recursos naturais

Queimadas na Amazônia | Foto: Pedarilhosbr/ Shutterstock

Boicote ao Fundo Amazônia foi "opção política" da gestão Bolsonaro

Nara Lacerda*, Brasil de Fato

O Brasil tem mais de R$ 3 bilhões de reais parados no Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), que deveriam ser destinados à preservação da floresta amazônica, mas foram desprezados pela gestão de Jair Bolsonaro (PL).

Ao decidir que não iria cumprir as regras para uso dos recursos do Fundo Amazônia, o governo de extrema direita mandava um recado para a comunidade internacional: o país estava fora dos debates globais sobre preservação ambiental. 

Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, a coordenadora de Política e Direito Socioambiental no Instituto Socioambiental (ISA), Adriana Ramos, afirma que o boicote foi uma "opção política".

Em 2019, o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, extinguiu os dois comitês responsáveis pela gestão dos recursos. A formação dos grupos, que atuam no controle e na aplicação do dinheiro, é uma obrigação contratual. Sem eles, o fundo deixa de existir.

"Nenhum país tirou dinheiro do Fundo Amazônia. Foi o governo Bolsonaro que fez a escolha de cancelar o funcionamento desses dois comitês. Foi uma opção política não utilizar esse recurso. Esse recurso só pode ser utilizado para conservação, fiscalização e promoção do desenvolvimento sustentável. O governo não conseguiria utilizar esse recurso para outros fins. Então, ele preferiu que não fosse utilizado, porque esse não era o objetivo da política dele para a Amazônia."

O descumprimento das condições exigidas pelos países financiadores do fundo sabotou um mecanismo importante e estremeceu as relações com outras nações. O estrago foi considerável, porque o Brasil sempre dependeu de cooperação internacional para políticas ambientais.

"Ficou evidente que quem tinha interesses que não eram adequados era o governo Bolsonaro. Isso é tão reconhecido internacionalmente, que já no processo eleitoral havia essa sinalização de que acredita-se que o governo Lula vá recompor essas instâncias."

Na semana seguinte à vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas urnas, Alemanha e Noruega – os dois financiadores do fundo – declararam que vão retomar o aporte de recursos para preservação da Amazônia.

Em paralelo, o Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o governo federal retome o mecanismo  e recomponha os comitês responsáveis pela gestão dos recursos.

Enquanto o Fundo Amazônia estava parado, as taxas de desmatamento aumentaram em todos os biomas, principalmente na Amazônia. A devastação este ano já é 33% maior do que tudo o que foi registrado em 2021.

Confira abaixo entrevista completa.

Brasil de Fato: O que o Fundo Amazônia representa para a política de preservação ambiental no Brasil?

Adriana Ramos: O Fundo Amazônia foi criado para que o BNDES recebesse um recurso que foi, na época, destinado pelo governo norueguês. Depois teve um aporte também do governo alemão, reconhecendo os esforços na redução do desmatamento, que aconteceu exatamente a partir do primeiro mantado do governo Lula e até o início do primeiro mandato do governo Dilma.

O Brasil foi um dos países que mais reduziu emissões de gases que causam o efeito estufa com a redução do desmatamento. Nesse sentido, se qualificou como país que poderia receber recursos para investimentos nessa área. Como um pagamento por resultados que já tinham sido alcançados pelo governo brasileiro.

Esse fundo é administrado pelo BNDES, mas conta com dois comitês. O primeiro é um comitê técnico que atesta as taxas de desmatamento que estão sendo alcançadas no país para sinalizar quanto o país tem de resultados a aferir financeiramente.

O outro comitê é o comitê orientador do Fundo Amazônia, criado para reunir parte do governo federal, os governos estaduais da Amazônia e a sociedade civil, para discutir as grandes diretrizes de investimentos do fundo. Quais são as áreas que deveriam ser privilegiadas, como os projetos poderiam acontecer e poder ajudar o fundo a direcionar esforços para manter as políticas e ações que ajudam o desmatamento a ficar baixo.

Essa foi a lógica do fundo. Ele funcionou por praticamente dez ano, com muitas dificuldades já nos últimos tempos, em função dessa disputa muito grande de vários setores, como o agronegócio e a mineração, com pressão sobre a floresta.

Obviamente o fundo cumpre um papel fundamental, mas ele sozinho não dá conta do recado. Ele precisa estar ancorado em uma política. Ele foi criado no âmbito de prevenção e combate ao desmatamento, mas a desmobilização desse plano também afetou o fundo. Tendo em vista que não há esforço de investimento suficiente que resista a baixa aplicação da legislação e uma certa leniência com a ilegalidade, que nós vimos nos últimos quatro anos

Como ocorreu a extinção do Fundo Amazônia?

O que temos que entender é que nenhum país tirou dinheiro do Fundo Amazônia. Foi o governo Bolsonaro que fez a escolha de cancelar o funcionamento desses dois comitês, que eram uma condição contratual dos financiadores pra utilização dos recursos.

Mais de R$ 3 bilhões estão parados nas contas do BNDES desde o início do governo Bolsonaro. Foi uma opção política do governo Bolsonaro não utilizar esse recurso. Porque esse recurso só pode ser utilizado para conservação, fiscalização e promoção do desenvolvimento sustentável.

O governo não conseguiria utilizar esse recursos para outros fins, então ele preferiu que não fosse utilizado, porque esse não era o objetivo da política dele para a Amazônia.

O que aconteceu quando o fundo foi criado é que o contrato dos doadores com o BNDES tem as chamadas salvaguardas, exatamente para não permitir que o dinheiro seja usado para qualquer coisa. Uma delas é a existência desses comitês com a participação da sociedade.

Esses comitês é que definem as prioridades onde o recurso pode ser utilizado. Ao editar uma medida que cancelava o funcionamento desses comitês, o governo fez a opção por não utilizar o recurso.

Talvez eles tivessem a expectativa de que sem os comitês eles poderiam destinar o dinheiro como quisessem. É aí que essas medidas aparecem como salvaguardas, porque foram feitas exatamente para salvaguardar o interesse público diante de algum interesse específico que não fosse adequado aos objetivos do fundo. Ficou evidente que quem tinha interesses que não eram adequados era o governo Bolsonaro.

Isso é tão reconhecido internacionalmente que no processo eleitoral já havia essa sinalização de que acredita-se que o governo Lula vá recompor essas instâncias. Agora de qualquer maneira, porque a decisão do Supremo Tribunal Federal manda o governo, seja lá qual for, recompor essas instância.

Os doadores foram além, os resultados das eleições fizeram com que eles sinalizassem a vontade de continuar apoiando o fundo, além desse recurso que já está lá. O que é uma ótima notícia, porque a verdade é que o Brasil sempre dependeu de cooperação internacional para fazer suas políticas ambientais avançarem e, cada vez mais, vamos precisar disso.

Como é possível recuperar esse prejuízo de quatro anos?

Tem muita coisa para fazer. Eu acho que esse primeiro anúncio mostra que o presidente Lula ainda está na memória dos demais dirigentes como o presidente que mais reduziu o desmatamento no Brasil.

O fato de ele ter ao lado dele, nessa campanha de segundo turno, a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, trazendo uma proposta que deu mais consistência à agenda ambiental no programa de governo, também é uma sinalização muito objetiva para quem já teve oportunidade de ver que essas pessoas juntas conseguiram fazer a diferença.

Agora, o desmonte é muito grande. Há centenas de medidas revogadas ou editadas que precisam ser revistas, porque todas as estruturas do sistema nacional do meio ambiente e do Ministério do Meio Ambiente foram alteradas.

O Observatório do Clima fez um mapeamento, no âmbito do projeto Brasil 2045, um mapeamento  das políticas e das normas que precisam ser revistas. O grupo do Instituto Talanoa, Política por Inteiro, também produziu um material nesse sentido.

Então tem tudo muito sistematizado. São mudanças que vamos precisar que sejam feitas imediatamente, assim como a recomposição das instâncias do comitê do Fundo Amazônia, a recomposição da participação da sociedade civil no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), todas as estruturas dos procedimentos de fiscalização e aferição de multas de crimes ambientais, que foram totalmente alteradas para beneficiar aqueles que estavam atuando de forma irregular.

Temos muita coisa que precisa ser refeita e estruturalmente, para que se possa começar a trabalhar no desenvolvimento de novas políticas.

O governo eleito de Lula sinaliza para a possibilidade de derrubar as medidas da gestão atual que representaram desmonte. No chamado revogaço prometido por Lula, quais são os pontos mais urgentes para o meio ambiente?

É muita coisa e muita coisa que é norma infralegal. Portarias, instruções normativas, que organizavam como uma burocracia funcionava e que foram alteradas.

Temos um exemplo no processo de fiscalização. O fiscal vai a campo, autua alguém que ele encontrou agindo de forma irregular e, na área ambiental, foi estabelecido um procedimento de que essa multa, antes de entrar no sistema direto do fiscal, ela tem uma verificação em uma instância acima do fiscal, que seria uma instância política para verificar se aquela multa vai adiante ou não.

Pequenas coisas que fazem muita diferença no sistema como um todo. Foi esse pente fino que as organizações ajudaram a fazer para poder identificar. Então são muitas medidas. Essa eu acho que ela é muito simbólica porque ela mostra como, ao alterar uma rotina de trabalho da fiscalização ambiental, você diminui a responsabilização por aqueles que agem na ilegalidade. Vai diminuir a forma de cobrar multa.

Tivemos, por conta dessas mudanças recentemente, muitas multas que estavam para expirar o prazo e aí é o poder público que perde. É o interesse público que perde quando você abre mão dessa cobrança.

Existem várias instâncias de conselhos que são importantes para definir como a política vai avançar. Medidas que revogaram essas instituições precisam ser revogadas para que as normas voltem a valer.

São coisas que mexem no dia a dia dos órgãos até grandes decisões, como as decisões no caso do Conama. Como você definir o que vai ser regulamentado no âmbito do Conselho, fortalecendo a instância de participação como a instância prioritária da política ambiental.

Já temos, inclusive, uma grande mobilização da sociedade civil. Nesta semana saiu uma carta do pessoal que trabalha com a Rede Brasileira de Educação Ambiental, pedindo a retomada de uma política nacional de educação ambiental. Existe uma legislação, mas foi tudo desmontado também. Tem várias áreas do governo em que isso vai precisar ser refeito.

Quais são as expectativas para a Conferência do Clima das Nações Unidas (COP27) e para a participação do presidente eleito no encontro?

O Brasil já vinha sendo representado só pela sociedade civil, com o governo não fazendo questão de se colocar nesse debate, e esse anúncio da ida do Lula gerou muita expectativa. Porque essa é uma COP que discute muito mais implementação do que grandes acordos. Os parâmetros dos acordos da convenção estão mais ou menos dados.

Então, para uma COP que vai discutir implementação, é animador que o país que detém a maior área de floresta tropical - portanto, uma área sensível e relevante para a agenda climática - esteja chegando com uma nova abordagem, com um novo governo e com um compromisso já anunciado pelo presidente Lula de implementação de políticas que são centrais no combate ao desmatamento.

É o caso da retomada da demarcação das terras indígenas, dos territórios, que são elementos centrais em qualquer estratégia de um país como o Brasil para lidar com essa questão. Então, é claro que o mundo se anima com a perspectiva de ter um ator importante nessa conversa, que é o Brasil, se colocando em outro patamar.

Obviamente vai ser uma coisa meio maluca, porque você vai ter a presença de um governo esvaziado e uma presença, que ainda não é governo, ainda é sociedade, mas que obviamente vai ter muito mais o que dizer do ponto de vista de compromissos futuros.

*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato


Revista online | Quilombos Urbanos: Identidade, resistência e patrimônio

Wanessa Sabbath*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)

Nosso país é plural em diversidade natural, cultural, religiosa e o papel de qualquer liderança em nosso país vem com a responsabilidade de abranger e respeitar todos os povos, entre eles, os povos originários indígenas e quilombolas. Diferente do conceito civilista de propriedade privada, quilombos e aldeias são porções de terra do território nacional habitadas por uma ou mais etnias como os indígenas e quilombolas. 

Esses povos originários abrangem suas atividades produtivas para sustento próprio, como plantio de alimentos, confecção de artesanatos para além de garantir seu bem-estar, necessário à reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições que são guardados e mantidos a séculos. Além do zelo imprescindível à preservação dos recursos naturais, nossos povos têm por costume manter uma relação muito mais saudável e sustentável de contato com a natureza – bem como os patrimônios diversos construídos pelas mãos dos nossos antepassados.

Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online

Os quilombos são exemplos de respeito e acolhimento da diversidade, local onde existiam africanos e indígenas de diferentes etnias, bem como representantes de diferentes povos de resistência comungando do mesmo espaço, onde o respeito e a preservação das histórias e costumes de cada um constitui a base das vivências.

"É um direito humano e universal a vida, a liberdade e a segurança pessoal sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Esses e outros artigos estão, na íntegra, publicados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro de 1948.

É por isso que, como brasileiros, diversos, plurais, nos cabe esse papel de refletir. É por isso também que devemos fazer esse resgate diário sobre o que é o nosso país e quem somos.

Confira, a baixo, galeria de imagens:

Região quilombola no municpio de Presidente kennedy em Espírito Santo | Foto: Leonardo Mercon/Shutterstock
Vacinação Quilombolas | Foto: Igor Santos/Secom
Casa Amarela Quilombo Afroguarany antiga Mansão Florentina
Fotos da rua da consolação na época do café
Casa Amarela Quilombo Afroguarany antiga Mansão Florentina (1)
Quilombo em 1920
Região quilombola no município de Presidente kennedy em Espírito Santo
Tia Eliza
Vacinação Quilombolas
Quilombo do Frechal
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Casa Amarela Quilombo Afroguarany antiga Mansão Florentina
Fotos da rua da consolação na época do café
Casa Amarela Quilombo Afroguarany antiga Mansão Florentina (1)
Quilombo em 1920
Região quilombola no município de Presidente kennedy em Espírito Santo
Tia Eliza
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Quilombo do Frechal
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O Brasil é um imenso Quilombo! 

O quilombo é o epicentro do fenômeno da quilombagem, que foi organizado e dirigido pelos próprios africanos escravizados durante o escravismo brasileiro em todo o seu território. Um verdadeiro movimento de mudança social provocado, que desgastou significativamente o sistema escravista, social, econômico e militar, contribuindo para a crise do escravismo, que mais tarde foi substituído pelo trabalho “livre”. Os quilombos foram muito mais do que esconderijos de povos de resistência: foram, com certeza absoluta, a maior forma de protesto, luta e resistência contra o sistema escravista e um espaço onde os pretos puderam desenvolver seus costumes e reafirmar sua identidade. Estes espaços de resistência não ocorreram apenas nas áreas rurais, existem muitos relatos da existência também em áreas urbanas. Esses locais ou eram cômodos e casas coletivas no centro da cidade ou núcleos semi-rurais. Vale ressaltar que importantes núcleos negros nasceram desse tipo de configuração.

No final do século XIX, quando muitas mudanças ocorriam no Brasil, como a “abolição” formal da escravatura, e a adesão ao regime político republicano, a cidade de São Paulo se consolidava com a mudança de ricos fazendeiros da lavoura de café. Os cafeicultores foram morar nas regiões da Avenida Paulista, Campos Elíseos e Higienópolis, trazendo consigo pretos escravizados e trabalhadores domésticos “livres”, que foram residir próximo aos seus senhores e patrões em residências coletivas conhecidas como Quilombos Urbanos ou Irmandades Negras, na área central da cidade.

Sobre a autora

*Wanessa Sabbath é cantora, compositora, atriz e fundadora da @casaamarelaquilombo, ocupação cultural que visa abrir espaço à cultura afro-brasileira integrando as periferias ao centro da cidade utilizando a arte como transformador social.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Quase R$ 300 mi em multas ambientais podem prescrever em 2022

Luiz Fernando Toledo*, BBC News Brasil

Até o fim de 2022, pelo menos 2.297 multas ambientais podem prescrever e o Estado brasileiro deixar de arrecadar cerca de R$ 298 milhões, segundo estimativa interna do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), feita em junho e obtida pela BBC News Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Esse número mostra apenas uma parte do problema, pois o órgão admite que mais de 90 mil multas ainda estão na fila para serem processadas e seus prazos de prescrição são desconhecidos.

As cifras também podem variar de acordo com o tipo de análise, já que há vários tipos de prescrição previstos em lei, que variam entre três a cinco anos. A reportagem considerou dados enviados pelo próprio Ibama, que cita como base lei de 1999 que estabelece prazo de prescrição da ação punitiva do Estado.

A BBC News Brasil conversou com mais de 20 ex-funcionários e especialistas do Ibama para esta reportagem. Também analisou documentos internos do órgão e dados oficiais.

A realidade que se desenha é que infratores não temem as punições pois contam com a prescrição para livrar-se dos malfeitos.

Consequentemente, vêm mantendo práticas ilegais por anos, contribuindo para aumentar o desmatamento e a grilagem de terras, enquanto mantêm negócios com a venda e exportação de produtos, como carne e madeira.

Quatro etapas são necessárias para que a infração ambiental seja punida: identificar o ilícito ambiental, autuar, julgar e cobrar a multa. Se o Estado demorar cinco anos ou mais para realizar qualquer uma dessas etapas ou ficar três anos sem "mover" o processo, a multa prescreve e nenhum dinheiro pode ser recolhido, embora a empresa ainda possa ter de restaurar a área degradada, se assim determinado pela Justiça. Também há possível punição na esfera criminal.

Mais de 10 mil multas ambientais são aplicadas anualmente no Brasil. Mas, segundo diagnóstico do próprio Ibama, a atual equipe que analisa e julga não consegue dar conta desse volume de trabalho, então a papelada se acumula e é repassada para o ano seguinte, situação que se repete até o vencimento das multas. Uma estimativa interna do instituto diz que quase 40 mil multas podem prescrever até 2024.

Falta de pessoal e mudanças frequentes na legislação são os motivos do problema, segundo avaliação interna do Ibama e as fontes ouvidas.

"As pessoas têm a impressão de que o Estado é incapaz de punir", diz Felipe Nunes, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos autores de um estudo que mostra que menos multas ambientais estão sendo aplicadas e julgadas por atual administração do Ibama.

Especialistas apontam que uma das razões que ajudaram a aumentar o risco de prescrições é a chamada audiência de conciliação, uma nova etapa antes do julgamento da multa em que o Ibama oferece ao infrator a possibilidade de chegar a um acordo com a empresa em vez de caminhar por um julgamento.

Criado em 2019, o procedimento acabou retardando o processamento de multas nos primeiros meses. Dados da agência ambiental apontam que houve o menor número de julgamentos de infrações ambientais ao menos desde 2013 no órgão.

O Ibama reconheceu essas audiências como um desafio em uma avaliação interna, mencionando-as em seu memorando interno em uma seção sobre "ameaças ao processo sancionatório".

"A audiência de conciliação foi uma política que veio de cima pra baixo, sem ouvir os servidores. Gastou-se muita energia. Se tivessem priorizado o trabalho para melhorar julgamento e instrução das multas, não teríamos tantas prescrições de multas de valores altíssimos", diz o geógrafo e analista ambiental Govinda Terra, um dos diretores da Associação dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente e do Plano Especial de Cargos do MMA (Ministério do Meio Ambiente) e do Ibama (Asibama-DF).

O próprio presidente Jair Bolsonaro (PL) já se mostrou crítico às multas ambientais por diversas vezes. Ele próprio foi multado por pescar em área protegida em janeiro de 2012 e vem dizendo, desde que foi eleito, que quer acabar com a "indústria da multa" no Brasil. Sua própria multa prescreveu em 2019 e o agente que a escreveu foi removido de seu cargo no mesmo ano.

Multas prescritas não são um problema novo e atualmente há até mais mecanismos para evitá-las do que há alguns anos, como a digitalização de documentos nos órgãos públicos, que ajuda na tramitação da papelada e evita a perda de arquivos.

Mas a perda de arrecadação com as prescrições está aumentando. Registros obtidos por meio da LAI mostram que pelo menos 649 multas ambientais prescreveram no ano passado, a maior perda financeira reconhecida da agência desde 2017, após correção pela inflação, de R$ 144 milhões.

Uma das preocupações mais graves dos servidores é com multas milionárias, cujo trabalho de autuação pode levar meses de preparação, mas que têm se perdido com prescrições.

"As grandes empresas preferem gastar com advogado e estender o processo administrativo ao máximo — muitas enrolam mesmo — e, quando não dá certo, vão brigar na Justiça", diz a ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, que ocupou o cargo no governo Temer e hoje trabalha como especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima. O Ibama publicou em julho uma portaria que tenta "organizar" essa fila do passivo, priorizando aqueles com valores mais altos.

Registros internos mostram que o Ibama reconhece o problema oficialmente. "Deficiências administrativas comprometem a apuração e mobilização das fiscalizações, não gerando o efeito dissuasório que a multa deveria ter", diz um documento produzido no ano passado.

Página de documento escrito digitalmente
Documento interno do Ibama reconhece problemas que levam à prescrição das multas

Quando uma multa prescreve, o instituto precisa abrir uma apuração para identificar o responsável. Mas nem sempre isso é possível. Em alguns casos, o instituto não consegue nem sequer encontrar o agente responsável pelo julgamento da empresa. Por causa da demora, há servidores envolvidos nos processos que até já se aposentaram.

Autoridades do Ibama disseram, em um plano interno, que o órgão precisa contratar 300 pessoas para preencher cargos administrativos e iniciar uma "força-tarefa" para evitar mais prescrições.

Raoni Rajão, professor de Gestão Ambiental e Estudos Sociais da Ciência da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que as mudanças promovidas pelo governo Bolsonaro agravam a falta de pessoal no Ibama e geram um obstáculo artificial à fiscalização. "O processo não anda e, com isso, mais multas serão vencidas".

"Seria muito importante que o tratamento das multas fosse feito de maneira estratégica. Isso garantiria que grandes e reincidentes infratores fossem objeto de sistemas de inteligência compartilhados, por meio de uma governança entre órgãos administrativos e penais, de modo que fossem investigados de maneira apropriada e prioritária", disse Andreia Bonzo Araujo Azevedo, que é Diretora Adjunta do Programa de Clima e Segurança do Instituto Igarapé.

O Ibama não respondeu aos pedidos de entrevista após duas semanas.

Brigadista durante incêndio
Sem estrutura suficiente para aplicar multas, infrações ambientais podem ficar impunes

"É um prejuízo impossível de mensurar. É como se zerasse o efeito de tudo que foi feito", diz o servidor.

A alta no valor prescrito em 2021 foi puxada por um caso emblemático. Em 2009, o Estado brasileiro multou uma empresa agrícola por impedir a regeneração florestal em uma área de mais de 6 mil hectares, no Estado do Pará.

Em vez de permitir que a floresta voltasse a crescer em uma área que tinha sido desmatada, a empresa Agropecuária Santa Bárbara do Xinguara criou gado. Por causa do tamanho da fazenda, a multa estabelecida atingiu o teto previsto em lei, de R$ 50 milhões.

A operação, que envolveu diversas fazendas da empresa, fazia parte de um trabalho do Ibama em diversas regiões do Pará para comprovar a situação do desmatamento em áreas de atividade agropecuária na Amazônia. Os fiscais afirmaram que a empresa vinha comprando áreas já desmatadas para criar gado. Segundo a própria agropecuária, havia 20 mil cabeças no local da autuação.

Servidores da Superintendência do Ibama no Pará que acompanharam a operação em 2009 disseram à reportagem que esta autuação tinha um peso histórico.

"Era a primeira multa dessa empresa, na época a maior agropecuária do Brasil", disse um servidor, que pediu anonimato por não ter autorização para dar entrevistas. "Descobrimos que estavam usando normalmente áreas que já tinham sido desmatadas e estavam embargadas (ou seja, que não tinham autorização para nenhum tipo de atividade produtiva, como a criação de gado)."

Formulário preenchido à mão
Autuação de fazenda em 2009 no Pará tinha 'peso histórico', segundo um servidor, mas acabou prescrita

Mas o desfecho "histórico" não favoreceu os cofres públicos: a multa nunca foi paga e teve a prescrição reconhecida pelo Estado no ano passado. Isto significa, na prática, que, por causa da demora em agir, o Ibama perdeu definitivamente o direito de cobrar a agropecuária pela infração.

"Temos a sensação de enxugar gelo. Não é só o valor da multa que é perdido. É o trabalho de quem fez a fiscalização, do que se gastou com helicópteros, com pessoal, com tempo de trabalho. É um prejuízo impossível de mensurar. É como se zerasse o efeito de tudo que foi feito", diz Terra, do Asibama-DF.

A multa foi uma das infrações mais altas a prescrever nos últimos 20 anos, segundo dados obtidos pela reportagem e atualizados em março deste ano. Desde 2000, ao menos R$ 1,3 bilhão em multas ambientais já prescreveu.

Print de prescrição de multa
Ibama tem dificuldade para responsabilizar quem permitiu que a multa prescrevesse; neste caso, por exemplo, o servidor que atuou no caso e poderia falar sobre o que aconteceu já tinha se aposentado

Além do lado administrativo, casos como esse também podem ser analisados na Justiça, no âmbito civil e criminal. Em junho de 2018, o juiz federal Heitor Moura Gomes, da subseção Judiciária de Marabá do Tribunal Regional Federal da Primeira Região condenou a agropecuária a recuperar a área desmatada, mas a empresa recorreu e, desde então, aguarda decisão definitiva da corte.

Na decisão, o juiz absolveu a empresa do pagamento por danos materiais justamente por causa do alto valor da multa que seria aplicada contra a empresa - e que agora, sabe-se, prescreveu.

Bruno Valente, procurador federal do Pará, diz que é comum casos como esse durarem uma década ou mais na Justiça. "A consequência é ruim, pois não desencoraja os infratores".

A Agropecuária Santa Bárbara Xinguara se apresenta como uma das maiores do setor na América Latina. Em 2019, o jornal britânico The Guardian informou que eles estavam fornecendo à JBS, a maior empresa frigorífica do mundo, que vende carne bovina para praticamente o mundo todo. O Pará, onde está localizada a fazenda, é o Estado da Amazônia com a maior taxa de desmatamento.

A AgroSB, atual nome da empresa, reconheceu por e-mail que houve dano ambiental na área, mas que o desmatamento tinha acontecido antes da compra da fazenda, e que ela estava invadida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no momento da autuação.

"O melhor para a AgroSB (e Estado) seria o Ibama ter analisado rapidamente este fato e ter declarado no mérito a nulidade da multa, evitando-se, assim, o arrasto do deslinde do feito por mais de uma década até ser fulminado pela prescrição", disse a empresa à reportagem.

O instituto ainda tentava descobrir, em junho deste ano, quem foi o responsável por ter deixado a multa prescrever, de acordo com um memorando interno obtido pela reportagem.

Um funcionário do Ibama que trabalhou no julgamento administrativo de multas e conhece o caso da AgroSB disse que a estratégia da empresa é comum.

"É modus operandi entrar no processo administrativo e esperar o vencimento da multa. Desde o momento em que a empresa foi multada até agora, ela já lucrou muito mais. Esse é um caso emblemático de falta de punição, que gera mais injustiça."

Multa prescrita no passado, investigação no presente

Em março de 2009, o Ibama multou a empresa Tradelink Madeiras em R$ 161 mil (hoje equivalentes a R$ 355 mil, em valores corrigidos pela inflação) por ter adquirido 4.500 metros cúbicos de madeira serrada de ipê (um dos tipos mais valorizados do Brasil) e outros por meio de uma empresa de fachada, situação parecida com a da atual investigação.

A madeira comprada à época foi apreendida e, segundo o relatório do órgão, ficou guardada por quase uma década em um galpão, a ponto de ficar "com aspecto envelhecido, de cor acinzentada", até que o órgão governamental aplicasse a multa, de fato, em 2018. Por conta do lapso temporal, a punição prescreveu e a empresa não precisou pagar a sanção.

Em uma nota técnica enviada à reportagem por meio da LAI, o Ibama justificou a prescrição por "atrasos na análise quanto à lavratura, possivelmente devido à complexidade da operação".

A Tradelink voltou a ser destaque no ano passado depois que uma operação da Polícia Federal investigar se o ministro Ricardo Salles e o atual presidente do Ibama, Eduardo Bim, faziam parte de um suposto esquema para facilitar o contrabando de madeira para os Estados Unidos.

Destituído do cargo por 90 dias, Bim voltou ao trabalho e, no relatório anual de 2021 do Ibama, escreveu que o instituto está "firme no combate ao desmatamento ilegal em terras indígenas e nos diversos biomas brasileiros."

Área da floresta Amazônica em que houve desmatamento
Especialistas acreditam que irregularidades ambientais poderiam ser evitadas se o Ibama garantisse as sanções, freando possíveis reincidentes

Procurada, a Tradelink negou irregularidades, diz que não houve exportação ilegal e que "a documentação comprobatória da exportação desses contêineres foi apresentada ao Ibama e à Receita Federal do Brasil, antes do embarque".

Disse ainda que "nunca comprou madeira de empresas que foram fechadas" e que a ação de março de 2009 "está sendo apreciada pelo sistema judicial brasileiro".

Também afirmou que os autos não tiveram relação com desmatamento, mas com "formalidades administrativas vinculadas com divergências no preenchimento específico da documentação".

Especialistas acreditam que irregularidades ambientais poderiam ser evitadas se o Ibama garantisse as sanções, freando possíveis reincidentes.

"A prescrição desses mais de 2 mil autos de infração ambientais [da planilha obtida pela reportagem] é uma forma de chancelar as condutas ambientais criminosas. Se muitos infratores ambientais já viam nas falhas sistêmicas uma via para cometer ilegalidades, sabendo da predisposição de que, se pegos, suas autuações acabarão sendo alcançadas pela prescrição, serão ainda mais estimulados a continuar a expandir o desmatamento ilegal", disse Daniele Galvão, analista jurídica do Center for Climate Crime Analysis (CCCA), uma organização sem fins lucrativos.

"O CCCA tem se deparado em suas análises com diversos casos em que o desmatamento associado à extração ilegal de madeira, muitas vezes destinada à exportação para o mercado europeu ou norte-americano, poderia ser evitado se o Ibama (e também os órgãos ambientais estaduais) atuasse de forma mais efetiva em campo".

Petrobras: mesmo com alertas de subordinados, multas de R$ 10 milhões prescreveram

Uma investigação aberta pelo Ibama em 2018, a que a reportagem teve acesso, mostra que um agente do órgão teria se "esquecido" de tratar de pelo menos quatro multas emitidas contra a Petrobras, deixando R$ 10 milhões em infrações prescreverem entre 2017 e 2018, apesar de ter sido avisado por seus subordinados. O caso contra o servidor foi arquivado por falta de provas, mas as multas foram perdidas.

A Petrobras é a empresa que mais recebeu multas ambientais no país, com mais de 2 mil sanções desde 2009, de acordo com dados do Ibama, que somam mais de R$ 1 bilhão, mas a maioria ainda não resultou em pagamento. A empresa foi constantemente mencionada nas entrevistas para esta reportagem como um exemplo da dificuldade da agência ambiental em garantir o pagamento de multas.

De acordo com a investigação, um coordenador de exploração de petróleo do Ibama no Rio de Janeiro "reteve deliberadamente" vários autos de infração contra a petroleira estatal.

O documento apontou que um agente da unidade do Rio apresentou mensagens remetidas ao coordenador que pediam a ele para trabalhar na multa, o que indicaria "que não houve negligência, mas sim a intenção de manter a situação como está".

Os servidores que investigaram o caso também constataram vários problemas administrativos naquela unidade do Ibama, como "falta de controle documental do processo" na unidade e falta de controle dos horários dos funcionários.

O caso também foi denunciado ao Ministério Público Federal, que abriu um inquérito. O servidor deixou o cargo comissionado que ocupava na mesma época da denúncia, em 2018, mas segue atuando no Ibama. O caso foi arquivado em 2021, segundo o MPF, por "ausência de indícios de falha funcional por parte dos coordenadores."

A Petrobras informou, em nota, que "atua com responsabilidade social e ambiental, além de transparência e respeito a normas e regras vigentes em sua missão de transformar recursos brasileiros em riquezas."

A reportagem procurou o Ibama, mas não obteve nenhuma resposta após duas semanas.

*Texto publicado originalmente na BBC News Brasil. Título editado.


Crise hídrica amplia desafios da gestão de recursos naturais

Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Anivaldo de Miranda Pinto explica desafios e oportunidades do Plano Nacional de Recursos Hídricos

A crise hídrica, que atinge alguns dos principais reservatórios do país, preocupa ambientalistas e diversos setores da economia. A ameaça no fornecimento de energia no Brasil e os impactos ambientais da transposição do Rio São Francisco são assuntos que ganham cada vez mais destaque no debate público.

Para analisar o Plano Nacional de Recursos Hídricos para o período de 2022 a 2040, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira entrevista Anivaldo de Miranda Pinto, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco e membro titular do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH).

Ouça o podcast!



Temas como governança hídrica e as estratégias para minimizar os riscos de futuros colapsos fazem parte do programa. O episódio conta com áudios do canal do Youtube Engenharia 360, canção Riacho do Navio, de Luiz Gonzaga, TV BrasilGov, Jornal da Record News, Últimos Acontecimentos HOJE, Programa Travessia e TV Cultura.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.


Ouça a Rádio FAP




Brasil: Vanguarda Ambiental e Agrícola

Foi-se o tempo em que o Brasil era grassado como o país do futebol. Talvez menos pelos deméritos recentes de nossa seleção canarinho e muito mais pelo amadurecimento de outras vocações nacionais, hoje podemos nos orgulhar de ostentarmos uma condição ímpar: somos uma grande potência agrícola e somos, ao mesmo tempo, a grande potência ambiental do planeta. Apesar do aparente paradoxo, o Brasil está conseguindo avançar simultaneamente nestas duas direções: produzir cada vez mais alimentos para o mundo e preservar recursos naturais para as futuras gerações. Ao contrário do que muitos apregoam, não são caminhos opostos, pelo contrário, são simbioticamente complementares.

O Brasil guarda 12% da água doce do mundo, tem 500 milhões de hectares de florestas, 350 milhões de hectares de áreas marinhas e 2 milhões de espécies vivas distribuídas em 6 diferentes biomas. Ao mesmo tempo, produz 200 milhões de toneladas de grãos por ano, é o maior produtor de soja, café, açúcar, laranja e o segundo maior exportador mundial de produtos agropecuários.

O Brasil optou por reservar mais de 60% de seu território para preservação ambiental. Não estamos falando de áreas inóspitas ou inabitáveis. São terras que poderiam ser convertidas e destinadas ao aproveitamento econômico. No entanto, de forma muito sábia e corajosa, o povo brasileiro decidiu destinar à exclusiva proteção de nossa riquíssima biodiversidade quase dois terços das terras brasileiras. Enquanto isso, a agricultura, que ocupa apenas 8% do território nacional, graças à sua extraordinária pujança e desenvolvimento tecnológico, é a grande responsável por garantir a segurança alimentar e energética do mundo, agora e principalmente no futuro.

Esta nossa realidade, sem paralelo no cenário planetário, descortina para nós um tempo vindouro especialmente promissor. Temos em nosso país uma incomparável vantagem comparativa e estratégica: conseguimos preservar nossa biodiversidade ao mesmo tempo que nos tornamos os grandes fornecedores mundiais de comida, de energia renovável e, sobretudo, de imprevisíveis e reveladoras descobertas científicas sobre nosso preciosíssimo patrimônio genético, já que 90% dele ainda é desconhecido.

Nesta semana do meio ambiente, vale a pena fazer um resumo de como conseguimos chegar nesta privilegiada situação. Especialmente em São Paulo, seguindo diretriz do Governador Alckmin, existe um esforço permanente para fazer com que nossa agricultura fique na vanguarda da sustentabilidade. Este esforço é de nossas universidades, entidades da sociedade civil, institutos de pesquisa e de milhares de profissionais e agricultores que se dedicam a experimentar técnicas de sustentabilidade.

Comemoramos recentemente inúmeras novidades na área do controle biológico de pragas e doenças por meio da utilização de ácaros predadores, fungos, parasitas, nematoides e insetos, conforme pesquisas desenvolvidas por nosso Instituto Biológico. Estas novas tecnologias são capazes de substituir a utilização de agroquímicos, não deixam resíduos, não afetam a saúde de ninguém e não causam impacto ambiental relevante. Quanto à preservação dos solos e das águas, editamos novas normas para melhor a aplicação de técnicas de manejo e plantio, especialmente para a cana-de-açúcar. Por meio dos exitosos programas “Integra” e “Nascentes”, financiamos a recuperação de áreas degradadas e incentivamos fortemente a recuperação de matas ciliares. O programa “Melhor Caminho” recupera estradas vicinais e, sobretudo, ensina técnicas de conservação que evitam erosões e assoreamentos. O programa “Aplique Bem” qualifica profissionais para o uso racional de agroquímicos e nossas equipes de extensão rural da CATI difundem as técnicas de plantio direto, tratamento de dejetos animais, biodigestão ou compostagem de materiais orgânicos e carcaças, nitrogenação biológica de solos, integração lavoura-pecuária-floresta, recuperação de pastagens degradadas, Sistemas Agro-Florestais e outras voltadas à agricultura ecológica e orgânica. Nosso Instituto de Zootecnia tem desenvolvido técnicas extraordinárias para dar mais precocidade aos rebanhos (como é o caso do Boi 777, cujo ciclo completo até o abate é de apenas 21 meses), fortificação de leite, melhoria da nutrição animal, etc. O Instituto Agronômico, que completa 129 anos neste mês, não cansa de lançar novos cultivares, mais resistentes à estresse hídrico, às pragas e que melhoram a produtividade de nossa agricultura. O Instituto de Tecnologia de Alimentos desenvolve técnicas para o melhor aproveitamento dos alimentos e o Instituto de Pesca tem conseguido resultados importantes no repovoamento de nossa fauna aquática. Estamos na reta final da elaboração do Plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono) paulista e fizemos recentemente um aprofundamento da compreensão e planejamento para o desafio de Segurança Alimentar X Mudanças Climáticas. Tudo isso representa uma agricultura harmônica com o meio ambiente e de baixa emissão de Gazes de Efeito Estufa. É a agricultura de baixo carbono que garante produtividade no campo ao mesmo tempo que cumpre nossa missão de combater o agravamento das mudanças climáticas.

Além de todas estas tarefas que exigem compromisso com a preservação ambiental, sabemos que a melhoria da renda de quem mora no campo é um grande aliado da conservação. Por isso, ainda para comemorar a semana do meio ambiente, no último dia 31 assinamos 134 projetos para o desenvolvimento rural de associações ou cooperativas de pequenos produtores agrícolas, com aporte financeiro de R$ 58 milhões a fundo perdido por meio do programa “Microbacias II”. Fomentar o progresso sustentável dos pequenos agricultores é diretriz do Governo de São Paulo que seguimos à risca com efeitos extremamente benéficos do ponto de vista ambiental.

Finalmente, com orgulho, podemos afirmar que São Paulo foi o primeiro aluno da classe no cumprimento da hercúlea tarefa de inscrever posses e propriedades rurais no Cadastro Ambiental Rural – CAR. Se pegarmos como base os dados do IBGE, que servem de parâmetro para medir performance do cadastramento nos estados brasileiros, São Paulo atingiu 100% da área cadastrável. Isto é um feito notável, só atingido graças ao empenho de milhares de profissionais, do setor público e privado, que demostraram ser apuradíssima a consciência ambiental dos agricultores paulistas. Nosso próximo passo será dar início ao Programa de Regularização Ambiental – PRA das propriedades rurais, confirmando que São Paulo sabe produzir ao mesmo tempo em que conserva.

Muito mais do que petróleo, o mundo precisará nos próximos 30 anos de comida, água potável e energia limpa. Precisará de medicamentos, fibras, compostos e descobertas científicas. São Paulo e o Brasil estão prontos para se inserir neste futuro promissor como grandes protagonistas. Vamos ao futuro!


Arnaldo Jardim – Deputado federal licenciado (PPS-SP) e Secretário de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo

Rubens Rizek – Foi Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e atual Secretário Adjunto de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo