Presidente

Bernardo Mello Franco: Rosa deu uma aula pública a Bolsonaro

Presidente do TSE usou a diplomação para cobrar respeito às minorias. Ela lembrou que proteger os direitos humanos é uma obrigação, e não uma escolha dos governantes

Jair Bolsonaro recebeu o diploma de presidente no Dia Mundial dos Direitos Humanos. A ministra Rosa Weber aproveitou a data para cobrar respeito às liberdades, às minorias e ao direito sagrado de discordar do governo.

A presidente do TSE começou com um aviso: o pleito ocorreu com “absoluta segurança e total lisura”. Foi o primeiro recado a Bolsonaro, que passou meses lançando suspeitas sobre a urna eletrônica.

A ministra celebrou o 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Em país de tantas desigualdades como o nosso, refletir sobre as declarações de direitos não constitui mero exercício teórico, mas necessidade inadiável que a todos se impõe, governantes ou governados”, disse.

Ela julgou necessário lembrar que a democracia não se resume à realização de eleições a cada quatro anos: “É, também, exercício constante de diálogo e de tolerância, de mútua compreensão das diferenças, de sopesamento pacífico de ideias distintas, até mesmo antagônicas, sem que a vontade da maioria, cuja legitimidade não se contesta, busque suprimir ou abafar a opinião dos grupos minoritários”.

Rosa ressaltou que proteger os direitos humanos não é uma escolha, e sim uma obrigação dos governantes. “Isso resulta claro não só dos deveres assumidos perante a comunidade internacional, mas sobretudo pelo que a própria Constituição determina”, ensinou.

Deputados do PSL reclamaram da aula pública, o que só demonstra que acusaram o golpe. A ministra disse o que disse porque Bolsonaro apelou ao discurso contra os direitos humanos para ganhar votos. No segundo turno, ele chegou a chamar seus adversários políticos de “marginais vermelhos”. “Ou vão para fora ou vão para cadeia”, ameaçou.

Na solenidade de ontem, o presidente eleito mudou o tom. Com o diploma nas mãos, ele reconheceu que as eleições foram “livres e justas” e prometeu governar para todos, “sem distinção de origem racial, raça, sexo, cor, idade ou religião”.

Que assim seja.


Folha de S. Paulo: 'Poder popular não precisa mais de intermediação', diz Bolsonaro ao ser diplomado

Presidente eleito exaltou papel das redes sociais na eleição deste ano

Talita Fernandes , Reynaldo Turollo Jr. , Marina Dias e Letícia Casado, da  Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Disposto a estabelecer um novo modelo à frente do Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro fez um discurso conciliatório nesta segunda (10), em que afirmou que governará para todos os brasileiros, sem distinções, e ressaltou que o poder popular “não precisa mais de intermediação”.

Diplomado presidente da República em cerimônia no Tribunal Superior Eleitoral, Bolsonaro foi orientado por auxiliares a fazer um pronunciamento “mais solene”, no qual pediu a confiança inclusive dos que não o apoiaram em outubro. Além disso, fez acenos à Justiça Eleitoral, criticada por ele durante toda a campanha.

“As eleições revelaram uma realidade distinta das práticas do passado. O poder popular não precisa mais de intermediação. As novas tecnologias permitiram nova relação direta entre o eleitor e seus representantes”, declarou.

Bolsonaro foi eleito com forte presença nas redes sociais e pouquíssimo tempo de propaganda eleitoral de TV.

“Serei presidente dos 210 milhões de brasileiros, governarei em benefício de todos, sem distinção de origem social, raça, sexo, cor, idade ou religião”, completou.

Durante quase três décadas de vida pública, Bolsonaro fez discursos contra minorias. Como presidente, ponderam aliados, o capitão reformado precisará rever o tom de algumas de suas falas pelo menos em eventos como o de sua diplomação.

Antes de subir ao púlpito para ler o discurso de cerca de dez minutos, Bolsonaro bateu continência a uma plateia repleta de autoridades e militares fardados, que o aplaudiam e o chamavam de “mito”.

Ainda dentro da linha conciliadora exaltou o processo eleitoral, tantas vezes criticado por ele, e disse que o compromisso com a soberania do voto popular é “inquebrantável”.

A presidente do TSE, Rosa Weber, defendeu os direitos humanos e as instituições democráticas em seu discurso durante a cerimônia.

“A democracia não se resume a escolhas periódicas, por voto secreto e livre, de governantes. Democracia é, também, exercício constante de diálogo e de tolerância, de mútua compreensão das diferenças, de sopesamento pacífico de ideias distintas, até mesmo antagônicas, sem que a vontade da maioria, cuja legitimidade não se contesta, busque suprimir ou abafar a opinião dos grupos minoritários, muito menos tolher ou comprometer-lhes os direitos constitucionalmente assegurados”, afirmou.

“Em uma democracia, maioria e minoria, como protagonistas relevantes do processo decisório, hão de conviver sob a égide dos mecanismos constitucionais destinados à promoção do amplo debate [...]. Mais do que isso: a todos os cidadãos, sem qualquer exclusão, se assegura um núcleo essencial de direitos e garantias que não podem ser transgredidos nem ignorados pelo simples fato de não refletirem em dado momento histórico a vontade dos grupos majoritários.”

Rosa lembrou que nesta data se comemoram os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, como ela afirmou, foi promulgada pela terceira Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 e subscrita pelo Brasil.

“Nunca nos esqueçamos: os diretos fundamentais da pessoa humana, além de universais, são inexauríveis”, disse Rosa, acrescentando que todos têm “direito à vida, à liberdade, à segurança em sua projeção global e o direito a ter direitos”. Bolsonaro já afirmou em algumas ocasiões que o Brasil tem direitos demais.

“Inquestionável é que o Estado brasileiro se encontra comprometido com a efetivação dos direitos humanos. Isso resulta claro não só dos deveres assumidos perante a comunidade internacional, mas sobretudo pelo que a própria Constituição, que vem de completar trinta anos, determina. Por isso, é de inegável relevo, senhor presidente eleito, o compromisso de Vossa Excelência, reafirmado nesta Casa quando aqui esteve em visita, de que o respeito incondicional pela supremacia da Constituição será o norte do seu governo”, concluiu.

A fala da ministra foi criticada por aliados do presidente eleito. “Após ser ovacionado de pé, o presidente diplomado, Jair Bolsonaro, é submetido a aulinha de direitos humanos em longo discurso de Rosa Weber”, reclamou a deputada federal eleita Bia Kicis (PRP-DF).

A também deputada eleita Joice Hasselmann (PSL-SP) disse que a ministra foi “desapropriada e deselegante”. “Achei que ficou um pouco chato, e até deselegante, desnecessário. Mas ela é a presidente do TSE, não sou eu.”

A diplomação é uma etapa indispensável para que os eleitos possam tomar posse, no primeiro dia do ano. Ela confirma que o político cumpriu as formalidades previstas na legislação eleitoral e está apto a exercer o mandato. O vice-presidente, general Hamilton Mourão (PRTB) também foi diplomado.


Política Democrática online de novembro repercute eleição de Bolsonaro

Publicação traz reportagem especial sobre economia movimentada por pessoas em situação de rua, além de dez artigos e uma entrevista exclusivos

A edição de novembro da revista Política Democrática online chega ao público, nesta quarta-feira (21), com dez artigos e uma entrevista exclusivos sobre os cenários políticos brasileiro e norte-americano após a eleição do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência da República para o mandato de 2019 a 2022. Em formato multimídia, a publicação traz ainda uma reportagem especial sobre a vida de pessoas em situação de rua, a forma como elas movimentam uma economia marginalizada e o desmonte das ações de atendimento a esse segmento da população em Brasília.

No destaque desta edição, a entrevista com o sociólogo Sérgio Abranches mostra que a direita inicia novo ciclo de poder com a vitória do ex-capitão do Exército para a presidência. “Agora, voltará a haver oposição orgânica, com o PT centrado no PSL e no Bolsonaro. Isso muda a dinâmica do jogo político, das relações entre o legislativo e o executivo”, diz ele, em um dos trechos. “Será um duro teste às instituições, à democracia. Mas acho que a Constituição de 1988 nos legou instituições que se revelaram suficientemente robustas ao longo de vários traumas”, acrescenta.

Produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Partido Popular Socialista (PPS), a revista critica, em seu editorial, a escolha do embaixador Ernesto Araújo para a chefia do Ministério das Relações Exteriores. “A julgar pelos escritos do futuro ministro, diretrizes da política externa passarão a ser o antiglobalismo e o alinhamento com o governo americano, o nacionalismo econômico, a desconfiança em relação às pautas da sustentabilidade e dos direitos humanos, além da renúncia à defesa da democracia como sistema político”, diz um trecho.

A revista também traz uma reportagem especial que conta o drama de pessoas em situação de rua na capital federal e denuncia o desmonte das políticas públicas na área de assistência social no Distrito Federal (DF). Dados obtidos pela revista Política Democrática online por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que, em 2018, o governo voltou a reduzir as verbas do setor, alcançando o segundo pior investimento em dez anos, atrás apenas dos que foram efetivamente realizados em 2016. No DF, segundo dados oficiais, chega a 3,5 mil o número de pessoas em situação de rua nesta época do ano.

Entre os artigos publicados, os analistas políticos colaboradores da revista abordam diversos temas relacionados ao atual momento político brasileiro e internacional, a partir da ótica das eleições legislativas norte-americanas. Outros assuntos relevantes e de interesse públicos também estão contemplados nesta edição, como é o caso das fake news, a ampliação da desigualdade e o conservadorismo no Congresso Nacional, assim como as reservas internacionais e o ajuste fiscal.

A seguir, confira a relação de todos os conteúdos da edição de novembro da revista Política Democrática online e seus respectivos autores:

Editorial | Política em tempos sombrios

Artigo | As reservas internacionais e o ajuste fiscal (Paulo Guedes): José Luis Oreiro

Artigo | O Congresso mais conservador desde a redemocratização: Antônio Augusto de Queiroz

Charge | E agora as notícias de Brasília: Jcaesar

Artigo | Lições do DIC na era Collor: Luiz PauloVellozo Lucas

Entrevista Sérgio Abranches | Vitória do ex-capitão do Exército encerra disputa PT X PSDB (André Amado, Caetano Araújo, José Carlos Lima, Davi Emerich, Lucas Brandão e Priscila Mendes)

Artigo | Bolsonaro – Uma epifania digital em rede: Paulo Baía

Artigo | As doces, atraentes e estimulantes fake news (Sérgio Denicoli)

Artigo | Ampliação da desigualdade não é um problema econômico (Vinícius Müller)

Artigo | Depois das urnas, oposição democrática (Alberto Aggio)

Reportagem | Pessoas em situação de rua na economia marginal (Cleomar Almeida)

Artigo | Reação anti-trump marca eleições legislativas dos EUA (José Vicente de Sá Pimentel)

Artigo | Para uma crítica do tempo presente (Luiz Sérgio Henriques)

Artigo | Contemporâneos do futuro (Roberto Freire)


Jairo Nicolau: O triunfo do Bolsonarismo

Como os eleitores criaram o maior partido de extrema direita da história do país

Até o início do horário eleitoral, a visão dominante sobre as eleições de 2018 era a de que repetiria os padrões dos pleitos anteriores. Nem PT nem PSDB acreditavam no fenômeno Bolsonaro.

No sábado, véspera do primeiro turno das eleições, fui a uma festa de família em Nova Friburgo, minha cidade natal. Durante o dia, no inevitável passeio pela avenida principal da cidade, deu para perceber os sinais de campanha presidencial, o que não tinha ocorrido em nenhum momento no Rio de Janeiro: dezenas de cabos eleitorais balançando bandeiras, muita gente vestindo a camisa amarela com a foto de Bolsonaro estampada.

Em conversa com familiares, comecei a dimensionar a força do bolsonarismo na cidade. No grupo de 25 pessoas que jogam vôlei com a minha irmã, apenas ela e mais três disseram que não votariam no candidato do PSL; no grupo de vinte que jogam a tradicional pelada de fim de semana com o meu cunhado, apenas ele e mais quatro não iam votar em Bolsonaro. O mais inesperado foi ouvir relatos sobre antigos colegas de colégio, figuras silenciosas e discretas, que tinham se transformado em virulentos defensores de Bolsonaro nas redes sociais. Adotando uma “tática de enxame”, eles se especializaram em conjuntamente atacar páginas do Facebook de amigos que postassem qualquer crítica ao capitão.

Friburgo é uma cidade conservadora, mas saí de lá com a sensação de que Bolsonaro estava muito mais forte do que eu imaginava. De volta ao Rio, ao votar no primeiro turno, encontrei uma situação muito mais equilibrada. Meu passatempo, durante a longa espera, foi tentar identificar o voto dos eleitores das filas vizinhas. Alguns, atendendo ao pedido da campanha de Bolsonaro, chegaram com a camisa da Seleção brasileira. Vi muitos com adesivos de candidatos do PSOL e de Ciro Gomes. Será que as urnas em geral estariam mais próximas da maré bolsonarista vista em Friburgo ou do cenário mais equilibrado das filas de uma escola de Botafogo?

Já faz alguns anos que não ligo a tevê para acompanhar a apuração. Prefiro baixar o programa do TSE e abrir o site de um grande jornal, navegando conforme as minhas escolhas. Esse ano, porém, como os resultados demoravam a aparecer, resolvi seguir as previsões feitas pelas pesquisas de boca de urna. À medida que os resultados eram divulgados nos jornais televisivos e outros eram compartilhados via WhatsApp por amigos que estudam eleições, mais estupefato eu ficava.

No Rio de Janeiro, o juiz Wilson Witzel, candidato apoiado pela família Bolsonaro, chegava em primeiro lugar, desbancando Eduardo Paes, líder em todas as pesquisas que foram publicadas desde o começo do ano. Imediatamente, recebo mensagens de toda a parte. Quem é esse juiz? Em Minas Gerais, os petistas sonharam com o crescimento do candidato do Novo, um empresário chamado Romeu Zema. Mas não imaginavam que ele tirasse o governador Fernando Pimentel da disputa no segundo turno. A sensação de que essa era uma eleição de ruptura com a velha ordem partidária ficou clara quando apareceram os dados para o Senado de Minas, com a ex-presidente Dilma amargando o quarto lugar. Era isso mesmo? Sim. Uma ex-presidente vitoriosa em quatro turnos naquele estado estava atrás de outros três concorrentes.

Os resultados da noite deixaram os analistas de política sem adjetivos. O uso de analogias climáticas, embora meio desgastado depois de anos de crise (quem não se lembra da “tempestade perfeita”?), foi a opção. Estávamos diante de um “tsunami” eleitoral, do “furacão” Bolsonaro, da “avalanche” de votos do PSL. Restava falar da velha ordem política também com imagens de destruição. O sistema partidário estaria “em escombros”, “em ruínas”, teria vindo ao chão diante de uma “hecatombe” de renovação.

Afinal, quais eram as bases do sistema partidário que teria sido destruído no primeiro turno do pleito de 2018?

Vale a pena voltar no tempo e lembrar a grande instabilidade que marcou a primeira década da vida partidária após a redemocratização. Cinco partidos foram fundados ainda no regime militar: PDS, PMDB, PT, PDT e PTB. Entre 1985 e 1994, nada menos do que 68 partidos foram organizados e disputaram pelo menos uma eleição. Dentre esses, destacam-se o PFL, o PSDB, o PL, o PCdoB, o PSB e o PRN.

Mais do que pelo grande número de legendas, o período foi caracterizado pela crise que afetou os partidos tradicionais. Nas eleições presidenciais de 1989, os candidatos do PMDB e PFL – os dois partidos responsáveis pela vitória na eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral – tiveram um desempenho pífio. Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte que encerrara seu trabalho um ano antes da eleição, obteve 4,7% dos votos. Aureliano Chaves, ex-vice-presidente da República, alcançou apenas 0,9%.

A vitória de Fernando Collor pelo PRN, legenda à qual se filiou apenas para concorrer à Presidência, e o subsequente governo de Itamar Franco, presidente que se desfiliou do PRN e governou sem estar vinculado a nenhuma legenda, ilustram bem o quadro de crise do sistema partidário nos primeiros anos da década de 90.

Podemos definir o ano de 1994 como o início do sistema partidário com características mais ou menos estáveis, que perduraria por duas décadas até as eleições de 2014. Destaco três principais características desse sistema.

A primeira delas é a polarização entre PT e PSDB na disputa presidencial. Os dois partidos chegaram em primeiro ou em segundo lugar em todos os dez turnos disputados entre 1994 e 2014. Nas duas eleições em que o PSDB venceu no primeiro turno (1994 e 1998), o PT chegou em segundo lugar. Nos oito turnos em que o PT venceu (2002, 2006, 2010 e 2014), o PSDB chegou em segundo lugar.

A segunda característica é o papel central do PT no sistema partidário. Será difícil para os historiadores do futuro não chamarem esses vinte anos de “era do PT”. O partido ficou à frente da Presidência por mais tempo do que qualquer outro na história da República. Mesmo durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o PT conseguiu ser um ator relevante, comandando uma combativa oposição.

Para além do sucesso eleitoral, um aspecto que sempre chamou a atenção no PT foi a sua capacidade de organização. Enquanto os outros partidos mantiveram uma estrutura organizacional tênue, com baixo envolvimento dos filiados em suas atividades, o PT inovou ao apostar em uma estrutura capaz de mobilizar milhares de quadros para as suas fileiras.

Os cientistas políticos David Samuels e Cesar Zucco, no livro Partisans, Antipartisans and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil (2018), mostraram como a divisão PT/anti-PT foi importante na escolha dos eleitores. Caso raro, o principal concorrente do PT não foi outro partido, mas um sentimento genérico com nome próprio: antipetismo.

Uma terceira característica do sistema partidário brasileiro é a fragmentação. Contrastando com a disputa concentrada para a Presidência, o quadro no Congresso Nacional é de alta pulverização, tendência que vem se aprofundando desde os anos 90. Para se ter uma ideia dessa dispersão: em 1994, as quatro legendas mais importantes (PSDB, PMDB, DEM e PT) tinham, juntas, 308 cadeiras na Câmara dos Deputados; em 2014, passaram a deter apenas 210. A predominância dos quatro partidos não é por acaso. PT e PSDB controlaram a Presidência, enquanto o PMDB (depois MDB) e o PFL (depois DEM) foram centrais no controle do Congresso Nacional.

Depois da perplexidade com os resultados de boca de urna do primeiro turno divulgados pela televisão, voltei ao computador para analisar os dados oficiais da apuração. Ao abrir os resultados de deputado federal do Rio de Janeiro me dei conta que o sucesso de Bolsonaro tinha transbordado para os cargos proporcionais.

Quem é esse Hélio Lopes que chegou em primeiro entre os candidatos a deputado federal, elegendo-se com 345 mil votos, à frente de Marcelo Freixo? Encontro na internet a foto de Lopes. Lembro que recebi um santinho dele. Dias depois, me atualizo. Chamado por Bolsonaro de “Hélio Negão”, ele é subtenente do Exército e tentou ser vereador em Nova Iguaçu em 2016, quando recebeu 480 votos. Nas estatísticas não será considerado como um político que tenta um cargo pela primeira vez.

Numa eleição de tantas surpresas, nada foi mais espantoso do que a votação obtida pelo Partido Social Liberal para a Câmara dos Deputados. O partido obteve 11,3% dos votos e 10,1% das cadeiras. Havia conseguido eleger apenas um deputado federal nas quatro das cinco eleições que disputou antes de 2018. Era um dos partidos a serem barrados pela cláusula de desempenho. A filiação de Bolsonaro e de seus seguidores ao PSL, em março desse ano, mudou inteiramente a sorte da legenda.

O PSL foi o partido que teve o maior crescimento desde as eleições de 1990, quando é possível comparar com a primeira eleição do regime democrático, em 1986. Em 1990, o PRN do então presidente Collor obteve 8,3% dos votos, enquanto o estreante PSDB recebeu 8,7%. Ambos já contavam com um grande número de deputados e tinham o apoio de importantes lideranças regionais.

Outra característica singular do PSL é o grande número de eleitos que disputam um cargo pela primeira vez. Dos 52 deputados federais eleitos, trinta nunca haviam concorrido. Nunca um partido elegeu tantos novatos como o PSL. Guardadas as proporções, é um fenômeno semelhante ao da ascensão do partido do presidente francês Emmanuel Macron (La République en Marche!) e do Movimento 5 Estrelas, na Itália; são novos partidos que levam dúzias de cidadãos sem experiência prévia aos legislativos nacionais.

Os diversos perfis da bancada do PSL feitos pela imprensa destacam a sua heterogeneidade. O que os une, além da admiração por Bolsonaro, é o fato de se posicionarem na extrema direita do espectro partidário. Só no fim da noite de domingo do primeiro turno da eleição, quando já era possível estimar o tamanho das bancadas de cada partido, me dei conta de algo surpreendente: os eleitores haviam criado o maior partido de extrema direita da história das eleições brasileiras.

Quando teria começado a ruína dos partidos e de parte da tradicional elite política do país? Não são poucos os analistas que atribuem a origem de tudo às manifestações que varreram o país em 2013. O forte conteúdo antipolítica dos protestos teria ajudado a minar a confiança da população no sistema representativo.

Além de pedir aos manifestantes que não usassem camisas com símbolos partidários e promover a queima da bandeira dos partidos, os protestos lançaram alguns bordões que expressam uma visão realmente negativa da política. “Partidos não” e “Não me representa” eram palavras de ordem reiteradas inúmeras vezes quando as pessoas se aproximavam da Câmara Municipal ou da Assembleia Legislativa.

É difícil dimensionar se 2013 teve um efeito mais duradouro sobre a avaliação dos brasileiros acerca dos seus representantes. O fato é que nas eleições do ano seguinte o impacto não foi perceptível. As pesquisas de opinião não indicaram um aumento da desconfiança em relação às instituições e aos partidos. A taxa de abstenção continuou praticamente a mesma da eleição anterior. Fora do padrão, apenas um aumento dos votos nulos e em branco para deputado federal, particularmente nos estados do Rio e de São Paulo.

Somente uma força externa muito poderosa poderia abalar um sistema de partidos estruturado em duas décadas de competição política, com diversos mecanismos de autoproteção. A Operação Lava Jato cumpriu esse papel. As investigações afetaram diversas legendas, mas sobretudo as três mais importantes: PT, PSDB e MDB. O PT teve vários de seus dirigentes presos e investigados, entre eles o ex-presidente Lula. Os principais dirigentes investigados do MDB tinham foro privilegiado (eram senadores e deputados), mas o que se viu na maior seção do partido, a do Rio de Janeiro, com a prisão de Sérgio Cabral, Eduardo Cunha e Jorge Picciani, foi suficiente para fazer um estrago sem precedentes na legenda. Vários dirigentes do PSDB investigados também se beneficiaram do foro privilegiado, mas a revelação das conversas de Aécio Neves com o empresário Joesley Batista também amplificou muito a rejeição ao partido.

Olhando para trás e relembrando a maré de denúncias contra a elite política que circulou entre 2015 e 2018, percebo como os analistas subestimaram os efeitos da Lava Jato. A operação mudou o patamar de rejeição em relação aos principais partidos. Todos foram igualados por participarem sem pudor de gigantescos esquemas de corrupção.

Até o começo do horário eleitoral, a visão dominante dos cientistas políticos sobre as eleições de 2018 era a de que repetiria os padrões dos pleitos anteriores. Eles acreditavam que: a disputa pela Presidência se daria novamente entre PT e PSDB; a renovação parlamentar seria baixa; e o trio PSDB/PT/MDB continuaria dominando a política brasileira.

O argumento dos que defendiam a tese de que “essa eleição é igual às últimas” baseava-se em duas premissas. Primeiro, a importância que a estrutura partidária e a montagem das coalizões de apoio nos estados havia tido em pleitos anteriores. Segundo, a nova legislação eleitoral, que concentrou o tempo de propaganda eleitoral e o dinheiro do fundo eleitoral nos grandes partidos; juntos, MDB, PSDB, PT e PP ficaram com 44% do dinheiro.

A mesma visão parece ter orientado as ações dos dirigentes partidários. O PSDB optou por lançar Geraldo Alckmin, uma liderança tradicional, que já havia sido candidato à Presidência. O ex-governador de São Paulo, mais do que qualquer um dos nomes ventilados pelo partido, tinha a cara da velha política. O PSDB teve como prioridade a montagem de palanques estaduais e o apoio dos partidos para conquistar o que havia sido o melhor ativo de outras eleições: o tempo de propaganda na tevê.

A estratégia do PT também mirou o passado. A ideia parecia simples. Lula liderava as pesquisas com enorme vantagem. O que, por si só, seria uma evidência de que o eleitorado queria uma nova edição da época de ouro dos governos petistas. Como as pesquisas mostravam que um número expressivo de eleitores estaria disposto a votar em um nome indicado por Lula, a equação estava fechada. Confiando na força do ex-presidente e na teoria de transferência de votos, o PT se deu ao luxo de fazer a mais estreita coalizão eleitoral desde 1989. Só conseguiu o apoio do PCdoB – que retirou a candidatura de Manuela D’Ávila à Presidência – e do PROS.

Nada, porém, supera a crença dos partidos na manutenção da velha ordem do que o comportamento dos partidos do centrão (DEM, PP, PR, PRB e Solidariedade). É interessante lembrar que alguns deles haviam sido sondados pelo PT e outros pela candidatura de Ciro Gomes. Bolsonaro gostaria de ter o senador Magno Malta como seu vice, mas o PR não aceitou. Depois de semanas de negociação, os partidos resolveram apoiar qual candidato? Geraldo Alckmin.

PT e PSDB se prepararam para enfrentar um ao outro. Nenhum dos dois acreditava no fenômeno Bolsonaro. No último debate do primeiro turno na Rede Globo, a certa altura Alckmin escolheu Haddad para responder uma de suas perguntas. Durante minutos os dois falaram como se estivessem em 2014. Enquanto isso, Bolsonaro concedia uma entrevista nos seus termos à Rede Record do bispo Edir Macedo.

Fui mais cético que meus colegas de ofício sobre a possibilidade de que a eleição de 2018 repetisse o padrão das eleições anteriores. Minha desconfiança se devia a duas razões. A primeira, mais genérica, pode ser resumida no sentimento de que, depois de três anos de crise política, dificilmente as estruturas do sistema partidário não sairiam abaladas. Lembro-me de uma conversa com a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida, que também compartilhava do meu ceticismo, em que ela fez a pergunta definitiva: “Depois de tudo que aconteceu nesses anos, as eleições não vão mudar nada?”

A segunda razão é que venho há anos acompanhando a movimentação do candidato Bolsonaro. Por intermédio de um amigo que compartilha o material do candidato, assisti aos seus vídeos postados nas redes sociais, e os mais impressionantes deles mostravam o acolhimento efusivo que recebia de seus seguidores pelos aeroportos do país. Mas, apesar de não desprezar a força de Bolsonaro, minha expectativa sobre o que seria a eleição presidencial se revelaria totalmente equivocada. Consulto os slides de uma apresentação que fiz em março deste ano sobre o tema. Estimava que Bolsonaro teria algo em torno de 15% a 20% dos votos.

Minha aposta era que cinco candidatos (Marina, Alckmin, Ciro, Bolsonaro e o candidato do PT) disputariam entre si as duas vagas para o segundo turno; todos eles com potencial de votação semelhante, entre 10% e 20% dos votos. Uma pessoa cujo nome não lembro e que compartilhava de avaliação semelhante chegou a propor um número mágico: nesse cenário, o candidato que tivesse 17% dos votos passaria para o segundo turno.

Meu equívoco maior se deu quando projetava os resultados do segundo turno. Mais de uma vez, fui perguntado em debates e aulas sobre as chances de Bolsonaro vencer as eleições. Na resposta, sempre me lembrava do caso francês. Bolsonaro é candidato de um segmento específico do eleitorado, é um candidato de nicho, que lembra o desempenho do partido de extrema direita da França. Lá, a Frente Nacional consegue até chegar ao segundo turno, mas todas as forças do espectro político (da direita republicana à esquerda comunista) se juntam contra o partido, que é sempre derrotado. Não me lembro, mas provavelmente devo ter dito uma frase que muitos falavam em meados do ano: “O candidato do PSL será derrotado por qualquer um no segundo turno.”

Bolsonaro saiu do nicho. Esse é o fenômeno mais impressionante da campanha presidencial de 2018 e será o tema incontornável dos estudos sobre o comportamento político no Brasil nos próximos anos.

Como um candidato com uma história tão à direita no espectro político, com dezenas de vídeos em que revela seu racismo, sua homofobia e seu menosprezo pelas mulheres, foi capaz de conquistar uma parcela tão expressiva de eleitores de alta renda e alta escolaridade? Fui a São Paulo em junho e percebi que Bolsonaro já era o preferido dos motoristas de Uber e dos trabalhadores do hotel onde me hospedei. Em setembro, em nova viagem, soube que a comunidade judaica o apoiava em peso. O mesmo acontecia com a elite da cidade, outrora eleitora do PSDB.

O mais impressionante é que uma grande parte do eleitorado passou a apoiar Bolsonaro sem conhecer minimamente suas ideias. Recolhido no hospital ou em casa desde o atentado que sofreu em 6 de setembro, Bolsonaro compareceu somente aos dois primeiros debates da campanha. Sem dispor de tempo no horário eleitoral gratuito, também não detalhou nenhum dos seus projetos para o país. Minha impressão é que seus eleitores, ao votarem nele, imaginam escolher uma espécie de João Doria nacional.

Outra hipótese, mais óbvia mas não menos intrigante, é a que vê no antipetismo uma razão forte para Bolsonaro ter saído de seu nicho. A maré bolsonarista deveria menos aos méritos do candidato do que a uma força inercial da opinião pública. Dito de outro modo, qualquer candidato que disputasse contra o PT acabaria vencendo.

Usei o adjetivo “intrigante” no parágrafo acima por uma razão muito simples. Onde estava o antipetismo tão visceral que ninguém foi capaz de dimensioná-lo? Aos olhos de agora, parece que todo mundo já sabia da força do antipetismo, mas nenhuma pesquisa de opinião feita antes de a campanha começar foi capaz de capturá-lo. Ao contrário, as pesquisas mostravam que Lula reerguia o petismo e que o partido já recuperava seu tamanho como legenda preferida do país. Havia inclusive uma hipótese para explicar a força do petismo: “O governo Temer e a prisão do Lula teriam ressuscitado o PT.”

Estudos sobre o desenrolar da campanha eleitoral de 2018, particularmente sobre o papel das redes sociais, devem mostrar a evolução do antipetismo. Meu palpite é que tanto a ampliação do antipetismo, como a mudança de patamar desse sentimento (de um estágio relativamente leve para um visceral) deve-se à eficácia do que chamarei, na falta de expressão melhor, de máquina de propaganda da campanha de Bolsonaro.

As eleições para prefeito do Rio de Janeiro em outubro de 2016 e a greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, mostraram a força de uma nova forma de comunicação e mobilização social: o WhatsApp. Falo especificamente desse instrumento porque ele é realmente uma inflexão na forma de os brasileiros se comunicarem. De novo, não tenho estudos, mas posso observar na minha rotina que o WhatsApp é o grande responsável pela inclusão de milhões de cidadãos de baixa renda e baixa escolaridade na era digital.

Somente a comunicação via redes sociais, cultivada nos últimos anos no país, poderia explicar a força e a rapidez com que as ondas de opinião se propagaram nessas eleições. Antes, velhas ondas de campanha demoravam dias para se formar e precisavam do “boca a boca” para se propagar. Agora, a propagação da informação faz-se de maneira veloz, em escala geométrica – como provavelmente ocorreu na impressionante campanha que levou o juiz Witzel a saltar de um dígito nas pesquisas feitas na quarta-feira antes da eleição para 41% dos votos válidos no primeiro turno.

A campanha também foi invadida por uma onda de fake news. Assisti a dezenas de vídeos, quase todos pró-Bolsonaro, com montagens toscas, adulterações de fatos e estatísticas inventadas. A Justiça Eleitoral não se preparou para lidar com o fenômeno. Diferentemente do que tinha feito em outras eleições, quando controlava os desvios e agressões da propaganda de rádio e televisão, nesse ano o silêncio foi a sua tônica.

Mas nem tudo foi fake news. Depoimentos e trechos de eventos foram difundidos com eficácia pela campanha do PSL. Ouvi pastores e lideranças empresariais pedirem voto para o Bolsonaro. Vi compararem algumas propostas do candidato com as do PT. Acabo de assistir a um vídeo em que um bispo finaliza a sua homilia repetindo, e sendo efusivamente aplaudido pelos fiéis, o principal bordão da campanha bolsonarista: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.”

Bolsonaro é, a meu juízo, o maior fenômeno da história das eleições no Brasil. Muitos o comparam com Collor em 1989, mas sua força e abrangência são bem maiores. Uma coisa parece certa. Com Collor, vimos a emergência de um fenômeno propagado pelas redes de televisão. Bolsonaro não só nos mostrou que a era da televisão está se encerrando, como uma nova era começa: a das campanhas feitas nos subterrâneos da sociedade, por meio das redes sociais.

Embora essa seja uma análise ainda inicial, minha sugestão é que o pleito desse ano é um exemplo do que os cientistas políticos chamam de “eleição crítica”: uma disputa que desestrutura o padrão de competição partidária vigente.

Enumero quatro elementos que demonstram que as eleições deste ano marcam o encerramento do sistema partidário que vigorou por duas décadas: o fim da polarização entre PT e PSDB nas eleições presidenciais; o fim da centralidade do primeiro como força organizadora do sistema partidário; o declínio dos dois maiores partidos de centro (PMDB e PSDB); e a emergência de um novo e expressivo partido de direita (PSL).

A onda bolsonarista foi tão forte que, nos dias que se seguiram ao primeiro turno, os prognósticos sobre o resultado do segundo turno podiam ser resumidos em duas perguntas: Qual será a diferença a favor do candidato do PSL? Será que ele superará o desempenho de Lula em 2002? (Nesse ano, o candidato do PT recebeu 61,3% dos votos válidos, a maior votação já obtida por um candidato a presidente.) As pesquisas publicadas na primeira semana após o segundo turno reforçaram a ideia de vitória por grande margem. Na pesquisa do Datafolha, o deputado do PSL vencia com 58% dos votos válidos; na pesquisa Ibope vencia com 59%.

Em razão da grande vantagem confirmada nas primeiras pesquisas, Bolsonaro manteve a mesma estratégia adotada no último mês de campanha do primeiro turno: priorizou a difusão de mensagens por intermédio das redes sociais, não participou de eventos públicos e nem compareceu aos tradicionais debates promovidos pelos principais meios de comunicação do país. A diferença é que sua campanha chegou ao rádio e à televisão.

Com apenas oitos segundos, o ex-capitão havia sido quase invisível nos meios tradicionais de comunicação no primeiro turno. No segundo, com os dez minutos do programa eleitoral e centenas de inserções, ele teve que dar uma atenção especial ao velho (e para ele novo) formato de comunicação.

Se pudermos recorrer a uma metáfora esportiva, a estratégia de Bolsonaro lembrou a dos times de futebol que, vencendo por larga vantagem, “jogam contra o relógio”. Deixam o tempo passar, trocam passes para o lado até que o juiz aponte para o centro do gramado.

Na campanha de Haddad, em contrapartida, inicialmente nada parecia funcionar. A tentativa de organizar uma frente democrática foi um fiasco. O petista recebeu apoio crítico do PDT e Ciro Gomes preferiu não declarar seu voto; Fernando Henrique Cardoso e outras lideranças nacionais do PSDB também preferiram não se manifestar; Marina Silva deu seu apoio quinze dias depois do domingo do primeiro turno. Chegavam notícias de que até mesmo os dirigentes do PT não acreditavam na sorte de seu candidato e temiam uma derrota humilhante. Em mais de uma conversa com amigos chamei a atenção para a “solidão de Haddad”. A sensação era outra: a do time que está sendo derrotado por uma grande diferença e conta os segundos para que o jogo acabe.

A incapacidade de Haddad e do PT para ampliar o seu arco de alianças foi relativamente compensada por um movimento de apoio, também cultivado nas redes sociais, que contou com grandes atividades de rua na última semana antes do pleito. Foi provavelmente por causa desse movimento que o candidato do PT não sofreu a derrota que se desenhava no começo do segundo turno. A comparação dos votos dos dois turnos, incluindo os votos nulos e em branco no cálculo, mostra que Haddad acabou crescendo mais (passou de 27% para 40% dos votos totais), do que Bolsonaro (passou de 42% para 50%).

Escrevo as linhas finais desse texto poucos minutos após a confirmação de que Bolsonaro é o novo presidente do Brasil. Escuto muitos gritos, panelas batidas e fogos para celebrar a vitória. O volume se assemelha ao das manifestações contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Numa eleição de tantas novidades cabe registrar mais essa. Pelo menos no Rio de Janeiro, nunca tinha visto uma vitória eleitoral ser tão celebrada.

Ainda vou passar muitas semanas analisando os dados das eleições de 2018. Mas como não podia deixar de ser, começo observando o que ocorreu em Nova Friburgo: no primeiro turno, Bolsonaro obteve 63% dos votos válidos, Ciro Gomes, 16% e Haddad, 10%. No segundo turno, Bolsonaro obteve 73%. Já na minha zona eleitoral, no Rio, o quadro foi bem mais equilibrado no primeiro turno: Bolsonaro obteve 44% dos votos, Ciro, 30% e Haddad, 13%; no segundo turno Bolsonaro chegou aos 54%.

Olho os números e me dou conta de como Bolsonaro foi bem votado em outras áreas da cidade do Rio de Janeiro. Enquanto isso, os gritos pró-Bolsonaro e contra o PT continuam a ecoar lá fora. Realmente, estamos diante de um fenômeno eleitoral diferente de tudo que eu já tinha visto.

*JAIRO NICOLAU é cientista político e professor da UFRJ, é autor de Representantes de Quem?: Os (Des)Caminhos do seu Voto da Urna à Câmara dos Deputados


El País: Contradições preocupam entorno de Bolsonaro, mas não afetam campanha permanente no WhatsApp

Presidente eleito lança nomes para testar aceitação de seus ministeriáveis e, na imprensa, sofre críticas pelo improviso. Nos grupos do aplicativo, um dos motores da campanha, apoiadores seguem mobilizados

Por Afonso Benites, do El País

Por três meses, um grupo de 50 pessoas esboçou um plano de Governo para Jair Bolsonaro (PSL). Coordenado pelo general Augusto Heleno, os especialistas em diversas áreas tentaram detalhar dados para que, caso eleito, o capitão reformado pudesse tomar as decisões da maneira mais célere possível já no período da transição governamental. O plano, no entanto, parece ter subestimado a sanha de políticos e aliados por cargos, as reações que parte da sociedade civil com relação aos cortes de determinados ministérios e com as falas do futuro presidente que estremeceram as relações com países árabes e a China.

Apesar de parecer caótica para quem vê de fora, preocupar alguns membros de sua equipe e provocar críticas de analistas que detectam improviso, a estratégia bolsonarista parece não afetar seus apoiadores nas redes sociais. Pelo contrário. Nos grupos de WhatsApp, a campanha não terminou e a mensagem plataforma, surte efeito. Nem se fala das idas e vindas do presidente eleito. Tecem críticas ao exame nacional do ensino médio (Enem) – que apresentou questões sobre o uso de dados na Internet para manipular usuários e sobre um dialeto utilizado por gays e travestis—; mobilizam-se contra o reajuste dado pelos senadores aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF); seguem fazendo piadas e memes com os candidatos derrotados Fernando Haddad (PT) e Manuela D’Ávila (PCdoB). Também elogiam o capitão reformado quando ele anuncia quatro mulheres entre os membros de sua equipe de transição, ainda que essas quatro não representem nem 10% do total de vagas do grupo. Em outros momentos sugerem uma lista de veículos ou sites alternativas que não teriam sido "aparelhadas pela esquerda", reproduzem os tuítes de Bolsonaro falando sobre seus indicados para o Governo ou dizendo que vai “abrir a caixa-preta do BNDES”.

Nos discursos oficiais e informais, os balões de ensaio são lançados a todo momento. E não só por assessores ou políticos satélites do novo grupo do poder, mas pelo próprio Bolsonaro. Até agora, o presidente eleito se mostra sensível a uma reação nas redes: à possível avaliação de que está se aliando com corruptos. Por exemplo, ele já disse que o deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), candidato derrotado ao governo do Distrito Federal, teria uma função em sua gestão. Depois de centenas de reclamações pela Internet, as quais lembravam que Fraga já fora condenado por receber propina, ele parece ter recuado. Outro caso é o do senador Magno Malta (PR-ES), apontado pelo futuro mandatário como o ministro da Família, cargo esse ainda a ser criado. Depois das reações, Bolsonaro afirmou que talvez o parlamentar pudesse colaborar de alguma maneira, mesmo que não fosse com um cargo formal, nenhuma decisão foi anunciada até o momento. Malta era o vice-presidente dos sonhos de Bolsonaro por que traria maior tempo de TV e por compartilhar as mesmas ideias conservadoras nos costumes. Por opção própria, preferiu disputar a reeleição ao Senado, e depois de dois mandatos seguidos perdeu. Um dos eleitos no seu Estado, Fabiano Contarato, é o primeiro senador declaradamente homossexual.

Enquanto isso, entre apoiadores de Bolsonaro, o que viraliza são vídeos de seu ídolo cumprimentando policiais militares ou boatos, sem qualquer base factual, de que o STF fará sessões secretas. Administrador de 75 desses grupos no WhatsApp, o empreendedor Carlos Nacli, que vive em Portugal, diz que essa estrutura nas redes foi mantida para dar suporte às “pautas que serão importantes ao desenvolvimento do Brasil”. Tudo porque eles entendem que a imprensa não apoia o futuro mandatário. “Ficamos assustados com a perseguição que grande parte da mídia faz com o Bolsonaro. Parecem especialistas em tentar sabotar o presidente eleito”.

Nada está decidido e racha entre ruralistas
Entre analistas e no mundo político de Brasília, o jogo é outro e para ele Bolsonaro também faz testes e calibra mensagens. Na quarta-feira, lançou mais um: afirmou que extinguirá o Ministério do Trabalho, que é uma das pastas mais antigas do Governo com 88 anos de fundação. Mas não detalhou como isso ocorreria. As reações foram quase imediatas. Parte da elite industrial já havia sugerido a unificação desse ministério com o do Desenvolvimento, Indústria e Comércio exterior. Mas o próprio Ministério do Trabalho emitiu uma nota se queixando da possibilidade de extinção. "O futuro do trabalho e suas múltiplas e complexas relações precisam de um ambiente institucional adequado para a sua compatibilização produtiva, e o Ministério do Trabalho, que recebeu profundas melhorias nos últimos meses, é seguramente capaz de coordenar as forças produtivas no melhor caminho a ser trilhado”. Ainda não houve uma definição formal também.

Na prática, nesta primeira semana de funcionamento da equipe de transição, ainda não se sabe qual será o tamanho da estrutura ministerial. Oscila entre 16 e 18 pastas. Ora a Agricultura será unificada ao Meio Ambiente, ora não. Em um momento a Indústria se junta à Fazenda, em outro estão separadas. Nem mesmo ministro que era dado como certo na Defesa, o general Augusto Heleno, segue assim. Ele acabou sendo promovido para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), bem mais próximo do presidente. Ao invés de comandar as três forças armadas, chefiará uma área responsável pela segurança do presidente e que tem o controle da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).

O anúncio mais recente, a escolha da deputada federal e presidente da Frente Parlamentar Agropecuária, Tereza Cristina (DEM-MS), para o ministério da Agricultura abriu um racha entre conselheiros do presidente eleito. Nabhan Garcia, amigo de Bolsonaro há duas décadas e presidente da União Democrática Ruralista, esperava ser ele o indicado para a pasta. Ou ao menos de ter sua indicação, do deputado Jeronimo Goergen (PP-RS), aceita. Perdeu uma queda de braço para o futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), e acabou jogado para escanteio.

A equipe de transição de Bolsonaro também teve sua primeira baixa e uma ameaça de demissão. Marcos Aurélio Carvalho, dono de uma das agências responsáveis pela venda ilegal de pacotes de disparos de mensagens pelo WhatsApp durante a campanha, estava entre os nomeados remunerados para o grupo. Depois da divulgação de seu nome e as críticas consequentes, pediu para deixar de receber pela participação nos trabalhos e disse que seria voluntário na equipe. Houve ainda uma ameaça de demissão. O economista Marcos Cintra, um dos membros da equipe, escreveu um artigo defendendo uma mudança nos tributos para transações bancárias, o que foi interpretada como a criação de novos impostos. Em entrevista à Band, Bolsonaro reclamou de Cintra. “A decisão que eu tomei, quem criticar qualquer um de nós publicamente, eu corto a cabeça”, afirmou.

Os embates também ocorrem com o seu vice, o general Hamilton Mourão. Enquanto Bolsonaro diz que não sabe quem indicará para a Defesa, já que Heleno foi para o GSI, Mourão afirma que a tendência é de que um oficial da Marinha ocupe o posto. Mais uma vez, o presidente eleito precisar intervir para dizer apenas que um “quatro estrelas” ocupará o cargo. Ou seja, alguém que esteja no topo da carreira militar, independentemente da força que ocupar.


José Casado: Bolsonaro no buraco

Presidente eleito seria um poeta se falasse menos sobre política externa

Aconteceu numa segunda-feira de 55 anos atrás, na Manhattan de um mundo em Guerra Fria, quando Jair Bolsonaro era apenas um garoto nas ruas descalças de Ribeira (SP), a oito mil quilômetros de distância.

Cinco homens e uma mulher entraram no 112-Oeste da Rua 48, Nova York. Há meses Astrud Gilberto (voz), Antonio Carlos Jobim (piano), Tião Neto (baixo), Milton Banana (bateria), João Gilberto (violão) e Stan Getz (sax) lutavam para apresentar a bossa nova ao público.

Nos ensaios faltou sintonia entre Getz e João, relata Ruy Castro em “Chega de saudade”. O baiano explodiu: “Tom, diga a esse gringo que ele é burro.” O carioca Jobim virou-se para o americano e traduziu: “Stan, o João está dizendo que o sonho dele sempre foi gravar com você.”

Foi um dos grandes momentos da diplomacia brasileira: o disco “Getz/Gilberto” abriu o mercado dos EUA e da Europa para a bossa nova.

Bolsonaro não possui átomo da genialidade diplomática de Jobim, mas seria um poeta se falasse menos sobre política externa no seu mandato.

Em uma semana (lapso de tempo em que os seis de Nova York lapidaram um revolucionário Made in Brazil), Bolsonaro e equipe conseguiram semear tensões e incertezas sobre o futuro do Brasil com Argentina, Paraguai e Uruguai (sócios no Mercosul), China, Cuba, União Europeia, países árabes e muçulmanos.

Presidente eleito de um país desesperado para ampliar exportações e receber investimentos estrangeiros, Bolsonaro resolveu desprezar um quarto do mercado global, com três bilhões de consumidores. Semana passada a China advertiu, publicamente, que uma ruptura vai “custar caro” ao Brasil. Ontem, o Egito recusou-se a receber o chanceler brasileiro, em reação ao alinhamento do Brasil ao governo Trump na mudança da embaixada para Jerusalém.

Bolsonaro pode não gostar da melodia de Tom e preferir o punk-brega de Trump, mas deveria ouvir o conselho grátis do bilionário Warren Buffet, um conservador: “Se você está num buraco, a coisa mais importante a fazer é parar de cavar.”


Foto: Beto Barata\PR

Miguel Reale Júnior: No alto das redes sociais

É preciso abrir frentes de interlocução com a sociedade, para não ser um presidente solitário

Na primeira eleição direta depois da ditadura, em 1989, os candidatos dos principais partidos – Ulysses Guimarães, Paulo Maluf, Aureliano Chaves, Leonel Brizola, Mário Covas – naufragaram. O povo queria o novo. Foram para o segundo turno Collor e Lula. Collor, candidato pelo pequeno PRN, apresentou-se como o caçador de marajás, em luta contra a corrupção do governo Sarney. O populismo prevaleceu sobre a força dos partidos políticos.

De similar com aquela eleição, na deste ano busca-se o novo e há ilusão de que as dificuldades serão superadas pela figura mítica do ungido, sem nenhuma avaliação racional, como crença a pairar longe de qualquer motivo objetivo.

O sentimento antissistema e anti-PT, ao simbolizar esse partido o aparelhamento do Estado, foi um dos fatores determinantes do processo eleitoral deste ano, principalmente nos municípios mais populosos e de maior índice de desenvolvimento humano (IDHs). Entre os mil municípios com maior IDH, Bolsonaro ganhou em 967; nos mil de menor índice, Haddad venceu em 975.

A população que se sentia mais independente da tutela estatal tendeu a votar em favor do novo, ou seja, contra o sistema. Isso repercutiu na eleição de governadores novéis na política, concorrendo por partidos sem expressão. Destaque-se o inexperiente Romeu Zema, na tradicional Minas Gerais, candidato pelo Novo, vencendo o ex-governador Anastasia. Novatos, sem vivência na administração pública, surpreenderam em Estados importantes como Rio de Janeiro e Santa Catarina e no Distrito Federal, bem como em Roraima e Rondônia. Ao lado disso, velhas raposas foram derrotadas: Romero Jucá, Eunício Oliveira, Roberto Requião.

Mas esses resultados não decorreram apenas dos sentimentos de rejeição ao velho e de desejo do novo. Há outro fator essencial para esse processo ter ocorrido e a ser pensado em seus surpreendentes efeitos.

Já se sentira a força das redes sociais no processo político por via das quais se destituíram governos ditatoriais no norte da África. Se no Egito se depusera Mubarak, os movimentos democráticos não conseguiram organizar um governo. A final, fundamentalistas e militares entraram em cena.

No Brasil, as redes sociais mobilizaram imensamente a população em favor do impeachment. Depois, virtualmente, reuniram-se milhões na noite de 29 de novembro de 2016, quando se urdia votar no Congresso o projeto de lei de anistia ao caixa 1 e 2. Em reação, viralizou na internet a hashtag #MaiaNovoCunha, que se tornou trending topic, conseguindo-se impedir a vitória da impunidade.

O presidente da Câmara, ao saber da repercussão nas redes sociais, suspendeu a sessão por falta de quórum. Temer, no domingo seguinte, convocou, com imprensa presente, Maia e Renan para declarar que não haveria projeto de anistia. Em artigo nesta página, escrevi: “Há uma mudança radical ainda não digerida pela classe política. A democracia representativa deve se adequar ao fato de o povo fiscalizar e cobrar o Congresso pelo Twitter, Facebook, Instagram, Telegram, WhatsApp”.

Agora, foi-se mais adiante: a força das redes sociais se fez presente, e contundentemente, numa eleição para presidente e governador. É uma nova democracia, sobre a qual restam ainda muitas perguntas.

Se já não tínhamos partidos políticos, substituídos por frentes parlamentares ou bancadas, com seus líderes processados por corrupção, agora, sim, surgiu um golpe fatal, com uma forma de democracia direta pela via virtual.

Os órgãos intermediários fundamentais numa democracia representativa não mais exercem algum papel. Bolsonaro ganhou a eleição sem partido, sem tempo de televisão, sem deputados, sem Fundo Partidário, sem governadores do seu partido, sem programa de governo discutido com a sociedade. Apenas pregou monossilabicamente alguns princípios conservadores. Por outro lado, sindicatos, órgãos de classe, entidades associativas, igrejas exercem menos influência do que os grupos de WhatsApp, acessados a cada instante.

Cada qual se sente potente ao opinar na rede social. Todos são iguais perante a internet: esse o novo direito fundamental. O excesso de mensagem contrasta com a escassez de reflexão, pois o que importa é ter opinião, sentir-se participante.

Como diz o cientista político da Universidade de Cambridge, David Runciman, em entrevista à revista Época, edição de 29/10, a crise de confiança na democracia atinge o pacote democrático composto por eleições, partidos políticos profissionais, sindicatos, programas de políticas nacionais e escolha entre direita e esquerda.

Na falha de corpos intermediários a mediar as reivindicações, cada qual não busca meios de ser representado, apresenta-se diretamente pelas redes sociais. Como sobreviverá a democracia sem partidos, cujos resultados brotam da árvore frondosa das redes sociais? Esse é o grande desafio.

No Brasil, a questão é ainda mais angustiante: a imensa participação nas redes sociais e a desmedida expectativa de resolução das dificuldades, quase que por um passe de mágica, apenas por nos livrarmos do PT, levam ao risco imenso de uma breve desilusão.

Bem ao contrário de solução imediata e fácil, as decisões políticas e técnicas, em vista de nossa realidade complexa e complicada, exigem massa crítica no exercício da reflexão, sabedoria e traquejo políticos, escolha bem pensada de prioridades, limites de campos de combate, virtudes por ora não reveladas no front do presidente eleito.

Ao estilo de pessoa do ex-capitão, ora presidente eleito, sugere-se que é preciso, como fazia o sábio dr. Ulysses, ter a paciência de ouvir e ouvir, para só bem mais tarde decidir. Além do respeito à liberdade, é preciso abrir frentes de interlocução consistentes com a sociedade, para deixar de ser um presidente solitário no alto das redes sociais.

*Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


O Estado de S.Paulo: Entidades condenam ameaça de Bolsonaro de retaliar jornais

Presidente eleito falou em cortar verba pública de veículos de imprensa que se ‘comportarem de maneira indigna’

Luiz Raatz, de O Estado de S.Paulo

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) criticaram nesta terça-feira, 30, as declarações dadas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, do PSL, sobre o jornal Folha de S. Paulo. Em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo, na segunda-feira, Bolsonaro ameaçou retirar verbas públicas dos veículos de imprensa que se comportarem de maneira "indigna", e citou a Folha como um desses casos. Ele acusa o jornal de propagar notícias falsas a seu respeito.

“É preocupante que o presidente eleito tenha manifestado a intenção de usar verbas publicitárias oficiais como forma de punição a um jornal por discordar de seu noticiário", disse o presidente da ANJ, Marcelo Rech. "Os investimentos do governo em publicidade, como qualquer outra verba pública, devem seguir sempre critérios técnicos, e não políticos ou partidários”.

Já a Abraji disse receber com apreensão as declarações dadas por Bolsonaro a respeito da imprensa nos últimos dois dias. "O respeito à Constituição - à qual o presidente fará um juramento solene de obediência no dia 1º de janeiro de 2019 - não é pleno quando a imprensa se converte em objeto de ataques e de ameaças", afirmou a entidade em nota.

O texto afirmou ainda que “fiscalizar o poder público – e, em particular, as ações do presidente da República – sempre foi e seguirá sendo uma função inerente ao jornalismo, exercida em nome do interesse público”. “Zelar por essa função é missão primordial da Abraji, assim como deve ser objeto de zelo de todo governo democrático.”

Na entrevista dada ao Jornal Nacional, Bolsonaro prometeu respeitar a liberdade de imprensa, mas disse que o repasse de verbas da União seria uma coisa diferente. “Sou totalmente favorável à liberdade de imprensa, mas temos a questão da propaganda oficial de governo, que é outra coisa”, disse Bolsonaro. “Não quero que (a Folha) acabe. Mas, no que depender de mim, imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos do governo federal. Por si só, esse jornal se acabou”, afirmou o presidente eleito.

Em sua conta no Twitter, o jornal respondeu ao presidente eleito. “Jair Bolsonaro, mesmo após eleito presidente, não deixa de ameaçar a Folha. Ainda não entendeu o papel da imprensa nem a Constituição que promete obedecer.”

Em outra iniciativa, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) chamou a atenção para mensagem distribuída por assessor da própria campanha de Bolsonaro com ataques a jornalistas.

A Procuradoria da República no Distrito Federal abriu investigação por improbidade administrativa para apurar a contratação pelo gabinete de Bolsonaro na Câmara da ex-funcionária Walderice Santos da Conceição.

Conduzida sob sigilo desde setembro pelo procurador João Gabriel Queiroz, a investigação busca saber se a mulher, ex-secretária parlamentar de Bolsonaro, recebia salário da Câmara e trabalhava em uma loja de açaí na Vila Histórica de Mambucaba, em Angra dos Reis (RJ), onde Bolsonaro tem uma casa de veraneio. A informação foi publicada pela Folha, e é base das críticas que o presidente eleito tem feito contra o jornal.

Walderice era funcionária no gabinete de Bolsonaro desde 2003 e recebia R$ 1.416,33 antes de pedir demissão, após a publicação. Bolsonaro exonerou a secretária parlamentar, mas contestou a reportagem durante a campanha e após eleito. Ele nega que Walderice tenha sido funcionária fantasma e diz que ela trabalhava atendendo demandas da região.

Leia a nota da ANJ na íntegra
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) rejeita com veemência os termos e o teor das declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro ao reiterar ataques ao jornal Folha de S. Paulo, um dos diários fundadores desta entidade, criada há quase 40 anos na defesa da liberdade de expressão.

Eventuais inconformismos com noticiário de veículos de comunicação não podem ser confundidos com inaceitáveis retaliações a jornais por meio de uso de verbas publicitárias oficiais. Investimentos em publicidade por governos, como as demais verbas públicas, devem seguir expressamente critérios técnicos, e nunca políticos ou partidários.

A ANJ espera que o princípio da liberdade de imprensa, saudavelmente afirmado pelo presidente eleito em seu discurso após a vitória nas urnas, se manifeste na prática, o que inclui o respeito a opiniões divergentes e à independência editorial, fundamentos da pluralidade de visões e da democracia.

Marcelo Rech
Presidente da AN


Bruno Boghossian: Fusão de Bolsonaro deixa país sujeito a propaganda ruralista

O ainda pré-candidato Jair Bolsonaro já considerava o Ministério do Meio Ambiente um problema. Num vídeo divulgado em março, o deputado disse que as “multagens” a produtores rurais acusados de desmatamento eram absurdas e propôs o fim da pasta.

“Nós inclusive pensamos em fundir o Ministério da Agricultura com o Meio Ambiente. Aí vai acabar a brincadeira dessa briga entre ministérios. E quem vai indicar vão ser os homens do campo. São as entidades que vão indicar”, declarou.

O agora presidente eleito vai levar o projeto adiante. Depois de negociações com representantes do agronegócio, marcadas por recuos sucessivos, Bolsonaro decidiu unir as duas pastas. Os órgãos de fiscalização ambiental, segundo o plano, ficarão submetidos à Agricultura.

As palavras do deputado ao longo da campanha mostram que seu futuro governo escolheu o lado mais pueril do lobby ruralista. Seus conselheiros para o setor conseguiram convencê-lo de que a maneira mais simples de acabar com as divergências era sufocar um dos lados.

Especialistas e até empresários do setor lançaram alertas ao longo dos últimos meses sobre o risco dessa cartada. A fusão das duas pastas, sob a tutela dos produtores, pode ser interpretada como um retrocesso num mercado internacional que cobra dos produtores cada vez mais garantias de proteção ambiental.

Bolsonaro pode até discordar das regras seguidas pelos órgãos de fiscalização, mas deixa de considerar que o desentendimento também é saudável no poder. Se um presidente da República só ouve a voz de um lado, está sujeito à propaganda de grupos de interesse, e não às ideias de quem formula políticas públicas.

No segundo governo Lula, o então presidente abraçou as posições de Dilma Rousseff em uma sequência de embates entre ela e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

Sob bombardeio, Marina pediu demissão em 2008. Nesta terça (30), ela disse que a fusão de pastas de Bolsonaro é um “triplo desastre”.


Hélio Schwartsman: Bolsonaro e a imprensa

Presidente eleito precisa resignar-se à ideia de que vivemos num Estado liberal

Jair Bolsonaro não gosta da Folha. É um direito dele. Mas, se opresidente eleito pretende cumprir sua promessa de obedecer à Constituição, precisa resignar-se à ideia de que vivemos num Estado liberal no qual vige a liberdade de imprensa.

Mais do que uma cereja decorativa no bolo da democracia, a liberdade de imprensa, ao lado das liberdades de expressão e de pensamento, são importantes porque ajudam a manter sob controle tanto o poder do Estado como o de maiorias circunstanciais.

O filósofo John Stuart Mill (1806-1873) já disse quase tudo o que é preciso dizer sobre o assunto. Não é só o soberano que pode cometer injustiças contra o indivíduo. As “opiniões e sentimentos prevalecentes”, que Mill chama de “tirania da maioria”, podem ser igualmente opressivas, se não mais.

Assegurar que ideias diferentes daquelas defendidas pelos poderosos e pelos numerosos possam circular é um passo necessário para que as teses oficiais e majoritárias sejam contestadas e, se estiverem erradas, como frequentemente estão, sejam abandonadas. Mill, como bom iluminista, aposta que, no longo prazo, as melhores ideias triunfam sobre as piores.

A liberdade de imprensa especificamente (separada da liberdade de expressão e de pensamento) adquire especial importância no atual momento, em que fake news ganham ampla circulação nas redes sociais. Não é que o jornalismo profissional vá resolver esse problema, mas a imprensa facilita um pouco a vida do cidadão ao oferecer-lhe uma primeira filtragem, levando-lhe notícias que passaram por um processo de verificação, ainda que imperfeito.

O jornalismo não tem respostas definitivas para os grandes problemas do país, mas pode dar sua contribuição para o debate público, quando amplia o leque das ideias em circulação, zela pelos fatos e, de vez em quando, consegue revelar aquilo que poderosos gostariam de manter escondido.


Ricardo Noblat: O capitão e seu aprendizado

A Constituição e a Bíblia

Louvado seja o esforço do presidente eleito Jair Bolsonaro em reescrever o que possa ter dito de pior, de mais chocante, de mais bárbaro ao longo dos últimos anos – e, especialmente, nos meses mais recentes. Tudo para que o desafio de governar um país dividido se torne menos incerto do que será para ele. Compreensível.

Foi assim com o discurso que lhe deram para ler no domingo à noite tão logo acabou a apuração dos votos. E novamente foi assim na série de entrevistas que concedeu ontem a diversas emissoras de televisão. Na Record, ele pareceu em casa. Disse o que quis sem se preocupar em ouvir o que não desejaria. Esteve menos à vontade na Globo.

Notável o esforço de William Bonner e de Renata Vasconcelos no Jornal Nacional em tentar “normalizar” Bolsonaro. Trataram-no com o devido respeito a um presidente da República. E deram-lhe todas as chances para retificar o que quisesse e sair-se da melhor maneira possível. Bolsonaro desperdiçou algumas. Ou não quis aproveitá-las.

Insistiu com a fake news do kit gay, por exemplo, e ameaçou cortar as verbas de publicidade do governo destinadas ao jornal Folha de S. Paulo. O kit gay foi a sacada que teve e que mais o beneficiou durante a campanha. A sacada não foi dele. Bolsonaro ouviu falar a respeito há mais de um ano em uma escola de Copacabana. Gostou.

Por nada neste mundo abrirá mão de repeti-la sempre que achar conveniente. Quanto à sua mágoa com a Folha, ela poderá ser reduzida a depender da cobertura que o jornal faça do seu governo. Como a maioria dos políticos, Bolsonaro defende a liberdade de imprensa desde que não seja alvo dela.

Lula disse um dia que gostava de publicidade, de notícia não. Publicidade é sempre a favor de quem a contrata. Notícia é quase tudo que os poderosos gostariam de esconder. Liberdade de imprensa não é um direito dos jornalistas, mas da sociedade, que sem informações livres e honestas não tem como tomar decisões justas.

Até janeiro, Bolsonaro terá tempo para aprender que um presidente pode muito, mas não pode tudo, e que a Constituição não é apenas mais um livro que se exibe em meio a outros, mesmo quando um deles é a Bíblia. O Estado brasileiro é laico. Ninguém é obrigado a ler a Bíblia. Mas todos são obrigados a respeitar a Constituição.

A queda da fortaleza do PT
Uma surra para jamais ser esquecida

Caiu a fortaleza do PT que por 20 anos pareceu inexpugnável – o Acre dos irmãos Viana. Foi ali que Bolsonaro teve seu melhor desempenho nas eleições do último domingo – 77% dos votos válidos.

O PP elegeu o governador com quase 54% dos votos contra 34,5% do candidato do PT. Os dois senadores eleitos são do PSD e MDB. Juntos somaram 54% dos votos. Os dois candidatos do PT, pouco menos de 30%.

Dos 8 deputados federais eleitos, nenhum foi do PT. O PC do B e o PDT elegeram dois dos 8. Dos 24 deputados estaduais, o PT elegeu somente 2.


Hélio Schwartsman: Explorando as ambiguidades

Declarações da campanha de Bolsonaro apresentam característica da retórica populista

Jair Bolsonaro conseguiu a façanha de ser eleito presidente sem ter dito o que pretende fazer depois de 1º de janeiro. Ou melhor, sua campanha soltou tantas e tão contraditórias declarações que qualquer proposta que o governo venha a apresentar será compatível com alguma das sinalizações emitidas.

Podemos tanto esperar uma reforma da Previdência vigorosa, quanto uma versão ultra-aguada daquela que foi proposta na gestão Temer. Para os que gostam de marcar “nenhuma das anteriores”, outra possibilidade é a mudança do regime de repartição para um de capitalização, que a maioria dos técnicos considera pouco viável.

Também não sabemos se veremos um programa de privatizações tão ousado que inclua praias e parques nacionais —seria a única forma de chegar ao R$ 1 trilhão desejado por Paulo Guedes—, ou um tão tímido que deixe de fora estatais “estratégicas” como Petrobras, BB, CEF e Eletrobras, que são as que valem dinheiro grosso. Em algum momento, tudo isso foi vocalizado ou ao menos insinuado por algum membro do núcleo duro bolsonariano.

Tal ambiguidade não chega a ser uma surpresa; ao contrário, é uma característica da retórica populista, que evita definições que possam alijar eleitores ou converter-se em cobranças no futuro. O próprio discurso da vitória de Bolsonaro teve uma versão mais institucional para o grande público, que não foi ruim, e outra, com mais provocações, para a turma das redes sociais.

É interessante notar que mesmo as falas mais veementes e ultrajantes do clã Bolsonaro costumam depois, caso provoquem comoção, ser relativizadas como se não passassem de brincadeira ou tivessem sido descontextualizadas. É uma forma de tentar normalizar a intimidação.

O problema com a ambiguidade é que ela funciona melhor na campanha do que no governo. Para fazer as coisas acontecerem, Bolsonaro precisará tomar decisões, isto é, arbitrar perdedores.