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O Globo: Impacto de Lula no cenário eleitoral de 2022 vai depender do 'figurino' que petista adotar, dizem analistas

Segundo cientistas políticos, se ex-presidente adotar discurso mais próximo ao mercado, como fez em 2002, pode angariar votos do centro

Guilherme Caetano, O Globo

SÃO PAULO — A recuperação dos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, nesta segunda-feira, embaralha a disputa eleitoral de 2022. Pesquisas de opinião colocam o petista em um patamar de intenção de voto mais alto que o do presidente Jair Bolsonaro. Mas tudo vai depender do "figurino" que Lula escolher para a disputa, avaliam cientistas políticos ouvidos pelo GLOBO.

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De acordo com analistas, Lula pode beneficiar Bolsonaro se adotar uma postura tida como "radical". Por outro lado, pode ganhar votos do centro se fizer acenos ao mercado, como ocorreu em 2002. Não é automático, segundo os cientistas políticos, o ganho de Bolsonaro na polarização com Lula. Diferentemente de 2018, o presidente será cobrado pelas crises causadas pela pandemia do novo coronavírus.

Professor do Insper, o cientista político Carlos Melo diz que o ressurgimento de Lula na cena política se dá no momento de maior fragilidade do governo Bolsonaro, que enfrenta múltiplas crises. Além do descontrole da pandemia que já deixou mais de 260 mil mortos, riscos de uma nova recessão técnica no primeiro semestre de 2021 e credibilidade internacional em baixa, a aprovação do presidente caiu para 28% segundo o último levantamento do Ipec

— Bolsonaro até agora tinha uma vantagem, porque não tinha ninguém no páreo. Mas tudo vai depender de como Lula vai aparecer em cena. Bolsonaro está fragilizado. Lula pode capitalizar a tensão em torno das crises agora ou esperar, estrategicamente comedido, pelo adversário sangrar mais até encontrá-lo numa situação mais crítica lá na frente — diz ele.

De acordo com a última pesquisa do Ipec, instituto criado por ex-dirigentes do Ibope, metade dos brasileiros (50%) dizem que votariam com certeza ou poderiam votar em Lula, e 44% não o escolheriam de jeito nenhum. Bolsonaro aparece 12 pontos atrás de Lula em potencial de votos (38%) e 12 pontos à frente em rejeição (56%). Outros possíveis presidenciáveis, como o governador João Doria (PSDB), aparecem em patamar mais baixo.

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Para Christian Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj, Bolsonaro terá vantagem sobre Lula se o petista se comportar como em 2018, quando, preso pela Lava-Jato, manteve uma retórica mais beligerante para "tentar mostrar sua força". No entanto, o presidente poderá enfrentar um adversário competitivo se este souber com os setores que abandonaram o atual governo.

— A eleição ainda está longe. Do ponto de vista da ação política, a pergunta que importa é: vai ser o Lula de 1989 ou de 2002? Se for o de 1989, é bom para o Bolsonaro. Se for o de 2002 e se mover ao centro, é péssimo para Bolsonaro — declara.

Em 2002, Lula lançou a "carta ao povo brasileiro", documento no qual acenava para a moderação. O objetivo era tranquilizar o mercado financeiro, que temia a política econômica que seria implantada com uma vitória do petista, e mostrar que o PT, se chegasse ao poder, se comprometeria a seguir os pilares econômicos implantados no Plano Real.

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O cientista político José Álvaro Moisés, da USP, diz que o jogo eleitoral dependerá da disposição de Lula para constituir uma candidatura que agregue as forças de oposição, mas avalia a decisão de Fachin como uma oportunidade para Bolsonaro radicalizar. Segundo ele, o presidente "ganhou uma possibilidade de reinterpretar a polarização".

— A grande mudança que a viabilidade de Lula coloca é um desafio extremamente difícil para o chamado centro moderado. Não vai poder lançar três, quatro, cinco candidatos. Terá de ser um, capaz de enfrentar os dois principais problemas do país: a desigualdade social e o alto desemprego. Se o centro não for capaz de definir uma candidatura em torno desses temas, vai ficar isolado — diz Moisés.

Tanto para Melo quanto para Lynch, uma eventual disputa entre Lula e Bolsonaro permitirá que duas grandes forças políticas, o antipetismo e o antibolsonarismo, meçam suas grandezas eleitoralmente.

— O antipetismo ainda existe, mas o antibolsonarismo está forte. Dependerá do movimento de Lula, porque não vejo Bolsonaro conseguindo se flexibilizar. Ele governa para 25% do eleitorado e não vai mudar — diz Lynch.

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Melo diz que Bolsonaro poderá reavivar o antipetismo em benefício próprio, mantendo sua base energizada. Na última eleição, o então candidato pelo PSL apostou na aversão ao PT durante toda a campanha, e acabou derrotando Fernando Haddad com 57,8 milhões de votos (55,13%).

Ainda não está claro, no entanto, se Lula sairá candidato. A vaga de pré-candidato do PT vinha sendo ocupada pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que já declarou em entrevistas que se Lula se livrasse da inelegibilidade, ele é que deveria disputar o Planalto em 2022. Desde a decisão de Fachin, petistas têm dito que Lula só não concorre à Presidência se não quiser.


Luiz Carlos Azedo: Lula livre para 2022

O fantasma petista assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia

Como dizia o maestro Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin surpreendeu o mundo político e até seus colegas de Corte ao anular todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa “interpretação técnica” do princípio do “juiz natural”. Tomou por base a jurisprudência do próprio Supremo, contra a qual se opusera quando a maioria dos ministros decidiu desmembrar os processos da Odebrecht, OAS e JBS do caso da Petrobras, remetendo-os para Brasília, Rio de Janeiro ou São Paulo, decisão que esvaziou a força-tarefa de Curitiba e sua própria relatoria no escândalo da Lava-Jato.

A decisão foi cirúrgica: acabou com a inelegibilidade de Lula e frustrou as expectativas de punição do ex-ministro Sérgio Moro e dos integrantes da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, cuja suspeição foi arguida pela defesa de Lula. No mundo jurídicos e nos meios políticos, a aposta era de que somente a condenação de Lula no processo do triplex de Guarujá seria anulada, por suspeição de Moro, enquanto a condenação no caso do sítio de Atibaia seria mantida, no aguardado julgamento da suspeição pela Segunda Turma do Supremo. Presidente dessa Turma, desculpem-me o trocadilho, o ministro Gilmar Mendes ficou com o voto na mão.

Para o presidente Jair Bolsonaro, seus aliados e boa parte da oposição não petista, a anulação do processo do triplex de Guarujá e a suspeição dos protagonistas da Lava-Jato seriam o cenário ideal: Lula fora da eleição e Moro desmoralizado. Fachin pôs tudo de pernas para o ar, porque liberou Lula para concorrer à Presidência da República e manteve o ex-ministro Sérgio Moro no jogo de 2022, protegendo ainda os procuradores da Lava-Jato, a investigação da qual é o relator no Supremo e que estava à beira da extinção.

Outros réus poderiam pedir anulação de seus respectivos processos, pois é disso que se trata, principalmente para os advogados que atuam na Lava-Jato e sempre questionaram os métodos heterodoxos de Moro e dos procuradores de Curitiba. Na prática, a decisão de Fachin pode garantir a presença de Lula na eleição porque uma condenação em segunda instância, no Tribunal Regional Federal de Brasília, uma Corte garantista, leva em média 6 anos; além disso, como Lula tem mais de 70 anos, o caso já estará prescrito, pois os fatos ocorreram há quase dez anos e a prescrição cai de 16 para oito anos.

Tensão institucional
No plano imediato, o principal foco de tensão é dentro do Supremo, que voltará a se dividir profundamente. Em recente decisão sobre os processos criminais, a Corte estabeleceu que nenhuma decisão monocrática pode ser reformada por outro ministro ou pelas Turmas, no caso dos processos criminais, somente pelo plenário da Corte. O Ministério Público Federal (MPF) já anunciou que recorrerá da decisão, e não será surpresa se a defesa de Lula insistir na suspeição de Moro e dos procuradores, sendo acolhida pelo ministro Gilmar Mendes, na reunião de hoje da Segunda Turma.

O segundo foco é o Congresso, principalmente a Câmara, cujo presidente, Arthur Lira lidera as articulações para acabar com a Lava-Jato. O Centrão e maioria das bancadas do PT e do PSDB apostavam na suspeição de Moro. O terceiro, o Palácio do Planalto, muito mais interessado no fim da Lava-Jato e na inelegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A retórica de Bolsonaro sobre a decisão mira o desgaste do Supremo junto aos militares e uma parte da opinião pública. A candidatura de Lula já está precificada. No esquema binário da narrativa bolsonarista, a esquerda é o inimigo principal. O fantasma de Lula assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia e outras questões nas quais confronta os grandes consensos. Com Lula livre, o discurso golpista de Bolsonaro ganha uma dimensão eleitoral antecipada, com sua cantilena contra a urna eletrônica. Ou seja, quer ganhar no voto ou no grito.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-lula-livre-para-2022/

Marco Aurélio Nogueira: Virando a página para trás

Lula, de novo elegível, não tem um mar aberto a sua frente. Não joga o jogo sozinho

É difícil avaliar a repercussão e os desdobramentos da decisão de Edson Fachin que, de uma só vez, monocraticamente, considerou sem validade todas as condenações de Lula. O ministro considerou que a Vara Federal de Curitiba não era o foro adequado para julgar os processos do ex-presidente, remetendo-os à justiça do Distrito Federal.

É mais fácil pensar no que a motivou. Fachin sabia que seria derrotado na Segunda Turma, antecipou-se a ela e deve ter tentado esvaziar a provável suspeição de Sergio Moro, artífice das condenações. Se terá êxito nisso não se sabe. Depois que se decidiu liberar os áudios da Vaza-Jato a Lula, era só questão de tempo soltar as amarras do ex-presidente, fazendo com que os processos voltassem à estaca zero.

Tudo isso tem um preço: como fica a imagem do STF, órgão supremo que precisou de cinco anos para descobrir que tudo que havia sido endossado pelos tribunais inferiores não passava de erro, de farsa, de injustiça? Há um quê de desmoralização que não passa despercebido. Pior para a vida institucional do País, que fica sem retaguarda.

Também é fácil vislumbrar a espuma de ódio que esguichará da boca dos bolsonaristas. Não por medo ou raiva, mas sim porque verão no fato um instrumento de campanha eleitoral, que agora está definitivamente aberta. Sentir-se-ão turbinados, revitalizados. Vira-se uma página para trás, de volta a 2018, ao antipetismo e ao antilulismo que tanta força deu à eleição do capitão.

É uma boa notícia para Bolsonaro, pois agora, quando o governo se mostra mais perdido e atarantado do que nunca, com nuvens carregadas pela pandemia, pelas mortes, pelo desemprego, pelas dificuldades fiscais, foi jogada na mesa uma carta que pode justificar as seguidas omissões presidenciais: ele agora dirá que o velho “inimigo” de antes voltou ao ringue e precisa ser combatido. O mesmo trololó de antes, de sempre, com direito a um pouco mais de fúria contra o STF.

Do lado de lá, não dá para cravar que a notícia fará com que Lula se proclame imediatamente candidato. O ex-presidente poderá voltar a ser penalizado no médio prazo, a depender da velocidade com que trabalharem a Justiça do Distrito Federal e o Tribunal Regional da 1ª Região (TRF-1).

De certo mesmo é que a decisão de Fachin espirrará em outras eventuais candidaturas potenciais, tipo Ciro Gomes e Flávio Dino, que ficarão paralisados, na expectativa dos próximos lances.

Lula, porém, não tem um mar aberto a sua frente. Não joga o jogo sozinho. Volta ao jogo com a bandeira do “injustiçado” tremulando mais alto, o que é um trunfo importante. Mas sabe que não vencerá a eleição sem um vínculo com o centro, com o mercado, os bancos. Poderá subir o tom contra Bolsonaro, lançar feromônios para seduzir o povo que o adora, mas também precisará suavizar o discurso para atrair os moderados e oferecer a eles alguma perspectiva de poder.

Até mesmo algo diferente poderá acontecer: uma coalizão de centro-esquerda que faça direito as contas, avalie politicamente a correlação de forças e convença o ex-presidente a aderir a um tertius e a um programa que salve o País. Tudo está, afinal, para ser jogado e no tabuleiro não há peças irremovíveis, nem vitoriosos por antecipação.

*Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp


Alon Feuerwerker: Lula ficha limpa, por enquanto

Sobre a decisão do ministro Edson Fachin de anular as duas condenações de Luiz Inácio Lula da Silva (tríplex e sítio) em Curitiba, o argumento dos advogados era de que as acusações nada tinham a ver com a Petrobras. E por que decidir só agora? Segundo Fachin, porque os advogados só apresentaram esse argumento em novembro.

Questões juridicas à parte, é preciso fixar que a decisão representa uma vitória política para Lula e o PT. É claro que Lula pode ainda ser condenado pela Justiça Federal do DF, e se a condenação for confirmada em segunda instância voltará a ficar inelegível. Mas a partir de agora o cenário é outro.

Fachin não anulou os atos instrutórios de ambos os processos. O juiz em Brasília poderá, se desejar, simplesmente decidir em cima de tudo o que foi preliminarmente produzido sob a supervisão de Sergio Moro em Curitiba. Mas é possível que os advogados de Lula argumentem que Moro tampouco deveria ser o juiz encarregado de tocar a instrução.

Por que Fachin fez o que fez? Uma hipótese é tentar evitar que a Lava Jato descesse pelo ralo junto com os processos de Lula se a Segunda Turma declarasse a suspeição de Moro. Mas a esta altura é menos relevante para o quadro político. O fato é que Lula está de volta ao palco. E isso tem efeitos imediatos, como mostrou hoje a queda da Bolsa.

Quem ganha e quem perde? Ganham Lula e o PT. Mas também em algum grau Jair Bolsonaro, que vem sob fogo cerrado dos segmentos políticos “ao centro”. Com Lula no cenário, certamente será revivido o argumento de que o atual presidente seria uma espécie de mal menor para esse grupo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Lula: 'Falta que a gente tenha uma próxima eleição para medirmos força com Bolsonaro'

Petista vê chances de o seu partido ganhar a presidência em 2022, seja com ele ou com Haddad, ou o nome da esquerda que se sobressaia até lá. “Me contento em ir para a rua fazer campanha para um aliado nosso”. Para ele, a realidade vai se impor e Bolsonaro vai perder a disputa

Jan Martínez Ahrens e Carla Jiménez, El País

Luiz Inácio Lula da Silva vive um momento de energia em estado puro. Tem 75 anos, superou o câncer, o coronavírus e a prisão, e diz se sentir “com 30 anos.” Aparece na entrevista feita por Zoom em uma camisa de mangas e se posiciona de pé diante da câmera do computador. Parece estar à vontade; é sexta-feira, no último dia 5, e fala da sua casa em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, onde vive com Rosângela Silva, a Janja, socióloga por quem se apaixonou quando estava preso em Curitiba. Às suas costas aparecem alguns poucos livros de capa mole e uma bandeira vermelha, de mesa, que exibe a sigla do PT e que, por causa de uma estranha corrente de ar, parece se movimentar em uníssono com Lula, como num comício, quando ele entra em ebulição. Algo que ocorre com frequência ao longo da entrevista.

É um fenômeno que vai crescendo. Primeiro Lula tira os óculos (quadrados e ostensivamente grandes), depois acelera o ritmo da resposta e, à medida que os minutos passam, dá rédea solta ao tigre político que habita nele. Fala, ri e ruge; agita os braços, bate na mesa. Lula ―e esta é uma das chaves da sua extraordinária capacidade de atração― transita de forma incessante pelos muitos Lulas que ele já foi. Ao longo de uma hora e meia de conversa, se sucedem, numa tela que fica cada vez menor, o homem que um dia foi pobre e que sabe se dirigir a outros interlocutores pobres, o torneiro mecânico simpático, o sindicalista que enfrentou a ditadura militar, o candidato dos grandes comícios e até o presidente (2003-2011) que deu ao Brasil anos de grandeza. Mas também o homem que foi preso e se revolta contra sua condenação, o político cassado que busca limpar seu nome. Lula passou 580 dias preso por corrupção e lavagem de dinheiro. E já recebeu outra sentença por crimes semelhantes no sítio de Atibaia. Esse rochedo o esmaga, e contra ele volta agora todas as suas energias.

“Aprendi com uma mãe analfabeta que não podemos viver ressentidos, que devemos ser firmes e acreditar que a vida pode melhorar. Tenho muito otimismo”, diz, em um dos raros momentos em que fica quieto (e a bandeirinha também). É só um instante. Depois continuará disparando para todos os lados, pisando fundo no acelerador de um motor que nunca se esgota e que fez dele uma lenda, tão querida quanto odiada, da esquerda latino-americana. Seu otimismo o deixa seguro de que o PT tem chances de voltar ao poder, seja com ele ou outro nome. Neste domingo, uma pesquisa publicada no jornal O Estado de S. Paulo reforçou sua ambiçãoLevantamento do Ipecmostra que 50% dos entrevistados votariam nele outra vez em 2022, contra 28% de presidente Jair Bolsonaro ―e 31% de Sergio Moro. Pela enésima vez, ele volta ao centro do debate político.

Pergunta. Como tem levado o confinamento, alguém inquieto como o senhor. Estaria na rua?

Resposta. Me sinto mal ficando em casa. Não me contento em ficar definhando. Vai te matando dentro. Apesar de estar namorando e apaixonado, preciso sair para a rua, respirar liberdade, falar com o povo. Toda vez que sinto falta de ar, não é o coronavírus, é a necessidade de falar com o povo, aprender com eles. Nasci em porta de fábrica. Por ora vou me cuidar e respeitar a ciência. Quando tomar a vacina e for autorizado eu saio.

P. O Brasil, diferente de outros países da região, está no pior momento da pandemia. A quantidade de mortes é terrível e a vacinação é lenta. Como vê a situação do Brasil, como ex-presidente e cidadão?

R. O Brasil vive um acidente de percurso da nossa democracia e da nossa civilidade por conta do presidente Bolsonaro. Ele tem demonstrado não ter nenhuma preocupação com a seriedade, seja para tratar a covid, a economia, a educação ou a sua relação internacional. O Brasil sempre foi o país que não tinha problemas com país nenhum no mundo. O vírus é uma coisa da natureza. Enfrentar o vírus é da responsabilidade das políticas públicas dos governantes no mundo. Aqui no Brasil, o presidente desrespeita a ciência, receita remédio, não tem solidariedade, nem respeito pela vida. Se o Brasil vivesse um momento de democracia efetivamente, o Bolsonaro já tinha sofrido o impeachment. Deixamos de comprar vacina quando poderia, vacinar quando deveria, e ele continua fazendo campanha contra o isolamento. É quase um genocida no tratamento da pandemia. O Brasil não merece isso.

P. Contudo, Bolsonaro continua com 30% de apoio popular e ainda num momento de economia ruim. Como se explica?

R. No mundo inteiro, você sempre tem entre 15% e 20% da sociedade que não querem votar, não gosta de política. Aquela parte da sociedade ultraconservadora, que defende pena de morte, que as pessoas tenham armas ao invés de empregos e livros, que defende a violência, são contra negros, mulheres, LGBTs, quilombolas, sindicatos. Essa gente existe. Muitos ex-militares aposentados, milicianos da guarda privada, gente que depende do Bolsonaro. O fato dele ter esse apoio significa que tem 70% que não concordam. E são esses 70% que vão garantir a democracia. Que na hora da decisão, vão se manifestar.

P. Mas, neste momento, não há uma oposição forte no país. Os últimos resultados eleitorais do seu partido PT foram ruins. Não falta uma nova liderança? O que falta para que o PT recupere força?

R. Falta que a gente tenha uma próxima eleição para medirmos força [na urna]. Eu lembro que quando o [partido espanhol] Podemos [junto com grupos à esquerda do PSOE] ganhou as eleições da prefeitura [de Madri], muita gente falou que o PSOE tinha acabado. Quem governa a Espanha hoje é o PSOE. O PT continua sendo o maior partido do Brasil, a força política mais organizada do país. O PT tem sido vítima de uma campanha de destruição enorme, com [a operação] Lava Jato. A minha inocência está provada e a culpabilidade do Ministério Público, do [Sérgio] Moro e da Polícia Federal está mais do que provada. Em 2016, na minha defesa, a gente já dizia tudo que está sendo publicado agora, os documentos oficiais liberados pela Suprema Corte. Houve um conluio para evitar que o Lula pudesse voltar à presidência do Brasil. Mentiu uma parte da Justiça, uma parte do Ministério Público, da Polícia Federal. Envolveram muita gente numa mentira, reforçada pelos meios de comunicação. Agora que sabem a verdade, como vão dizer para a sociedade que, durante 5 anos, condenaram uma pessoa inocente?

P. Se conseguir vencer a batalha judicial, se apresentaria como candidato?

R. Eu necessariamente não preciso ser candidato a presidente, porque eu já fui. Estou com 75 anos, com muita saúde, mas descobri que o [Joe] Biden é mais velho do que eu e governa os EUA. Quando eu chegar em 2022, eu vou estar apenas com 77 anos, um jovem. Se chegar na época e os partidos de esquerda entenderem que eu posso representá-los, eu não tenho problema. Mas o PT tem outras opções, tem o Fernando Haddad, outros governadores. E a esquerda também tem: Flávio Dino, o [Guilherme] Boulos... Na hora que tiver que decidir, vamos ver quem tem mais condições de ganhar. A única possibilidade que eu tenho de ser, porque eu não disputarei com ninguém, é se as pessoas entenderem que eu sou o melhor nome. Se não, me contentarei em ir para a rua fazer campanha para um aliado nosso. Pedi ao Fernando Haddad começar a lutar pelo Brasil, porque ele tem um passaporte diplomático de 47 milhões de votos conquistados em 2018, ele não pode ficar parado em casa. Tem que ir pra rua conversar sobre educação, emprego, sobre salário, custo de vida. E sobre coronavírus, precisamos exigir todo dia que esse país consiga comprar as vacinas para que o povo possa ter tranquilidade em viver dignamente.

P. O senhor tem dialogado com lideranças da esquerda e da direita sobre a eleição?

R. Você sabe que eu não tenho problema em conversar com ninguém. Às vezes eu vejo a imprensa ficar impressionada porque os conservadores ganharam a Câmara. Eles nunca perderam. Na Constituinte, em 1988, o Centrão percebeu que a gente estava crescendo e fazendo coisas demais, eles se reorganizaram e fizeram mais que nós. Toda vez que tem algo importante para votar, se constrói a maioria. A direita sempre foi maioria, a esquerda nunca. Acontece que a democracia é boa por conta disso. Não parecia que o Podemos era inimigo do PSOE na Espanha? E não se juntaram para governar? O [ultradireita] AfD não está junto com a Merkel? A política é boa por conta disso. Você vai construindo aquilo em que você acredita que é bom e aí a realidade te empurra para algo que não esperava.

P. E com Ciro Gomes?

R. Não tenho problema com Ciro Gomes. Gosto dele de graça, como disse outras vezes. Mas ele está equivocado e precisa compreender. Ele resolveu engrossar o discurso antipetista achando que vai ganhar votos da direita. Não vai. Isso que é grave. Não adianta falar mal do PT e da esquerda achando que vai ganhar voto do Doria. Se continuar discurso xenófobo contra o PT ele vai perder gente da base dele. Se teve 12% na última eleição ele pode cair. E eu acho que o Ciro Gomes é importante para o Brasil. Mas ele precisa acertar na política. Ele pode não ter no PT o maior aliado porque o PT não o apoiou. Mas ele não pode considerar PT inimigo.

P. Hoje o Bolsonaro está alinhado ao Congresso reformista, com a agenda de teto de gastos. Não é pouco tempo para acreditar que o PT pode mudar a mentalidade no Brasil?

R. O PT pode e deve. Todo o combate ao coronavírus, ele se dá mais corretamente nos países onde o Estado tem políticas públicas de saúde. Aqui no Brasil, o SUS foi atacado pela elite brasileira desde que foi criado em 1988. Agora com o coronavírus, todo mundo começa a reconhecer que se não fosse o SUS o Brasil estaria muito pior. Por que é o sistema público de saúde invejável. E do qual eles cortaram muito dinheiro e que salva milhões de pessoas neste país. É o profissional do SUS, a estrutura do SUS que tem salvo o Brasil, que faz com que não esteja pior do que está.

P. Quando o senhor governou a China começava a investir muito, um momento favorável.

R. Quero desfazer esse equívoco que às vezes vocês cometem. “Ah porque teve um boom de commodities” [nos anos do PT]. Boom de commodities tem hoje. O problema é saber onde você vai gastar o dinheiro no país, aonde é que o pobre vai entrar na economia. Nós fizemos uma inclusão bancária de 76 milhões de pessoas, levamos energia de graça na casa de 15 milhões de pessoas, cisternas. Viajei muito pelo mundo, vendia a capacidade intelectual e produtiva do Brasil.

P. Mas agora nosso endividamento está perigoso.

R. O Brasil é muito grande e pode voltar a ser. Tenho a impressão de que o povo vai começar a perceber o que aconteceu no Brasil. Obrigatoriamente vai ter que comparar o que era no governo do PT e o que é o Brasil no governo do Bolsonaro, e dos outros.

P. Falando agora de Estados Unidos, eles tinham o presidente Donald Trump, muito parecido com o Bolsonaro. Seu último ato foi fomentar a invasão do Capitólio. Acredita que pode acontecer algo parecido se Bolsonaro perder as eleições?

R. Eu acho que o Bolsonaro vai perder as eleições, e a vitória será para alguém progressista, espero que seja para o PT. Acho que ele está armando o povo. Quem quer comprar arma, não é o trabalhador. O metalúrgico, o químico, o professor. As pessoas querem comprar comida, emprego. O Bolsonaro está vendendo armas para quem? Para uma elite, agrícola, ex-policiais, milicianos que lhe dão segurança, para a turma que matou Marielle. Se o PT voltar a ganhar as eleições, a gente vai desarmar o povo e recuperar o humanismo da sociedade brasileira, deixar esse ódio de lado. Só tem um remédio para este país: fortalecer a democracia. Tenho clareza absoluta que a gente pode ganhar outra vez. Aqui no Brasil o que parece impossível hoje vai ser possível amanhã. Este país é poderoso. O que ele tem é uma elite perversa, que acha que tudo é para ela. Precisamos de uma sociedade solidária, em que o humanismo prevaleça sobre a chamada inteligência artificial. Não quero virar algoritmo. Não quero que a sociedade vote num Trump ou num troglodita como o Bolsonaro nunca mais. As pessoas precisam votar em homens que pensam o bem.

P. Ou mulheres, não presidente? Não só homens.

R. Se tem uma pessoa que apostou na conquista das mulheres é este seu amigo aqui. No PF tivemos uma presidente mulher, 50% do meu partido são mulheres.

P. E tem uma mulher despontando como potencial candidata, cogitada até pelo PT, que é a empresária Luiza Trajano, nome inclusive de fora da política. Como o senhor a vê?

R. Conheço e adoro a Luiza Trajano como mulher, pessoa humana e empresária. Acontece que o mundo da política é insano, não é uma coisa fácil. Uma coisa é dirigir uma coisa sua, uma rede, uma fábrica. Outra é um Estado, um país, em que você presta conta para empresa, sindicato, Parlamento. Não tem curso universitário para preparar político. A política é difícil, é tomada de posição e não é ciência exata sempre. Você tem que decidir de que lado você está sempre, para quem quer fazer o bem. Atender uma [parte] e ferir a outra. Toda vez que se nega a política o que acontece é um Bolsonaro.

P. Em que se diferencia o Lula que assumiu o poder em 2003 e o Lula de agora? Qual experiência lhe trouxe a prisão?

R. O Lula de hoje não é diferente do Lula de 2002. Sou mais experiente, um pouco mais velho, mas continuo com a mesma vontade e a mesma certeza que é possível mudar o Brasil. Sonhava em possível construir um bloco econômico forte na América do Sul. Hoje, com a União Europeia, não dá pra você ficar negociando sozinho. Vamos ser francos, [meu tempo] foi o melhor momento da América Latina desde Colombo. Acho que o continente precisa se convencer que não pode continuar no século XXI sendo a parte do mundo que tem mais desemprego, mais miséria e mais violência. Sou a prova que o Brasil foi convidado para quase todas as reuniões do G-8, e virou protagonista internacional e é isso que os americanos não querem. Não querem competição. Por exemplo, não é assimilável que o Trump queira invadir a Venezuela e que países europeus reconhecerem o [Juan] Guaidó como presidente. Como reconhecer um impostor, alguém que não concorreu à presidência? A Europa é que desapareceu da política. Tudo é comissão. Tem comissão daquilo, de meio ambiente, tudo burocrata. Os governantes são eleitos e desaparecem. É preciso que a política volte a assumir o seu papel, tomar grandes decisões.

P. Mas o que mudou pessoalmente, com a prisão? Poucos políticos viveram isso. O que isso mudou do ponto de vista pessoal?

R. Se eu dissesse que eu não tenho mágoa de algumas pessoas eu estaria mentindo. Mas nunca na minha vida trabalhei com meus rancores. Quando a gente tem ódio a gente dorme mal, faz digestão mal. Como eu sempre tive consciência do que estava acontecendo comigo, eu nunca tive dúvida. Quando eu estava detido na Polícia Federal, houve uma tentativa de que eu fosse libertado e viesse para casa e utilizasse tornozeleira. O que eu disse? ‘Eu não troco minha dignidade pela minha liberdade’. Eles procuravam um motivo para me prender. Preciso agora deixar de ser refém, que a Suprema corte vote e decida. Só quero um julgamento honesto, eu não vou mais xingar o Moro, nem o Ministério Público. Todo político que rouba se esconde, submerge. E eles pela primeira vez enfrentaram um político que não tem medo deles porque sou inocente. É preciso saber quando o Supremo vai tomar a decisão porque ao me colocar como inocente eles vão ter que dizer que os outros mentiram, que a rede Globo mentiu, que a imprensa toda mentiu. Será o dia do perdão. Fico imaginando o dia em que o William Bonner abrirá o Jornal Nacional dizendo: “Boa Noite, hoje nós queremos pedir desculpas para o ex presidente Luiz Inácio Lula da Silva porque acreditamos nas mentiras do Dallagnol e do Moro”.

P. É utopia, né, presidente?

R. Você acha impossível, mas eu acho que vai acontecer. Eles pediram desculpas porque não cobriram as [manifestações pelas] eleições diretas depois de 30 anos. Os americanos admitiram que interferiram no golpe [de 1964] depois de 50 anos. Não sei se vou estar vivo mas mesmo que eu estiver no túmulo eu levantarei por alguns segundos de alegria por que finalmente a verdade aconteceu.

P. Deixaria um dia a política?

R. Não, não penso. A política está no meu DNA, é uma célula no meu corpo. Quando somente essa célula parar de produzir e eu morrer é que eu pararei de fazer política. Não tem saída para humanidade fora da política, para a democracia, para o crescimento econômico e a distribuição de riqueza. Tudo depende da política. Em 1978 eu dizia: “Eu não gosto de política e não gosto de quem gosta de política.” Hoje eu digo, eu gosto de política e toda sociedade deveria gostar.


Rosângela Bittar: O Teorema Lula

Lula virou político de novo e restabeleceu o que parecia superado: a polarização

Desafio à esfinge: o que houve de determinante, em tão curto espaço de tempo, que levou o ex-presidente Lula a assumir sua candidatura à Presidência da República? Num dia ele lançou Fernando Haddad, despachando-o para liderar caravanas. Quinze dias depois, sem revogar a primeira ordem, declarou de viva-voz o que todos entenderam como um alto lá. Será ele mesmo o candidato. 

No primeiro movimento, o ex-presidente pretendeu tranquilizar o Supremo Tribunal Federal quanto à sua submissão à Lei da Ficha Limpa. Não seria candidato mesmo se lhe fosse favorável o julgamento, esta semana, relativo à suspeição do juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá. 

Duas semanas se passaram e eis que o ministro Ricardo Lewandowski permitiu acesso da defesa aos diálogos entre os promotores da força-tarefa e o juiz da Lava Jato. São 10% as transcrições do grampo que se referem a Lula, agora em exame pelo ministro Gilmar Mendes, o relator do processo. 

Os advogados puderam constatar a extensão do comprometimento não apenas de Sérgio Moro, como do coordenador Deltan Dallagnol e até do então procurador-geral Rodrigo Janot. Verificaram que a Justiça teria dados suficientes para considerar Lula vítima de perseguição. Constataram que os que o prenderam admitiam não ter provas ou certezas. 

Ampliaram-se, então, as expectativas, até aí limitadas ao triplex. Agora seria possível rever também o caso do sítio de Atibaia. Anuladas as sentenças, recuperados os direitos políticos, Lula poderia ser candidato. Aí se precipitou, surpreendendo até quem esperava estabelecer com o PT uma aliança mais ampla ao centro e à esquerda. 

O que fará a seguir ainda está em análise. Poderá pedir a extensão dos argumentos do triplex para o sítio. Se não for possível, a defesa ingressará com novo pedido de habeas corpus específico. 

Desde que saiu da prisão, o ex-presidente só se manifestava para louvar a preservação da sua potência sexual, anunciava planos de casamento com Janja e sugeria uma vida reclusa em paradisíaca praia da Bahia. 

De repente, uma mudança e tanto. Lula virou político de novo e restabeleceu o que parecia superado: a polarização. O presidente Jair Bolsonaro exultou. Vinha projetando o fantasma do ex-presidente como adversário, agora o tinha na realidade. E a Lula sempre interessou o confronto com Bolsonaro. Ambos querem uma disputa de recíproca rejeição acreditando, cada um, que o outro tem pior conceito na praça. 

Este cenário é responsável pela ressurreição, nestes recentes episódios nada espontâneos, do aviso do general Villas Bôas ao STF sobre a inconveniência de restaurar os direitos eleitorais de Lula. Um episódio de dois anos atrás, subitamente atualizado pela edição do livro de memórias do ex-comandante, com novas revelações. Entre elas a de que o Alto Comando do Exército referendou a pressão que exerceu sobre a Suprema Corte. 

Desta vez, com um agravante: a explosão do apoio aos militares do núcleo de extremistas que sustentam Bolsonaro. Até como pretexto para mais uma vez agredirem o Supremo, o saco de pancadas do grupo. 

Uma frente que expõe a geleia geral de obscurantismo, negacionismo, diversionismo, golpismo e provocação. 

Como se o tempo tivesse dado uma meia-volta, volver. 

Tal enredo ainda não está consolidado. Nada impede que o STF contorne polêmicas e adote uma solução híbrida. Reconheceria a suspeição do juiz Sérgio Moro, mas não restabeleceria os direitos políticos de Lula, que permaneceria inelegível. E já houve precedente desta combinação: a decisão de Lewandowski, agora com sinais trocados, no impeachment da ex-presidente Dilma. Foi deposta, mas sem perder seus direitos políticos. 

Estará permeando este julgamento a animosidade jamais superada dos militares com a esquerda. Perfeitamente correspondida. 


Folha de S. Paulo: Apoio evangélico em 2022 indica Bolsonaro na ponta e entraves a Doria, Huck e PT

Pastores que marcharam junto com governador de SP agora dizem que o tucano perdeu moral com as igrejas

Anna Virginia Balloussier, Folha de S. Paulo

Num grupo de WhatsApp, um pastor brinca que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) atingiu imunidade de rebanho no eleitorado evangélico. Estaria protegido, assim, contra o "vírus de esquerda" por contar com a ampla maioria de uma fatia que representa cerca de 30% dos brasileiros.

Mas não é só o campo progressista que precisa se preocupar com a fidelização ao bolsonarismo dos principais líderes evangélicos do país —estima-se que 70% do segmento tenha aderido a ele em 2018.

Muitos pastores que marcharam junto com o governador João Doria (PSDB) agora dizem que ele perdeu moral com as igrejas. E isso, apostam, sairá caro na eleição de 2022, caso ele consiga pôr de pé uma candidatura presidencial.

No dia 19 de novembro de 2020, o pastor Silas Malafaia postou uma foto: ele, o apóstolo César Augusto, da Igreja Apostólica Fonte da Vida, e Bolsonaro, "num bate-papo sobre o Brasil agora à tarde". Duas pontes entre o presidente e essa parcela religiosa, eles dizem que o tucano não é sequer cogitado no pastorado.

"Nunca vi tanto o Doria quanto o [Luciano] Huck se posicionarem a favor dos valores que defendemos. Como disse, evangélicos apoiam os valores conservadores. Bolsonaro até então é o único que os tem", afirma Augusto à Folha.

Sobre o "mocinho engomado", como Malafaia chama o governador, tem a dizer: "A ideia que a liderança tem é a de que ele é traíra. O cara que você não pode confiar, o verdadeiro escorpião. Traiu Alckmin, depois Bolsonaro".

Em 2018, Doria escanteou seu padrinho político no PSDB, o ex-governador Geraldo Alckmin, e se elegeu pregando o voto BolsoDoria. Agora, faz oposição feroz ao titular do Palácio do Planalto. Se muito, conseguirá "arrumar algum pastor aí pra enfeite" em 2022, diz Malafaia.

Augusto e ele já tiveram um lugar no coração para o governador. Em 2017, o pastor carioca disse à Folha que, embora preferisse Bolsonaro, o tucano —então prefeito paulistano— faria "um bem danado ao Brasil" e daria um "ótimo presidente", isso "se não descambar".

Já Augusto começou aquela campanha endossando Alckmin, que acabaria em quarto lugar no primeiro turno, contrariando o favoritismo inicialmente previsto.

Um ano antes do pleito, o apóstolo foi recebido pelo tucano, que à época controlava o Palácio dos Bandeirantes. Ali o instigou: Deus o convocaria a concorrer à Presidência de novo (já havia perdido em 2006, para Lula). O pastor mudou de lado perto da reta final, quando a vitória de Bolsonaro se avizinhava.

A simpatia por Doria, então aposta de Alckmin, veio por extensão. Augusto diz que nutria a esperança de que "ele abraçaria os valores que apoiamos", e que o tucano ganhou pontos por se acoplar ao bolsonarismo antes da eleição.

Fato é que, ao se mudar para o Bandeirantes, Doria diminuiu o contato com pastores. "O distanciamento, além da pandemia, também se configura pelo próprio cargo: políticas públicas são mais fáceis de serem implementadas no âmbito municipal do que estadual", diz Carolini Gonçalves, presidente do Núcleo Cristão do PSDB em São Paulo.

Coordenador de Assuntos Religiosos do grupo tucano, o pastor Luciano Luna lembra que Doria foi muito próximo, enquanto prefeito, dos evangélicos. "Ele e Bruno [Covas, seu sucessor] conseguiram muitas conquistas pras igrejas, em relação a alvarás e licenciamentos."

Os humores eleitorais sempre foram fluídos na liderança evangélica. Malafaia é um bom estudo de caso.

Em 1989, apoiou Leonel Brizola e, no segundo turno, Lula, por então vê-lo como "um cara que vem da classe baixa, do sofrimento do pobre". Depois, ladeou com FHC (PSDB), voltou a exaltar o lulismo, então defendeu os tucanos José Serra e Aécio Neves.

Debates progressistas aceleraram o divórcio entre o PT e os pastores evangélicos de maior alcance nacional —como Edir Macedo e José Wellington Bezerra da Costa.

O desgaste gerado por um projeto que combatia o bullying homofóbico nas escolas, apelidado por conservadores de kit gay, é um ponto de inflexão. Formulado por ONGs a pedido da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, o material foi acompanhado pelo Ministério da Educação sob guarda de Fernando Haddad. Acabou suspenso após ser bombardeado por vozes religiosas.

Em 2018, um católico com fortes laços no pentecostalismo brasileiro conseguiu a proeza de reunir em torno dele um segmento tão pulverizado quanto o evangélico.

Jair Bolsonaro, casado com uma evangélica e batizado ele próprio, de forma simbólica, nas águas do rio Jordão pelo hoje presidiário Pastor Everaldo, permanece como predileto no que podemos chamar de nata do pastorado nacional.

Se já era de se esperar o azedume com que se referem a políticos da esquerda, outro nome malquisto é o de Luciano Huck. O apresentador, figura mais ao centro e com entrada na direita, nunca oficializou sua intenção de se candidatar, mas essa hipótese circula livremente em Brasília.

Com sogros evangélicos, Huck nunca teve uma relação azeda com o segmento. Já recebeu estrelas da música gospel em seu programa de TV e tem bom trânsito em estratos mais carentes do país, onde a participação evangélica é forte.

Com a polarização dos últimos anos, contudo, sua ligação com a Globo virou vidraça —muitos pastores reproduzem o discurso de "Globo Lixo" que Bolsonaro dissemina.

Seu posicionamento em temas morais, mais progressista, também joga contra ele. Há ainda quem resgate imagens dele com Tiazinha e Feiticeira, personagens sensuais do programa que apresentava na Band nos anos 1990.

A possibilidade de a esquerda voltar a abocanhar votos evangélicos em massa é vista com descrença, o que se estende a outros atores do campo, como Ciro Gomes (PDT) e Guilherme Boulos (PSOL). Mas o fogo maior é contra o petismo.

"Com todo o respeito, em 2018 o PT pegou uma meia dúzia de gente sem nenhuma expressão no mundo evangélico", diz Malafaia. "Dá até vergonha os caras que apoiaram, não tem expressão."

Refere-se aos pastores que se alinharam a Haddad em 2018 —que pode repetir a candidatura ano que vem, caso condenações judiciais impeçam mais uma vez que Lula entre no páreo.

Coordenador no núcleo evangélico do PT, Luis Sabanay afirma que o partido perdeu votos sobretudo na população pobre, "onde a presença evangélica é significativa". A "divinização da imagem de Bolsonaro" somada a artifícios "para destruir a imagem do PT" agravaram o quadro.

Pastor presbiteriano, ele questiona se líderes como Macedo e Malafaia estão a fim de papo. "Não digo que foram aliados dos governos petistas, mas eles tinham canais de diálogos abertos. Romperam porque tinham outro projeto."

Sabanay prefere focar em fronts socioeconômicos para reconquistar esse eleitor. Defende "um maior diálogo com as classes empobrecidas nas periferias urbanas e rurais, onde os impactos do desmonte das políticas sociais e da crise sanitária [a pandemia] são devastadores".

O PT explorou bem esse ângulo em 2002, quando lançou a Carta aos Evangélicos. Nela, Lula enfatizou "projetos de promoção social" e de "resgate dos marginalizados", para depois agradecer "o amor cristão que vocês têm demonstrado por nós".

O amor acabou? Talvez não na base, pondera Ana Carolina Evangelista, diretora-executiva do Instituto de Estudos da Religião.

"Importante lembrar que no primeiro turno de 2018, quando o Lula ainda era o candidato, liderava as intenções de voto no segmento evangélico, sempre seguido de perto por Bolsonaro. Não por acaso as lideranças evangélicas também demoraram para declarar seu apoio [a Bolsonaro]."

Dados da última eleição revelam que esse eleitorado elegeu representantes "a partir de pautas que se relacionavam com a forma pela qual as crises econômicas e de segurança pública afetavam suas vidas, não apenas por orientação religiosa", afirma.

"Ao mesmo tempo, também é uma base que vem se movendo por valores cada vez mais conservadores, não apenas morais, mas na educação e na segurança pública."

Os pastores "estarão onde estiver o poder e a chance de vitória, não importando em qual espectro", diz Evangelista. "A história mostra isso."


Bruno Boghossian: Pazuello culpa mutações do coronavírus para tratar pandemia como surpresa

Ministro fala em 'nova etapa' e tenta reduzir responsabilidade por tragédia continuada

Eduardo Pazuello descobriu o tamanho da "gripezinha". Depois de uma reunião nesta quinta (25), o ministro da Saúde culpou as mutações do coronavírus pela situação crítica registrada em várias cidades do país. "Estamos enfrentando uma nova etapa dessa pandemia. O vírus mutado nos dá três vezes mais contaminação", declarou.

Apesar de ocupar o cargo há nove meses, o general falou como se tivesse acabado de chegar ao gabinete. O discurso da "nova etapa" parece um esforço para pintar a tragédia continuada como uma crise imprevista. O objetivo é buscar uma rota de fuga e apagar o comportamento desastroso do governo no último ano.

Pazuello apontou as mutações como vilãs inesperadas, mas a microbiologista Natalia Pasternak explica que o surgimento delas era previsível. "Variantes aparecem em locais onde o vírus corre solto. Não fomos pegos de surpresa", diz. "Elas são preocupantes, mas isso não quer dizer que a situação estava sob controle. As variantes agravam o problema."

O ministro disse ter monitorado o surgimento dessas cepas em outros países e citou o Reino Unido, onde o governo impôs medidas de restrição assim que descobriu detalhes de uma nova mutação. Pazuello quase demonstrou espanto com a variante brasileira P1 e com o colapso de hospitais pelo país. Ele só não quis dizer que essa linhagem já é conhecida por aqui há pelo menos 40 dias.

Em busca de imunidade, o general afirmou que havia uma "situação de estabilidade" em novembro e que esperava manter a situação com a chegada da vacina. Três meses se passaram, e o governo não consegue enviar para o lugar certo as doses que tem. Para piorar, continua brigando com laboratórios que poderiam ampliar a oferta de imunizantes.

O general acordou atrasado. O Brasil tem uma média diária superior a 1.000 mortes há mais de 35 dias, mas Pazuello só quis reconhecer o problema agora. Segundo Pasternak, há tempo para contornar a crise: "O que não se pode fazer é jogar a culpa na variante e cruzar os braços".


Eliane Cantanhêde: Petistas e bolsonaristas, tudo a ver no 'nacionalismo' e na 'visão social'

Bolsonarismo e PT, tudo a ver na Lava-Jato, Moro, MP, mídia, Petrobrás, reformas e mercados 

Em nome de um “nacionalismo” anacrônico e de uma “visão social” puramente populista, vale tudo, até o PT apoiar a clara intervenção que derrubou as ações da Petrobrás e a credibilidade do Brasil mundo afora. O resultado é uma curiosa situação: o presidente Jair Bolsonaro corre para jurar que é o que não é, liberal, privatizante e respeitador das estatais, enquanto petistas defendem o que Bolsonaro realmente é, corporativista, estatizante e intervencionista. Coisas do Brasil. Coisas da polarização. 

O “novo” Congresso aproveita o ensejo. Primeiro, a Câmara pagou pedágio, confirmando a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) determinada pelo Supremo. Depois, escancarou as porteiras, não para as boiadas do ministro Ricardo Salles, mas para as suas próprias boiadas. Com o enterro da Lava Jato, sem choro da esquerda nem vela da direita, o ambiente é bem favorável. A hora é agora! 

A tal PEC da imunidade parlamentar, carimbada como PEC da impunidade, surgiu do nada, sem aviso prévio e sem passar por comissões e ritos antes de desabar direto no plenário. Seu efeito mais estridente é que deputados e senadores dificilmente poderão ser presos. Num resumo caricato, se Sua Excelência for pego, fotografado e filmado com a mão na botija, roubando dinheiro público, vai ter tempo para articular e se livrar. 

Um ministro do Supremo, digamos, Alexandre de Moraes, não vai poder mais mandar prender em flagrante um deputado, digamos, o bolsonarista Silveira, quando ele atacar a democracia e as instituições e, de quebra, cometer um crime comum: ameaçar dar uma surra num ministro da alta Corte. Qualquer decisão terá de esperar o plenário do STF e depois a Câmara. 

A intenção, como admite o novo presidente da Câmara, Arthur Lira, é evitar que a coisa chegue até onde chegou com Daniel Silveira – que está na cadeia – e estabelecer que só o próprio Congresso possa autorizar cassação ou punição a parlamentares. Deixa para o Conselho de Ética da Câmara, aquele que devidamente cassou o mandato da deputada Flordelis, ré pelo assassinato do próprio marido. E para o Conselho do Senado, que diligentemente puniu o “senador da cueca”. O quê? Não foi bem assim?! 

Na admissibilidade da PEC da impunidade, como na defesa da intervenção na Petrobrás, lá estavam juntos bolsonaristas e todos os outros “istas”: emedebistas, peessedebistas, pepistas, trabalhistas e... a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Todos abraçados ao Centrão para se autoblindarem e se tornarem mais cidadãos do que o “resto” dos cidadãos. No dia em que o Brasil chorava a marca de 250 mil mortos na pandemia, o Congresso fazia a festa da impunidade e o Planalto, a da aglomeração sem máscara para duas posses desimportantes. 

A polarização de 2018 parece sólida como uma rocha para 2022, mas os dois extremos já não parecem tão opostos como pareciam em questões centrais: Lava Jato, Sérgio Moro, Ministério Público, mídia, independência da Petrobrás, estatização, reforma da Previdência, reforma administrativa, populismo e até os arranjos “de bastidores” no Congresso. Ou alguém esqueceu que o PT estava com o pé na campanha do candidato de Bolsonaro para a presidência da Câmara? E que apoiou o candidato dele no Senado? 

A rejeição ao mercado está neste contexto. Da boca para fora, bolsonaristas e petistas atacam; entre quatro paredes, a história é outra. Tanto nos dois governos Lula quanto no governo Bolsonaro as relações com o grande capital, os maiores grupos empresariais e as eternas “elites dominantes” são bem confortáveis. Até os ataques e estranhamentos estão devidamente “precificados”, para usar um termo do próprio mercado. 

Bom 2022!


Ricardo Noblat: Intervenção na Petrobras une PT a Bolsonaro

E quem pensava que já assistira a tudo....

Além da Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo, onde pulsa o coração do mercado financeiro, quem mais votou em Jair Bolsonaro para presidente por acreditar na sua súbita conversão ao liberalismo de Paulo Guedes, seu futuro ministro da Economia?

A massa gigantesca de votos que quase o elegeu direto no primeiro turno pouco ou nada entende de liberalismo e de economia, juntos ou separados. Havia um desejo gigantesco de mudança e uma repulsa generalizada à política tradicional.

Então se escolheu um até então desconhecido deputado federal do baixo clero que se dizia não político e contra tudo o que ali estava. Portanto, não se diga agora que ele traiu seus eleitores ao intervir na Petrobras. Pode ter traído, se muito, a Brigadeiro Faria Lima.

É no que dá acreditar naquilo que não é, mas que se gostaria que fosse. O capitão que repetia o pouco que Guedes lhe ensinou revelou-se outra vez o estatizante que sempre foi. É curioso que até aqui somente o PT tenha saído em seu socorro.

Bolsonaro e PT, tudo a ver em alguns pontos: ambos anti-mercado, anti-capitalismo e pró-estatizante. Ambos populistas com um forte viés autoritário que pelo menos Lula, em seus dois governos, tentou por sabedoria amenizar, mas Dilma mão de ferro, não.

Filho de um general nacionalista que morreu, o economista Aloizio Mercadante (PT-SP), que foi ministro da Educação e da Casa Civil do governo Dilma, apressou-se eufórico em mandar um recado para os militares brasileiros:

– Não se rendam ao mercado financeiro e aos interesses especulativos. Parem a privatização das refinarias, defendam uma Petrobrás forte e tragam uma política de preços justa para o povo, para os caminhoneiros e para os motoristas de aplicativos.

Saudou o general Joaquim Silva e Luna, o futuro presidente da Petrobras, como “um militar nacionalista”. Lembrado de que Bolsonaro extrairá dividendos eleitorais caso controle os novos reajustes de preços dos combustíveis, justificou-se:

– Ao contrário daqueles que nos golpearam, não apostamos no quanto pior, melhor. Assim como defendemos o auxílio-emergencial, temos que defender uma Petrobrás para os brasileiros. O povo brasileiro está sofrendo agora.

De fato, está, e não só por conta do vírus que continua matando, e da falta de vacina que se agrava, mas também porque a intervenção na Petrobras tornou o Brasil mais caro para os que vivem cá, e mais barato para os estrangeiros. Na vida real é isso.

Foi de 21,6% a queda do preço das ações preferenciais da Petrobras no primeiro dia útil após anúncio da intervenção, e de 20,4% nas ações ordinárias. O Ibovespa perdeu 4,87%. O dólar subiu 1,30%, O preço das ações do Banco do Brasil caiu 11,64%.

Investidores da Petrobras preparam uma ação coletiva para questionar as perdas. A troca de presidentes fez a empresa perder 102,5 bilhões em valor de mercado. Até a semana passada, quem tomava emprestado 100 reais pagava 110. Ontem, pagou 120.

“Ninguém vai interferir na política de preços da Petrobras”, declarou Bolsonaro ante a reação do mercado. No último final de semana, ele afirmou que vai reduzir em 15% o preço do diesel e da gasolina. O que ele diz não se escreve, mas produz estragos.

O economista Roberto Castelo Branco, que passará o cargo ao general Luna, era bem tratado pelo governo até outro dia. Se a política que ele conduzia na Petrobras não sofrerá nenhum tipo de alteração, por que mandá-lo embora?

Certamente não será porque Bolsonaro queria que ele investisse numa campanha milionária de propaganda do governo a ser veiculada no SBT e na Record, emissoras que fazem parte do Sistema Bolsonarista de Televisão. Castelo Branco não quis.

Em queda nas pesquisas de intenção de voto, sem que a economia se recupere como ele havia prometido, com a inflação em alta e com o índice de desemprego se aproximando dos 18%, o problema de Bolsonaro não é Castelo Branco, mas Guedes.

No fundo, para seguir sonhando com a reeleição, Bolsonaro precisa libertar-se das amarras do ministro da Economia para gastar mais e fazer negócios. A Petrobras é uma mina de negócios como demonstrado por governos anteriores.

O Brasil só não quebrou ao fim do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso porque Bill Clinton, à época presidente dos Estados Unidos e amigo dele, socorreu-o com um empréstimo. Reeleito, Fernando Henrique desvalorizou o Real.

O ciclo da valorização das commodities evitou que o Brasil quebrasse durante a crise financeira mundial de 2008. Lula, o presidente, cambaleava sob os efeitos do escândalo do mensalão do PT e as contas públicas desarrumadas. Sobreviveu.

Para reeleger-se, Dilma segurou o reajuste de preços dos combustíveis e da energia elétrica, causando um rombo nas empresas envolvidas que repercutiu em toda a economia. Depois, quando quis voltar à ortodoxia, não teve mais tempo.

Sem risco de impeachment e com o apoio militar que Mercadante tanto preza, Bolsonaro poderá ir no rastro de Dilma na esperança de se dar bem. Quanto à Brigadeiro Faria Lima, não passa de “um rebanho eletrônico”. Foi o general Mourão quem disse.


Correio Braziliense: 'Não podemos deixar Bolsonaro sozinho na pista', diz Haddad

Ex-prefeito de São Paulo anuncia que o partido não vai esperar 2022 para pressionar pela vacinação, pela volta do auxílio emergencial e pela geração de empregos, áreas em que considera que o governo fracassou

Luiz Carlos Azedo e Denise Rothenburg, Correio Braziliense

Liberado pelo ex-presidente Lula para desfilar como pré-candidato do PT à presidência da República, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que representou o Partido dos Trabalhadores na última eleição presidencial, dá a largada à sua pré-campanha acusando o empresariado brasileiro de ter "contratado o caos" em 2018 ao apoiar Jair Bolsonaro em "troca de dinheiro miúdo" e alguns por "dinheiro graúdo", referindo-se à expectativa de privatização da Eletrobras e da Petrobras,que faziam parte dos planos de Paulo Guedes.

Nesta entrevista ao Correio, ele anuncia que o partido não vai esperar 2022 para pressionar pela vacinação, pela volta do auxílio emergencial e pela geração de empregos, áreas em que avalia que o governo fracassou. "Não podemos deixar Bolsonaro sozinho na pista", afirma Haddad, que considera Bolsonaro uma pessoa "perigosa". Quanto à rejeição ao PT, que levou o partido à derrota em 2018, ele considera que passou: "A rejeição ao Bolsonarismo já superou essa. Hoje, mais de 50% da população não quer a continuidade dessa loucura que virou o país, que é um país necrófilo, cultivando a morte, o desemprego, o desalento", diz. A seguir os principais pontos da entrevista.

O senhor já é o pré-candidato ou o PT pode apoiar outro partido?

Eu acredito que é natural que uma pessoa que tenha ido ao segundo turno de uma eleição presidencial seja lembrada pelo próprio partido. Mas nós sabemos que estamos lutando há muitos anos para provar a parcialidade do juiz Sergio Moro no julgamento do Lula. Entendemos que conseguimos recolher mais do que evidências. Recolhemos provas cabais de que o Moro agiu como chefe da acusação, o que é vedado por lei. Quero crer, até pela declaração de vários ministros, de que querem Justiça e não perseguição, que nós temos uma possibilidade de resgatar a democracia no Brasil. Não podemos abdicar da democracia. Não se trata de nomes, se trata de Justiça. Agora, o Lula, realmente, me pediu, conforme revelei, que não aguardemos isso. Não temos o mando dos prazos judiciais. Sabemos que a Justiça será feita, mas não sabemos quando. Temos que ter clareza que o Bolsonaro não pode ficar sozinho, em campanha, com um plano de ação atroz, que tem trazido tanta desgraça para o povo brasileiro. Esse é o sentido do meu afastamento da sala de aula para me colocar à disposição do PT até as eleições de 2022. Esse é o sentido, não deixar Bolsonaro só.

O senhor já deve ter uma proposta de programa esboçada. Quais seriam as três prioridades de debates nesta pré-campanha eleitoral?

Não podemos aguardar 2022 para pressionar o governo a vacinar as pessoas. Essa sabotagem que o governo Bolsonaro fez com a vacina e com o isolamento social, que trouxe tanto desemprego e sofrimento para as famílias brasileiras, será uma agenda das caravanas já em 2021, não vamos aguardar 2022 para discutir isso, emprego, renda e saúde pública. Não podemos deixar Bolsonaro sozinho na pista. Vamos discutir com a população a vacinação e o auxílio emergencial imediatamente. Agora, evidentemente, a economia brasileira está totalmente desorganizada e temos uma situação de queda brutal do investimento público, temos que encontrar espaço orçamentário para gerar emprego. É uma ilusão imaginar que vamos poder contar com o investimento privado em substituição ao público. Isso nunca aconteceu. Está aí o Joe Biden lançando um plano de US$ 2 trilhões para recuperar a economia americana, contrariando toda a cartilha neoliberal. Temos que ter clareza que precisamos gerar empregos no país e o PT é um partido que mais gerou empregos na história do Brasil. Foram 20 milhões em 12 anos, sabemos fazer isso. Obviamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem que ser reforçado, porque provou que é o instrumento que temos de política pública na área da saúde. E, lamento dizer, vamos encontrar a educação, que pouco se fala no Brasil, em situação de extrema penúria.

Como assim?

O Bolsonaro destruiu o sistema educacional brasileiro. Até como ex-ministro da Educação, teremos uma tarefa enorme de reconstruir o sistema educacional brasileiro. O Ministério da Educação se negou a coordenar ações das secretarias estaduais e municipais. Cada um está dando um tiro para um lado. Provavelmente, vamos ter uma pandemia de crianças e professores, que estavam antes resguardados. Não houve planejamento para a volta às aulas presenciais. O Ministério da Educação não deu nenhuma entrevista coletiva organizando o país na área educacional. Bolsonaro tem nomeado interventores nas universidades e institutos federais ao arrepio da lei, está cortando verba de ciência e tecnologia. O corte já chega a 70% do pico do nosso investimento. E a cultura está destruída no país. Não há financiamento para geração de empregos na área da cultura. Então, temos um desafio enorme nessas áreas que dialogam com o futuro, ciência, educação, artes, cultura.

Não seria tarefa dos estados organizar a volta às aulas presenciais nas escolas de ensino médio e fundamental, uma vez que esses níveis são atribuição deles?

A Constituição não diz bem isso. A Constituição diz que a União tem o papel de coordenador em todas as ações federativas. E, no caso da educação e da saúde, isso é textual: o governo federal nunca pode lavar as mãos. Nunca. Em área nenhuma. Na educação e na saúde tem uma recomendação expressa na Constituição. Os apoios técnico e financeiro são obrigações constitucionais da União frente ao SUS e aos sistemas educacionais.O governo Bolsonaro não fez nem uma coisa, nem outra. Nem o Pazuello, nem o ministro da Educação. Estamos no quarto ministro da Educação. Jamais se dispuseram a coordenar as ações com equipes de sanitaristas, epidemiologistas que pudessem fazer uma programação coerente. Estamos falando de um quarto da população que está em sala de aula. Não estamos falando de pouca gente. Mais de 50 milhões de brasileiros são estudantes, professores e funcionários de escola. Se somarmos as universidades, estamos falando de quase um terço da população.

Para 2022, seu principal concorrente é o juiz Sergio Moro, o único que, nas simulações de segundo turno, ultrapassa Bolsonaro. Isso deixa evidente que essa variável da Lava-Jato ainda tem peso nas eleições. Como lidar com isso?

Há uma confusão proposital entre combate à corrupção e o que aconteceu em Curitiba. No meu ponto de vista, o que aconteceu em Curitiba também pode ser classificado como corrupção. Do sistema de Justiça. Você não pode simplesmente perseguir politicamente uma pessoa como projeto político, não pode fazer isso. Eu, se fosse juiz, não perseguiria Bolsonaro por crimes ficcionais. Ele tem que responder pelos crimes que cometeu porque tem prova. Por exemplo, quando a gente acusa Flávio Bolsonaro pelo desvio de verba pública em gabinete, não é uma acusação feita ao léu. Você tem lá a conta-corrente, o dinheiro sendo transferido de uma conta para outra, inclusive envolvendo a esposa do presidente da República. Você tem um acúmulo de patrimônio que jamais uma pessoa como Bolsonaro conseguiria amealhar, patrimônio imobiliário, loja de chocolate. Ou seja, está feito um nexo entre uma coisa e outra. Agora, você não pode usar, corromper o sistema, para fazer política. É isso que juristas do mundo inteiro e, não sou eu que estou dizendo isso, condenam a maneira como o juiz Sergio Moro se comportou. Agora, toda a legislação anticorrupção é do nosso governo, todo o fortalecimento da polícia, do Ministério Público, é do nosso governo. Esse governo está fazendo o contrário. Está enfraquecendo o combate à corrupção. Então, não vai ser o juiz Sergio Moro que vai me ensinar uma coisa que eu sei de cor. Passei pelo Ministério da Educação com R$ 100 bilhões de Orçamento, passei pela prefeitura de São Paulo, com R$ 60 bilhões de orçamento, e você nunca ouviu de ninguém que não foi feito um combate pesado contra a corrupção. Inclusive, em São Paulo, desbaratei uma máfia do INSS, recuperei quase meio bilhão de reais para a cidade. O Moro é que tem se explicar.

Embora o senhor diga que Sergio Moro extrapolou, há uma rejeição ao Partido dos Trabalhadores. Como o senhor vai lidar com isso?

Primeiro, acho que a rejeição ao bolsonarismo já superou essa. Hoje, mais de 50% da população não quer a continuidade dessa loucura que virou o país, que é um país necrófilo, cultivando a morte, o desemprego, o desalento. Então, acho que vai crescer esse sentimento na sociedade, de que nós não podemos continuar assim. Como vai crescer também a compreensão sobre o que de fato aconteceu. Do meu ponto de vista, houve, efetivamente, a partir de um cartel de empreiteiras, a captura da direção da Petrobras, e, diga-se de passagem, diretorias que eram ocupadas por pessoas de carreira, com mais de 30 anos de casa. Não foi gente de fora da Petrobras que organizou o cartel das empreiteiras. Agora, se foi possível desbaratar aquele cartel, só foi possível pelo fortalecimento das instituições promovido pelos nossos governos, que é o oposto do que está sendo feito hoje. Então, acho que a gente tem que falar com muita transparência. Não podemos cair no erro da criminalização generalizada. Às vezes ouço falar, ah, a imprensa brasileira é uma porcaria. De que jornalista está falando? De qual veículo. Sabe? Quando começa a generalizar…

O senhor é a favor do impeachment?

Não fui a favor do impeachment em 2019, não falava disso. Agora, fui a favor quando ele cometeu crime de responsabilidade, e dois muito graves: um, participar de atos antidemocráticos. O presidente da República não pode fazer isso. É expresso na lei do impeachment: não pode atentar contra o exercício dos outros Poderes. O presidente da República não pode constranger os outros Poderes na base da violência, tem que argumentar. Não pode intimidar os poderes da República. Isso é crime previsto em lei e ponto. Tem que afastar. Dois, o que fez na crise sanitária. Para mim, é crime de lesa-humanidade. Se nós tivéssemos um presidente decente, teríamos menos de um terço das mortes que tivemos, seguindo recomendações de qualquer epidemiologista, qualquer sanitarista. Então, ele é, sim, responsável pelas mortes.

Na hipótese de impeachment, assume Hamilton Mourão. Qual seria sua posição em relação a um governo dele, que, de certa maneira, assumiria com o seu apoio?

Não, veja bem: quando fomos a favor do impeachment do Collor, à época, todos os partidos votaram a favor. O PT não aderiu ao governo do Itamar, embora o Itamar fosse uma pessoa proba e responsável. Assumiu a Presidência legitimamente. Não aderimos ao governo, com exceção da Erundina, que foi um caso isolado e que contrariou a orientação partidária. Permanecemos na oposição, mas sempre a favor da democracia. O PT não faz toma lá dá cá com governos liberais, de direita. A gente respeita a direita. É uma força política que tem total condição de disputar hegemonia na sociedade. O PT é o maior partido de centro-esquerda e não de direita. A direita tem todo o direito de existir, como nós temos o direito de existir. O impeachment não pode ser negociado na base do toma lá dá cá, tem que ser aprovado ou não seguindo a regra constitucional: cometeu crime de responsabilidade? Está matando brasileiros? Se insurgiu contra a democracia? É crime previsto em lei. Teríamos poupado, pelo menos, 150 mil vidas, se Bolsonaro fosse afastado há um ano. Em primeiro lugar, falamos, esse senhor não tem condição de gerir essa crise, vai arrebentar esse país. E olha o que aconteceu. Tudo o que dissemos no começo do ano passado, demonstrou ser a mais pura verdade. Ele é um homem destrutivo. Tem prazer nisso. É impressionante.

A preços de hoje, Bolsonaro tem uma vaga no segundo turno em 2022. O que leva o senhor a crer que o resultado será diferente de 2018?

O Bolsonaro só ganhou com base numa mentira: de que eu era o extremista que ele era. Mentiram para a sociedade. Vocês me conhecem há muitos anos. Comparar a minha biografia de professor, democrata, lutei pelas diretas, lutei pela Constituinte, fui para a sala de aula estudar o Brasil, estudar o mundo. Fui ministro da Educação, fui prefeito de São Paulo.

E na esquerda, uma eventual candidatura de Guilherme Boulos lhe ajuda ou atrapalha?

É óbvio que se nós pudermos estar juntos no primeiro turno, estaremos. Não há dúvida de que faremos o esforço necessário para estarmos juntos, mas quero lembrar que, em 2018, tinham quatro candidatos até o dia da inscrição de chapa e nós só conseguimos fazer aliança com o PCdoB e mais ninguém. No domingo da inscrição de chapa, às 23h, faltando uma hora para o término do prazo. Obviamente, a situação hoje é melhor, porque temos mais tempo para sentarmos à mesa e discutir. A situação está mais clara sobre o que de fato acontece no Brasil do que estava em 2018. Muitas informações foram reveladas e a solidariedade a Lula é muito maior hoje por parte dos partidos de esquerda do que foi em 2018. O drama que estávamos vivendo. A compreensão desse drama por parte das forças políticas é maior. E, quando falo maior, falo da centro-direita, que acordou para as ameaças que estamos vivendo. Então, acho que o quadro é outro. E podemos fazer um grande entendimento de que o candidato que for ao segundo turno, terá o apoio dos demais. E aí, um leque mais amplo do que o de 2018. É o que eu espero que aconteça. As pessoas têm todo o direito de ter o seu projeto e apresentá-lo no primeiro turno. É um direito. É para isso que tem dois turnos, para a pessoa se apresentar da forma mais adequada que considera, mas com o compromisso de, no segundo turno, derrotar o governo de extrema-direita que está no Brasil.

O senhor vislumbra um cenário de muitos candidatos em 2022?

Em 2018, tivemos 13 candidatos. Imagino que, com um ano e meio pela frente, a gente consiga ter menos do que isso, se a gente conversar e se conseguir se entender sobre o que está em jogo no Brasil. Digamos que podemos cair para seis candidatos. Mas o acordo de segundo turno precisa ter mais atenção da imprensa. É a sugestão que eu faço: ou seja, aqueles que votaram no Bolsonaro no segundo turno, em 2018, fariam o mesmo em 2022? A gente acha que precisaria explorar isso melhor para saber quem é democrata e quem não é no Brasil. Na minha opinião, quem apoia Bolsonaro hoje não tem grande compromisso com a democracia. Em 2018, poderia alegar ignorância, mas hoje não dá para alegar ignorância de quem é o Bolsonaro.

Na disputa pelo Senado, o PT apoiou Rodrigo Pacheco. Na Câmara, a decisão de apoiar Baleia Rossi foi disputadíssima na bancada. Outros partidos se dividiram. Como lidar com essas forças que implodiram?

Não acho que implodiram. Rodrigo Maia estava de saída. Achamos que ele perdeu muitas oportunidades de liderar o processo de contenção do bolsonarismo. Acredito que ele tenha, realmente, desperdiçado essas oportunidades. E hoje entendo melhor o porquê. Seu próprio partido o rifou. Ele deve estar de saída do DEM no próximo período. E o PT, então, de forma bastante disputada internamente, resolveu fazer um gesto, de ter um presidente da Câmara que não fosse bolsonarista para conter os ímpetos autoritários e antiestado do Bolsonaro. Fizemos um gesto que, na minha opinião, foi pedagógico. O que esse gesto demonstrou? Que a direita, na hora H, vai para o lado do Bolsonaro. Não aceitaram nem um deles para presidir a Câmara. Preferiram correr para o colo do Bolsonaro. Ficou muito escancarado que a direita não tem esse compromisso com a democracia, que ela batia no peito em 2018 para justificar não votar em mim. No Senado, foi algo bem diferente. Rodrigo Pacheco é um advogado, garantista, um cara centrado, que era o melhor candidato. Não era o candidato do Bolsonaro, como falam. In pectore, jamais o Bolsonaro escolheria uma pessoa como ele para presidir o Senado, mas acabou se rendendo à articulação que foi feita pelo Davi Alcolumbre, em torno de uma pessoa que agregava mais do que um candidato bolsonarista agregaria. Não foi propriamente uma vitória do bolsonarismo, ao contrário da Câmara, onde o fenômeno foi outro: o PT fez o gesto e a direita correu para o lado do Bolsonaro. Mas isso foi pedagógico, porque a população vai enxergando quem de fato é oposição a esse governo. O maior partido de oposição a este governo é o PT, não tenho a menor dúvida. É um partido grande, com mais de 50 deputados, que ainda tem densidade para se insurgir contra o Bolsonaro.

O Congresso está diante de dois fatos que vão balizar as duas Casas. Uma é a CPI da Saúde, que precisa ser instalada no Senado. E o outro é o caso Daniel Silveira. Qual sua opinião sobre essas duas questões?

A gente sempre testa as pessoas no cargo. A gente nunca sabe o que vai ser de alguém antes de a caneta estar na mão. Às vezes, o cara diz antes o que vai fazer, como o Bolsonaro disse. Mas é raro alguém dizer tudo o que vai fazer, infelizmente, porque as pessoas deveriam ser muito transparentes antes de assumir cargos de comando no país. Eu acredito que uma CPI da Saúde é necessária, porque a gente tem que estimar quantas pessoas morreram, quantas vidas foram ceifadas por absoluta responsabilidade do governo. Aí, vai se discutir a cadeia de responsabilização, se foi o Bolsonaro ou o Pazuello. Pelo menos, o ministro tinha que cair, porque ele é diretamente responsável pelo que fez. Comprar cloroquina, distribuir cloroquina, combater a vacina, não promover as encomendas necessárias para a gente estar em patamar de vacinação, não ter um gabinete de crise até hoje instalado, não coordenar as ações federais. Se isso não é improbidade, é melhor rasgar a lei, porque ninguém vai responder mais por improbidade nesse país, depois do governo Bolsonaro. Não existe improbidade mais. Ou a gente leva a sério o Brasil, ou vamos ladeira abaixo, como estamos indo. Por isso, acho a CPI da Saúde imprescindível e espero que ele (Rodrigo Pacheco) instale.

E em relação ao caso Daniel Silveira?

Prisão de parlamentar é sempre uma coisa delicada. É óbvio que esse deputado, em especial, está fustigando o Supremo talvez para provocar essa situação. Ele deu um palanque virtual bastante considerável, ele é uma pessoa das sombras, parece que já foi 90 vezes preso, segundo ele próprio. Se entendi bem o discurso dele, é uma pessoa que tem orgulho de ter sido presa 90 vezes. É uma pessoa das sombras que vem fustigando a Suprema Corte há muito tempo. Não sei se a medida mais correta é a prisão, mas, com certeza, a medida mais correta é a cassação do mandato. A quebra de decoro está caracterizada, de acordo com toda a legislação. Compreendo também que a decisão judicial da Suprema Corte tem que ser respeitada. Esse cidadão está nessa campanha, de promover ódio, de promover atentados contra a democracia, há muito tempo. Praticamente desde que tomou posse. Não sei o tipo de ameaça que os ministros vêm recebendo. Eu sei que vêm recebendo ameaças, contra a sua própria vida muitas vezes. Se amanhã se descobrir uma pessoa que está fomentando um atentado contra a vida do presidente da República, que é alguém que eu considero desprezível, sou a favor de que essa pessoa saia de circulação. Isso não é uma atitude de quem respeita a democracia. Existe lei e você não pode fomentar nenhum ato de violência contra uma autoridade constituída.

Como o senhor avalia o decreto das armas?

É outro caso que o Congresso tinha que sustar, via decreto legislativo. Onde vai parar isso? As pessoas precisam de vacina para salvar a economia. E a pessoa está preocupada em armar milicianos? Esse sujeito que foi preso, investiga a vida dele: deve ter algum parentesco ou ligação com o Adriano, que foi morto na Bahia; com o Queiroz, escritório do crime, essa turma. É muito sério o que está acontecendo. A gente precisa ler o livro do Bruno Paes Manso, sobre a república das milícias, para saber o que está acontecendo no Brasil. Temos na Presidência da República uma pessoa muito perturbada, que não tem nenhum compromisso com a democracia. Uma pessoa perigosa. Estamos falando de uma pessoa muito perigosa. Não sei se as pessoas estão atentas para isso, mas o perigo está à espreita. É muito grave.

Agora, ele tem dito que essas afirmações são feitas para tirá-lo da Presidência em 2022...

Semana passada falou em tirar de circulação os jornais. Ou seja, não tem dia que ele não atente contra a democracia. Foi passar o carnaval, com mais de mil mortos por dia, e passear em jet-ski em Santa Catarina. Que exemplo edificante ele dá sobre qualquer assunto? Está há dois anos e dois meses na Presidência da República. Não consigo ver um exemplo que se diga, aqui foi uma postura de presidente, aqui representa a alma do brasileiro. O que eu vejo é ameaça o tempo todo.

Como lidar com isso, num processo eleitoral que será tenso?

O empresariado brasileiro que apoia o Bolsonaro até hoje precisa botar a mão na consciência. Se o empresariado brasileiro não botar a mão na consciência e reconhecer que contratou o caos ao ocupar a Presidência da República com essa figura, a tensão vai aumentar. Eles precisam entender o que eles fizeram. Eles contrataram o caos. Contrataram o caos e por dinheiro miúdo. Alguns por dinheiro graúdo, Eletrobrás, Petrobras. Alguns estão de olho na compra na bacia das almas do patrimônio nacional. Mas eles contrataram o caos.

Além de ter que convencer o empresariado a pôr a mão na consciência, o PT também precisa convencer esse empresariado de que aquela situação que vivemos lá atrás, com petrolão e mensalão, não vai se repetir?

Vamos pegar o caso dos tucanos aqui de São Paulo, que governam o estado desde os anos 1990. Você tem Metrô, Rodoanel, Dersa, tudo capturado, todas essas empresas foram capturadas, você pode deduzir daí que uma figura que eu até defendi publicamente, o governador Geraldo Alckmin, estava envolvido com a captura dessas empresas? Se aparecer uma prova de que ele estava envolvido, prendam. Agora, você não pode supor que tudo o que aconteceu com aquele Paulo Preto foi sob o comando de uma liderança tucana, a não ser alguns que tinham contas no exterior. Esses precisam ser presos. Tem várias lideranças tucanas que precisam ser julgadas, porque há evidências absurdas, cartões de crédito e contas no exterior. É outro departamento. A questão do gabinete do Bolsonaro, estão lá as provas… Nada contra combater a corrupção. Mas vamos fazer isso de maneira adequada, de acordo com a lei, sem política, sem ideologia. Juízes imparciais, juízes honestos, não tem nenhum problema em avançar nessa agenda.

Em relação ao PT também?

Não tem nenhum problema, você tem milhões de filiados. Vamos pegar a igreja, um padre saiu da linha. Você defende a punição. Se você respeita a Igreja, sim. Eu respeito o meu partido, por isso defendo a punição. Tem prova contra um filiado do meu partido, paciência, eu lamento, mas eu não tenho compromisso com a coisa errada. Isso vale para a minha igreja, vale para o meu partido, vale para a minha família, vale pra todo mundo, pode ser meu filho, meu primo, meu sobrinho, errou, paga. Se eu defendo isso para a minha família, como é que eu não vou defender para a minha igreja e o meu partido? Essa coisa não existe comigo, essa questão não é partidária. Defendo que as pessoas do PSDB que não sejam culpadas, sejam absolvidas. Não posso desejar a punição para um adversário se ele não cometeu algum erro. Não quero isso para ninguém, seja de que partido for. Não quero saber, errou, paga; não errou, não paga. Tem uma lei, tem que cumprir a lei, ponto. Se você é contra a lei, lute para mudar a lei, mas enquanto a lei estiver em vigor, cumpra a lei.

E o ex-presidente Lula, qual será o papel dele daqui pra frente?

Lula nunca desrespeitou o Poder Judiciário, é bom que se diga isso. Ao contrário, ele isolava o que estava acontecendo em Curitiba do que estava acontecendo no resto do país. A briga do Lula é por justiça, não é contra A, B ou C. E o Lula, assim que estiver vacinado, está louco para se vacinar, ele já está com 75 anos, está esperando a vez dele, deve acontecer nas próximas semanas, ele se colocará à disposição do país, como sempre se colocou, para ajudar a construir uma saída.

Como fica a questão se o Lula for liberado pela Justiça para disputar as eleições?

Primeiro, vou seguir com as minhas ideias e o meu partido, independentemente da missão que me for dada. Segundo, se a Justiça chegar é muito justo que o PT reabra a discussão e o Lula possa ser candidato, que é o desejo de 100% da militância do PT. Por fim, não acho que vamos chegar ao que aconteceu em 2018. Eu estou saindo à rua, como todos os pré-candidatos, todo mundo está colocado. É um direito de cada cidadão se deslocar com segurança pelo país com uma mensagem, não sei no que isso pode prejudicar quem quer que seja, prejudicar as pessoas.

O senhor é considerado um petista light, o Lula não, é o Lula, é o PT raiz 100%, puro-sangue. Isso faz muita diferença numa disputa de segundo turno?

O único partido ao qual me filiei foi o PT e isso já tem bastante tempo. As pessoas conhecem o meu trabalho, sou a favor de que o homem público tenha sua vida passada a limpo, uma coisa é uma novidade, estou chegando agora; outra coisa é uma pessoa que tem 20 anos de vida pública. Não estou chegando agora, tenho 20 anos de experiência. Passei por cargos muito importantes, por um ministério que não era tão importante quando cheguei, mas deixei um dos maiores ministérios, mais importantes, senão o mais importante do país. Foram 8 anos só de MEC, mais quatro anos na maior cidade do país. Minha vida está aí para quem quiser virar do avesso, as decisões que eu tomei, polêmicas, não polêmicas, mas que eram polêmicas e deixaram de ser, porque se mostraram correta, a minha família, onde eu moro, os meus filhos, a educação que eu dei, tudo... O homem público tem que estar à disposição, com toda a transparência. Se eu sou mais light ou menos light, as decisões que eu tomei falam mais do que um discurso. Lula não saiu com 80% de aprovação por outra razão que não fosse a sua capacidade de diálogo, é um homem do diálogo, um homem que nunca se negou a sentar à mesa com quem quer que fosse para discutir o interesse nacional. Não me vejo dissociado disso. Não existe isso de o Haddad ser moderado, o Lula, não, como se pode inferir da pergunta. Ele é um homem de diálogo.

O senhor já tem uma experiência eleitoral em disputa com João Doria, no caso da Prefeitura de São Paulo, na qual o senhor foi derrotado. O que o senhor aprendeu com essa experiência e como o senhor lidaria com o Doria em 2022?

Em 2016, eu tive dois problemas muito graves: a situação em que estava o PT nacionalmente, que perdeu 60% dos votos no país, e na cidade de São Paulo, tinha duas concorrentes que foram prefeitas do PT, que deixaram o partido. A Luiza Erundina concorreu pelo PSol; e a Marta Suplicy, pelo MDB, que tomou o poder em 2016, a partir do afastamento da presidente Dilma Rousseff. Esse cenário foi único e as pessoas não conheciam o Doria, que se vendeu bem. Eu não acho que esse cenário vá se repetir, menos ainda no Brasil. Uma coisa é a cidade de São Paulo, outra coisa é o Brasil. E eu acredito que as pessoas tenham se dado conta também do que ele representa em termos de compromisso social e democrático, das dificuldades que sofre dentro do próprio partido. Não acho que esse cenário tenha qualquer plausibilidade em 2022.

E o Luciano Huck?

Há sempre aquela solução do bolso do colete. Olha, celebridade é celebridade, às vezes, tem o carinho da população por ser celebridade. Mas eu acho que a política, mais ainda a Presidência da República, falo isso com toda a fraqueza. Eu sempre recomendaria tranquilidade. Obviamente, uma pessoa ter popularidade em razão de um programa de auditório, ser da Rede Globo, é uma coisa; presidir o país é outra bem diferente. Mas, conhecendo a direita como eu conheço, eles são especialistas em embarcar em coisas que pra mim soam como uma aventura. As pessoas acham que para representar o Brasil num campo de futebol tem que saber jogar bola, mas pra ser presidente da República não precisa entender de economia, direito, filosofia, não precisa entender de nada disso. Eu acho o contrário, acho que as pessoas têm que se preparar. Eu acompanhei muito uma pessoa extraordinariamente inteligente, que se preparou muito para chegar à Presidência, conversou com as maiores intelectualidades do país. Lula se preparou décadas para poder ser o maior presidente da história do país, segundo todas as pesquisas. Não dá, sinceramente, não acho prudente.

E o Ciro Gomes, há conversas ou já se afastaram a um ponto que não tem mais diálogo?

Fiz um esforço enorme, no primeiro semestre de 2018, para que ele se aproximasse mais do Lula. Infelizmente, fiz quatro tentativas, duas com o próprio Ciro, uma com o Carlos Luppi e uma com o Mangabeira Unger. Não foi possível. Acho que foi um erro. Depois, no segundo turno, houve aquela atitude de sair do país e não houve mais contato. Recentemente, Camilo Santana, que é um grande governador do PT, conseguiu promover uma primeira conversa lá no Instituto Lula, tomara que as coisas mudem pra melhor.


Ricardo Noblat: Livro de general é um alerta sobre a fragilidade da democracia

Para que a história não se repita

Com seu livro de memórias recém-lançado pela Fundação Getúlio Vargas, o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército entre 2015 e 2019, atirou numa coisa e acertou em outra.

Se ele pretendeu reforçar a ideia de que as Forças Armadas não se metem em assuntos políticos pelo menos desde o fim da ditadura militar de 64, conseguiu exatamente o contrário.

Em abril de 2018, às vésperas de o Supremo Tribunal Federal aceitar ou não um pedido de habeas-corpus que poderia libertar Lula preso em Curitiba, Villas Bôas postou no Twitter:

“Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais. Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais? Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”

À época foi dito que Villas Bôas apenas refletia o ânimo dos seus companheiros de farda. Antecipava-se a possíveis manifestações raivosas de subordinados. Não queria perder o controle da tropa.

Por isso ou por aquilo, intimidado, o Supremo negou o habeas-corpus por 6 votos contra 5 e manteve a prisão de réu condenado em segunda instância. Lula continuou encarcerado.

Foi o general, que é portador da ELA, doença degenerativa do sistema nervoso, que procurou a Fundação Getúlio Vargas interessado em dar seu depoimento para a posteridade.

E o fez ao longo de 13 horas, repartidas em cinco dias, em conversa amena conduzida pelo professor e pesquisador Celso de Castro, autor de diversos livros sobre a temática militar.

Castro deixou-o falar sem contestá-lo nenhuma vez e sem pedir maiores detalhes sobre os fatos relatados. É de supor, portanto, que o general só falou o que quis, conforme planejado.

Villas Bôas conta que a mensagem postada no Twitter de advertência ao Supremo não foi obra exclusivamente sua, mas também do Alto Comando do Exército.

“Sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse”, diz Vilas Bôas. Não diz que “coisa” era, nem como ela poderia se manifestar. Uma rebelião? Uma tentativa de golpe?

Mas como, se o Exército e as demais armas são apolíticos como diz e repete o general ao longo do seu depoimento? Como, se são fielmente cumpridoras do papel que lhes reserva a Constituição?

A primeira versão da mensagem foi escrita por seu estafe e sob sua orientação, sendo submetida depois aos integrantes do Alto Comando do Exército residentes em Brasília.

Em seguida, ela foi transmitida aos demais comandantes de área para que a endossassem ou sugerissem ajustes. Recebidas as sugestões, a mensagem ganhou sua redação definitiva.

Jair Bolsonaro respirou aliviado quando leu a mensagem no Twitter. Era deputado federal e há pelo menos dois anos estava em campanha como aspirante a candidato a presidente

Neste governo, Villas Bôas, general da reserva, é assessor do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República. Ao empossá-lo, Bolsonaro emitiu todos os sinais de que lhe é grato.

Por quê? Talvez porque Villas Bôas respaldou sua candidatura à reboque de generais e de soldados que já o apoiavam. Cada quartel foi uma célula de Bolsonaro, e não será diferente em 2022.

O chefe das Forças Armadas, segundo a Constituição, é o presidente da República. É ele, e somente ele, quem em nome delas pode falar sobre temas políticos de repercussão geral.

Aos comandantes das três armas – Exército, Marinha e Aeronáutica -, cabe falar sobre assuntos administrativos e aqueles diretamente afeitos aos cargos que ocupam.

A fala de Villas Boas não foi a de um chefe que se dirige aos seus subordinados. Foi um pronunciamento em nome do Exército e a propósito do momento político que o país atravessava em 2018.

Não faltou provocação (“Quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras?”). Nem ameaça (O Exército “se mantém atento às suas missões institucionais”).

Militar não é igual a civil. O que os distingue não é só a farda que um veste e o outro não. Militar tem acesso a armas pesadas, pilota brucutu, maneja tanques e é treinado para matar.

O que um deles fala, soa diferente do civil que diga o mesmo. Porque um tem a força capaz de pulverizar literalmente quem quer que seja. O outro, só a força da palavra.

Não é apenas a saúde dos brasileiros que está ameaçada pelo vírus que o governo Bolsonaro ignorou o quanto pôde. A saúde da democracia segue sob ameaça.