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Protesto em Embu das Artes, na Grande São Paulo. Foro: reprodução DW Brasil | Andre Penner/AP/picture alliance

Tranquilidade após vitória de Lula é traiçoeira

Philipp Lichterbeck -ColunaCartas do Rio | DW Brasil

Joe Biden disse a seguinte frase: "A democracia não pode sobreviver quando um dos lados acredita que há apenas dois resultados para uma eleição: ou eles vencem ou foram enganados." Ele falava sobre os Estados Unidos, mas poderia facilmente estar se referindo ao Brasil.

A boa notícia é que até agora a democracia brasileira sobreviveu à ameaça bolsonarista. As instituições do país estão funcionando. Os militares não estão interessados em aventuras. Grande parte da elite política tem mais interesse na estabilidade e na continuidade do que em tumultos e ruptura. O que também tem a ver com o fato de que muitos políticos esperam receber cargos e vantagens em um novo governo. É o velho "toma lá dá cá", que deveria acabar, mas que continuará fazendo parte da realidade enquanto não houver uma reforma do sistema político.

Até mesmo Jair Bolsonaro parece ter se resignado amargamente à derrota. Isso depois de, aparentemente, esperar em vão durante dois dias por uma revolta popular (armada?) e relatos de fraude eleitoral que ele poderia ter explorado. Foi impressionante a rapidez com que ele foi abandonado por aliados como Tarcísio de Freitas, Romeu Zema e Arthur Lira, que rapidamente perceberam que esta batalha estava perdida.

Discute-se orçamento em vez de "mamadeiras de piroca"

A maior parte da mídia noticiou os bloqueios em rodovias e protestos em frente a quarteis do Exército corretamente como "antidemocráticos". Apenas a Jovem Pan, com suas aspirações de virar a "Fox News do Brasil", afirmou que "o povo" rejeita Lula e agora estava levando "sua vontade" para as ruas. Como se o povo não tivesse acabado de expressar sua vontade nas urnas.

Agora, certa normalidade política retorna ao Brasil. Um sinal claro disso é a discussão sobre o orçamento para 2023, e não sobre "mamadeiras de piroca", "golden showers" ou "uma cara de homossexual terrível". Nesse processo torna-se claro quem realmente roubou do Estado brasileiro. Para garantir seu poder, Bolsonaro deixou um rombo de R$ 400 bilhões no orçamento e desmoralizou instituições construídas ao longo de muitos anos.

Os setores da educação, saúde e proteção ambiental estão em pior estado do que há quatro anos. O patriotismo de Bolsonaro, assim como a sua afirmação de fé cristã, nunca foram substanciais, mas meramente retóricos. A verdadeira bandeira de Bolsonaro não é a brasileira, mas a de seu clã.

Exemplo do trumpismo

Muitos brasileiros estão aliviados com o fim do pesadelo dos constantes tumultos, insultos e escândalos. Mas essa tranquilidade é uma ilusão.

Está de volta uma rotina que os bolsonaristas não querem de modo algum. Eles se veem como um movimento revolucionário e disruptivo contra um establishment de esquerda, que domina as instituições, o Judiciário, a mídia e as universidades. A Jovem Pan, portanto, está certa sobre uma coisa: este movimento fanático nunca aceitará Lula, e sim afirmará para sempre que Lula é o maior ladrão da história e que não deveria ter recebido permissão para concorrer novamente à Presidência.

Tão inteligente e eloquente quanto pouco escrupuloso e perigoso, uma figura como o deputado federal eleito Nikolas Ferreira já anunciou que seu principal objetivo será causar problemas e atrapalhar. O novo governo deve ser obstruído da forma mais brutal possível.

O modelo  vem dos EUA, onde o trumpismo sequestrou o Partido Republicano e o transformou em um instrumento de fanatismo religioso, separatismo e irracionalidade. O trumpismo não é patriótico, como alega, mas uma ameaça à democracia e à unidade dos Estados Unidos, que correm o risco de se desintegrar se Trump continuar a ter sucesso.

A narrativa da fraude eleitoral já circula no Brasil: Bolsonaro se tornou vítima de uma conspiração que ninguém pode provar, mas da qual os bolsonaristas estão firmemente convencidos. A narrativa de ser vítima é central para todos os movimentos de extrema direita ao redor do mundo. Por quê? Porque se você é vítima, você tem o direito e até mesmo a obrigação de se defender.

Pode-se notar a profunda frustração por meio das postagens repletas de ódio contra moradores de favelas, nordestinos, negros e outros eleitores de Lula. Como se tivesse ocorrido uma grande injustiça que precisa ser revertida.

Lula pode pedir unidade, paz e reconciliação o quanto ele quiser. Ele e sua coalizão podem tentar voltar à política normal. Mas com estes extremistas não haverá unidade, paz, reconciliação e política normal.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Matéria reproduzida do portal DW Brasil