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Ranier Bragon: Salomões de botequim

Há coisas que não permitem caminho ao centro, mas uma enfática tomada de posição

Cresce no Brasil o discurso fantasioso em defesa de um centro político ponderado, sereno, conciliador, como forma de aplacar a terrível polarização ideológica entre direita e esquerda.

Entrevistas, artigos e debates pululam aqui e ali em apelo à temperança na vida pública. Tudo muito lindo, salvo alguns inconvenientes.

O primeiro é que a ideia se estrutura sobre uma premissa falsa. Bolsonarismo e petismo são adversários políticos, não polos no campo ideológico tendo ao centro o tal espaço a ser ocupado pelos salomões de botequim. O bolsonarismo de sinal trocado pressupõe um movimento igualmente autoritário, mas estatizante, antirreligioso, operário, socializante. O PT tem muitos integrantes que pensam assim, mas, a não ser na idiotia olavista, não há notícia de que tenha patrocinado uma experiência bolchevique de 2003 a 2016.

Mesmo que a premissa fosse verdadeira, a cantilena conciliatória embute condescendência com o inaceitável. É uma analogia para lá de surrada, deve já haver leis que a proíbam, mas como não lembrar do receituário Chamberlain-Halifax para lidar com Adolf Hitler?

Há certo tipo de coisa que não permite caminho ao centro, mas, sim, uma enfática tomada de posição. Qual será o ponto de convergência para a defesa da ditadura, por exemplo? Fechar a Câmara ou o Senado? Para que duas casas legislativas, não é mesmo? E para a tortura? Espancamento humanizado? Homofobia pode ter um meio termo? Pastor pode disseminar ódio aos gays em nome da liberdade religiosa?

Outra característica do movimento coluna do meio é a extensa fauna e flora de velhos políticos que tenta se vestir de cordeirinho de centro como forma de sobrevivência política.

Muito mais do que um centro, de um emcimadomurismo, o país precisa é de um norte. E, qualquer que seja ele, com coragem para combater de forma incondicional ideias e ações antidemocráticas, anti-humanistas e obscurantistas.


Ranier Bragon: O que de bom Bolsonaro produziu em seu 1º ano de governo?

Bem mais do que ações, as reações são a principal boa-nova deste 2019

Então, é 2020! Quer dizer, quase, o que nos permite uma última olhada neste impagável 2019.

O ano 1 do mandato de Jair Messias Bolsonaro irá merecidamente entrar para a história como um dos mais lastimáveis que já vivemos. Os ataques a pilares da democracia, à ciência, à história, à diversidade, à civilização e ao bom senso em geral encontraram um terreno fértil na idiotia das redes sociais e nos gabinetes do Executivo, em Brasília.

Como isso não é novidade pra ninguém, permito-me neste último dia de 2019 praticar exercício reverso, o de tentar vislumbrar o que de bom o bolsonarismo produziu no ano.

Seria muito mais divertido, é verdade, ficar apenas na lista precedida da advertência “contém ironia”.

Ou não foi espetacular a sonhada e esperada abertura da caixa preta do BNDES que qualquer um já podia acessar pela internet? Ou a pedagógica discussão nacional-carnavalesca sobre o golden shower? Ou a descoberta, pelo menos da minha parte, e aqui quase ironia não há, de como há mais sensatez do que podia imaginar em figuras como Alexandre Frota, Janaina Paschoal e o general Mourão? Ou, termino por aqui, a lista é interminável, a celebrável constatação de que, devido ao que passamos a saber, jamais poderemos voltar a usar, sem a advertência “contém ironia”, o termo “filósofo” associado a Olavo de Carvalho.

O que de bom o bolsonarismo produziu até aqui está, sem ironia, na reação provocada. Artistas, cientistas, educadores e tantos e tantos outros não se curvaram (tudo bem, alguns, sim). A homofobia virou, enfim, crime. O Judiciário e o Congresso, com todas as suas mazelas, barraram até o momento a institucionalização do retrocesso civilizatório —no caso de Câmara e Senado, conduziram inclusive coisas que o governo mais atrapalhou que ajudou, como a reforma da Previdência.

Coquetéis molotov foram e continuarão sendo jogados pelos talibãs da nova ordem. Resistir será a prova definitiva da solidez da nossa democracia e das nossas instituições.


Ranier Bragon: É hora de acordar para o descalabro no Ministério da Educação

Pasta tem que ser tratada como prioridade, não playground de terraplanistas irresponsáveis

Um ano se passou. É preciso ir direto ao ponto: até quando as pessoas responsáveis deste país e aquelas com voz de comando continuarão a fechar os olhos ou a bater palmas para o circo macabro de terraplanistas desvairados que tomou conta do Ministério da Educação?

Isso não é assunto de véspera de Natal, me desculpe, mas há coisas tão absurdas sendo feitas que não dá para ficar discutindo as uvas-passas.

A educação no Brasil —em situação crítica e com resultados lastimáveis, apesar de alguns avanços— foi dominada neste ano, no plano federal, por uma caravana de alucinados seguidores de um charlatão de filme B, tendo como resultado o que não poderia ser outra coisa. Como bem mostrou o repórter Paulo Saldaña, nesta Folha, caos administrativo, paralisia, baixa aplicação de recursos, falta de rumo, tudo embalado no discurso biruta de que estamos, pelo menos, livrando as criancinhas da ameaça gayzista e comunista.

Aliados aos lunáticos, os espertalhões de sempre aproveitam para ganhar ou ampliar boquinhas com a abertura das portas para o lobby do setor privado. Uma balbúrdia só.

Jair Bolsonaro mantém, ao que parece, a aposta na irresponsabilidade ao classificar de "excelente" a gestão de Abraham Weintraub, que goza atualmente as mais imerecidas férias de que se tem notícia e que se alguma coisa de excelente fez foi estimular vergonha alheia na internet.

Na transição, em 2018, insinuou-se um surto de bom senso quando foram cogitadas pessoas que, pelo menos, tinham algum conhecimento ou afinidade com o setor. Venceu, porém, a insensatez. Especula-se que Weintraub talvez perca o cargo na volta das férias —seria o segundo a sofrer a degola nesta gestão--, mas apenas para ceder a vaga para médico veterinário Onyx Lorenzoni, que deixaria a Casa Civil.

Tratar a educação como refugo de quem não tem mais o que fazer —governos anteriores também agiram assim— ou como abrigo de napoleões de hospício é brincar com coisa muito séria. É hora de acordar.


Ranier Bragon: A demagogia que cerca o fundão eleitoral

Financiar campanhas com dinheiro público não é imoral; modelo é que tem que ser revisto

Congresso e governo definem nos próximos dias quanto será sacado dos cofres públicos para financiar candidatos a prefeito e vereador em outubro do ano que vem.

Trama-se o escândalo nacional de tirar mais de R$ 2 bilhões da merenda das criancinhas para colocar na mão de uma súcia de vigaristas. Esse é o enredo contado e repetido, o que indica que bilionário também é o palavrório fiado em torno do tema.

A não ser que concordemos que a "transformação que o Brasil quer" não se dará pelas vias democráticas, é preciso saber que a democracia tem um custo, e ele não é pequeno.

Sinto desapontar o patriota da camisa verde e amarela, mas, mesmo que não houvesse fundão, esses R$ 2 bilhões possivelmente não iriam para a merenda das criancinhas. Poderiam ir pra qualquer coisa –incluindo o custeio da logística para Jair Bolsonaro acompanhar in loco as rodadas do Brasileirão– ou apenas para a redução do déficit fiscal.

Parece impossível a algumas mentes aparvalhadas entender que a correta aplicação de R$ 2 bilhões no financiamento das eleições –repito, a correta aplicação– trará muito mais benefícios às criancinhas. Uma democracia consolidada e inquestionável é melhor do que qualquer ideia surgida da parolagem autoritária e simplória do anti-tudo-isso-aí.

Registre-se que alguns execram o fundão, mas omitem malandramente o fato de que a carteira recheada e o autofinanciamento sem limite lhes darão léguas de vantagem. O dinheiro empresarial, proibido, irrigou a corrupção. As doações de pessoas físicas ainda são uma quimera.

É preciso, certamente, alterar a absurda regra de distribuição do fundo eleitoral. Não é admissível que dirigentes partidários controlem qual candidato será beneficiado e com quanto. Isso não pode mais ser alterado para 2020. Que o Congresso crie vergonha e aprove um modelo realmente democrático para 2022 –caso contrário, continuará jogando lenha na fogueira dos que veem a democracia e a política como a causa de todos os nossos problemas.


Ranier Bragon: O 2019 do religiosismo primitivo também é o do Jesus gay

Ano 1 de Bolsonaro realça o obscurantismo carola, mas também a reação contrária

Como informou meu colega Fábio Zanini, grupos religiosos iniciaram uma campanha de boicote à Netflix em decorrência do especial de Natal do grupo Porta dos Fundos, "A Primeira Tentação de Cristo".

Jair Bolsonaro representa o empoderamento de denominações evangélicas com legitimidade e notáveis méritos, mas que ainda insistem em empunhar bandeiras medievais e anti-humanistas, como a homofóbica.

Assim como no especial de Natal de 2018 —"Se Beber, não Ceie", que levou o Emmy internacional de melhor comédia do ano—, o atual filme do grupo humorístico é de uma iconoclastia sem dó nem piedade.

Deus é um grande tiozão f.d.p., José, um marceneiro atrapalhado, um dos três reis magos leva uma puta para o aniversário de 30 anos de Jesus, que, em linhas gerais, age como um adolescente de 15 e volta dos 40 dias no deserto tendo se descoberto gay.

É uma obra engraçadíssima, que remete ao genial e precursor "A Vida de Brian" (1979), dos ingleses do Monty Python, e satiriza também outras divindades, como Buda.

A Coalizão pelo Evangelho postou em seu site "dez princípios sobre a relação dos cristãos perante os episódios de Natal da Netflix e Porta dos Fundos". O de número 3 diz que devemos exaltar a bondade e a beleza em nossa cultura, mas odiar o que é mal. "O verdadeiro amor odeia." Logo após, o 4 prega haver "diferentes tipos de maldades e graduações de pecados", sendo a homossexualidade um dos "mais abomináveis".

Existindo céu e inferno, rogo a Deus a gentileza de, na hora derradeira, me encaixar no lugar exatamente oposto ao reservado para os que comungam de tais concepções.

Há 33 anos —a idade de Cristo, olhe só—, e por muito menos, José Sarney atendeu a uma pressão da Igreja Católica e proibiu a exibição de "Je Vous Salue, Marie", de Jean-Luc Godard. Foi o último filme censurado no Brasil até a atual onda conservadora. O ano 1 de Bolsonaro ressuscitou o fantasma. O Jesus gay e outros exemplos, porém, mostram que a reação tem sido à altura.


Ranier Bragon: Rap do privilégio negro

A semana marcada pela exposição vandalizada terminou ao som antirracista

Nos meus tempos de mocidade, nenhum fracasso era maior do que o sábado à noite à frente da TV. O tom azulado na face simbolizava toda a insignificância de não ter nenhuma vida para viver fora de casa.

Neste sábado (23), porém, o rapaz e a mocinha que talvez possam ter se sentido como eu tiveram um alento.

Durante muito tempo produziu-se humor esculhambando o "diferente" --o negro incluído, é claro. O Zorra Total (TV Globo) de sábado deu um exemplo de como o combate ao racismo, coisa muito séria, pode ser feito com humor de qualidade.

Isso na semana da Consciência Negra marcada pela encenação do deputado Coronel Qualquer-Coisa rasgando a charge sobre o morticínio de pretos e pobres pela polícia.

No humorístico da TV, dois brancos papeiam em um bar. "Se pudesse, eu nasceria negro. Hoje em dia tá moleza pros caras", diz um. "É cota, é Dia da Consciência Negra, quero saber quando é que vai ter o dia da consciência branca", responde o outro. Ocasião em que o garçom, negro, dá início ao Rap do Privilégio Negro.

Como o de não gastar com táxi --porque ele passa direto--, de se sentir protegido por ser monitorado nos shoppings pela segurança, de receber mesuras do guarda do banco já na porta giratória, de ser símbolo da "meritocracia" quando vira juiz ou médico, de não ser exatamente "bonita", mas "exótica", e de, por fim, ver o orgulho de brancos em "até ter um amigo como eu".

Os fofinhos do centro antipolarizante certamente verão só mais uma "polêmica" entre radicais e defenderão um meio-termo. E, infelizmente, não estarão fazendo piada.

A memorável conquista deste memorável Flamengo merece todas as honrarias, inclusive a paciência de Jó com o irritante sotaque (supostamente) carioca-descolado do cavalinho do Fantástico. Gabigol balançando as vergonhas para torcedores e atletas argentinos mostra, porém, como, às vezes, mais difícil do que saber perder é saber ganhar.