públicos
Marco Aurélio Nogueira: Estamos sem ponte e sem projeto
Houve uma época, na virada dos anos 1970 para os anos 1980, que a política brasileira era pura animação e esperança. Havia crise econômica, a inflação era alta, o desemprego estava presente, a ditadura ainda mostrava seus dentes, mas se fazia política com entusiasmo e confiança. A anistia era recente, a “abertura lenta, gradual e segura” dos militares era contrastada por um processo objetivo de democratização e em boa medida era ultrapassada por ele. Era preciso lutar e os espaços de atuação ainda eram restritos. Mas cada corrente, cada grupo, cada indivíduo buscava fazer sua parte e contribuir para que se avançasse.
Partidos até então clandestinos voltavam a se projetar. Jornais alternativos davam vazão ao que se buscava construir como opção política, mais à esquerda ou menos. O Opinião havia perecido pelo caminho (1977), assim como Nós, mulheres e Mulherio (entre outros), Movimento deixaria de circular em 81, mas surgiam novos, como a Voz da Unidade. Revistas, editoras e iniciativas culturais se multiplicavam. O PMDB, com suas virtudes e seus limites, funcionava como abrigo e referência, e ajudava a fazer com que a expectativa que germinava na sociedade civil chegasse ao Congresso. Eram anos de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Mario Covas, Orestes Quércia, Alberto Goldman, Leonel Brizola e Fernando Henrique Cardoso, cada qual com seu estilo e sua tribo.
Naqueles anos, fixou-se uma estratégia de democratização, que se tornou vitoriosa em 1985, e ela possibilitou a constituição de um poderoso bloco de pessoas afinadas entre si, diferenças respeitadas. Políticos, ativistas, intelectuais, sindicalistas, militantes vários, que foram isolando os extremos, costurando alianças, diluindo vetos, erguendo pontes com dissidentes do regime e abrindo caminho para o carro da democracia, que progressivamente empolgava e anunciava novos tempos.
Penso nisso ao olhar para os dias atuais. Andamos para trás. Quanto desperdiçamos de talento e energia!
Hoje, os que estiveram unidos décadas atrás se desuniram. Muitos se tornaram inimigos entre si. Amizades foram desfeitas como se nada tivessem significado, biografias foram reescritas, focos se alteraram. Os campos políticos se desorganizaram e a dissonância cresceu sem limite. Houve quem se entregou cegamente ao Estado, quem cedeu ao mercado e quem se deixou levar por promessas messiânicas e lideranças carismáticas, largando pela estrada a aposta na força das instituições democráticas e na sociedade civil. A opção foi, majoritariamente, pelo acirramento da competição e da polarização, com o que gradativamente deixou de haver lugar para a cooperação.
O bloco que se consolidou na primeira metade dos anos 1980 foi-se inviabilizando aos poucos. Já no governo FHC ele apresentava fissuras e rachaduras, impulsionadas pela competição eleitoral, pela complexificação sociocultural trazida pela globalização e pela revolução tecnológica e, sobretudo, pela avidez com que se passou a disputar o poder. A luta contra a ditadura, que unia, foi substituída pela luta contra o neoliberalismo, que desunia. Perdeu-se o que havia de estratégia de democratização, substituída em parte pelo afã de um “novo desenvolvimento” e em parte pelo assistencialismo, tudo devidamente financiado a fundo perdido pelo Estado e sem conseguir suportes claros na sociedade civil. Em vez de estratégias, passou-se a ter táticas de conquista e conservação do poder político.
Ao longo dos anos 2000 essa inflexão se cristalizou.
Os políticos foram ficando sem referências, movendo-se tão somente pelo imediato. A intelectualidade democrática e progressista de antes — na qual se incluíam combativos liberais, socialistas e comunistas de diversas famílias, reformistas, nacionalistas, trabalhistas e esquerdistas – foi-se entregando ao culto da eficiência e da “produtividade”, trancando-se nos departamentos acadêmicos, nos negócios privados, nos nichos culturais. Continuou-se a produzir ciência e cultura, mas os produtos ficaram represados, deixaram de chegar aos destinatários. Esmaeceram os intelectuais públicos. O processo se completou com o empobrecimento do debate público democrático e a desqualificação das lideranças políticas, que foram se rebaixando e perdendo o eixo. O mundo da cultura e o mundo da política se afastaram.
Foi uma verdadeira obra de demolição. Empreendida não por ditadores, nem pelo “sistema”, mas pelos próprios protagonistas, que atiraram em si mesmos.
O resultado está aí para quem quiser ver. Tornamo-nos uma sociedade sem rumo, sem consciência de si, que não sabe o que esperar do dia de amanhã, enrolado em suas próprias contradições políticas, vagando de crise em crise. Na qual a indignação e a retórica maximalista ocupam o lugar reservado para a política.
Hoje, a esperança esfarelou. Um patrimônio político, ético, cultural, associativo e intelectual foi perdido, e será preciso em boa medida começar de novo, como escreveu Luiz Sérgio Henriques no belo artigo que publicou em O Estado de S. Paulo de 18/06/2017, cuja leitura me serviu de referência para escrever estas linhas.
Está lá, nesse texto vigoroso e certeiro, a constatação de que estamos todos “atônitos”, vendo “as agonias que se acumulam, as hipóteses de saída que surgem e se desfazem como bolhas de sabão, os políticos que de uma hora para outra abandonam a ação parlamentar e passam a integrar tramas judiciárias cujo fim não parece próximo”. No tumulto dos dias, a impressão que se firma é a de “um enredo mambembe em que os personagens procuram, em vão, uma direção e um sentido para o que fazem”. A sensação, observa, “é de que os fatos caminham por si sós, assumindo aos trancos e barrancos um protagonismo além da capacidade dos atores, cujos movimentos se esgotam na busca da sobrevivência pura e simples”.
É um artigo que faz pensar: “Sabemos que o que nos trouxe até aqui não é ponte que nos conduzirá ao futuro. O PMDB já não parece ter quadros ou ser portador de ideias-força para sustentar um governo de reformas. A classe política que o viu nascer e lhe insuflou alma não existe mais. O antagonismo entre PSDB e PT, que nas quatro últimas eleições presidenciais favoreceu amplamente este último, mas assinalou afinal o fracasso histórico do petismo, não poderá mais ser a principal linha de clivagem do sistema partidário, a não ser que nossa sociedade se aniquile nas malhas da repetição neurótica”.
Henriques conclui com um alerta: “Sabemos que o presente cenário de terra arrasada é o mais favorável para aventuras extremadas. Refazer os cacos e ordenar razoavelmente a arena pública requer o emprego da arte da competição e da cooperação, da qual nos temos dissociado. Arte a ser exercida sob o império da Carta de 1988, longe dos fundamentalismos de mercado ou das utopias autoritárias do esquerdismo”.
Outro dia, FHC falou que “é preciso dar uma trégua ao Brasil”. Ele está certo. Parar um pouco para pensar, guardar o ódio e o ressentimento acumulados, buscar um foco mais interessante do que esta briga entre partidos mortos-vivos. O país está efetivamente estressado. Na política, sobretudo. Mas a vida não para e os humanos conseguem sempre sair de situações difíceis. Basta que consigam definir quais os seus grandes problemas e tenham tempo e determinação para modelar soluções e construir saídas. Com um sentimento de urgência, mas sem correria.
É muito, é custoso, é difícil, mas é o que temos.
Fonte: http://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/estamos-sem-pontes-e-sem-projeto/
Valdo Cruz: Teto dos gastos públicos acaba com a era da fantasia
BRASÍLIA – Logo depois de ser aprovado em primeiro turno na Câmara dos Deputados, o teto dos gastos públicos foi alvo de nova onda de críticas, principalmente de defensores da saúde e educação, acuando mais uma vez o governo Temer.
A sensação é que, de repente, estava sendo revelado o lado perverso do mecanismo que limita o crescimento das despesas públicas à inflação do ano anterior. Seria mais uma invenção técnica e fria de economistas que não pensam no social.
Tal discurso é fácil de pegar. Afinal, ninguém pode ser a favor de corte de verbas em saúde e educação, num país com elevado deficit nessas áreas. Basta circular por hospitais e escolas públicas para checar a situação de emergência deles.
Os críticos do teto passaram a divulgar números, para todos os gastos, de perdas milionárias que as duas áreas sofrerão nos próximos anos. O governo sustenta que saúde e educação terão suas verbas preservadas e podem até subir mais.
Não vou entrar na guerra dos números. Foco outra questão. O país precisa, sim, aumentar a verba da área social. Congelá-la não é o melhor caminho. Mas, para isto, precisamos fazer escolhas. Cortar em outras áreas ou aumentar impostos.
A segunda opção não é defendida por quase ninguém. A primeira, por todos, mas desde que o corte não atinja o seu bolso. Aí começa a guerra das corporações, uma minoria barulhenta que prevalece sobre os interesses da maioria.
O teto dos gastos públicos, aprovado, forçará este debate no país. É bom lembrar que o Congresso não está impedido de, no Orçamento, elevar as verbas de saúde e educação. Mas terá de tirar de outras áreas para respeitar o teto geral de gastos.
A medida acaba com a era da fantasia, em que se elevava artificialmente as receitas para bancar toda sorte de despesas a fim de beneficiar certos grupos. A conta não fechava e era jogada nas costas de todos os brasileiros. Vamos cair na real. (Folha de S. Paulo)
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