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Ranier Bragon: Avesso a jornalistas, Lira quer concretizar antigo projeto de encastelar presidentes da Câmara

Obra blinda políticos de passar pelo palco de marcantes acontecimentos históricos da política nacional

A decisão de Arthur Lira (PP-AL) de mudar de lugar o seu gabinete tem efeitos que vão além dos obstáculos ao trabalho diário de jornalistas. A obra-relâmpago materializa um antigo projeto de encastelar presidentes da Câmara em uma arquitetura distante dos olhos da imprensa e do escrutínio público.

Ao levar o gabinete para um local que fica ao lado e com acesso direto ao plenário —onde funciona hoje a sala usada por repórteres de vários veículos que fazem a cobertura jornalística da Câmara—, Lira e seus sucessores ficarão a salvo, em prejuízo da transparência, de uma rotina que está no centro de alguns dos acontecimentos mais marcantes da história do país.

Em suma, nem ele nem os vários políticos e outros integrantes da sociedade que orbitam ao redor dos presidentes da Câmara precisarão mais passar diante das câmeras, microfones, gravadores e perguntas de jornalistas ao transitar entre o gabinete e o plenário, durante as votações.

E a depender da obra —cujos custos e detalhes ainda permanecem sob sigilo—, nem mesmo quando entrar ou sair da Câmara.

Cheguei à Sucursal de Brasília da Folha em fevereiro de 2003, sendo deslocado diretamente para ser setorista da Câmara —no jargão jornalístico, o repórter responsável pela cobertura diária de determinada instituição.[ x ]

Com isso, em vez da Redação, o meu posto fixo de trabalho por vários anos seguintes foram os salões, corredores, gabinetes e plenários da Câmara, tendo no comitê de imprensa —o local que Lira quer transformar em seu gabinete— o ponto de apoio para escrever as reportagens.

Um local sem mesa ou cadeira, amplo e todo acarpetado em tom verde, porém, sempre foi mais especial e marcante, para o trabalho de jornalistas e para a história.

Situado no coração da Câmara, com de cerca de 2.000 metros quadrados, o Salão Verde é exatamente o local a ser evitado por quem quer se esconder do escrutínio público.

É um dos espaços de maior circulação da Casa, por onde passam deputados, assessores, funcionários, visitantes, lobistas, jornalistas, entre vários outros, e que se transforma em um formigueiro humano no dia de votações importantes.

O vaivém se explica porque no salão estão as entradas do plenário onde ocorrem as votações, além de ser ponto de passagem para quem entra e sai da Câmara.

Em uma das extremidades opostas à das entradas do plenário está o corredor que leva às salas da presidência da Câmara. Ou seja, o principal caminho para chegar ao gabinete pela manhã, para sair à noite, e para ir ao plenário e voltar durante as votações passa, necessariamente, pelo Salão Verde. E por jornalistas que lá fazem plantão em busca de informações.

Foi exatamente no Salão Verde que momentos cruciais da história do país se desenrolaram. Foi lá, por exemplo, que o então presidente da Casa Eduardo Cunha (MDB-RJ) anunciou à imprensa, em dezembro de 2015, a deflagração do processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Foi lá também que, meses antes, Cunha foi alvo de protesto com uma chuva de notas falsas de dólar jogadas em sua direção quando ele dava entrevista à imprensa. E foi lá que, por diversas e diversas vezes, foi questionado por jornalistas, ao chegar ou sair da Câmara, ao transitar entre seu gabinete e o plenário, sobre as contas que tinha na Suíça —com a insistência e a firmeza que exigem o jornalismo independente e o interesse público.

Foi no Salão Verde, também, que Severino Cavalcanti (PP-PE), presidente em 2005, teve que explicar por várias vezes as acusações de que recebeu um mensalinho de um fornecedor da Casa, escândalo que lhe custou o cargo.

Para além dos casos de corrupção, os presidentes da Câmara são abordados principalmente sobre assuntos que estão na ordem do dia no país, já que ocupam um dos cargos dos mais importantes —o que define a pauta de votações da Casa, sendo o segundo na linha sucessória da Presidência da República.

Rodrigo Maia (DEM-RJ), por exemplo, teve que ali dar explicações e ouvir pressões em uma infinidade de ocasiões nos seus quatro anos e seis meses como presidente da Casa, em votações importantes que conduziu, como a da reforma da Previdência.




O desejo de se esconder dos holofotes e de só responder a perguntas em ambiente controlado, no momento em que julgar conveniente, é um desejo antigo na Câmara, que remonta, pelo menos, à gestão de João Paulo Cunha (PT), que comandou a Casa a partir do momento em que me tornei setorista da Folha no local, em 2003.

Sob o argumento da comodidade, de ter um espaço mais amplo para trabalhar e alocar assessores, de ter a rapidez de entrar e sair do gabinete durante as votações, e por alegadas questões de segurança, vários presidentes desde João Paulo acalentaram a proposta que, agora, Lira desengaveta.

Na hora H, porém, nenhum deles tocou o projeto pra frente, até pelas restrições históricas e legais, já que a área atualmente usada por profissionais da imprensa foi projetada por Oscar Niemeyer (1907-2012).

Falei com alguns deles. "Eu aconselharia o presidente Arthur Lira a não fazer a mudança, a não alterar uma tradição da Casa. Poderia parecer retaliação contra a imprensa, o que não seria bom para o início de sua presidência em um momento tão difícil do país", afirmou Aldo Rebelo (SP), que comandou a Câmara pelo PC do B em 2005 e 2006.

Embora diga considerar essa uma decisão exclusiva do presidente da Casa e que veja como natural a reorganização de espaços, Marco Maia (PT-RS), que presidiu a Câmara em 2011 e 2012, afirmou ser contra qualquer encastelamento.

"O presidente da Câmara precisa falar, dizer o que ele está pensando e ouvir o que a sociedade está pensando sobre os mais variados temas, afinal de contas o Parlamento é uma representação da sociedade. Quanto mais contato, mais próximo, mais ouvir a sociedade, menos ele vai errar na condução do processo legislativo."

A Câmara afirma que a obra não irá afetar o tombamento histórico, a arquitetura e os conceitos elaborados por Niemayer porque, em suma, não serão feitas alterações estruturais de monta —serão movidas apenas divisórias, além de mudanças elétricas e hidráulicas e no sistema de ar-condicionado.

Apesar de possivelmente haver aquisição de mobiliário novo, pretende-se usar como mão de obra contratos atuais de manutenção predial. A expectativa é que o novo gabinete da presidência da Câmara esteja pronto em meados de 2021, afirmam assessores.

Lira sempre foi um político de bastidores, avesso não só a discursos em plenário como ao contato com jornalistas —até esta quarta-feira (10), por exemplo, o novo presidente da Câmara não deu nenhuma entrevista coletiva, fez apenas pronunciamentos em que perguntas não foram permitidas.

Um dos maiores símbolos históricos da necessidade de extrema transparência por parte dos detentores de cargo público se materializou nas palavras do juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Louis Brandeis (1856-1941), segundo quem a luz do sol é o melhor desinfetante.

Brasília tem um pôr do sol que inunda diariamente as redes sociais. Como esse abaixo, visto a partir do comitê de imprensa da Câmara. O exato lugar que Lira quer ocupar com objetivos que destoam da célebre frase do juiz norte-americano, dita há mais de cem anos.

Pôr do sol em Brasília, visto do comitê de imprensa da Câmara dos Deputados
Pôr do sol em Brasília, visto do comitê de imprensa da Câmara dos Deputados - Camila Mattoso/Folhapress

Ranier Bragon: Augusto Aras vai matar essa no peito?

Escolhido por Bolsonaro após cortejá-lo, procurador-geral chega à sua hora decisiva

Augusto Aras foi alçado à chefia do Ministério Público desprezando o apoio dos colegas e optando por algo que se mostrou bem mais eficaz, um vergonhoso beija-mão. Agora, o procurador-geral da República chega ao seu teste de fogo.

Desenvolve-se em Brasília um teatro. Jair Bolsonaro tenta emplacar a versão de que na reunião ministerial de 22 de abril não manifestou intenção de interferir na Polícia Federal para proteger a ninhada. Contra suas próprias palavras, ações, regras palacianas e a lógica em geral, fala que queria interferir era na sua segurança pessoal. Uma história que faz a Operação Uruguai de Collor, de quase 30 anos atrás, parecer ter sido bolada em Harvard.

O teatro dos parlapatões é completado por generais —oriundos de uma corporação que tanto preza a verdade e a honra— se prestando ao patético papel de sustentar o que sabem ser uma mentira. E em prol de uma família cuja palavra não vale absolutamente nada.

Caberá a Augusto Aras decidir entre a denúncia e o arquivamento.

Suas manifestações nos autos, até agora, são uma lástima. Superando até os advogados do presidente, ele é a favor de que a maior parte da reunião do dia 22 fique nas sombras. Defende, inclusive, interesses de ministros que, ao que parece, pediram a volta de Torquemada para dar cabo de STF, governadores e prefeitos. Para Aras, há ameaça de violação da "justa expectativa" dessas doces almas de que proferiam barbaridades só para um petit comité. Como se ali não estivessem reunidos ministros e um presidente, mas apenas inocentes arruaceiros tratando da taberna que iriam quebrar no dia seguinte.

Aras também manifestou preocupação de uso da reunião "como palanque eleitoral precoce das eleições de 2022". O que cargas d'água ele tem a ver com isso, eis aí um mistério. Petistas afirmam que Luiz Fux só foi indicado ao STF porque prometeu matar no peito o mensalão, o que ele nega e o que, na prática, não ocorreu. A bola foi lançada ao procurador.


Ranier Bragon: O direito da direita de jair se arrependendo

É observado o desenvolvimento de anticorpos em parte do conservadorismo nacional

A saída de Sergio Moro do governo acelerou o movimento de parte do conservadorismo brasileiro de reconhecer a terrível derrapada que deu ao se associar a Jair Bolsonaro.

Nenhum antipetismo poderia justificar isso. A confiança de que as instituições e o peso do cargo iriam dar prumo à coisa se revelou uma belíssima de uma aposta furada. Poucos tiveram a hombridade do tucano Alberto Goldman (morto em 2019), que, diante do inominável, declarou voto em Fernando Haddad (PT).

Não se tratava de PT, mas de democracia, razão e sensibilidade. E se tem alguma coisa pela qual Bolsonaro jamais poderá ser cobrado é de ter escondido quem ele realmente era.

Por isso, alguns bradam aos que buscam jair se arrependendo que se ajoelhem no milho e peçam desculpas —que não serão aceitas. O que também se revela um erro, pois há uma direita e um conservadorismo relevantes no Brasil, e eles têm todo o direito democrático de serem representados por políticos com o mínimo de preparo e inteligência, que respeitem as instituições, a ciência e os pilares da civilização e do humanismo —não por um bando de lacerdistas de pré-primário, que de Lacerda só herdaram a inclinação ao golpe.

Em autocrítica publicada na Gazeta do Povo, um dos dirigentes do MBL, Renan Santos, diz que a direita derrubará Bolsonaro. "Se queremos reconstruir a direita democrática e torná-la politicamente viável, precisamos, antes de tudo, torná-la democrática", afirma, criticando o populismo e o culto à personalidade e defendendo o diálogo —em vez das brigas— com outros campos políticos. "Precisamos amar a política, a mais nobre das ocupações humanas, e não destruí-la, como muitos julgavam ser necessário."

Cobre-se o tributo dos que se aventuraram na nau dos insensatos —incluindo MBL e (principalmente) Moro. Mas não interditem a tentativa de parte da direita de se desgarrar daquilo que de mais repugnante surgiu na política brasileira nas últimas décadas. A democracia só tem a ganhar.


Ranier Bragon: Bolsonaro exercita seu eterno sonho de dar uma quartelada

Tanques não podem mais escrever a história política deste país

A paciência de Jair Bolsonaro acabou, ele está em seu limite, tem ao seu lado as Forças Armadas e fará cumprir, a qualquer preço, a sua interpretação da Constituição.

As palavras proferidas na mais recente algazarra golpista, no domingo (3), têm como objetivo intimidar não só Alexandre de Moraes, que dificultou sua intenção de interferir em investigações da PF, mas qualquer ministro do STF que possa lhe causar embaraços. Como Celso de Mello, que comanda a apuração das acusações do ex-ministro Sergio Moro.

Como suporte às bravatas, o presidente ameaça mover o sonho de toda uma vida de delinquência sem punição: uma quartelada a seu favor.

A ameaça de ruptura institucional foi coroada no domingo pela violência de covardes que se escoram na proteção dos bandos para atacar alvos pelas costas. Os presidentes do próprio Supremo, Dias Toffoli, e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), acoelharam-se, mudos.

Como informou a colunista Mônica Bergamo, Toffoli até se irritou, mas com a decisão dos colegas. Davi foi ao Planalto nesta segunda, mas apenas para exercitar a sua alma de eterno baixo-clero e lengalengar a necessidade de harmonia.

E de pusilanimidade em pusilanimidade a vergonha vai sendo escrita.

Qualquer ministro que se acovarde neste momento não merece a toga que veste. Ministros do STF não são deuses. Para conter eventuais erros e abusos, estão lá o colegiado, a reação abalizada da sociedade civil e, até, o impeachment. Jamais a intimidação ou a desobediência.

Qualquer militar também não merece a farda que veste se der suporte a ameaças de ruptura feitas por um descapacitado que demonstra não ter condições nem de ser síndico do Vivendas da Barra. Militares são agentes do Estado brasileiro, não atores políticos ou capachos de tiranetes. Honrem a história de gente como o marechal Henrique Teixeira Lott. Tanques não podem mais escrever a história política deste país, por mais que celerados assim o desejem.

*Ranier Bragon é repórter especial em Brasília, está na Folha desde 1998. Foi correspondente em Belo Horizonte e São Luís e editor-adjunto de Poder.


Ranier Bragon: O bolsonarismo está nu

Sob a máscara de Jair Bolsonaro sempre esteve Jair Bolsonaro

O bolsonarismo raiz, fanatizado, sempre tentou esconder seu verdadeiro rosto. Essa gente que tem aversão a pobres, exala ódio, ignorância, racismo, misoginia, homofobia, xenofobia, autoritarismo e um sem-fim de ignomínias sabia que não podia sair ao sol com sua pavorosa face sem algum manto de cobertura.

Com isso, pilantras os mais variados, que não pensariam duas vezes em embolsar o troco a mais no caixa de supermercado, passaram a propagar a sua arenga anticorrupção.

Todos de braços dados no conhecido último refúgio dos canalhas, em uma orgia verde e amarela de uma devoção tão incontida à pátria que só lhes faltava deitar ao chão e enfiar torrões de terra goela adentro. E, nesse teatro, os canastrões da própria vida buscavam convencer o mundo e a si mesmos da sua nobreza de sentimentos.

Mas agora a pornografia está explícita. Bolsonaro está nu. E o bolsonarismo terá que defender seu asqueroso modo de pensar a vida sem a desculpa esfarrapada de que quer um Brasil livre de corrupção.

A mamata acabou. Não necessariamente pela saída de Sergio Moro. O xerife da Lava Jato tem sérias contas a prestar com a história por ter pulado na nau bolsonarista logo após a eleição, quando nenhum adulto com mais de três neurônios poderia alegar inocência sobre quem era Jair Bolsonaro e o que ele representava.

Refiro-me especialmente a dois outros fatores: o primeiro, a aliança que o capitão busca agora com o centrão, que há anos ele tratou como coisa mais suja do que pão que o diabo amassou com o rabo. Velha política corrupta. Agora querem ser um só. Saem os bonecões infláveis de Moro super-homem e entram os de Roberto Jefferson, o vingador. O segundo, a escancarada tentativa de manietar a Polícia Federal em nome de interesses inconfessáveis.

Outra vez recorro a João Montanaro e sua charge em que Scooby-Doo e sua turma revelam a real face do presidente. Sob a máscara de Jair Bolsonaro sempre esteve Jair Bolsonaro. Todos sabiam disso.


Ranier Bragon: É correto chamar Bolsonaro só de irresponsável?

Como qualificar quem despreza a vida humana em nome da sobrevida política?

Se hoje o presidente da República batesse à porta das pessoas sugerindo estricnina para tratar cólicas, possivelmente não seria removido em uma camisa de força. Provavelmente surgiria aí um debate nacional. Especialistas de coisa nenhuma sairiam dos bueiros para adulá-lo, o bom senso se insurgiria, carreatas de novos e velhos ricos cafonas enfeariam as ruas e estaria instalada mais uma balbúrdia.

A atual pandemia já matou mais de 100 mil pessoas, com uma média subestimada de cerca de 100 mortos por dia no Brasil. Brincar com isso, desprezar isso, é só irresponsabilidade?

Entre um passeio e outro à padaria, Bolsonaro se insurge contra o mundo e busca sabotar o trabalho do ministro que se recusou a aderir ao batalhão dos paspalhos.

Em um caso que envolve vidas, muito mais de cem mil, você prefere estar ao lado da ciência, do bom senso, da razão ou ao lado da ala cafajeste do empresariado e de gente como o profeta Osmar Terra, que há alguns dias disse que a Covid-19 mataria menos gente do que a gripe sazonal do Rio Grande do Sul. Era uma aposta corajosa, que, em suas próprias palavras, poderia desmoralizá-lo por completo —e nesse ponto não podemos negar que ele estava coberto de razão.

Poupem-me da suposição de que Bolsonaro esteja preocupado com os miseráveis. Em toda a sua longa carreira política,só se lembrou de pobres para defender a sua esterilização em massa. O presidente nem esconde que seu real temor é ser culpado pela debacle econômica, levando seu governo, de vez, para o beleléu.

Não há, em um momento como esse, "ninguém em sã consciência preocupado com popularidade", assegurou nesta segunda (13) Sergio Moro, mestre em dizer pouco falando muito e em dizer muito não falando nada.

Embora também odeie artigos que deixam as perguntas no ar, transfiro ao leitor e à leitora a conclusão.É correto chamar Bolsonaro só de irresponsável? Como diziam e dizem colegas muito mais gabaritados do que eu, cartas à Redação.


Ranier Bragon: Navio-fantasma

Bolsonaro criou para si uma escolha de Sofia

Há bastante tempo, ninguém mais pode se dizer desavisado, apanhado de calças curtas em um território envolto em sombras. Do batedor de carimbos até o mais alto lustra-botas, seja no palácio, seja em qualquer outro lugar, inclusive na imprensa, todos já sabem muito bem a quem servem e o que tudo isso representa.

Resta-nos perguntar: mesmo que não sejam nem de longe inocentes, como reagirão, no caso de demissão de Luiz Henrique Mandetta, aqueles do governo que ainda tentam vender um verniz de sensatez e seriedade?

É certo que, sob uma lupa rigorosa, o ministro da Saúde pode não ter tido um desempenho tão bom assim. Mas o simples fato de não agir como um paspalhão —a exemplo do colega de Esplanada que "cuida" da Educação— o torna quase um Oswaldo Cruz dos dias atuais.

No mês passado, esta Folha ponderou, em editorial, que o melhor a fazer na ocasião seria deixar Bolsonaro isolado, falando e fazendo asneiras sozinho, enquanto os capacitados lidavam com o novo coronavírus. Mas o presidente quer retomar o leme do seu navio-fantasma.

Nesta segunda-feira (6), noticiou-se que Mandetta seria, enfim, demitido. A simples ameaça gerou panelaços e mobilização de servidores em frente ao ministério.

De acordo com o Datafolha, uma robusta maioria popular aprova o trabalho do ministro e o isolamento social defendido pela pasta e pela quase totalidade da ciência e das lideranças mundiais.

Por temor da reação popular ou pressão de auxiliares, até o início da noite não havia confirmação de que Bolsonaro tenha tido peito para escantear o subordinado. O que se sabe é que esse Salomão dos trópicos conseguiu criar para si uma escolha de Sofia: ou mantém Mandetta e passa o recibo de sua completa desmoralização e perda de autoridade ou o demite —e põe sobre suas costas e nas dos apoiadores todo o peso da responsabilidade de tratar a vida e morte de milhões de pessoas com base em achismo de botequim.


Ranier Bragon: Papel passado

Bolsonaro preferiria que relação com miliciano estivesse enterrada

"O então tenente Adriano foi condecorado em 2005. Até a data de sua execução, 9 de fevereiro de 2020, nenhuma sentença condenatória transitou em julgado em desfavor do mesmo." A declaração assinada por Jair Bolsonaro foi elaborada ao lado de seu chefe da comunicação, Fabio Wajngarten, dentro do carro presidencial parado por 38 minutos na entrada do Palácio da Alvorada, na noite de sábado (15). Ela integra nota em resposta a um tuíte do governador Rui Costa (PT-BA).

A aparente trivialidade da tarefa esconde um marco nessa história, toda ela capaz de arrepiar os cabelos de qualquer um que os tenha.

>Horas antes, Jair e Flávio Bolsonaro falaram pela primeira vez sobre a morte do ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega. "Querem me associar a alguém por uma fotografia, uma moção", esbravejou o presidente, em referência às honrarias dadas pelo filho ao PM. Bolsonaro talvez tenha se esquecido, mas em 2005 ele contou na Câmara ter ido ao julgamento do "brilhante oficial" Adriano. Afirmou, inclusive, ter descoberto uma linha de defesa que nem o advogado do PM havia imaginado na época.

A partir de 2010, a sogra e a mulher de Adriano foram para o gabinete de Flávio. Quem mandou contratar? A repórter Ana Luiza Albuquerque fez a pergunta, já que Bolsonaro havia admitido ter mandado Flávio homenagear Adriano. "Vamos encerrar essa conversa aqui." Outra pergunta é: Quem mandou exonerar as duas, Fabrício Queiroz —pivô do caso das rachadinhas— e seus familiares no fim de 2018, quando a família se deu conta de que o zé-ninguém da Câmara iria mesmo virar presidente? Os filhos entraram para a política pelas mãos do pai, que sempre coordenou seus gabinetes.

Nenhuma das 2.543 pessoas mortas por policiais só em São Paulo e no Rio, em 2019, mereceu a deferência dada ao ex-capitão do Bope, suposto chefe de milicianos e matadores de aluguel.

Involuntariamente, a nota deste sábado autentica em cartório uma relação que Bolsonaro preferia ver morta e enterrada.


Ranier Bragon: As bolsonaradas de Fux e Alcolumbre

Ministro e senador dão sua particular contribuição ao enxovalhamento das instituições

Em tempos de descrédito das instituições, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e o futuro presidente do Supremo, Luiz Fux, acharam por bem se apegar a mesquinhos interesses corporativos para dar as suas bolsonaradas.

Autor de algumas das decisões mais desarrazoadas do atual colegiado —como as de caráter liminar que garantiram por quatro anos o indiscriminado pagamento de auxílio-moradia a juízes até que eles ganhassem um reajuste salarial—, Fux suspendeu por tempo indeterminado a implantação do juiz das garantias. A lei foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República, aqueles que, pelas regras republicanas, detêm tal atribuição.

A Fux caberia promover, preferencialmente de forma colegiada, a análise do caso à luz da Constituição. Em vez disso, preferiu inovar, ganhando o aplauso da Lava Jato e das associações de magistrados.

Já o presidente do Senado ameaça não só estabelecer um rito procrastinatório para retirar o mandato de parlamentares cassados pelo Tribunal Superior Eleitoral como até se insurgir contra uma decisão judicial.

A Câmara restabeleceu na semana passada o mandato do deputado Wilson Santiago (PTB-PB), acusado de embolsar dinheiro de obras contra a seca. Um ato claramente corporativista, mas que respeita o entendimento estabelecido pelo próprio STF. A corte decidiu em 2017 que cabe ao Legislativo a palavra final sobre o afastamento de parlamentares contra os quais não há condenação.

Alcolumbre quer forjar ritos e aventar opções para uma situação em que a única atitude legal é a declaração da perda do mandato da senadora Juíza Selma (PODE-MT), condenada por caixa dois eleitoral.

Em qualquer momento histórico, as atitudes de Fux e Alcolumbre seriam motivo de constrangimento institucional. No atual, em que justamente Supremo e Congresso são apontados, e com razão, como freios aos arroubos antirrepublicanos vindos do Palácio do Planalto, elas são nada menos do que inadmissíveis.


Ranier Bragon: Mensagem de Bolsonaro mostra pauta de costumes restrita às redes sociais

Texto mantém foco na economia e não aborda o que move o bolsonarismo raiz

Um fantasma rondava o Brasil no final de 2018. A eleição de Jair Bolsonaro e a vitória da onda conservadora também na escolha dos novos deputados federais e senadores representavam uma perspectiva de anos sombrios nos tapetes verdes e azuis do Congresso Nacional.

O Escola sem Partido, por exemplo, despontava com força aparentemente irresistível a sugerir uma era em que o “Deus acima de todos” seria mais do que uma mera retórica de palanque.

O ano de 2019 no Legislativo teve a economia como prioridade. A depender dos sinais dados nesta segunda-feira (3) na solenidade de retomada dos trabalhos do Congresso, 2020 irá pelo mesmo caminho.

Jair Bolsonaro não terá, tão cedo, se é que terá algum dia, espaço para emplacar no Congresso e no Judiciário a sua chamada “agenda de costumes”, que mobilizou sua campanha e ainda pauta aliados no Executivo e, é claro, nas redes sociais.

É o que se depreende da mensagem de 2020 enviada por ele aos parlamentares. O texto de introdução é recheado de autoelogios e de promessas totalmente desconectadas da realidade. Tais como a de que o viés ideológico deixou de existir na política externa. Ou de que o governo trabalha pela educação de qualidade, pela redução da pobreza, da desigualdade e pela sustentabilidade ambiental, tudo isso já resultando em um país mais fraterno.

Noves fora o palavrório à napoleão de hospício, o foco continua na área econômica —reforma tributária e outras propostas—, sem uma única menção ao Escola sem Partido e aos demais componentes da pauta obscurantista do bolsonarismo raiz. Menos do que um sinal de que o presidente abandonou seus ideiais de campanha, o texto representa mais a consciência de que não houve guarida a essa maçaroca no Congresso e no Judiciário, em 2019, e, pelo menos no futuro próximo, parece que assim continuará a ser.

Não sem razão o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), procurou frisar, em sua fala, a salvaguarda “inflexível, firme e vigilante” das garantias fundamentais da Constituição de 1988.


Ranier Bragon: Bolsonaro deveria explicar em uma agência do INSS a sua política de gestão pública

Apagões pipocam aqui e ali na máquina pública; não há Titanic que suporte tanta competência

A máquina pública é formada por tal engrenagem complexa e impermeável a solavancos que, digamos, mesmo que amanhã assuma a cadeira presidencial o Marinheiro Popeye, o país continuará a sua marcha. Ocorre que tudo tem limite.

Lentamente, a incompetência patente, a total falta de ideia sobre o que fazer, o brancaleonismo piorado pela prepotência, o pelotão da ignorância travestido de exército da salvação, enfim, tudo isso, misturado, haveria de cobrar a devida fatura.

Jair Bolsonaro, que gosta de dar voltinhas em Brasília para comer pastéis, visitar feiras, bem que poderia aproveitar algum desses momentos em que não tem, ou não sabe, o que fazer —e eles parecem ser muitos— e dar um pulinho nas agências do INSS. Lá não vendem pastéis, mas foi em uma delas que o repórter Bernardo Caram encontrou o trabalhador rural Paulo Novais de Jesus, que disse aguardar há três meses a liberação de um auxílio-doença. Devido a isso, tem feito incursões na mendicância. “Tive que perder a vergonha de pedir comida para a família.” Ao todo, 1,3 milhão de brasileiros estão em situação similar, no rol de vítimas de apagões que pipocam aqui e ali na máquina pública que Paulo Guedes quer pôr abaixo para o bem geral da nação.

Além de ouvir a história dessa gente, Bolsonaro poderia aproveitar a oportunidade e explicar a eles o que não deu certo na sua promessa de só levar os melhores, os mais competentes, para a sua equipe. Guedes poderia ajudá-lo a responder essa.

Além do cenário de deus-dará no INSS, os melhores estão à frente da balbúrdia que inferniza estudantes e sucateia a educação, órgãos do meio ambiente e o programa de casas populares, que retoma as filas e diminui a cobertura do Bolsa Família, que gera panes técnicas as mais variadas e que troca políticas públicas baseadas em fatos e ciência por bênçãos do caderno da tia-avó.

Por mais resiliente que seja esse trambolho chamado máquina pública, não há Titanic que suporte por muito tempo tanta competência.


Ranier Bragon: Um Oscar para Eduardo Cunha

Subestimado em 'Democracia em Vertigem', ele merecia salvo-conduto para ir a Los Angeles

Habita Bangu 8 a nossa grande aposta para, enfim, faturar um Oscar. Personagem algo lateral em "Democracia em Vertigem" —concorrente a melhor documentário longa-metragem—, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB) está a merecer o devido crédito.

Com total domínio de cena, ele não só deu aval ao pedido de impeachment de Dilma Rousseff, como pode parecer ao gringo que assista ao documentário, mas conduziu de forma obsessiva todos os preparativos que culminaram na autorização da abertura do processo, em 17 de abril de 2016. Sim, a célebre sessão em que o até então inexpressivo Jair Bolsonaro exaltou um torturador e em que Cunha clamou aos céus por misericórdia à nação.

Daí em diante, não havia como retroceder. Foi jogo jogado. Dilma foi destituída, e Deus não teve misericórdia de ninguém, muito menos de Cunha, que foi parar na prisão, onde está há há mais de três anos.

Além do imerecido papel dado ao ex-deputado, o documentário também tem ingenuidades e alguns delírios esquerdistas, como o de sempre culpar a imprensa pelos males do mundo —quando convém, claro. Ao usar a gravação em que Romero Jucá fala em "estancar a sangria" provocada pela Lava Jato, por exemplo, a diretora Petra Costa narra ter sido "vazado um áudio" que lançou "luz" sobre o que ocorria nas sombras da República. Esqueceu-se apenas de dizer que o áudio foi revelado, olhe só, pela maldita imprensa golpista —no caso, em reportagem de Rubens Valente, nesta Folha.

Apesar disso, "Democracia em Vertigem" tem muita qualidade técnica, registros históricos de bastidor e, talvez o maior mérito, foge da comum armadilha de forjar equilíbrio onde há tudo, menos equilíbrio. A vida não é assim. O filme tem lado, e pode ser o mais condizente com a história toda. Seja como for, a Cunha deveria ser dado um salvo-conduto para ir a Los Angeles, onde poderia repetir as súplicas por misericórdia, agora em prol do mundo. Quem sabe Deus ouvisse dessa vez.