Protocolo de Montreal

Carlos Andreazza: Breve roteiro para a CPI

Participei, ontem, do podcast “O assunto”, comandado por Renata Lo Prete. O tema: a CPI da Covid no Senado. Mais precisamente: as questões a serem investigadas na CPI. São muitas. E merecem desenvolvimento em texto; sobretudo porque clareiam um padrão.

Começo com o caos em Manaus. Está documentado que o Ministério da Saúde fez escolhas ali. Nada a ver com lentidão em dar respostas. Escolhas consistentes com o conjunto de posições que tomou ante a pandemia; conjunto com que o governo Bolsonaro opera — o padrão — para prolongar a permanência do vírus entre nós, o que garantirá as condições de desordem radical em que o bolsonarismo prospera.

Escolhas. Por exemplo: mesmo informado de que faltaria oxigênio, promoveu, às vésperas da desgraça, uma caravana pela cidade para difundir a adoção de tratamento precoce. E, no dia mesmo do colapso, mandou 120 mil comprimidos de hidroxicloroquina ao Amazonas. (Os responsáveis por essa ode a um medicamento ineficaz continuam no ministério; razão mais que suficiente para que Marcelo Queiroga também seja ouvido na CPI.)

Sobre cloroquina/hidroxicloroquina, precisa ser chamado o general Fernando Azevedo e Silva, então ministro da Defesa, para esclarecer a produção de milhões de comprimidos, com recursos para enfrentamento à peste, pelo laboratório do Exército.

Outra escolha do governo em Manaus: só transferir internados a outras cidades se “em situação extremamente crítica” — esta sendo aquela em que, segundo uma servidora do Ministério da Saúde, os hospitais estivessem “todos superlotados”, com “pacientes dentro de ambulâncias, indo a óbito”. Isso compõe apenas modesta porção dos motivos para inquirir Pazuello, embora não me possa esquecer das acusações — sem nome — que fez ao se despedir. Quem seria a liderança política cujos pedidos não republicanos teria se negado a atender?

Tão importante quanto investigar as escolhas do governo ante a barbárie em Manaus será analisar as várias versões oficiais — informadas e remendadas, inclusive ao Supremo — sobre as datas em que o ministério teria sido notificado sobre a crise iminente. Alguém mentiu. Há um vaivém inaceitável, que sugere trabalho para apagar rastros que comprovariam negligência.

Também será relevante apurar por que chegamos à falta de medicamentos para entubação se havia notificações formais projetando essa escassez desde maio de 2020. E se sabemos que o ministério cancelou, em agosto do ano passado, uma importação desses insumos, mesmo alertado pelo CNS sobre a projeção de insuficiência. Nada se fez. Até a situação atual.

Há as perguntas óbvias: por que o governo se negou, entre agosto e setembro de 2020, a assinar um contrato que teria nos valido doses de vacina já em dezembro, três milhões até março de 2021? Três milhões a mais de doses até o primeiro trimestre deste ano; e isso no momento em que (ainda) dependemos de Fiocruz e Butantan; e isso quando sabemos que o ministério — tendo, afinal, assinado com a Pfizer — há pouco comemorou a antecipação da entrega de um lote do imunizante outrora desprezado. Para maio...

Poderíamos ter três milhões de doses até março, mas ora celebramos um fração disso prevista para o mês que vem. Não me esqueço da justificativa para a recusa: o Brasil não aceitava uma cláusula por meio da qual o laboratório não se responsabilizaria por eventuais efeitos colaterais da vacina; dispositivo idêntico, porém, não tendo sido problema quando do acordo com AstraZeneca/Oxford.

No ano passado, o governo se jactava do que seria sua estratégia para a aquisição de imunizantes: fechar convênios bilaterais (apesar de só ter fechado um em 2020). Não havia estratégia, mas postura contaminada pela pregação ideológica contra o tal globalismo. Razão por que o Brasil, podendo contratar cobertura vacinal para 50% de sua população, optaria por aderir ao consórcio multilateral Covax, liderado pela OMS globalista, com a cota mínima, de 10%. (Convoque-se Ernesto Araújo.)

Há também o episódio CoronaVac, vacina que, até este abril, respondia por mais de 70% das aplicações no Brasil. Um imunizante atacado pelo próprio presidente. A desculpa: o brasileiro não seria cobaia nem teria o seu dinheiro posto na frente por uma vacina ainda não certificada pela Anvisa; e isso como se alguém defendesse vacinar cidadãos antes do aval da agência, e como se o contrato obrigasse pagamento anterior à certificação sanitária do imunizante.

Em 2021, porém, o critério mudou; e se passou a fazer o certo: firmar convênios com laboratórios variados, antecipando-se à avaliação da Anvisa, de modo a ter previsibilidade e ganhar tempo. Foi assim com o imunizante Sputnik V, para cuja aquisição o governo de repente se esqueceu daquele antigo rigor; sendo mesmo o caso de apurar se o lobby da farmacêutica que o fabricará aqui não teria colaborado para a postura expedita.

Registre-se que a representação — que a chegada — desse imunizante no país coincide com a campanha parlamentar, promovida pela base do governo, e sem que Bolsonaro voltasse a temer pelo uso de seu povo como cobaia, para que a Anvisa amolecesse seus controles ou fosse mesmo tornada prescindível; o que também coincide com o projeto para que empresas privadas pudessem comprar vacinas.

Ah, são tantas as questões... Espero ter ajudado.


Míriam Leitão: Os vários pontos de atrito em Brasília

O governo usou ontem a tática de tentar adiar a instalação da CPI para continuar seu bombardeio ao possível relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL). O grupo dos sete senadores, de oposição e independentes, já está trabalhando na estrutura dos trabalhos e na lista de possíveis convocados. O ex-ministro Pazuello pode ir até mais de uma vez. Primeiro, como testemunha, depois, como investigado. Em outra frente, parlamentares e embaixadores se reuniram para discutir a cúpula do clima. O cantor Caetano Veloso compareceu, como representante da sociedade civil, e deu um recado direto aos diplomatas dos Estados Unidos e países europeus. “Salles é o antiministro e este governo ataca a Amazônia.”

Os dias estão intensos em Brasília nesta semana, com um feriado no meio e uma agenda lotada. A instalação da CPI se desdobra em várias reuniões e negociações sobre a ordem dos trabalhos e dos convocados. “Não temos tempo a perder”, disse o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Ele acha que tem que começar pelos ex-ministros da Saúde. Mas há na CPI quem defenda que se chame primeiro os cientistas para mostrar, com dados, como chegamos até aqui e quais são os riscos. A convocação de Paulo Guedes é a dúvida do momento. O ex-ministro Pazuello pode ser convocado mais de uma vez, explicou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Ele pode falar primeiro como testemunha. Depois, com o andar da CPI, pode ser novamente convocado, mas como investigado.

Neste início de semana, em que ocorrerá a cúpula do clima, o procurador Lucas Furtado, do MP junto ao TCU, fez uma representação para que o tribunal requeira junto à Casa Civil o afastamento do ministro Ricardo Salles. Essa seria uma medida cautelar até que o tribunal decida sobre várias representações já apresentadas mostrando os erros, desvios de função e políticas danosas ao meio ambiente impostas pelo ministro.

Numa terceira frente o governo negociava o Orçamento. Ou melhor, era pressionado. Se adotasse a estratégia proposta pelos técnicos do Ministério da Economia, ficaria mais fraco no Congresso. A saída arquitetada é vetar partes, preservar a maioria das emendas parlamentares e liberar despesas do controle do teto. Ou seja, está sendo feita uma operação no Frankenstein orçamentário de 2021, para preservar emendas, com medo de uma reação dos parlamentares em ambiente já tenso com a CPI. Ontem, em uma live da XP Investimentos, a ministra Flávia Arruda, da Secretaria de Governo, falou em R$ 100 bilhões a mais fora da meta de primário. Depois, recuou e disse que não havia recebido as contas.

No próprio grupo de oposição mais os independentes há dúvidas. O senador escolhido para ser o presidente da CPI é definido por um senador como “imprevisível”. Esse parlamentar diz que o grupo dos sete na verdade é seis mais um. Sobre o possível relator, Renan Calheiros, ontem foi dia de ataques da milícia digital contra ele. O argumento dos bolsonaristas de que ele seria suspeito por ser pai do governador de Alagoas é fácil de ser rebatido, segundo me disse um dos parlamentares. “A CPI desde o começo foi para investigar as origens, causas e omissões do governo que fizeram o país chegar onde está. O foco é esse”, disse.Ouvi também o senador Randolfe Rodrigues. Ele diz que não há razão para adiar o início dos trabalhos e afirma que o ataque contra Calheiros veio de endereço certo:— O ataque vem das milícias bolsonaristas nas redes sociais e é coordenado diretamente do gabinete do ódio por Carlos Bolsonaro. Eles querem atrasar para tentar desgastar ao máximo o senador Renan Calheiros.

Randolfe esteve em reunião com os embaixadores dos EUA, da União Europeia, Alemanha, Noruega e do Reino Unido para discutir a cúpula do clima e os acordos com o Brasil. Além dele, estavam o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) e o senador Jaques Wagner (PT-BA) e representantes da sociedade civil. No meio, Caetano Veloso.

— A reunião era para deixar claro que somos a favor de recursos para o Brasil, mas queremos acompanhar a aplicação desse dinheiro, e que o dinheiro pode ir também para estados e municípios. Mas quem falou de forma mais clara foi o Caetano. Ele definiu Salles como o antiministro do Meio Ambiente, lembrou que este governo é negacionista e tem o objetivo de devastar o meio ambiente — disse o senador.

Esses mesmos embaixadores se reuniram com autoridades do governo brasileiro. Uma dessas autoridades me disse que nunca viu Estados Unidos e Europa tão unidos numa questão como nesta cúpula do clima.


Merval Pereira: ‘Kigali já’

A Câmara dos Deputados tem uma oportunidade rara de ajudar a recolocar o Brasil no mapa da comunidade internacional em relação à política ambiental com a ratificação, no dia 22, o Dia da Terra, da Emenda de Kigali, um adendo ao Protocolo de Montreal para redução do uso de substâncias com elevado potencial de efeito estufa nas geladeiras, freezers e aparelhos de ar condicionado vendidos no país.

Hoje, 100% do mercado japonês e a maior parte dos países europeus já adotam fluidos refrigerantes de baixo potencial de aquecimento global. Essas tecnologias começam a dominar outros mercados robustos, como o chinês e o indiano. EUA e China anunciaram apoio em conjunto à Emenda de Kigali. Sua aprovação será um aceno diplomático ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que encaminhou ao Senado americano uma orientação por sua aprovação, e também aos demais países da OCDE que estão entre os 119 que já aderiram à emenda.

Biden convidou o presidente Bolsonaro e outros 39 líderes mundiais para o encontro virtual denominado “Cúpula dos Líderes sobre o Clima”, nos dias 22 e 23 de abril, preparação para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP26, prevista para acontecer de 1º a 12 de novembro em Glasgow, na Escócia. A ratificação da Emenda de Kigali seria um trunfo para o governo em relação à redução do impacto ambiental e abriria para a indústria brasileira créditos a fundo perdido do Fundo Multilateral para implementação do Protocolo de Montreal, estimados em US$ 100 milhões, para modernizar fábricas e gerar empregos.

O projeto já passou por todas as comissões da Câmara, mas está parado há um ano, sem que seja colocado para votação em plenário. Um manifesto de entidades da indústria e de defesa da eficiência energética, de sustentabilidade e dos direitos do consumidor foi enviado ao presidente da Câmara, deputado Arthur Lira. Coordenador de energia e sustentabilidade do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), uma das organizações signatárias do manifesto “Pela aprovação de Kigali já!”, Clauber Leite diz que a expectativa é que a Câmara sinalize o compromisso do país com a agenda mundial de sustentabilidade apoiando a ratificação.

Além do Idec, apoiam o manifesto entidades como a Abrava (Associação Brasileira de Refrigeração, Ar Condicionado, Ventilação e Aquecimento), Eletros (Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos), Fecomércio-SP, Centro Brasil no Clima, Climate Policy Initiative, Instituto Ethos, entre outros. A emenda estabelece metas de redução dos gases hidrofluorocarbonetos (HFCs) em geladeiras e aparelhos de ar-condicionado.

Os mais utilizados no Brasil são até duas mil vezes mais prejudiciais ao efeito estufa que o dióxido de carbono. “Essa modernização permitiria que a indústria brasileira ficasse alinhada às inovações já presentes em mercados como norte-americano, europeu, chinês e indiano”, diz a carta.

A indústria diz que aprovação da emenda evitará que o Brasil se torne um dos últimos destinos de aparelhos obsoletos, que aquecem o planeta e têm baixa eficiência energética, elevando os gastos das famílias, do governo, da indústria e das empresas em geral com a conta de luz.

O uso de aparelhos eficientes resultaria num impacto de R$ 57 bilhões no Brasil até 2035, de acordo com um estudo do Instituto Clima e Sociedade (iCS) em cooperação técnica com o Lawrence Berkeley National Laboratory (LBNL). Do total, R$ 30 bilhões deixariam de ser gastos na geração de energia elétrica, e outros R$ 27 bilhões seriam economizados pelos consumidores na conta de luz.

“A proteção do planeta precisa ser compatível com o desenvolvimento econômico, e a busca pela eficiência energética e por produtos mais inteligentes é o melhor caminho para aliar essas duas agendas fundamentais”, diz a coordenadora da Iniciativa de Eficiência Energética do iCS, Kamyla Borges, advogada e uma das líderes do movimento pela Emenda de Kigali.