questão indígena

Durante terceiro ano de Bolsonaro, 176 indígenas foram assassinados no Brasil

Gabriela Moncau*, Brasil de Fato

A realidade que notícias esparsas ou a vivência local já demonstravam é agora, mais uma vez, comprovada em números. Os ataques aos povos originários no Brasil estão numa crescente. Apenas durante o terceiro ano do governo de Jair Bolsonaro (PL), 176 indígenas foram assassinados no país. O número é praticamente igual ao de 2020, quando 182 indígenas perderam a vida de forma violenta.

Lançado nesta quarta-feira (17), o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, publicação anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), registra 355 casos de violência contra indígenas ao longo de 2021. É o maior índice desde 2013, quando o método de contagem foi alterado.  

Em 2020 foram 304 casos – que, além de mortes, somam ameaças, lesões, racismo, violência sexual e tentativa de assassinato.  De um ano para o outro, portanto, houve um aumento de 51 episódios deste tipo. "É um grau de violência que a gente ainda não tinha visto dessa maneira", resume Lucia Helena Rangel, assessora antropológica do Cimi. 

Seguindo o mesmo padrão desde que Bolsonaro assumiu a presidência, os estados que registraram o maior número de assassinatos de indígenas foram Amazonas (38), Mato Grosso do Sul (35) e Roraima (32). 

Responsabilidade do Estado 

"O contexto geral de ataques aos territórios, lideranças e comunidades indígenas está relacionado a uma série de medidas, por parte do poder Executivo, que favoreceram a exploração e a apropriação privada de terras indígenas", avalia o relatório do Cimi.  

Se a paralisação da demarcação de terras indígenas (TI) foi uma diretriz inalterada ao longo de todo o governo Bolsonaro, ao longo dos anos as consequências desta política indigenista oficial representaram, de acordo com o relatório, "o agravamento de um cenário que já era violento e estarrecedor".

Pelo sexto ano seguido, o Cimi registrou um aumento das "invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio" em TIs. Em 2020 foram registradas 263 invasões aos territórios dos povos originários, enquanto em 2021 foram 305, um crescimento de 16%. 

"Vemos máquinas enormes, grupos armados, tiroteios e assassinatos por trás do garimpo de extração de ouro e de alguns minérios como a cassiterita, praticados de forma violenta. Essas invasões têm aumentado sistematicamente, sobretudo na região amazônica. Mas também em outras regiões onde há minério", relata Rangel. 

Cenário premeditado 

A situação não é fruto apenas de omissão estatal, mas da intencionalidade dos poderes Executivo e Legislativo. Entre as ações do Estado que ativamente prejudicam os povos indígenas, o relatório destaca a Instrução Normativa 09, publicada pela Funai em 2020, que autorizou a certificação de propriedades privadas que estão dentro de terras indígenas não homologadas.  

Em 2021, a Instrução Normativa Conjunta da Funai e do Ibama foi além: permitiu a exploração econômica de terras indígenas por organizações de "composição mista" entre indígenas e não indígenas. 

Além disso, está em tramitação o conjunto de Projetos de Lei (PL) apelidado pelo movimento indígena como Pacote do Fim do Mundo. Fazem parte dele, por exemplo, o PL 490/2007, que inviabiliza novas demarcações e o PL 191/2020, que prevê a exploração de mineradoras em TIs.  


Em um ano, invasões e explorações ilegais de terras indígenas aumentaram 16% no Brasil / Marina Oliveira / CIMI

"Esse conjunto de ações deu aos invasores confiança para avançar em suas ações ilegais em terras indígenas. Garimpos desenvolveram ampla infraestrutura, invasores ampliaram o desmatamento de áreas de floresta para a abertura de pastos e o plantio de monoculturas, e caçadores, pescadores e madeireiros intensificaram suas incursões aos territórios", descreve o documento. 

A luta contra a aprovação deste pacote e também do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF) está no centro das reivindicações indígenas nos últimos anos, tendo impulsionado massivas mobilizações nacionais, como as que levaram, em 2021 e 2022, cerca de sete mil indígenas para Brasília.  

A (não) demarcação 

Conforme levantamento do Cimi, 62% das 1.393 terras indígenas no país estão com pendências para a sua regularização. Entre estas, que somam 871, são 598 as que, apesar de reivindicadas por povos indígenas, não apresentam qualquer providência do Estado para começar o processo de demarcação.  

Entre os conflitos por terra, o relatório salienta também a recorrência de terras indígenas onde há a sobreposição de Cadastros Ambientais Rurais (CAR). Ou seja, certificações de propriedades privadas em cima de territórios tradicionais. "Em alguns casos, como nas TIs Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, e Barra Velha, na Bahia", ilustra o documento, "houve a tentativa de venda de 'lotes' de terra por meio de redes sociais".

O mapeamento das formas de violência a que estão submetidos os povos indígenas no Brasil destaca, ainda, a queima de casas de reza - espaços primordiais para a espiritualidade, a resistência e a manutenção das tradições de diversas comunidades indígenas.  

Em 2021, foram registrados quatro casos contra os povos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul e um contra o povo Guarani Mbya no Rio Grande do Sul. A despeito da destruição, por meio de arrecadações voluntárias e mutirões comunitários, as casas de reza têm sido reerguidas.

Povos isolados 

A situação dos povos em isolamento voluntário também está se agravando. Esse isolamento é garantido por portarias federais mas, em alguns casos, elas sequer vêm sendo renovadas. A TI Jacareúba-Katawixi, no Amazonas, é uma das áreas que está sem proteção. A portaria que garante o isolamento expirou em dezembro de 2021. Em outros casos, as portarias foram renovadas, mas apenas pelo período de seis meses.

"As invasões atingiram pelo menos 28 TIs onde há presença de povos indígenas isolados, colocando a própria existência desses grupos em risco", alerta o Cimi.  

O relatório, disponível no site do Conselho, também traz artigos que, entre outros temas, abordam o encarceramento de indígenas no país; a execução orçamentária da política indigenista de Bolsonaro; e mecanismos de reparação e não repetição de violações contra essa população. 

*Texto publicado originalmente em Brasil de Fato. Título editado


Política Democrática: Brasil tem 486 terras indígenas com demarcações homologadas, afirma Márcio Santilli

Sócio fundador do ISA diz que essas áreas representam 67% das 717 terras indígenas oficialmente reconhecidas

Cleomar Almeida

Em artigo publicado na quinta edição da revista Política Democrática online, o sócio fundador do ISA (Instituto Socioambiental) e ex-presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), Márcio Santilli, diz que o Brasil possui 486 terras indígenas, de um total de 717, com as demarcações já homologadas e registradas em cartórios. “Todas essas áreas somam pouco mais de 13% do território nacional, porém, mais de 98% dessa extensão estão na Amazônia Legal Brasileira”, afirma ele.

» Acesse aqui a quinta edição da revista Política Democrática online

Na publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), ele ressalta que existem terras indígenas invadidas ou que ainda não se encontram na posse dos índios, que, conforme ressalta, estão significativamente degradadas ou desmatadas. “Mas, de um modo geral, o grau de conservação das águas, florestas e outros ambientes naturais é bem maior do que a de terras situadas em seus entornos e equivale ao grau de unidades de conservação de uso restrito, como os parques nacionais”, continua ele.

Há 30 anos, de acordo com o artigo, eram poucos os representantes indígenas que tinham domínio do português ou algum conhecimento sobre as instituições políticas do país. “Nesse período, também houve avanço inédito na escolarização dos índios e em seu domínio do português. Temos hoje milhares de professores, agentes de saúde, agentes ambientais, profissionais liberais, artistas, empresários, pesquisadores e funcionários públicos indígenas, atuando nas suas terras, em cidades próximas ou fazendo a ligação entre elas’, analisa Santilli.

Nos idos da Constituinte, segundo o sócio fundador do ISA, havia apenas a UNI (União das Nações Indígenas) no país, que, conforme acrescenta, sequer dispunha de um registro em cartório. “Hoje, existem centenas, de todos os tipos: de representação política local ou geral, de corte profissional, de gênero, de expressão cultural ou até empresarial”, assinala.

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