Raul Jungmann

Raul Jungmann: Homicídios em alta

Em meados de 2017 o índice nacional de homicídios, ascendente por décadas, principiou a desacelerar e, no ano seguinte, surpreendentemente, caiu pela primeira vez em cinco anos. Ao final de 2018 a redução tinha sido de 10%, um feito a comemorar. Em 2019, a tendência se manteve e a queda foi maior, de 19%, numa redução de 10.000 mortes a menos.

Surgiram então as mais diversas teorias e explicações para tal queda. Para uns, teria sido a redução dos massacres dentro do sistema prisional. Para outros, as razões seriam: a ocorrência de mudanças nas dinâmicas do crime, uma maior articulação entre as polícias, os centros de operação e inteligência integrados – saldo dos grandes eventos (Copa do Mundo e Olimpíadas) e, por fim, a mudança demográfica em curso, com a redução de jovens e adolescentes vulneráveis.

Da minha parte defendi que a queda dos índices fora fruto da ação dos governos estaduais, face à proximidade das eleições de 2018. Sabiam os governadores que teriam no julgamento da população sobre a segurança pública um aspecto chave para o seu sucesso nas eleições. Com a chegada do atual governo federal ao poder, o discurso de imediato foi o de chamar para si a queda nacional dos homicídios. Ela seria fruto da transferência de alguns líderes de facções criminosas de penitenciárias estaduais para unidades federais e de uma maior atuação da Polícia Federal no combate às drogas etc.

Para nós era evidente, e sem descartar o efeito positivo dessas medidas, que elas eram insuficientes para justificar uma queda dos homicídios daquela ordem e em escala nacional. Quando à frente do Ministério da Segurança, desenvolvemos ações várias, como a coordenação de todas as polícias do país no combate à pedofilia, ao feminicídio, e homicídios, vinculação de recursos das loterias ao Fundo Nacional de Segurança, implantação do Pró- Segurança no BNDES com R$ 40 bilhões, dentre outras. E criamos o Susp, Sistema Único de Segurança Pública.

Não obstante a contribuição dessas medidas, jamais nos consideramos protagonistas da queda dos índices. Afinal, são os estados que cuidam, legal e executivamente, da questão da violência e da segurança pública, através das polícias, judiciário e ministério público estaduais e não o governo federal.

Pelos dados divulgados pelo Monitor da Violência, os homicídios subiram de janeiro de 2020 para cá, 11%, portanto antes do início da pandemia, sem que tivéssemos mudanças palpáveis nas causas apontados para a queda dos homicídios registrada anteriormente. E por que caíram, então? Pela razão de que o fôlego fiscal e a injeção de recursos dos governos estaduais na segurança de 2017/ 2018, esgotou-se, lamentavelmente.

Nesse contexto, urge (i)implantarmos o SUSP e de dotarmos o pais de um efetiva política e um sistema de segurança pública, que coordene os esforços da união, dos estados e municípios; (ii) enfrentarmos a crise do nosso sistema prisional, superlotado e nas mãos das facções criminosas; (iii) revermos nossa atual política de drogas; (iv) despolitizar, reformar e equipar materialmente e de recursos humanos qualificados nossas polícias; e (v) desenvolver um amplo programa nacional de prevenção social focado na juventude vulnerável.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Teme


Raul Jungmann: Polícia Federal. Até a próxima crise?

Está de volta ao debate público a questão se a Polícia Federal deve ou não ter autonomia plena. De um lado seus integrantes lutam para garanti-la, com o apoio de boa parte da opinião pública. De outro, políticos, Ministério Público e Judiciário, reclamam por controles mais eficazes.

Nos termos em que se desenvolve a discussão, ela é recorrente, polarizada e parcial, dado que a polícia judiciária federal já é autônoma de fato, ao longo do ciclo de atividades do processo penal; porém, com um controle externo frágil.

Ancorada constitucionalmente no Executivo, noves fora quando polícia administrativa, a PF tem um status único, pois sai integralmente da tutela do Ministério da Justiça e Segurança Pública e passa ao Judiciário quando por este requisitada. Daí que todos cobram do Ministro da pasta informações e controles que ele não pode atender, sob pena de incorrer em crime de obstrução de justiça.

Entendo que só será superada essa ambiguidade da PF se lhe for concedida uma autonomia de direito, associada a controles reais.

A solução correta é a concessão da autonomia, combinada com a reestruturação dos controles, por meio de um conselho de supervisão e controle, integrado por membros do Judiciário, do Ministério Público e pelo corregedor da PF. Este último, assim como o Diretor Geral, teria mandato fixo e ambos seriam indicados pelo Executivo e submetidos a aprovação pelo Senado, mediante sabatina.

O mandato de ambos, diretor geral e corregedor, lhes conferiria a necessária independência para dentro, frente à corporação, e, para fora, face aos interesses e pressões externas. Para tanto seria preciso emendar a Constituição nos artigos 144 e 129, aquele para instituir a autonomia por lei complementar e este para ampliar o escopo do controle externo da PF.

Não será fácil mudar em um cenário minado por resistências diversas e temores de políticos, Judiciário, MPF e da própria Polícia Federal. Mas, a permanecer o atual estado de coisas, estacionaremos no pior dos mundos: uma autonomia incompleta que infunde suspeita, agravada por controles ineficazes e precários.

As consequências sempre são corrosivas, como se viu agora, com o conflito entre o Executivo e Judiciário, após a decisão do Ministro Alexandre Moraes de vetar a nomeação do Diretor Geral da instituição escolhido pelo presidente da República.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Raul Jungmann: Presidencialismo de colisão

Com a fragmentação partidária atual, mais de 25 legendas com assento no parlamento, nenhum Presidente da República pode governar sem lançar mão do chamado presidencialismo de coalizão. O atual presidente decidiu não governar com ele. Resultado, vivemos um presidencialismo de colisão.

Vitorioso em uma eleição crítica, em que os parâmetros das anteriores foram superados ou mitigados e cavalgando a onda da anti-política, o Presidente julgou poder governar com as redes sociais e para os segmentos que o apoiam. Ocorre que, se a sua eleição foi fruto de uma ruptura, a política e o sistema de governo diferentemente não o são, mas de continuidade.

As redes sociais são eficazes para chegar ao poder ou até para derrubá-lo, porém são imprestáveis para governar. Ou seja, não há como projetar a lógica das eleições sobre o modo de governar. Sem a ferramenta do presidencialismo de coalizão, restou-lhe a política plebiscitária de apelar às massas ou à espada, multiplicando conflitos que se espraiam pelos demais poderes e órgãos de controle.

Essa prática deteriora o clima institucional e paralisa seu governo. O que tem levado a sucessivas rodadas de choques e conflitos, numa espiral ascendente. Surgem então as narrativas conspiratórias e auto-justificantes. A última, atribui ao Presidente da Câmara a articulação de um complô, juntamente com governadores e integrantes do STF, para adotar medidas que sangrem o Tesouro Federal e transfiram recursos para os Estados, visando o pleito de 2022.

Nesse quadro, um fator complicador é o vírus privado e familiar no coração da presidência, a influir em decisões de interesse da Nação sob a ótica doméstica, o que tende a promover ondas de desordem, conflitos e uma instabilidade permanente.

No plano simbólico, a saída do ministro Sérgio Moro, vestal do combate à corrupção, e a aproximação com o Centrão, deve levar ao divórcio dos lava-jatistas de sua base de apoio, em nome de uma coalizão parlamentar para enfrentar a hora crítica que se aproxima: a quem caberá o espólio do Covid-19 e da inédita recessão.

É bom lembrar, nessa hora, que crises entre o Parlamento e o Executivo em nossa história, de Deodoro da Fonseca a Dilma Rousseff, levaram à queda do presidente ou ao fechamento do Congresso. Ambos fora do radar e, assim espero, permanecerão.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Raul Jungmann: Um esboço de cenário pós-crise

Ao que tudo indica, em 2020 teremos uma contração do PIB da ordem de 4%. Já o mercado do trabalho deve chegar aos 14 ou 15 milhões de desempregados. Como se prevê que a economia irá se comportar em forma de “V”, em 2021 e 2022 estima-se um crescimento de 4%, o que, na média do triênio 2020/2022, dará um crescimento acumulado próximo a 6%.

Logo, é previsível que a renda a renda real medida pela Pnad contínua decresça, em 5% este ano. No conjunto, o cenário aponta para um quadriênio de relativa estagnação nos âmbitos econômico e social.

Na política, tendo o Presidente da República aberto mão do presidencialismo de coalizão e da coordenação e/ou alinhamento entre o Executivo e o Legislativo, o Congresso tende a distanciar-se da agenda governamental, intensificar seu movimento rumo a uma menor dependência do Planalto e a redução do apoio às reformas.

Isso, sobretudo após a condução da crise do coronavírus, mas também pela mudança do comando da Câmara e do Senado, cujos futuros presidentes dificilmente terão a sintonia e liderança dos atuais incumbentes em relação às reformas, em especial na Câmara.

Além das mudanças na Câmara e no Senado, igualmente no Judiciário haverá troca de guarda, com o fim do mandato do atual presidente do STF, Antônio Dias Toffoli que, juntamente com os atuais presidentes do Legislativo, compõe uma tríade afinada nas questões democráticas e de contenção aos excessos do Executivo. Quanto a este, seus movimentos têm conduzido ao distanciamento da Câmara e Senado, idem cúpula do Judiciário, academia, cultura, imprensa e, ainda que de modo lento, porém contínuo, apoio popular.

Já os militares, motivo de indagação ou apreensão de alguns, mantêm-se dentro dos limites institucionais e aí permanecerão. Porém, mais à frente, diante de uma vitória das oposições, ainda que hoje remota, terão que lidar com a sua substantiva presença e possível desengajamento das funções de mando, em especial as palacianas.

Se os próximos meses e anos não apontam para uma redução expressiva da presente instabilidade e tampouco para o resgate da capacidade plena de coordenação e governança do Executivo, pode-se prever a conclusão do mandato presidencial dentro do prazo constitucional, idem uma crescente dificuldade para sua reeleição.

*Raul Jungmann é ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa e Segurança Pública


Raul Jungmann: Motins de policiais são alerta para o país

Esses são momentos de extraordinária e dramática tensão e risco para sociedade, governo, militares, policiais e democracia

O motim da polícia no Ceará, finalmente encerrado e com um trágico saldo de 241 civis mortos durante sua vigência, nos impõe algumas reflexões.

Quando fui ministro da Defesa tive que lidar com 11 operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), em sua maioria decorrentes de greves de Polícias Militares estaduais.

Na mais crítica das operações, em 2017, no Espírito Santo, ao desembarcar em Vitória encontrei uma cidade deserta e uma população indefesa e encarcerada em suas casas. Mulheres dos policiais realizavam piquetes nas portas dos quarteis e, segundo os amotinados, os impediam de sair de lá.

Com o motim, os homicídios deram um salto de 134%, chegando a 225 mortes em 20 dias. Lojas foram saqueadas, arrastões se sucediam, escolas e comercio não funcionavam, idem serviços públicos, o Judiciário e o Ministério Público. O quadro era de colapso do Estado e pavor da população. Já tínhamos visto algo semelhante em outros estados, porém não com a criticidade do ES.

Com a chegada das Forças Armadas, o restauro da segurança e a queda vertical dos crimes e roubos, o Espírito Santo e Vitória foram voltando à normalidade. Em contrapartida, os amotinados perderam a sua capacidade de pressão e de pôr a sociedade e o governo de joelhos.

Recordo que, em um momento crítico, policiais foram retidos nos quartéis, sob a mira de armas, por querer voltar ao trabalho. Nesse momento, chegou-se a cogitar do emprego de blindados e de forças especiais para libertar os reféns, o que implicaria em alto risco de confronto de parte a parte.

Em outro momento, em Pernambuco, colocamos 200 soldados e fuzileiros como última linha de defesa para proteger o Palácio do Governo, o governador e sua equipe.

Cabe ressaltar que, nos episódios, os governadores Paulo Hartung (ES) e Paulo Câmara (PE) portaram-se com serenidade e firmeza.

Greves e motins policiais são momentos de extraordinária e dramática tensão e risco para sociedade, governo, militares, policiais e democracia. A corporação armada é a parte da nação a quem o Estado atribuiu a função de proteger os direitos e liberdades individuais, o Estado democrático de Direito, a lei e a vida.

Por isso, por deter a força e ser a última ratio do Estado, o constituinte originário lhe atribuiu status diferenciado dos demais servidores e lhe negou o direito a greve, pois esta levaria à coerção dos que deveriam ser protegidos, à desordem, à insegurança e à ameaça à ordem democrática.

Ao se amotinarem, as polícias são desconstituídas da autoridade pública que lhes foi outorgada pelo Estado e se tornam transgressoras da lei. A moeda de troca das suas reivindicações passa a ser a vida daqueles que, sem proteção, tornam-se vítimas do crime organizado, da violência e da barbárie.

A Carta de 1988 tem entre seus princípios a dignidade humana e toma o direito à greve como um direito fundamental de todo trabalhador.

Porém nenhum direito é absoluto, logo, no caso, é impossível sobrepor o direito de greve ao da segurança da vida, bem maior tutelado pela lei. Tampouco sobrepor à democracia e ao Estado, que é o que se deduz da análise conjunta dos artigos 142 e 37 da Constituição Federal.

Sem dúvida, todos os policiais são merecedores do respeito e da estima da sociedade, pelo muito que fazem, em condições precárias, turnos exaustivos de trabalho, remunerações aquém de suas necessidades e regimentos disciplinares medievais e punitivos.

Daí a importância da Lei Orgânica das Polícias em gestação para mitigar o desconforto das polícias. Para que estas pudessem peticionar pelos seus direitos, em decisão de 2017, o STF determinou que o poder público, em atenção ao art. 165 do Código de Processo Civil, mantivesse negociações do interesse das corporações com os respectivos governos, mediadas pelos Tribunais de Justiça dos estados.

Nenhuma das GLOs que coordenei se encerrou antes que se houvesse recuperado o controle da segurança e da ordem pública. Caso contrário, seria retomada a chantagem sobre a sociedade, em termos de vidas em risco, e sobre o governo, sem falar do colapso dos serviços públicos e do funcionamento dos Poderes.

A suspensão de uma GLO antes do fim de um motim ou a concessão de anistia aos amotinados a posteriori não podem ser aceitas. Sob pena de provocar um efeito cascata, ao empoderar movimentos similares em outros estados, criando um gravíssimo clima de insegurança, já agora de âmbito nacional.

O que poderia levar a que, demandadas por um dos Poderes da República, conforme reza o art. 142 da Constituição, nossas Forças Armadas se vejam diante do risco de um confronto de consequências imprevisíveis. O que cumpre ser evitado a todo custo.

*Raul Jungmann, ex-ministro da Reforma Agrária (governo FHC), Defesa e Segurança Pública (governo Temer)


Raul Jungmann: Combater as causas da criminalidade

Na nossa gestão colaboramos, sem dúvida, para a queda dos homicídios no País

A vida humana é o maior valor de uma sociedade e o menor para o mundo do crime. Essa síntese se materializa de forma mais perversa no sistema operacional do crime organizado que domina territórios e presídios.

Com o primeiro, elege representantes políticos e formaliza sua presença, com todas as prerrogativas do mandatário eleito – incluída a de efetivar nomeações em todos os níveis da estrutura do poder público. No segundo caso, é o juiz do destino da parcela majoritária da terceira maior população prisional do mundo – os mais de 812 mil detentos em nossas prisões. Os presídios, por sua vez, tornaram-se centros de recrutamento das facções criminosas pela brutal razão de que o Estado não garante a vida dos que lá estão. São apenados obrigados a buscar segurança nas facções para não morrerem, trocando proteção por submissão integral.

No Rio de Janeiro, onde essa realidade é mais visível e aguda, milicianos e traficantes controlam 830 comunidades, onde vive 1,5 milhão de pessoas. Os criminosos têm o controle do território, o controle do voto, elegem suas bancadas na Câmara Municipal, na Assembleia Legislativa, até no Congresso Nacional, e garantem a indicação de pessoas para ocuparem cargos públicos, mesmo na área de segurança. É o que venho chamando há tempos de “coração das trevas”.

Como o Estadão já demonstrou, as milícias não são privilégio do Rio, mas são encontradas em 23 dos 27 Estados da Federação. E todas, sem exceção, são formadas e/ou comandadas por policiais da reserva ou da ativa. Isto é, o poder público treina e forma agentes públicos de segurança que adiante se desviam para o crime e lá exercem as competências adquiridas com o dinheiro do cidadão contribuinte.

Tivemos sete Constituições e em nenhuma delas o governo central deteve responsabilidades com a segurança pública – desde a primeira, de 1824, até a última, de 1988.

O peso da segurança pública é dos Estados, que respondem por 81% do gasto total – o governo federal, 12% e os municípios, o restante. Destaque-se que todas as áreas sociais constantes da Carta de 88 se constituíram em sistemas liderados e compartilhados pelo governo federal e se organizaram em ministérios. Menos a segurança pública, salvo nos 11 meses de existência do Ministério da Segurança.

Estado algum, por óbvio, teve ou tem poderes ou recursos para definir e implantar um sistema nacional ou uma política nacional de segurança. Portanto, nunca tivemos nem sistema nem política, até o advento do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), em 2018, no governo Temer.

Enquanto tal “acefalia federativa” se perpetuava, o crime organizado se nacionalizava e internacionalizava. Das mais de 70 facções do crime organizado de base prisional, ao menos meia dúzia é nacional e avança em países vizinhos.

Nosso debate nacional, no entanto, se limita à repressão: mais polícias, mais armas, mais veículos, penas mais duras, etc. Porém uma política nacional de segurança integral começa na prevenção social, passa pela repressão qualificada e não pode desviar os olhos da calamidade que é nosso sistema prisional, que prende muito e mal – 48% dos crimes são de furto, roubo ou receptação e 12%, de homicídio.

Diante disso, a polêmica sobre quem tem o crédito pela queda dos homicídios é pobre e desnecessária. Ela se iniciou em 2018 (ano eleitoral, em que, sabiam os governadores, a segurança seria decisiva) e seguiu caindo em 2019. Porém o protagonismo não é do governo federal, anterior ou atual, é dos Estados.

Na nossa gestão colaboramos, sem dúvida, para a queda dos homicídios, com ações como o Susp, a criação de um sistema e uma política nacionais de segurança, que nunca tivemos anteriormente.

Ainda fizemos a vinculação de recursos das loterias ao Fundo Nacional de Segurança e alocamos R$ 90 milhões para a digitalização dos 2 milhões de processos da Justiça penal, idem para a biometria de toda a população carcerária, dentre muitas outras ações.

São fundamentos importantes, mas para enfrentar o problema na sua amplitude é preciso focar a política pública de segurança nas seguintes questões:

1) implantar um amplo programa de prevenção social focado na juventude das periferias, sobretudo jovens negros e pardos, fora da escola e sem trabalho, vivendo em famílias desestruturadas;

2) reformar o nosso caótico sistema prisional, reduzindo o superencarceramento, ampliando as unidades do semiaberto, dando chance de estudo e formação profissional aos apenados e ampliando programa nacional de egressos que nós deixamos;

3) extirpando as indicações e promoções políticas nas polícias, instituindo efetivamente a promoção por mérito, tornando as corregedorias autônomas e com estrutura, fortalecendo o controle externo e instituindo processo eficiente e rápidos nos casos de crimes violentos e corrupção, além de focar na inteligência policial;

4) rever a atual política de drogas, em especial definindo o quantum limite para o porte de drogas por usuário.

* Raul Jungmann foi ministro da Defesa, da Segurança Pública e da Reforma Agrária


Raul Jungmann: Polícia não é Milícia

Aqueles que aplaudem hoje, amanhã não perguntem por quem os sinos dobram…

Semana passada o Capitão Assunção, dublê de PM e deputado estadual pelo Espirito Santo, foi à tribuna fazer uma oferta espantosa. Dez mil reais para quem lhe trouxesse o cadáver do assassino de uma jovem capixaba. Fardado, o capitão PM rompeu, de uma só vez, todos os laços com a condição de policial e de parlamentar, ao tornar-se um possível cúmplice e mandante de um homicídio doloso e, de homem da lei candidatou-se a ser um homem do crime.

Os que têm memória curta o aplaudiram.

Porém, em 2017 estávamos em campos opostos. Ele, foi o principal líder de um motim policial que levou parte da tropa da PM a se aquartelar armada, negando segurança e levando o terror ao indefeso povo capixaba, alvo de arrastões, incontáveis mortes e saques. Nós, coordenando uma operação de GLO – Garantia da Lei e da Ordem, a pedido do Governador Paulo Hartung e mando do Presidente Temer, com 3.500 homens das Forças Armadas, para dar a população a segurança negada pelo Capitão e seus liderados. De todas as 11 GLOs que coordenei, essa foi a mais crítica.

No pico do stress chegamos a trabalhar com a hipótese de empregar tanques e lançar tropas especiais de paraquedas para libertar os que se opunham à greve e eram impedidos de sair dos quarteis. Recentemente, no Fórum Exame 2019, afirmamos que uma polícia com licença para matar concedida pelas autoridades, torna-se moralmente corrupta. Cabendo a ela decidir quem irá morrer ou não, é evidente que os poderosos e ricos comprarão suas vidas, os fracos e pobres, não.

Chegando nesse estágio de degradação, uma polícia já não se distingue de uma milícia, autênticos justiceiros de aluguel. Disciplina, hierarquia e respeito à lei, bases constitutivas de toda força policial armada, deixam de existir. Clãs e grupos se formam sob a liderança de chefes paralelos aos comandos formais, sem nenhum controle. A opinião pública que chancela e aplaude a licença para matar, não faz ideia do monstro que ajuda a criar e que inexoravelmente se associará ao crime organizado.

Pois esse, ao contrário dos pés de chinelo, tem recursos para comprar sua intocabilidade. Tenho especial apreço pelos homens e mulheres policiais que nos fazem a segurança. São exigidos, mais das vezes ganham mal e vivem sob constante stress e riscos. Em respeito a eles, bons policiais, não podemos jamais ordenar-lhes algo que seja ilegal ou criminoso.

Combater o crime e reduzir a violência de modo sustentável exige respeito à lei, valores corporativos, boa formação de recursos humanos, inteligência policial, tecnologia, disciplina e hierarquia. Na licença para matar, as primeiras vítimas são os de sempre, em seguida a boa polícia e a nossa segurança. Aqueles que a aplaudem hoje, amanhã não perguntem por quem os sinos dobram…

*Raul Jungmann, ex-Ministro da Reforma Agrária, Defesa e Segurança Pública.


Raul Jungmann: Nós, cúmplices do crime organizado

Debate sobre segurança no País precisa chegar ao que se passa dentro do sistema prisional

O País registrou no dia 26/5 mais uma chacina no complexo penitenciário de Manaus, com um saldo mórbido de 55 mortos – quatro a menos que na ocorrida em 2017, na mesma capital. Naquele ano, ainda houve 59 mortes em presídios: 33 em Roraima e 26 no Rio Grande do Norte.

Ampliam essa tragédia humana uma política penal equivocada e a indiferença de uma população acuada pela criminalidade que, historicamente, vê essa política como justa e até positiva.

Pode-se compreender essa revolta da população, vítima diária do crime, porém jamais concordar com ela, pela lógica mais elementar. Trata-se, aqui, da substituição da racionalidade pelo sentimento de impotência, medo e frustração. O que não é compreensível mais é a resistência – ou inércia – em rever um modelo há muito diagnosticado como responsável pelo círculo vicioso que inverte o controle dos presídios, onde a vida do preso é garantida pelas facções criminosas, e não pelo Estado.

Um dos pontos centrais dessa distorção está na omissão na legislação das drogas, de 2006, que exime usuários de punição, mas endurece penas para traficantes – sem, no entanto, diferenciar o traficante do usuário.

Dessa forma, jovens que não respondem por crimes de sangue, ou hediondos, muitas vezes em grau primário de contravenção, são condenados à convivência com presos de alta periculosidade, engajados em facções às quais são obrigados a se filiar para ter a garantia de vida que o Estado não oferece.

A busca pela punição, e não da culpa, responde pelo porcentual de 40% de presos provisórios, não condenados, que se submetem às ordens das mais de 70 facções existentes no País. O expurgo verificado nas chacinas, portanto, alcança em sua maioria (55%) jovens, pardos e negros, de 18 a 29 anos, com baixa escolaridade, pouca renda e a maioria vinda de famílias desestruturadas (dados do Infopen, do Ministério da Justiça e Segurança Pública).

Em 85% das mais de 1,3 mil unidades prisionais administradas pelo poder público, mandam as facções criminosas de base prisional, já que todas as facções foram criadas dentro do sistema e de lá controlam o crime aqui fora, nas ruas das nossas cidades.

Hoje temos a terceira maior população carcerária do mundo, com 726 mil apenados, abaixo apenas dos EUA e da China. Entretanto, esses países estabilizaram ou veem declinar suas populações, enquanto a nossa cresce na ordem de 8,3% ao ano e, em 2025, será de 1,5 milhão, uma Porto Alegre dos dias de hoje.

Estes apenados se espremem em 368 mil vagas, para um déficit de 358 mil, enquanto 564 mil mandados de prisão permanecem em aberto. Apenas 15% dos presos estudam e 18% têm algum trabalho, logo, para a vasta maioria inexiste qualquer incentivo à ressocialização.

Aí residem, em boa parte, os índices de reincidência dos egressos, que variam de 40% a 70%, segundo pesquisas. Ou seja, ao enviar para o regime fechado os que cometeram delitos de menor impacto, a sociedade, a Justiça e as forças de segurança fazem uma aposta suicida na própria violência de que somos todos vítimas, pois na verdade recrutam jovens para PCC, Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, Bonde dos 40, Família do Norte, Guardiães do Estado, Sindicato do Crime e outras tantas facções mais.

O tamanho do equívoco está expresso nos números: são 465 mil presos por roubo, furto ou drogas (em larga maioria usuários), enquanto os homicídios totalizam 81 mil (11%) e bando ou quadrilha (2%), equivalentes a 14,5 mil apenados. Portanto, os crimes que mais agridem a sociedade e a vida representam 13% e os demais, 64%.

Só para dar uma ideia, o PCC tinha, segundo dados do Gaeco, 3 mil membros atrás das grades em 2014. Em 2016 já eram 13 mil e, hoje, são mais de 30 mil. Esse o resultado da nossa política prisional de superencarceramento, a um custo de R$ 2,2 mil ao mês (mais que um aluno do ensino fundamental ao ano) e cuja abertura de uma nova vaga custa aos cofres públicos R$ 60 mil.

Isso significa dizer que zerar o déficit atual demandaria R$ 21,4 bilhões e 360 novas unidades prisionais, além de mais vagas futuras no ritmo atual, até 2025, sem falar nos custos de manutenção.

Nada disso, contudo, é objeto de um debate nacional. Basta ver que não se falou sobre o tema nas últimas eleições. Todo o debate sobre segurança se concentra na violência nas ruas e vai até os portões dos presídios e penitenciárias, sem responsabilidade social e política com o que se passa além dos portões e nas celas. Ocorre que, como procurei demonstrar, a violência e a insegurança nas ruas e cidades é determinada do interior do sistema prisional, pelas facções que o controlam e os egressos que voltam para as ruas após lhes jurar fidelidade para não morrerem.

Quando exerci o cargo de ministro da Segurança Pública, tentei ir em direção contrária a essa força de inércia. Repassamos R$ 90 milhões ao Supremo Tribunal Federal para este, por meio do Conselho Nacional de Justiça, processar a identificação biométrica de toda a população criminal e seus registros, digitalizar os mais de 2 milhões de processos penais existentes e criar e fortalecer as centrais de penas alternativas.

Instituímos a primeira política nacional para egressos, firmamos convênios com os Ministérios da Educação e do Trabalho para levar educação e qualificação profissional às penitenciárias e firmamos convênio com a ONU Produtos e Serviços visando a acelerar a construção de unidades prisionais.

Passos importantes, mas não suficientes para dar cabo da nossa crise prisional. Enquanto não adotarmos uma política em que regime fechado seja para quem comete crimes contra a vida, hediondos, para traficantes ou líderes do crime organizado, não haverá vagas que deem conta nem dinheiro que chegue, pois esse modelo que aí está é falido e insustentável.

Fique claro que não se está propondo “passar a mão” na cabeça de criminosos ou uma política de laissez-faire penal. Muito pelo contrário. O que se pede é racionalidade diante do monstro que temos cevado por continuarmos todos, ainda que indiretamente, sociedade e Estado, cúmplices do crime organizado, da violência e da insegurança.

* Raul Jungmann foi ministro da Reforma Agrária, da Defesa e da Segurança Pública


Raul Jungmann é o entrevistado especial da sexta edição da Revista Política Democrática Online

Elucidar o caso Marielle, diante da captura de partes das instituições do Estado por uma aliança satânica entre o crime organizado, a política e a corrupção no Rio de Janeiro, é fundamental, avalia Raul Jungmann, em entrevista à Revista Política Democrática Online

“É fundamental desvendar o caso Marielle, mas ele pode ser apenas o fio da meada para algo mais amplo. Como imaginar que os dois suspeitos presos, profissionais com possível ligação com o “escritório do crime”, tenham passado três meses planejando o assassinato motivados apenas por “motivo torpe”, uma motivação de ódio?”, questiona Raul Jungmann, o entrevistado especial desta sexta edição da Revista Política Democrática Online.

» Confira a aqui a Revista Política Democrática – Edição 06

Jungmann, um dos fundadores do Partido Popular Socialista (PPS), atual Cidadania (23), já foi vereador, deputado estadual, deputado federal e ocupou diversos cargos importantes nos governos FHC e Temer, tendo sido Ministro da Defesa e Ministro da Segurança Institucional neste último.

Na entrevista à Revista Política Democrática Online, Raul Jungmann também comenta a situação atual do Rio de Janeiro por conta do crime organizado, particularmente as milícias, que dominam de 800 a 830 comunidades da capital fluminense e a sobre a intervenção federal, que durou 10 meses e foi tomada pelo então presidente Michel temer com base em um instrumento da Constituição de 88, que nunca fora testado antes.

A crítica situação da Venezuela também é um dos temas tratados por Raul Jungmann na entrevista. Para ele, “processos de transição de regimes autoritários para regimes democráticos têm de contar com as garantias de quem é oposição que, quando chegar ao governo, não vai punir quem agora é governo e,
efetivamente, vai deixar de ser”, avalia.

“Isso é uma coisa absolutamente central e, no caso da Venezuela, uma debilidade”, completa. De acordo com Jungmann, “nem a oposição tem condições de assegurar a incolumidade, a não perseguição, a integridade, seja o lá o que for, desses que estão no poder, sobretudo o estamento militar, e tampouco, do lado de lá, há a percepção de que quem está hoje fazendo oposição terá condições de assegurar isso”.

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O Globo: Jungmann diz que notícias falsas na greve são 'avant première' de fake news nas eleições

Segundo o ministro, houve uma quantidade "infinita" de fake news nas redes sociais

Por Letícia Fernandes e Manoel Ventura, de O Globo

BRASÍLIA - O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, afirmou na noite desta quarta-feira que as fake news que pipocaram durante a greve dos caminhoneiros, que chega ao décimo dia, serviram como uma espécie de "avant première" de como vai se desenvolver esse fenômeno de notícias falsas nas eleições de outubro.

Jungmann disse que, ao longo da paralisação, já houve uma quantidade "infinita" de fake news circulando nas redes sociais.

— Tivemos uma avant première do que será a fake news nas eleições. Uma quantidade impressionante, quase infinita de notícias falsas divulgadas nas redes sociais, e isso deve chamar atenção. No mundo inteiro as fake news foram parcela muito negativa nas eleições — afirmou o ministro da Segurança Pública.

Diante da avalanche de notícias falsas durante a paralisação da categoria, o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Nivaldo Luiz Rossato, assinou um comunicado para alertar a todos os integrantes da Força, militares e civis, sobre o crescimento de notícias "falsas e tendenciosas" que estão sendo divulgadas nas mídias sociais durante a crise de desabastecimento pela qual passa o país por causa da greve dos caminhoneiros.

No texto, Rossato aconselha seus subordinados a serem críticos antes de aceitar qualquer informação como verdadeira. Ele também a conselha a tropa a procurar os canais oficiais de comunicação.

"Há muita informação falsa ou tendenciosa sendo divulgada, e devemos ser críticos antes de aceitá-las como verdadeiras. Devemos nos manter atentos e atualizados, e para isso reforço que deem prioridade aos nossos canais institucionais de informação, pois será por meio deles que divulgaremos qualquer orientação complementar", afirma Rossato no comunicado divulgado ontem.

 


Luiz Carlos Azedo: Canetada decisiva

Jungmann tem a seu favor a confiança de Temer, boas relações com as Forças Armadas e trânsito junto aos governadores aos quais socorreu nas crises de violência mais problemáticas

Raul Jungmann assumiu o Ministério da Segurança Pública e logo demitiu o diretor da Polícia Federal, Fernando Segóvia. Foi uma demonstração de força, antes que se organizassem resistências às mudanças decorrentes da criação da pasta. Segóvia já estava no pelourinho, por sua atuação desastrada, mas ninguém esperava uma medida tão imediata e de tamanho impacto na estrutura que pretende comandar como ministro extraordinário. O demitido despachava diretamente com o presidente Michel Temer e tem amplo relacionamento político, principalmente junto à cúpula do Senado.

Vários problemas foram resolvidos com a canetada: primeiro, Jungmann assegurou o monopólio da interlocução com Temer; segundo, apaziguou a relação da PF com o ministro Luís Barroso, do Supremo Tribunal Federal, relator de inquérito que investiga o presidente da República; terceiro, limpou a área com a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que andava indignada com o diretor da PF por causa das tentativas de monitorar as investigações da Operação Lava-Jato; quarto, aproximou a nova pasta do ministro da Justiça, Torquato Jardim, ao nomear para o lugar de Segóvia o delegado Rogério Garollo, que o assessorava como secretário de Justiça; finalmente, acenou para os delegados da PF que a autonomia na condução das investigações não sofrerá interferência.

Segóvia era um fio desencapado, em quatro meses no cargo abriu várias frentes de conflito. Por ser relacionado com a cúpula do MDB, se movimentou com açodamento na política, o que foi seu maior erro. Sua intenção era mostrar serviço para o Palácio do Planalto, mas acabou virando uma presença incômoda na equipe do governo, como é comum acontecer quando o sujeito começa a ser chamado de macaco em casa de louças. Quando Jungmann tomou posse, a demissão já havia sido decidida. Temer estava sendo responsabilizado pelas ações de Segóvia.

Garollo era o candidato do ex-diretor-geral da Polícia Federal Leandro Daiello à sua própria sucessão. Apesar do apoio do ministro Torquato Jardim, teve a nomeação barrada pela cúpula do MDB, que via em Segóvia um delegado amigo e capaz de dar um freio de arrumação na Operação Lava-Jato. Garollo atuou no Comitê Executivo da Interpol, foi adido em Washington, diretor-executivo, diretor de Administração e Logística, superintendente em Goiás, além de chefe-adjunto em Pernambuco e da Divisão de Passaportes. Também chefiou o grupo de inteligência policial e fiscalização de drogas do estado de São Paulo, o que está em sintonia com a nova prioridade do governo.

A missão

A canetada de Jungmann pode ser comparada a uma tacada de golfe: olhar a trajetória da bola não vai modificar o seu curso. A direção do vento, os acidentes do terreno, a distância a percorrer, o ângulo de sua trajetória inicial, a velocidade, tudo isso tem de ser levado em conta antes da batida do taco na bola. A troca de comando na Polícia Federal determinará o sucesso de sua gestão à frente da nova pasta. Se escolheu a pessoa errada, não terá a menor chance de sucesso, porque o tempo é muito curto e uma nova mudança seria a confissão de fracasso.

Jungmann tem a seu favor a confiança de Temer, boas relações com as Forças Armadas e trânsito junto aos governadores aos quais socorreu nas crises de violência mais problemáticas. Transita bem no Congresso, o que facilitará a aprovação da medida provisória que criou o ministério. Mas não terá vida fácil, seja por causa da complexidade do problema, que exige um ataque eficaz às suas causas, seja devido à oposição, que assumiu a bandeira dos direitos humanos e acusa o governo de golpista e autoritário.

Ontem, seu discurso de posse incendiou os debates nas redes sociais, com esta afirmação polêmica: “Pela frouxidão dos costumes, pela ausência de valores, pela ausência de capacidade de entender o que é lícito e ilícito, passam a consumir drogas. Impressiona-me no Rio de Janeiro, onde vejo as pessoas durante o dia clamarem pela segurança contra o crime. E estão corretas. E, à noite, financiarem esse crime pelo consumo de drogas. Não é possível! São pontas que muitas vezes se ligam e precisam de estratégias diversas para serem devidamente combatidas”.

Dois debates vão esquentar na esteira das ações federais. Um deles é a legalização da produção, comercialização e consumo de maconha, como já acontece em outros países; outro, a legalização do aborto, que tem impacto direto e comprovado nos indicadores de violência e criminalidade, como ocorreu em Nova York. Os políticos, porém, se recusam a enfrentar as duas questões, que são muito polêmicas.


Raul Jungmann: Embraer/Boeing, comércio e geopolítica

Sejamos pragmáticos, nenhum país vende uma empresa estratégica e líder em tecnologia.

Durante anos o Brasil discutiu e utilizou instrumentos para desenvolver a sua indústria. Questões como tarifas, subsídios, cotas, margens de preferências e outros tantos mecanismos de proteção foram utilizados e debatidos.

No entanto, não nos demos conta de que um decisivo instrumento de política industrial que temos está ancorado na parceria estratégica entre a Força Aérea Brasileira e a Embraer. Foi por meio dos sucessivos projetos militares de desenvolvimento de novas aeronaves que a Embraer conseguiu dar saltos de produtividade e de tecnologia, gerando importantes dividendos para a economia brasileira.

Com o desenvolvimento do Bandeirantes e do Xavante a empresa aprendeu a estruturar a produção industrial seriada de aeronaves. Com o Xingu veio a tecnologia que permitiu o desenvolvimento dos sucessos comerciais Brasília e EMB-145.

Posteriormente o programa AMX com a Itália levou ao desenvolvimento dos sistemas fly-by-wire (comandos elétricos), e com a fabricação do Super-Tucano, juntamente com a modernização dos caças F-5, possibilitou o domínio da integração de softwares e o desenvolvimento de sistemas integrados de missão. A partir daí a Embraer deu novo salto e lançou toda a linha E-jet 170/190, cujo êxito comercial consolidou a nossa aviação regional.

A Embraer é, portanto, mais que uma empresa aeronáutica: é líder de uma importante cadeia global de valor, responsável pelo desenvolvimento e pela integração de importantes e complexos sistemas. É desenvolvedora do software de gerenciamento do espaço aéreo brasileiro, responsável pelo sistema de propulsão nuclear no submarino brasileiro, está no Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteira (Sisfron), no projeto do primeiro satélite geoestacionário nacional e é desenvolvedora de radares.

Largamente utilizado pelos países desenvolvidos, particularmente pelos Estados Unidos, o investimento em programas militares permite que as empresas desenvolvam tecnologias que não estariam disponíveis apenas com o esforço empreendedor do setor privado. Por meio dos projetos militares, as empresas contratam engenheiros, cientistas e inúmeros outros técnicos para o desenvolvimento de novas tecnologias e de novas capacidades. Com esse instrumento, o risco do empreendimento fica com o Estado, mas o benefício se espalha por toda a sociedade, que passa a contar com novos empregos, novos produtos e serviços, novas soluções e novos métodos produtivos, tornando o processo de inovação resultado de uma efetiva estratégia de desenvolvimento.

Esse mecanismo faz com que o principal instrumento de política industrial desses países seja o contrato militar de desenvolvimento, imune a contenciosos no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Por isso o dispêndio em defesa é mais do que simplesmente a aquisição de produtos militares. É um poderoso instrumento que pode impulsionar cadeias produtivas e fomentar a inovação em setores estratégicos.

Além disso, em geral produtos e serviços estão disponíveis para venda nos mercados, mas não as tecnologias, que são fortemente controladas pelos Estados soberanos, tendo como expoente as legislações de controle de exportações (Aitar) e de produtos e tecnologia de defesa dos Estados Unidos.

Analisando sob a óptica comercial, uma possível parceria entre a Boeing e a Embraer traria inúmeros benefícios. As empresas contariam com uma forte ampliação do portfólio de produtos, seria possível verticalizar partes importantes da produção, haveria ganhos de escala e as aeronaves brasileiras contariam com a força e o poder logístico e de comercialização da maior fabricante de aeronaves do planeta. A Boeing, por sua vez, passaria a contar com uma engenharia de excelência que surpreendeu o mercado aeronáutico ao produzir, em curto espaço de tempo e com mínimos problemas, duas novas aeronaves, a saber, o cargueiro tático KC-390 e a nova família de jatos comerciais E-2.

Com o mercado dobrando de valor a cada década e meia, nos próximos 20 anos algo entre 35 mil e 40 mil novas aeronaves serão entregues aos operadores comerciais – um mercado entre 5,5 e 6 trilhões de dólares. Do total, 70% das entregas serão em aeronaves de um único corredor e 40% terão como destino o eixo Ásia-Pacífico, ficando a América Latina com 8% das entregas. Com esses números, verifica-se que o mercado está em forte expansão. E com a concentração global no setor, não apenas na fabricação de aeronaves, mas também na cadeia de suprimentos, algumas barreiras à concorrência ficarão mais nítidas e sólidas.

Em perspectiva, a recente aquisição do projeto C-Series da Bombardier pela Airbus colocou ainda mais pressão no mercado. Com esse movimento a empresa americana viu a sua maior rival não apenas ampliar a sua linha de produtos para a categoria de 100 e 140 lugares, mas também inseriu sua operação dentro do mercado americano por intermédio da fábrica da Bombardier no Alabama.

Com efeito, o que tem dificultado o desejável jogo ganha-ganha entre Brasil e Estados Unidos são as questões de propriedade intelectual, de transferência de tecnologia e controle regulatório e legal por parte do Congresso americano. Isso porque, num modelo de subordinação de governança corporativa o desenvolvimento de novas capacidades militares e tecnológicas ficaria sujeito à legislação estadunidense. O que poderia implicar a perda de desenvolvimento de tecnologia e de conhecimento no Brasil, porque as relações que imperam nessa área não são regidas pelas leis de mercado, mas por estratégias geopolíticas e de defesa nacional.

Por isso precisamos ser pragmáticos. É importante que as partes compreendam os limites impostos e busquem formas construtivas de estruturar relações benéficas, de longo prazo, para todos os envolvidos.

Daí que nenhum país no mundo vende uma empresa estratégica e líder em tecnologia como a Embraer.
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*Ministro da Defesa