro a faturar com isso. Se os fornecedores de conteúdo acabarem indo à bancarrota, talvez o problema nem seja tão sério. Continuam a existir, nos dias que correm, muitos fornecedores dispostos a colaborar: em certo sentido, qualquer pessoa que frequente o Facebook trabalha para ele, agregando valor à empresa. Em 2014, o New York Times fez as contas e descobriu que a humanidade vinha gastando, por dia, 39 757 anos coletivos no site. Jonathan Taplin assinala que isto equivale a “quase 15 milhões de anos de mão de obra gratuita por ano”. E isso num momento em que o Facebook tinha apenas 1,23 bilhão de usuários.

Taplin trabalhou na universidade e na indústria cinematográfica. O motivo de dar tanta importância a essas questões é que começou na indústria da música, como empresário do conjunto The Band, e pôde assistir de perto à destruição dessa atividade pela internet. A indústria da música, que em 1999 faturava 20 bilhões de dólares, reduziu-se a 7 bilhões quinze anos mais tarde. Taplin viu músicos que ganhavam bem passarem a viver na miséria. E isto não ocorreu porque as pessoas tenham parado de ouvir o que eles produzem – o número de ouvintes é maior do que nunca –, mas porque todo mundo se acostumou a receber música de graça. O YouTube é a maior fonte de música do mundo, divulgando bilhões de fonogramas por ano; ainda assim, em 2015, ele e seus sites rivais, todos sustentados por anúncios, renderam menos para os músicos do que as vendas de seus discos de vinil. Não as vendas totais de cds e gravações em geral: só as vendas de vinil.

Coisa semelhante vem acontecendo no mundo do jornalismo. O Facebook é, em essência, uma empresa de publicidade indiferente ao conteúdo, exceto na medida em que este ajuda a direcionar e vender anúncios. Opera no caso uma versão da Lei de Gresham – a moeda má expulsa a moeda boa –, em que as fake news, que são clicadas mais vezes e custam zero para produzir, acabam provocando a exclusão das notícias reais, muitas vezes mais incômodas para quem lê, além de terem produção custosa. Afora isso, o Facebook ainda emprega uma ampla série de truques para aumentar seu tráfego e a renda que obtém com o direcionamento de anúncios, às expensas das instituições provedoras de notícias cujo conteúdo ele hospeda. Seus feeds de notícias encaminham o tráfego para os usuários não com base em seus interesses, mas na maneira de extrair o máximo de renda dos anúncios direcionados a cada um. Em setembro de 2016, Alan Rusbridger, ex-editor chefe do Guardian, declarou numa conferência do Financial Times que o Facebook tinha “sugado 27 milhões de dólares” da renda de publicidade projetada para o jornal naquele ano. “Estão ficando com todo o dinheiro porque controlam algoritmos que não entendemos e funcionam como um filtro entre o que produzimos e a maneira como nosso produto é recebido pelas pessoas.”

E isto vai ao cerne da questão do que é o Facebook, e de como funciona. A despeito de todas as declarações sobre conectar pessoas, construir comunidades e acreditar nos outros, ele é uma empresa de publicidade. Martínez revela com toda a clareza como o Facebook acabou assim, e de que maneira a propaganda funciona. Nos primeiros anos de existência do site, Zuckerberg estava muito mais interessado no crescimento da empresa do que na sua monetização. Mas isso mudou quando o Facebook decidiu arrecadar uma fortuna em sua oferta pública inicial (ou IPO, de Initial Public Offering), o dia de glória em que as ações de uma empresa são vendidas pela primeira vez ao público em geral. Trata-se de um teste para qualquer empresa iniciante: para muitos que trabalham na chamada indústria da tecnologia, a esperança e as expectativas associadas a essa “estreia” respondem por seu ingresso nessas empresas, e/ou os mantêm grudados a seus postos de trabalho. É o ponto em que o dinheiro imaginado na fase inicial de um empreendimento se transforma no capital real de uma empresa aberta ao público.

Martínez estava presente no momento exato em que Zuck reuniu todo mundo e comunicou que iam se transformar numa empresa de capital aberto, o momento em que todos os empregados souberam que estavam a ponto de enriquecer:

Escolhi um assento atrás de um par isolado, que mais adiante identifiquei como Chris Cox, diretor de produtos do fb, e Naomi Gleit, uma ex-aluna de Harvard que foi a funcionária de número 29 do Facebook e era considerada na época a pessoa que trabalhava há mais tempo na empresa, afora o próprio Mark.

Naomi, entre uma e outra conversa curta com Cox, clicava intensamente em seu laptop, dando pouca atenção à parolagem zuckiana. Olhei por cima de seu ombro para a tela do computador, e vi que ela estava percorrendo um e-mail com inúmeros links que ia abrindo um atrás do outro, cada qual numa aba nova do seu navegador. Ao terminar essa verdadeira maratona de abertura de links, começou a examinar o conteúdo de cada aba com os olhos muito atentos. Eram anúncios de imóveis em São Francisco.

Imóveis
Martínez tomou nota de um dos imóveis e mais tarde foi consultar a oferta. Custava 2,4 milhões de dólares. Ele escreve de maneira irresistível, e com uma amargura fascinante, sobre as diferenças de classe e status no Vale do Silício, abordando em especial a questão, jamais ventilada em público, do imenso abismo entre os primeiros funcionários das empresas, que muitas vezes enriquecem numa escala fantástica, e os escravos assalariados que ingressam em momentos posteriores. “O protocolo manda não declarar nada em público a esse respeito.” No entanto, Bonnie Brown, massagista empregada nos primórdios do Google, escreveu em suas memórias que “um grande contraste se desenvolveu entre googlers que trabalhavam lado a lado. Enquanto um consultava os horários dos cinemas locais, o outro reservava passagens de avião para um fim de semana em Belize. E agora, como ficavam as conversas das manhãs de segunda-feira?”.

Quando chegou o momento da IPO, o Facebook, de empresa de imenso crescimento, passou a ser uma empresa com um faturamento incrível. Já vinha faturando algum dinheiro graças a seu tamanho (como observa Martínez, “um bilhão de vezes qualquer número é sempre um número grande à beça”), mas não o suficiente para garantir um valor de fato espetacular no lançamento de suas ações. Foi a essa altura que Zuckerberg começou a se concentrar na questão de como monetizar o Facebook. É interessante, e meritório, que não tenha dedicado muita atenção a ela antes disso – talvez porque não sinta um interesse particular pelo dinheiro em si. Mas sem dúvida ele gosta de vencer.

A solução era disponibilizar a montanha de informações que o Facebook reúne sobre sua “comunidade”, de modo a permitir que os anunciantes direcionassem suas mensagens com um grau de especificidade sem precedente em qualquer meio de comunicação. Martínez: “O corte pode ser demográfico (p. ex., mulheres entre 30 e 40 anos), geográfico (pessoas que vivam num raio de 10 quilômetros em torno de Sarasota, na Flórida), ou até com base em dados do próprio perfil do usuário no Facebook (você tem filhos? Ou seja, pertence ao segmento das mães?).” E Taplin diz o mesmo: “Se eu quiser atingir mulheres entre 25 e 30 anos do código postal 37 206 que gostam de música country e costumam tomar bourbon, o Facebook pode cuidar disso para mim. E mais: muitas vezes ele pode incluir uma ‘história patrocinada’ no feed de notícias de seus consumidores-alvo, dando a impressão de que é postagem de amigo, e não anúncio. Como diz Zuckerberg na apresentação dos Facebook Ads[2]: ‘Nada influencia mais que a recomendação de um amigo de confiança. Uma recomendação de confiança é o Santo Graal da publicidade.’”

Essa foi a primeira etapa do processo de monetização da empresa, quando ela transformou sua escala gigantesca numa verdadeira máquina de produzir dinheiro. O Facebook oferecia aos anunciantes uma ferramenta de precisão inédita para direcionar seus anúncios a determinados consumidores. (Certos segmentos de eleitores também podem servir de alvo para um direcionamento de precisão absoluta. Um exemplo de 2016 foi um anúncio anti-Clinton repetindo o célebre discurso de 1996 em que Hillary falava de “superpredadores”.[3] O anúncio foi especificamente direcionado aos eleitores afro-americanos em áreas onde os republicanos ainda podiam – e conseguiram, como ficou demonstrado – superar a votação democrata. Ninguém mais viu os anúncios na ocasião.)

A segunda grande mudança em matéria de monetização ocorreu em 2012, quando o tráfego da internet começou a migrar para os celulares. Se você usa um computador para acessar quase tudo que lê online, saiba que está em minoria. E essa migração representou um desastre potencial para as empresas que dependem da propaganda virtual, porque ninguém gosta de anúncios no telefone, e a tendência é clicar bem menos do que na tela de um computador. Noutras palavras: embora o tráfego geral viesse aumentando rapidamente, esse aumento tinha a ver com a multiplicação dos celulares, o que tornava o tráfego proporcionalmente menos valioso. A se confirmar essa tendência, todas as empresas que dependiam da contagem de cliques – ou seja, quase todas, mas sobretudo as gigantes como Google e Facebook – passariam a valer muito menos dinheiro.

O Facebook resolveu o problema por meio de uma técnica conhecida como onboarding. Como explica Martínez, a melhor maneira de entendê-la é pensar em nossos vários tipos de nome e endereço.

Por exemplo, se a Bed Bath and Beyond quiser me enviar um de seus maravilhosos cupons de desconto de 20%, ela precisa se dirigir a:

Antonio García Martínez

1 Clarence Place #13

San Francisco, CA 94107

Se quiser me alcançar em meu celular, o nome que precisa usar é:

38400000-8cfo-11bd-b23e-10b96e40000d

Essa é a identidade quase invariável do meu aparelho, transmitida centenas de vezes por dia em transações publicitárias para o celular. Já no meu laptop, meu nome é o seguinte: 07J6yJPMB9juTowar.AWXGQnGPA1MCmThgb9wN4vLoUpg.BUUtWg.rg.FTN.0.AWUxZtUf.

Este é o conteúdo do cookie de redirecionamento do Facebook, usado para me direcionar anúncios personalizados com base na minha navegação habitual pelo telefone celular.

Embora possa não ser óbvio, cada um desses códigos está associado a um rico apanhado de dados sobre nosso comportamento pessoal: todos os websites que visitamos, muitas coisas que compramos em lojas físicas, todos os aplicativos que usamos e o que fazemos em cada um deles…

Em termos de marketing, o que mais conta nos dias de hoje, e vem gerando dezenas de bilhões de dólares em investimentos, além de um planejamento interminável nas entranhas do Facebook, do Google, da Amazon e da Apple, é descobrir a maneira de associar esses vários conjuntos de nomes, e determinar quem controla esses links. E só.

Pessoas
OFacebook já detinha uma quantidade astronômica de informação sobre as pessoas, suas redes sociais, suas preferências e antipatias declaradas.[4] Depois de despertar para a importância da monetização, acrescentou aos dados que ele próprio colhia um gigantesco estoque novo de dados ligado ao comportamento offline de cada consumidor, no mundo real, adquirido de grandes empresas como a Experian, que há décadas monitora as compras dos consumidores por meio de relações com firmas de marketing direto, empresas de cartão de crédito e varejistas. Difícil descrever essas empresas numa única palavra – “agências de crédito de consumidores”, ou algo semelhante, seria um resumo aproximado. Seu alcance, porém, é muito maior do que essa definição daria a entender.[5] Essas empresas sabem tudo que se pode saber sobre seu nome e endereço, sua renda e nível de instrução, seu estado civil, além de tudo que você comprou usando um cartão de crédito. Agora, o Facebook poderia combinar a identidade de cada usuário ao identificador único do respectivo aparelho de celular.

E isso foi crucial para o aumento da lucratividade do Facebook. Nos celulares, as pessoas tendem a preferir a internet aos aplicativos, que se apoderam da informação que reúnem e se recusam a compartilhá-la com outras empresas. É improvável que um aplicativo de jogo do seu celular saiba mais a seu respeito do que o nível que você alcançou naquele determinado joguinho. Por outro lado, como todo mundo está no Facebook, a empresa conhece o identificador dos celulares de todo mundo. E foi capaz de criar um servidor que direciona os anúncios para celular com muito mais precisão que qualquer outra empresa, de um modo mais elegante e integrado do que ninguém jamais conseguiu.

E assim o Facebook conhece a identidade do seu telefone e sabe associá-la à sua identidade no Facebook. E junta isso ao resto de sua atividade online: cada site que você visita, cada link que você segue – o botão do Facebook rastreia cada usuário do Facebook, independentemente de ele clicar ou não. Como o botão do Facebook é quase onipresente, a rede consegue ver você em todo lugar. Hoje, graças às parcerias com as empresas tradicionais de crédito, ele sabe quem todo mundo é, onde todo mundo mora, e tudo que todo mundo já comprou com o cartão de crédito em qualquer loja offline do mundo real.[6] E toda essa informação é usada para uma finalidade, em última análise, altamente rasteira: vender coisas por meio de anúncios online.

Os anúncios funcionam de acordo com dois modelos. Num deles, o vendedor pede ao Facebook que direcione seu anúncio a consumidores de uma determinada camada demográfica – fã de música country e apreciadora de bourbon de 30 e tantos anos, ou afro-americano da Filadélfia que não demonstra muito entusiasmo por Hillary. Mas o Facebook também direciona anúncios por meio de um processo de leilões online, que ocorrem em tempo real cada vez que você clica num site da web. Como todo site que você visita planta (mais ou menos) um cookie em seu navegador, toda vez que você vai para um novo site ocorre um leilão em tempo real, com a duração de milionésimos de segundo, para decidir o valor da sua atenção e determinar os anúncios que lhe serão apresentados, com base no que se sabe de seus interesses, sua renda e assim por diante. E é por isso que os anúncios apresentam essa tendência desconcertante a nos seguir por toda parte: você procura uma nova televisão, um par de sapatos ou um local para passar as férias, e a publicidade correspondente continua a pipocar em cada site que você visita semanas mais tarde. E foi assim, canalizando seus talentos e recursos para o problema, que o Facebook conseguiu transformar o advento do celular, de potencial desastre financeiro, num imenso e vigoroso gêiser de lucros.

O que isso quer dizer é que, mais do que vender anúncios, a principal atividade do Facebook é a vigilância. Na verdade, ele é a maior empresa com base na vigilância de toda a história da humanidade. Ele sabe de muito mais a nosso respeito que o governo mais invasivo jamais soube acerca de seus cidadãos. É impressionante como as pessoas não perceberam esse caráter da empresa. Passei muito tempo refletindo, e sempre retorno à ideia de que os usuários não se dão conta da real atividade da empresa: manter-nos a todos sob vigilância, e em seguida usar as informações para vender anúncios. Não sei se já existiu tamanha desconexão entre o que uma empresa alega fazer – “conectar”, “construir comunidades” – e a realidade de sua prática comercial. E notem que as informações acumuladas não são usadas apenas para o direcionamento de anúncios, mas também para definir o fluxo de notícias dirigido a cada um.

Diante da vastidão do conteúdo postado no site, o que você acaba vendo é determinado por algoritmos que filtram e direcionam esse conteúdo: as pessoas acreditam que seu “feed de notícias” tem a ver basicamente com seus amigos e seus interesses, e isso é mais ou menos verdade, observada uma condição fundamental: é determinado sim por seus amigos e interesses, mas da maneira como são mediados pelos interesses comerciais do Facebook. Os olhos dos usuários são sempre conduzidos para o ponto onde rendem mais para a empresa.

 

Fico imaginando o que irá ocorrer quando – e se – cair esta ficha de 450 bilhões de dólares. A história dos mercadores de atenção, segundo Wu, costuma seguir um padrão sugestivo: todo boom é quase sempre sucedido por um efeito oposto de retrocesso; períodos de expansão explosiva em geral provocam uma reação pública, às vezes de ordem legislativa. O primeiro exemplo evocado pelo autor foi a implantação de leis draconianas contra cartazes de propaganda, na Paris do início do século XX (e ainda hoje em vigor). Como diz Wu, “quando o produto em questão é o acesso à mente do público, a busca perpétua do crescimento desencadeia formas de retrocesso praticamente inevitáveis, de maior ou menor importância”. E ele dá o nome de “efeito de desencanto” a uma das formas menores desse fenômeno.

O Facebook parece vulnerável a esse desencanto. Um dos pontos em que tais efeitos podem se manifestar é na essência do modelo de negócio – a venda de anúncios. A publicidade veiculada é “programática”, ou seja, determinada por algoritmos que associam o usuário aos anunciantes. O problema desse método, do ponto de vista do cliente – e o cliente, no caso, é o anunciante, e não o usuário do Facebook –, é que muitos dos cliques nesses anúncios são falsos. E aqui encontramos uma disparidade de interesses. O Facebook sempre quer mais e mais cliques, porque é assim que ele fatura: sempre que os anúncios são clicados. E se os cliques não forem reais mas automáticos, produzidos por contas fajutas administradas por robôs computadorizados, os bots? Esse é um problema conhecido que afeta sobretudo o Google, porque é fácil criar um site, admitir a hospedagem de anúncios programáticos e depois programar um bot para ficar clicando nesses anúncios, e em seguida basta recolher a grana que não para de entrar. No Facebook, os cliques fraudulentos tendem a vir mais de empresas que procuram aumentar os custos dos anúncios de suas concorrentes.

A publicação Adweek, voltada para a indústria da publicidade, estima que o custo anual da fraude dos falsos cliques seja de 7 bilhões de dólares, mais ou menos um sexto de todo o mercado. Um único site fraudulento, Methbot, descoberto no final do ano passado, dispõe de uma rede de computadores hackeados e gera entre 3 e 5 milhões de dólares de cliques diários. As avaliações da proporção do mercado tomada pelo tráfego fraudulento são variáveis, com estimativas que chegam a quase 50% do total; certos websites afirmam que seus dados indicam uma proporção de até 90%. O que cria problemas não só para o Facebook – pode-se imaginar que as empresas que pagam pela ad tech, como é conhecida esta tecnologia, se revoltem contra ela. Estudiosos do assunto me disseram que o mundo das empresas que mais compram publicidade, responsáveis por canalizar grande parte de seus orçamentos para o Facebook, é dominado por certo efeito de rebanho. Mas essa postura pode mudar. Por outro lado, muitos dos parâmetros medidos pelo Facebook sofrem uma leitura tendenciosa, que procura captar a luz num ângulo que lhe confira maior brilho. Um vídeo que passe por três segundos no Facebook já é dado como “visualizado”, ainda que só visto de passagem no feed de notícias – e mesmo que exibido sem som. Muitos vídeos com centenas de milhares de “visualizações” no Facebook, se avaliados à luz dos critérios de contagem empregados para medir as audiências de televisão, veriam seu número de espectadores reduzido a zero.

E uma revolta da clientela poderia coincidir com uma reação brusca de retrocesso por parte dos governos e das agências reguladoras. O Google e o Facebook detêm o monopólio virtual da publicidade na web, e esse poder monopolista vem se tornando cada vez maior à medida que os gastos com publicidade migram mais e mais para a internet. Juntos, os dois já destruíram grandes setores do ramo da imprensa diária. O Facebook foi determinante para o rebaixamento do debate público, permitindo com mais facilidade a circulação das “grandes mentiras” (Große Lügen) de que Hitler falava com entusiasmo – dessa vez transmitidas para um público gigantesco. A empresa não é obrigada a lidar com esse tópico, mas ela pode acabar atraindo a atenção das autoridades reguladoras. O que não constitui a única ameaça externa ao duopólio Google/Facebook. A postura dos Estados Unidos diante da lei antitruste deve sua definição a Robert Bork, juiz indicado por Reagan para a Suprema Corte, mas não confirmado pelo Senado americano. A orientação jurídica mais influente de Bork se dá na área do direito da concorrência: a única forma relevante de conduta anticoncorrencial é a que afeta o preço pago pelo consumidor. Segundo ele, a queda dos preços indica que o mercado está funcionando, e que medida nenhuma é necessária contra o monopólio. Esta filosofia ainda rege as atitudes de regulação nos Estados Unidos, e é a razão pela qual a Amazon, por exemplo, jamais foi incomodada pelas autoridades reguladoras, apesar da posição claramente monopolista que ocupa no mundo das vendas online a varejo, em especial de livros.

Por esses motivos estritos, as grandes empresas da internet continuam a parecer invulneráveis. Pelo menos até que se considere a fixação individualizada de preços. O imenso rastro de dados que todos produzimos em nossas perambulações pela internet vem sendo cada vez mais usado para nos cobrar preços que não têm mais a ver com etiquetas coladas às mercadorias nas lojas. Pelo contrário, são preços dinâmicos, que variam conforme nossa capacidade aparente de pagamento.[7] Quatro pesquisadores sediados na Espanha estudaram em 2012 o fenômeno criando identidades virtuais que se comportavam como se fossem, num caso, “preocupadas com o orçamento” e, em outro, “afluentes”; depois, verificaram se essa divergência de comportamento redundava em preços diferentes. E a resposta foi claramente positiva: uma busca por fones de ouvido obteve como resposta uma série de preços, na média, quatro vezes maiores para o consumidor virtual afluente. Um site que vende passagens aéreas com desconto cobra preços mais altos dos consumidores afluentes. De maneira geral, a simples localização de quem faz a busca chega a produzir variações de até 166% nos preços que lhe são apresentados. Em suma, preços personalizados existem e são fixados de acordo com os rastros que deixamos. O que me parece à primeira vista uma violação das leis antimonopolistas americanas posteriores a Bork, que têm como foco a variação dos preços. E não deixa de ser um tanto engraçado, além de meio grotesco, que, aparentemente, um aparato de gigantismo inédito voltado para a vigilância do consumidor seja considerado aceitável, enquanto um aparato de gigantismo inédito de vigilância do consumidor que resulte em preços mais elevados para algumas pessoas seja considerado ilegal.

 

maior ameaça potencial para o Facebook talvez seja a eventualidade do desligamento de seus usuários. Dois bilhões de frequentadores mensais ativos é muita gente, e os “efeitos de rede” – a escala da conectividade – são, obviamente, extraordinários. Mas existem outras empresas que conectam pessoas em escala semelhante – o Snapchat tem 166 milhões de usuários diários, o Twitter, 328 milhões de usuários mensais – e, como vimos no ocaso do MySpace, que chegou a ser a maior rede social, assim que as pessoas mudam de ideia a respeito de um serviço, seu desligamento pode ocorrer em massa, e em altíssima velocidade.

Por esta razão, o Facebook se veria em perigo caso se difundisse o entendimento de que seu modelo de negócios se baseia na vigilância. A única ocasião que ele promoveu uma sondagem entre os usuários sobre o modelo de vigilância foi em 2011, quando propôs a mudança de seus termos e condições de uso – mudança que hoje rege o modo como são usados os dados recolhidos. O resultado não deu margem para dúvida: 90% das respostas foram contrárias às mudanças. O Facebook ignorou, afirmando que o número de votantes havia sido muito pequeno. O que não constitui nenhuma surpresa – nem a repulsa dos usuários à vigilância, nem a indiferença da empresa a esta repulsa. Mas isto ainda pode mudar.

Outro fenômeno que pode afetar os usuários é que eles interrompam a frequência devido à infelicidade que ela lhes traz. Não é o mesmo caso do escândalo de 2014, quando se descobriu que cientistas sociais da empresa haviam manipulado os feeds de notícias de certos usuários para avaliar os possíveis efeitos sobre as suas emoções. O artigo resultante da experiência, publicado nos Proceedings of the National Academy of Sciences [Atas da Academia Nacional de Ciências], era um estudo sobre o “contágio social”, ou a transmissão de emoções entre grupos de pessoas, resultante de uma modificação na natureza das notícias vistas por 689 003 usuários do Facebook. “Quando as expressões positivas eram reduzidas, as pessoas produziam posts menos positivos e mais negativos; quando as expressões negativas eram reduzidas, ocorria o padrão oposto. Esses resultados indicam que as emoções expressas pelos outros têm uma influência sobre nossas emoções, é um indício experimental do contágio em grande escala através das redes sociais.” Mas os cientistas parecem não ter considerado como essa informação seria recebida, e o caso repercutiu por algum tempo.

Talvez a notoriedade dessa história tenha acidentalmente desviado a atenção do que poderia ter sido um escândalo maior ainda: a publicação, no início do ano, do artigo “O uso do Facebook e o comprometimento do bem-estar: um estudo longitudinal”, no American Journal of Epidemiology. Os cientistas que conduziram o estudo constataram que, quanto mais as pessoas usam o Facebook, mais elas são infelizes. Um aumento de 1% no número de “curtidas”, cliques e atualizações de status está correlacionado a um decréscimo de 5 a 8% na saúde mental dos usuários. Além disso, ficou claro que o efeito positivo das interações ocorridas no mundo real, que contribuem para o nosso bem-estar, encontra um paralelo exato nas “associações negativas do uso do Facebook”. De fato, as pessoas vêm trocando as relações reais, que contribuem para o seu bem-estar, por um tempo cada vez maior no Facebook, que lhes provoca sentimentos negativos. Esta extrapolação é minha, e não dos autores do artigo, que tomam o cuidado de sublinhar que se trata apenas de uma correlação, e não de uma relação direta de causa e efeito; mas chegam a dizer que os dados “sugerem uma possível substituição das relações offline por relações online”. E esse não foi o primeiro achado desse tipo: muitas pesquisas vêm demonstrando que o Facebook faz as pessoas se sentirem uma merda. E por isso talvez um dia parem de usá-lo.[8]

 

Ese nada disso acontecer? Se os anunciantes não se revoltarem, se os governos não tomarem nenhuma atitude, se os usuários não debandarem, se o navio abarrotado de passageiros comandado por Zuckerberg seguir navegando livre, leve e solto?

Precisamos reexaminar a cifra de 2 bilhões de usuários ativos mensais. Em todo o mundo, o número de pessoas com algum acesso à internet – definido da maneira mais ampla possível, das mais lentas conexões discadas ao serviço precário de celular nos países em desenvolvimento, contando ainda todos que têm algum acesso, mas não o utilizam – é de 3,5 bilhões. Deste total, 750 milhões vivem na China e no Irã, que bloqueiam o Facebook. Cerca de 100 milhões de russos que se conectam à internet tendem a não usar o Facebook porque preferem seu equivalente nativo, o VKontakte. O que define uma audiência potencial de 2,6 bilhões de pessoas para o Facebook. Nos países desenvolvidos onde ele funciona há vários anos, seu uso atinge picos de uns 75% da população total (nos Estados Unidos). Isto resultaria numa audiência potencial de 1,95 bilhões de pessoas para o Facebook. No entanto, com 2 bilhões de usuários mensais ativos, a rede já ultrapassou este número, e agora começam a faltar humanos conectados. Martínez compara Zuckerberg a Alexandre, o Grande, triste porque lhe faltavam novos mundos para conquistar. Talvez esse seja um motivo dos sinais prematuros que Zuck vem emitindo a respeito de concorrer à Presidência – uma turnê pelos cinquenta estados fingindo que se importa com tudo, a pose de pensador atento em que foi fotografado tomando um milk-shake num restaurante (alarme de Pretensões Presidenciais!!) no estado de Iowa.

O que vai ocorrer a partir de agora nos remete aos dois pilares da empresa – o crescimento e a monetização. O crescimento só pode brotar da extensão da conectividade a novas áreas do planeta. O Facebook tentou o Free Basics, programa que oferecia conexão em aldeias distantes da Índia, sob a condição de que o leque de sites disponibilizados fosse determinado pela empresa. “Quem pode ser contra isso?”, escreveu Zuckerberg no Times of India. A resposta: milhões e milhões de indianos enfurecidos. O governo indiano decidiu que o Facebook não tinha o direito de “delimitar a experiência dos usuários”, embargando seu acesso ao resto da internet. Um membro do conselho da empresa tuitou: “O anticolonialismo vem sendo uma calamidade econômica para o povo indiano há décadas. Por que mudar agora?” Como afirma Taplin, essa observação “revela, sem querer, uma verdade até então nunca enunciada: Facebook e Google são os novos poderes coloniais”.

Assim, o lado da equação que lida com o crescimento não deixa de apresentar seus desafios, tanto tecnológicos quanto políticos. O Google (que tem um problema similar de carência de usuários potenciais) vem trabalhando no Projeto Loon, “uma rede de balões que flutuam no limiar do espaço, destinados a estender a conectividade para pessoas em áreas rurais e remotas do mundo inteiro”. O Facebook está empenhado num projeto que envolve um drone movido a energia solar, o Aquila, com envergadura de uma aeronave comercial, peso inferior ao de um carro e consumo de energia menor do que um micro-ondas. A ideia é que ele circunde áreas remotas do planeta hoje desconectadas, em voos que poderão durar até três meses, conectando os usuários via laser. (O projeto vem sendo desenvolvido em Somerset, na Inglaterra. O programa de drones da Amazon também tem sua base no Reino Unido, perto de Cambridge. A regulamentação legal britânica é francamente favorável aos drones.) Mesmo o mais calejado dos céticos em relação ao Facebook não tem como não se impressionar com tanta energia e ambição. Ainda assim, os próximos 2 bilhões de usuários vão dar muito trabalho para serem arregimentados.

Isto no que diz respeito à expansão, que deverá ter como alvo especial o mundo em desenvolvimento. Nos países ricos, como a Inglaterra, o foco está mais na monetização, e é nessa área que me vejo obrigado a admitir algo que talvez já tenha deixado claro. O Facebook me mete medo. A ambição da empresa, sua falta de escrúpulos e de uma bússola moral me assustam. E isso desde o momento de sua criação: Zuckerberg digitando em seu teclado depois de algumas doses, criando um website para comparar a aparência das pessoas, por nenhum outro motivo além de sua capacidade de fazê-lo.

Eis a questão crucial no que diz respeito ao Facebook, o ponto mais importante que poucos entendem: ele faz certas coisas só porque pode. Zuckerberg sabe fazer uma coisa, outras pessoas não sabem, então ele faz. Esse tipo de motivação não funciona na versão hollywoodiana da vida, e por isso Aaron Sorkin precisou inventar para ele uma motivação ligada à aspiração social e à rejeição. Mas isso no mundo da ficção. Zuckerberg não foi motivado por esse tipo de psicologia de quintal. Ele faz o que faz porque pode, e todas as justificativas que falam de “conexão” e “comunidade” são racionalizações posteriores. O impulso foi mais simples e mais básico. E é por isso que a necessidade de crescer sempre foi tão fundamental para a empresa, cujo comportamento em muitos aspectos lembra antes um vírus que um negócio. Crescer, multiplicar-se e monetizar. Por quê? Não há um porquê. A resposta é porque sim.

A automação e a inteligência artificial hão de ter um impacto extraordinário sobre mundos de todos os tipos. São tecnologias novas, reais, e prestes a acontecer. O Facebook se interessa profundamente por essas tendências. Não sabemos onde elas vão dar, não sabemos quais serão os custos e as consequências sociais, não sabemos qual vai ser a próxima área da vida a ser esvaziada, qual o próximo modelo de negócio a ser destruído, a próxima empresa a ter o mesmo destino da Polaroid ou a próxima atividade a dar com os burros n’água como o jornalismo impresso, ou qual novo conjunto de ferramentas e técnicas poderá ser empregado pelas mesmas pessoas que usaram o Facebook para manipular as eleições de 2016. Não temos como saber o que virá, mas sabemos que há de ser momentoso, e que um papel de destaque está reservado à maior rede social do planeta. Com base no que indicam suas atitudes até aqui, é impossível encarar essa perspectiva sem algum desconforto.

[1] Quando o Google se relançou com o nome de Alphabet, a divisa “Não fazer o mal” foi substituída, no código de conduta da empresa, por “Fazer a coisa certa”.

[2] Facebook Ads é a plataforma usada pelo Facebook para gerir e direcionar anúncios.

[3] Embora Hillary Clinton nunca tenha especificado a quem se referia quando falou de “superpredadores” nessas suas declarações sobre jovens criminosos em 1996, o senador Bernie Sanders, que com ela concorria à indicação democrata no início da campanha de 2016, afirmou que o termo tinha um conteúdo “racista”, o que mais tarde seria amplamente explorado por Donald Trump nas redes sociais.

[4] Destaque para “declaradas”. Como afirma Seth Stephens-Davidowitz em seu novo livro Everybody Lies [Todo Mundo Mente], pesquisadores estudaram a diferença entre a linguagem usada no Google, onde os usuários tendem a dizer a verdade porque são anônimos e estão em busca de respostas, e a linguagem empregada no Facebook, onde projetam uma imagem. No Facebook, os termos mais comuns associados à expressão “meu marido é…” são “o melhor do mundo”, “meu melhor amigo”, “incrível”, “o maior” e “tão lindo”. No Google, os cinco mais presentes são “incrível”, “um babaca”, “um chato”, “gay” e “mau”. Seria interessante descobrir se existe algum marido que corresponda a todo o conjunto de principais atributos do Google, e seja um babaca incrivelmente chato, além de mau e gay.

[5] Um exemplo de seu trabalho é o sistema “Mosaico” da Experian, usado para caracterizar segmentos de consumidores, que divide a população em 66 segmentos, entre eles “Cafés e Redondezas”, “Elegantes de Cobertura”, “Avós Clássicos” e “Inquilinos Usuários de Ônibus”.

[6] Devo dizer que a informação é misturada e dividida (hashed) antes de ser compartilhada, de forma que as empresas envolvidas, embora saibam tudo a seu respeito e pratiquem o intercâmbio desses dados, fazem-no de forma pseudonimizada, ou sob a proteção do anonimato. Ou de forma pseudo-pseudonimizada, tendo em vista a discussão corrente sobre o quanto essa forma de anonimato é efetivamente anônima.

[7] A ideia de um preço único para todos é relativamente recente. Atribui-se a John Wanamaker a noção da cobrança de um preço fixo por mercadoria, surgida na Filadélfia em 1861. A ideia teria vindo dos quakers, para os quais todo mundo devia ser tratado de maneira igual.

[8] O estudo “O uso do Facebook, inveja e depressão entre universitários: o Facebook induz depressão?”, publicado em 2015 no periódico Computers in Human Behaviour, chegou a uma resposta negativa – exceto quando também se levavam em conta os efeitos da inveja, caso em que a resposta era afirmativa. Mas como a comparação marcada pela inveja constitui a base girardiana de todo o Facebook, esse “não”, quando qualificado, soa bem mais como um “sim”. Um artigo de 2016, publicado no periódico Current Opinion in Psychiatry – “A interação entre o uso do Facebook, a comparação social, a inveja e a depressão”, concluía que o uso do Facebook aparece ligado à inveja e à depressão, outra descoberta que não surpreenderia Girard. Em 2013, a PLOS ONE publicou o artigo “Uso do Facebook pode prenunciar um declínio do bem-estar subjetivo em adultos jovens”, demonstrando que o Facebook deixa os jovens tristes. Um artigo de 2016 na revista Cyberpsychology, Behavior and Social Networking, intitulado “A experiência do Facebook: largá-lo leva a níveis mais altos de bem-estar”, concluía que o Facebook deixa as pessoas tristes e que elas ficam mais felizes quando param de usá-lo.


José Roberto de Toledo: O Facebook e o antiLula  

Mídias sociais, como o Facebook, revelam estratégias distintas das duas principais candidaturas em oposição ao ex-presidente até agora

Após um mês atípico em agosto, quando a página oficial de Lula no Facebook superou as de todos os outros presidenciáveis em volume de interações por causa de sua caravana pelo Nordeste, a primeira semana de setembro mostrou quão difícil será para o petista segurar essa liderança. A dificuldade virtual espelha o aumento da pressão contra o ex-presidente na Justiça - e todas as implicações que isso tem sobre sua candidatura em 2018.

Nos últimos sete dias, a página de Lula no Facebook voltou a ser ultrapassada pela de Bolsonaro em comentários, likes e compartilhamentos. Mais do que isso. Como era de se esperar, a delação de Palocci e a denúncia de Janot viraram munição para os adversários, e Lula perdeu o controle da narrativa sobre si próprio nas redes sociais. É dos poucos casos em que o "falem mal, mas falem de mim" não se aplica.

Finda a caravana, a maioria das interações com o nome de Lula na rede foi provocada por páginas contrárias a ele. Das top 10, pelo menos 6 são antiLula. A campeã foi a do MBL, com 624 mil interações. A página do candidato, que costuma superar com alguma folga a de seus algozes nas menções a ele, ficou apenas em 4º lugar neste começo de setembro, com menos da metade de interações mencionando seu nome que a do MBL - segundo a ferramenta CrowdTangle, comprada e difundida pelo Facebook.

O controle da narrativa pode ser terceirizado - desde que o candidato mantenha a influência no que se diz sobre ele nas redes sociais via páginas simpáticas à candidatura. Na última semana, os comentários e compartilhamentos sobre Bolsonaro foram comandados por páginas de apoio a ele, como SomostodosBolsonaro e Rio Conservador, e as de seus filhos Eduardo e Flavio. As interações sobre Doria foram capitaneadas pela página do MBL.

Já Lula conta com a própria página e a do PT. As dos senadores Lindbergh Farias (PT-RJ) e Gleisi Hoffmann (PT-PR) ajudam, mas não têm nem 100 mil interações sobre ele por semana. Sem histórias e imagens positivas, Lula voltou à defensiva virtual.

As mídias sociais revelam estratégias distintas das duas principais candidaturas em oposição a Lula até agora. Bolsonaro e seus seguidores são, quando muito, coadjuvantes no movimento contra o petista na rede. Criticam e ironizam, mas não em volume suficiente para aparecerem entre os principais algozes do ex-presidente. Estão mais ocupados em afirmar seu nome e defender a agenda conservadora do que fixar Bolsonaro como o antiLula.

Esse papel é protagonizado por movimentos e páginas que estão mais perto da área de influência do PSDB, como o MBL. Do mesmo modo, Doria consegue provocar mais reações dos internautas quando faz pronunciamentos críticos a Lula. E se o ex-presidente acabar não sendo candidato, como parece cada vez mais possível?

As mídias sociais confirmam o que se observa no mundo real. Ninguém no campo petista está conseguindo acumular cacife para substituir Lula como candidato a presidente, por ora. O ex-prefeito paulistano Fernando Haddad e o ex-governador da Bahia Jaques Wagner são ilustres desconhecidos virtuais. Ciro Gomes está melhor do que os petistas, mas ainda não o bastante.

Já entre os adversários, quem tem mais a ganhar com a eventual saída de Lula da corrida? Quem tenta ser o antiLula ou quem investe em identidade própria e surfa a onda conservadora? A estratégia de Bolsonaro parece mais preparada para uma eleição sem o ex-presidente. Seu limite é dado pela capacidade de ele crescer no deserto de homens e ideias que é o centro do espectro político. Esse deserto, porém, continua convidativo para o aparecimento de candidaturas como a de um Luciano Huck.

 


Marco Aurélio Nogueira: A guerra suja das “narrativas”

Boa parte dos conflitos sociais e das lutas de classes assume hoje a forma de “guerras discursivas” e disputas de narrativas. Dizer isso é reiterar uma espécie de cláusula dos estudos sociais, nos quais a linguagem ganhou posto de honra.

Numa sociedade estruturada em redes sociais ativas e influentes, tudo o que se passa nelas reflete o que circula à boca pequena, e vice-versa. Nem tudo, porém, presta ou tem mérito. Suspeita-se mesmo que parte importante das “narrativas” é composta de lixo, dejetos e fragmentos de verdade, que vão sendo despejados sobre uma multidão de pessoas nem sempre preparadas para processar o que recebem. A oferta é abundante, mas de má qualidade.

Muitas narrativas são construídas à base de mentiras, meias-verdades e desinformação. Na luta política, elas são feitas para persuadir emocionalmente, ou seja, mobilizar, normalmente contra e não a favor. Para sustentar, por exemplo, que o projeto de terceirização aprovado pela Câmara é contrário aos interesses dos trabalhadores, faz-se um exercício de demonização apoiado em duas premissas: (a) a medida seria “contra todos” e (b) estaria destinada a acabar com certas conquistas sociais importantes, como, por exemplo, 13.º salário, férias, seguro-desemprego, verbas rescisórias e licença à gestante, terminando por se chocar com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Trata-se de uma mentira. Ela insufla os ânimos e faz com que muitas pessoas se mobilizem para “lutar por direitos”, sem nem sequer se dar ao trabalho de avaliar se eles estão de fato sob ameaça. Não analisam o texto em questão, nem consideram que ele ainda não foi convertido em lei, que o presidente poderá alterá-lo, suavizando-o ou não, e assim por diante.

A atitude de disseminar falsidades tem um duplo vetor. Por um lado, mobiliza, mas mediante exageros e distorções. Por outro, em decorrência, cria falsas expectativas nas pessoas e reforça a ignorância delas. Tem, também, uma dimensão crua, rasteira, passional, e uma dimensão mais sofisticada, escudada em estudos acadêmicos, pesquisas e números que, devidamente esmerilhados, provariam qualquer coisa.

Os que se valem desta atitude, por sua vez, alegam estar combatendo mentiras disseminadas pelo governo, como por exemplo a que estabeleceria a tese (falsa) de que a terceirização criará empregos, como num passe de mágica.

O “terrorismo verbal” de um polo alimenta o “terrorismo verbal” do outro. Sem a terceirização, não teremos crescimento, diz um; com a terceirização, diz outro, a “precarização” será inevitável.

Com isso, a noite desce sobre todos, tenebrosa, espalhando suas sombras de medo, insegurança e incerteza.

Desaparecem as mediações, inclusive de sentido. Perde a democracia, que requer cidadãos politicamente esclarecidos, e o conflito social fica sem potência positiva, diluindo-se em choques inconsequentes. A impressão é de tensão crescente, mas no fundo tudo não vai além de escaramuças sem maiores efeitos.

Os ativistas das redes sociais caem facilmente nessa esparrela. Seja porque não têm tempo para pensar e vão ao embalo das provocações, seja porque gostam de “causar” sem medir as consequências, seja porque estão dispostos a contribuir para o embrutecimento geral por acreditarem que com ele farão a luta avançar. Ou simplesmente porque aceitam tudo o que leem desde que venham de fontes que legitimam ou tragam certas palavras simbólicas reconhecíveis de um jato.

Deveríamos limpar o terreno e melhorar o desempenho das “narrativas”, no mínimo fazendo com que elas não se descolem demais do bom senso e da realidade factual. Quando mais dramático o tema, quanto mais importante for para vida das pessoas comuns, mais cuidado e seriedade deveria haver na argumentação.

Ganharíamos todos.

*Marco Aurélio Nogueira é professor de teoria política da Unesp
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Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2017/04/a-guerra-suja-das-narrativas-marco.html