Presidente

O Estado de S. Paulo: Bolsonaro diz que prepara decretos para facilitar acesso a armas de fogo

Presidente afirma que três novas regras para grupos de Colecionadores, Atiradores e Caçadores devem ser publicadas nesta semana

Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta segunda-feira, 11, que prepara três decretos para facilitar o acesso a armas de fogo a grupos de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs).

Ao conversar com apoiadores que o esperavam nas imediações do Palácio da Alvorada, Bolsonaro disse que houve crescimento recorde na venda de armamentos, mas destacou que a alta precisa ser mais robusta. “Nós batemos recorde o ano passado, em relação a 2019. Mais de 90% na venda de armas. Está pouco ainda, tem que aumentar mais. O cidadão de bem, há muito tempo, foi desarmado”, disse ele.

Segundo a Polícia Federal, 179.771 novas armas foram registradas no País no ano passado, o que representa aumento de 91% com relação ao número de 2019.

O presidente foi questionado por um dos apoiadores sobre novos decretos de interesse dos CACs e respondeu que deve publicar as normas ainda nesta semana. “Tem três decretos para sair. Acho que saem essa semana, dois ou três decretos. Eu não posso ir além da lei, vai facilitar mais coisas para vocês”, afirmou.

Envolvido na disputa para emplacar aliados na eleição que vai renovar a cúpula do Congresso, em fevereiro, Bolsonaro levou o tema aos apoiadores. Disse que a tramitação do projeto que pretende aprovar sobre o tema dependerá do próximo presidente da Câmara. Bolsonaro apoia a candidatura do deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), chefe do Centrão. O principal adversário de Lira é Baleia Rossi (MDB-SP).

O presidente encerrou dizendo a um dos apoiadores que se apresentou como caminhoneiro que, se dependesse só do chefe do Executivo, a categoria já “teria porte de arma há muito tempo”.

O vídeo com as declarações foi publicado em um canal bolsonarista no YouTube. Bolsonaro cumprimentou seguidores e posou para fotos com aliados e não tratou da covid-19 durante a interação, apesar de o País ter registrado mais de 200 mil mortes pela doença. Além disso, governo vem sendo criticado em relação à demora no início da vacinação. Ele e os apoiadores que aparecem na gravação não usavam máscaras.

O governo vem tomando uma série de medidas para ampliar o acesso de pessoas comuns a armas de fogo. Para o presidente, a população fica mais segura quando cidadãos estão armados.

Uma das providências mais polêmicas foi a revogação de três portarias do Exército que, na prática, dificultavam o acesso do crime organizado a munições e armamentos extraviados das forças policiais. Como mostrou o Estadão, a decisão foi tomada para atender a “administração pública e às mídias sociais”.


Bernardo Mello Franco: Um presidente no diminutivo

Em 20 de março, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que não estava preocupado com a Covid. O Brasil ainda registrava uma dezena de mortes, mas ele já havia sido alertado sobre a gravidade da doença. “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, tá ok?”, desdenhou.

Nesta quinta-feira, o Capitão Corona disse que o país vive “um finalzinho de pandemia”. Os números oficiais contam outra história. Das 27 unidades da federação, 22 registram alta nas mortes. Mais de 30 mil pessoas estão internadas com o vírus, e ao menos seis capitais já ultrapassam os 90% de lotação nas UTIs.

Entre as duas declarações presidenciais, passaram-se 265 dias e morreram mais de 179 mil brasileiros pela Covid. Confirmou-se o pior cenário projetado no início do ano pelo ministro Luiz Henrique Mandetta. Ele tentou convencer Bolsonaro a levar a pandemia a sério, mas foi demitido porque não se curvou ao negacionismo do chefe.

Bolsonaro escolheu ficar sem ministro da Saúde na maior crise sanitária em um século. Depois da breve passagem de Nelson Teich, entregou a pasta a Eduardo Pazuello, aquele que “nem sabia o que era o SUS”. O general admitiu sua falta de autonomia com a sutileza de um mamute: “Um manda e o outro obedece”. Agora ficou claro que ele ainda não faz ideia de onde pisa.

Na terça-feira, Pazuello disse que a Anvisa levaria 60 dias para autorizar uma vacina. Na quinta, passou a falar em liberação até o fim de dezembro. Na sexta, ameaçou confiscar o imunizante do Instituto Butantan, ligado ao governo paulista. O porta-voz da bravata foi o governador bolsonarista de Goiás, Ronaldo Caiado.

O vaivém mostrou o general como um soldado perdido, à espera de ordens que não chegam. O Planalto não tem um plano contra a Covid. Sua única obsessão é impedir que o tucano João Doria se apresente como vencedor da guerra das vacinas. Se isso resultar em mais mortes, paciência. O presidente só se importa com a própria reeleição.

Desde o início da crise sanitária, o capitão aposta na desinformação para esconder sua incompetência. Ele mentiu ao esconder o potencial do vírus. Agora volta a mentir ao dizer que o perigo passou. As declarações sobre “gripezinha” e “finalzinho de pandemia” expõem Bolsonaro como ele é: um político no diminutivo, que nunca esteve à altura da Presidência.


Alon Feuerwerker: O que é, na essência, a contradição entre “o olavismo” e “os militares”

É erro político acreditar que alguém conseguirá tutelar um presidente da República recém-instalado e com a popularidade essencialmente preservada. Outro equívoco é imaginar que o presidente, por isso, pode fazer o que dá na telha. Ele decide, mas dentro de limites definidos, em última instância, pela correlação de forças no governo, nos demais poderes e na sociedade.

Costumam levar vantagem nas disputas internas do poder os núcleos mais organizados, disciplinados e dotados de clareza estratégica. E, sempre, mais conectados aos grupos de pressão social influentes. Outro detalhe: é comum a polarização em início de governo ser intestina ao próprio governo. Pois a oposição não carrega expectativa de poder.

O que acontece na administração Bolsonaro? Quadros provenientes das Forças Armadas estão, no popular, comendo pelas beiradas e ganhando espaço. “Os militares” vai propositalmente entre aspas no título desta análise. Não há no Planalto um “Partido Militar” atuando com comando centralizado e hierarquia, paralelamente ao presidente da República.

O bolsonarismo enxerga-se como uma revolução. E toda revolução costuma trazer duas tendências, que em certo momento entram em choque mortal: 1) a revolução precisa e quer expandir-se e 2) o novo poder, para consolidar-se e governar, precisa expurgar seus elementos mais “radicais”. E alguma hora precisa fazer a velha superestrutura trabalhar para o novo status quo.

A crise entre “o olavismo” e “os militares” é indicação de que a segunda tendência vai aos poucos prevalecendo sobre a primeira, e o processo nunca é linear ou indolor. Mas costuma ser irreversível. Num paralelo histórico que talvez desagrade ao bolsonarismo, este parece estar transitando da “revolução permanente” para o “bolsonarismo num só país”.

Não é casual que o choque mais visível e agudo apareça na política externa. O governo precisa decidir se a prioridade é 1) alinhar-se a - ou seguir a diretriz de - uma “internacional trumpista” ou 2) adotar para valer a linha de “o Brasil primeiro”. E isso vem sendo exposto na crise venezuelana. Como já vinha dando as caras em outros temas externos.

O desfecho ideal para o bolsonarismo na Venezuela seria uma “Revolução dos Cravos” de sinal trocado. A cúpula militar degolar o governo bolivariano sem derramamento de sangue, e promover rapidamente a transição pacífica para um regime constitucional alinhado ao “Ocidente”. Mas a coisa não parece estar tão à mão, ainda que cautela analítica em situações voláteis seja bom.

Se tal saída não rolar, até onde o Brasil está disposto a ir na colaboração com o “regime change” em Caracas? A questão, de ordem prática, talvez seja o foco mais emblemático da tensão entre as duas tendências. Que algumas vezes é explicada como oposição entre alas “adulta” e “infantil”, ou “racional” e “irracional”. São descrições insuficientes.

Uns parecem acreditar que a sobrevivência do bolsonarismo depende centralmente de livrar a América do Sul de qualquer núcleo de poder relacionado aos partidos do Foro de São Paulo. Outros talvez achem que é melhor cuidar de consolidar o poder por aqui mesmo, a arriscar um conflito de consequências políticas - regionais e internas - potencialmente desestabilizadoras.

Ambas as correntes têm argumentos. A favor da segunda, há duas coisas que governos precisam pensar muitas vezes antes de fazer: convocar um plebiscito e começar uma guerra. #FicaaDica.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Clóvis Rossi: Presidente não tem 'foro íntimo'

Função pública não admite esconder-se nele

Ao alegar uma questão de “foro íntimo” para demitir o ministro Gustavo Bebianno, Jair Bolsonaro dá uma demonstração definitiva de que não tem a menor qualificação para exercer função pública.

Foro íntimo não cabe no exercício de funções públicas, quaisquer que sejam e menos ainda na mais elevada, que é a Presidência da República.

Decisões nessa esfera só podem ser tomadas em função do interesse PÚBLICO, que, por definição, é oposto ao foro ÍNTIMO. Inacreditável que tenha que escrever uma coisa tão óbvia, mas no planeta dos Bolsonaros não vigora o sentido comum.

Foro íntimo o presidente poderia invocar para, por exemplo, não convidar Bebianno para almoçar no Palácio, ou por ter mau hálito ou o cabelo desalinhado ou pelo hábito de usar sapatos em vez de chinelos, o que contraria o sentido “íntimo” de elegância do presidente.

Mas, para convidar ou demitir alguém de algum ministério, o único critério que vale é o interesse público. Para demitir, é obrigatório dizer se o defenestrado é corrupto ou incompetente ou as duas coisas ao mesmo tempo e talvez acrescentar mais algum deslize.

Para piorar as coisas, se fosse possível, Bolsonaro constrangeu seu porta-voz, Otávio do Rêgo Barros, a usar em público a indecente explicação de “foro íntimo” para a saída de Bebianno. Um general deveria saber perfeitamente que interesse público prevalece, sempre, sobre qualquer questão de foro íntimo.

O general viu-se perdido, repetindo uma e outra vez a tal muleta do “foro íntimo", sem explicar as causas do afastamento, sem se referir ao imenso laranjal abrigado no PSL, o partido do presidente.

Ao esconder-se atrás do “foro íntimo", o presidente continua devendo explicações sobre as suspeitas de trambiques em que estão envolvidos seu filho Flávio, seu ministro do Turismo e seu ex-ministro Bebianno.

Falar abobrinhas em discurso gravado ou emitir tuítes é mais uma demonstração de que não tem noção do que é o exercício de uma função pública. Pode até atingir, atrás dessas barricadas, o seu público, mas convém prestar atenção ao fato de que os 57,7 milhões que votaram nele são menos do que os 89 milhões que ou votaram no adversário ou votaram em branco ou anularam o voto ou nem sequer compareceram às urnas.

O homem público deve satisfações a todos eles, que não querem saber de seu foro íntimo mas precisam saber que interesse público foi violado para Bebianno ser demitido.


Roberto Freire: Episódio Carlos Bolsonaro e Bebianno gera especulações sobre autoridade presidencial

O presidente do PPS, Roberto Freire, considerou grave o episódio envolvendo o filho do presidente, Carlos Bolsonaro, e o ministro ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno. Para ele, o atrito entre o vereador do PSL do Rio de Janeiro e o ministro gera especulações sobre a autoridade presidencial.

Freire disse em seu perfil no Twitter que as “especulações sobre as relações futuras no governo Bolsonaro, a partir do episódio, são inúmeras e todas têm em comum a fragilização da autoridade presidencial. Isso não é bom para o desempenho do governo e é péssimo para o desenvolvimento do País”, afirmou.

Envolvido em suspeitas de desvios de recursos de campanhas do PSL, partido do presidente, Bebianno entrou em conflito com Carlos, que acusou o ministro de mentir sobre ter falado três vezes com Bolsonaro, quando ele estava internado no hospital Albert Einstein, em São Paulo, sobre a denúncia da disputa eleitoral no ano passado. Carlos foi endossado pelo presidente, que compartilhou em rede social postagens do filho (veja aqui) negando a versão de Bebianno das conversas com ele.

Bolsonaro esperava o pedido de demissão do ministro está a próxima segunda-feira (18), mas hoje (15) aliados do governo afirmam que ele decidiu atender aos apelos políticos e manter o ministro no cargo. Ainda de acordo com os interlocutores palacianos, o presidente também teria decidido fazer com que Carlos não interfira mais nas questões do governo.

 


Demétrio Magnoli: Parapolítica, uma lição colombiana

Com a ascensão de Bolsonaro, o tema das milícias escapa aos limites do Rio, ganhando dimensões nacionais

“Nomeei Noguera por sua biografia e sua família, confiei nele. Se delinquiu, me dói e peço desculpas à cidadania.” Foi assim, no condicional, que o ex-presidente Álvaro Uribe reagiu à condenação de Jorge Noguera a 25 anos de prisão, pela Corte Suprema, em 2011.

Noguera, diretor do Serviço de Inteligência estatal entre 2002 e 2006, no primeiro mandato de Uribe, foi sentenciado por pertencer secretamente às Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), maior grupo paramilitar do país.

O processo que o desmascarou salvou o Estado colombiano das garras das milícias. Sugiro ao Ministério Público, ao Congresso e ao ministro Sergio Moro que estudem o caso –e não por mera curiosidade histórica.

O paramilitarismo na Colômbia é fenômeno tão antigo quanto as guerrilhas de esquerda. As AUC, como as Farc, sua inimiga, firmaram pactos com o narcotráfico e envolveram-se com inúmeros negócios criminosos.

Na moldura da guerra civil, os tentáculos dos grupos paramilitares alcançaram a esfera da política. O termo “parapolítica” descreve o entrelaçamento dos dois mundos. Os paramilitares patrocinaram as eleições de deputados, prefeitos e vereadores.

O Ministério da Justiça colombiano divulgou, antes das eleições municipais de 2011, uma lista de candidatos “inidôneos”. Eram 13 mil nomes, mais que 10% do total.

As milícias brasileiras não surgiram no quadro de uma guerra civil, mas no contexto do controle das favelas do Rio de Janeiro pelo crime organizado. Nasceram como “polícia mineira”: grupos de autodefesa das comunidades.

Logo, evoluíram como bandos criminosos que exploram serviços ilegais e mantêm laços estreitos com a polícia oficial. A infiltração das milícias na política começou há tempo, em escala local. A Folha (31) publica indícios alarmantes sobre a possível extensão dos tentáculos da parapolítica ao núcleo do Estado brasileiro.

O clã Bolsonaro notabilizou-se, ao longo dos anos, por minimizar a ameaça das milícias. A estratégia discursiva empregada articula-se em torno de uma simulação: eles fingem que as milícias encontram-se, ainda, no estágio embrionário de “polícia mineira”.

A bandeira da liberação do porte de armas encontra, aí, sua lógica: sem as rigorosas restrições atuais, uma faceta crucial da atividade dos milicianos fica protegida da sanção da lei.

Evidentemente, o discurso político dos Bolsonaro não constitui sintoma de envolvimento com as milícias. Já os lugares ocupados pelo ex-PM Fabrício Queiroz e pelo ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega na rede de relações do clã levantam óbvias suspeitas.

O segundo, acusado de liderar o Escritório do Crime, milícia suspeita da execução de Marielle Franco, foi homenageado na Alerj por Flávio Bolsonaro, a pedido do primeiro. Na ocasião, o ex-Bope encontrava-se preso, justamente em função de suas aparentes ligações com as milícias.

O gabinete de Flávio Bolsonaro empregou como assessoras a mãe e a esposa de Adriano, sempre a pedido de Queiroz, o homem que produz dinheiro vivo. Nada disso, em si mesmo, é crime. Mas são coincidências em série que solicitam investigações urgentes.

Na Colômbia, informações compartilhadas por Noguera com as AUC conduziram a pelo menos um assassinato de ativista de direitos humanos: o do professor Alfredo Correa de Andreis, em 2014. No fim, graças ao Judiciário, a Colômbia não se tornou um Estado dos paramilitares.

Por aqui, com a ascensão de Bolsonaro ao Planalto, o tema das milícias escapa aos limites do Rio, ganhando dimensões nacionais. A lição colombiana é que a parapolítica pode até se instalar na cúpula estatal.

Num país sério, o MPF já teria assumido o controle sobre as investigações da estranha teia de relações de Flávio Bolsonaro, e o Congresso criaria uma CPI da execução de Marielle. Mas, se fôssemos um país sério, não estaríamos contando os mortos de Brumadinho.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Cacá Diegues: A honra de viver

De que socialismo nosso novo presidente prometeu nos libertar, em seu discurso de posse no parlatório do Planalto?

Na minha juventude, éramos todos socialistas, queríamos que os homens fossem mais iguais e ninguém passasse fome. Podia até ser uma utopia, mas era um projeto sincero e generoso para a humanidade. Quem fosse inteligente e tivesse coração não podia deixar de ter ideias socialistas, se opondo à irracionalidade desumana do capitalismo. De acordo com nossa formação e crenças pessoais, o ideário podia vir recheado de princípios cristãos ou marxistas, conforme cada momento e a fé de cada um. Foi o socialismo real em alguns países, com sua violência e seu autoritarismo, que começou a nos afastar desse sonho.

Muitos saíram então em busca de uma alternativa à selvageria capitalista nos regimes de welfare state, o bem-estar social e democrático que bastaria às nossas pretensões humanistas. O exemplo estava na Escandinávia e eventualmente em outros países europeus, como a Inglaterra. Até que o vitorioso furacão individualista de Margaret Thatcher conquistasse o país e mais da metade do mundo. Inclusive os Estados Unidos de Ronald Reagan, recém empossado como presidente. Me lembro sempre da célebre e cruel declaração da primeira-ministra britânica, no início de seu mandato: “O socialismo dura até acabar o dinheiro dos outros”. Para Thatcher, o que era chamado de dinheiro público não existia; o que existia era apenas “o dinheiro de quem paga impostos”.

Com o fim da ditadura no Brasil e o início de nossa redemocratização, procuramos, por aqui mesmo, nossa remissão das dores do capitalismo e da pobreza subdesenvolvida. O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) parecia uma modernização do socialismo democrático para os trópicos. E o Partido dos Trabalhadores (PT) deixava de ser uma agremiação sindical de resistência para se tornar um partido popular. Eles se alternaram no poder, durante décadas de nossa democracia adolescente, sem nunca atender ao que eles próprios anunciavam. Nós bem que tentamos acreditar neles e em seus líderes mais expressivos.

Agora vem o novo presidente, eleito em proclamada oposição a tudo que esses partidos representaram no poder, dizer que vai libertar o Brasil do socialismo. Que Brasil? Que socialismo?

A desigualdade em nosso país é cada vez mais brutal e vergonhosa. Ela não ficou estacionada em números escandalosos, anteriores ao PSDB, ao PT e ao MDB, mas se agravou nesses últimos anos, mesmo que certos aparentes sucessos governamentais tenham dado outra impressão ao país. Segundo relatório da Oxfam Brasil, revelado pelo presidente de seu Conselho Deliberativo, o 1% mais rico de nossa população detém cerca de 25% da renda nacional. Os 5% mais ricos, por sua vez, ganham o mesmo que a soma de todos os outros 95%. E 165 milhões de brasileiros, mais de 75% de nossa população, vivem com menos de dois salários mínimos mensais. Tem mais: 0,1% da população concentra 48% de toda a riqueza nacional e os 10% mais ricos ficam com 74% dela. Em outro cálculo estatístico sobre a nossa desigualdade, a Oxfam demonstra que os mais pobres morrem, em geral, com idade inferior a 60 anos; enquanto os mais ricos sobrevivem, em média, até os 80 anos. E por aí vai.

Não me rio da ministra que viu Jesus Cristo trepando na goiabeira, embora ache ridícula essa história de que meninas só vestem rosa e meninos, azul. Assim como não vejo por que rir do cavalo que faz baixar seu santo no terreiro. Ou subestimar a capacidade de fazer milagres de João de Deus, o estuprador. Acredito em toda crença ou em toda fantasia humana que não faça mal a ninguém. Tudo isso só nos traz mais esperança no que pode acontecer conosco e no mundo. Mas esses números são a prova de nossos descuido, despreparo e incompetência. Sobretudo de nossa indiferença e desinteresse pelos outros.

Ninguém precisa libertar o Brasil do socialismo, porque no Brasil nunca houve socialismo nenhum, apenas a demagogia sempre vencida pela desigualdade real e crescente. É essa que precisa ser extirpada, a qualquer preço, por qualquer que seja o partido no poder, por qualquer que seja seu programa de governo. É preciso viver a existência do outro, justificar o mote generoso de nosso grande jurista Dario de Almeida Magalhães: “Viver é uma honra”.


Elio Gaspari: Bolsonaro desceu do palanque

Presidente trombou com a ekipekonômica, mas mostrou caminho para aprovar reforma da Previdência

Pelo andar da carruagem, a reforma da Previdência será aprovada. Numa revelação surpreendente feita durante uma entrevista aos repórteres Carlos Nascimento, Débora Bergamasco e Thiago Nolasco, o presidente Jair Bolsonaro pôs na mesa uma nova idade mínima para o acesso às aposentadorias e abriu o caminho para que ela passe a girar em torno de seu eixo principal, a “fábrica de desigualdades” exposta pelo ministro Paulo Guedes: “Quem legisla e julga tem as maiores aposentadorias e a população, as menores”.

Durante a campanha, Bolsonaro repetiu que a idade mínima do projeto mandado por Michel Temer era perversa. O anúncio da nova idade resultou numa trombada com a ekipekonômica. Resta saber quem manda e quem é capaz de fazer um projeto que passe pelo Congresso.

Bolsonaro defendeu de forma convincente a mudança na lei que permite a posse (não o porte) de armas. Afinal, em 2005, um plebiscito rejeitou a proibição da venda de armas de fogo. Felizmente, ele não comparou trabucos a automóveis, como faz o ministro Augusto Heleno.

O Bolsonaro da entrevista pareceu mais leve que o do palanque de mármore de Brasília. Ainda assim, disse que “hoje em dia o poderio das Forças Armadas americanas, chinesas e soviéticas alcança o mundo todo”. Como ele acha que com o seu governo o Brasil “começa a se livrar do socialismo”, alguém precisa avisá-lo de que a União Soviética se acabou em 1991.

O PODER DE PAULO GUEDES
Falta ao poderoso ministro Paulo Guedes um pé no Planalto. Parece detalhe, mas há dois tipos de ministros, os que têm sala no Palácio (Augusto Heleno, por exemplo) e os que não têm.

Quem está no primeiro grupo checa se o presidente está livre, toma o elevador e vai à sua sala. Quem não está precisa marcar hora ou arriscar-se a uma espera.

É claro que Guedes verá Bolsonaro sempre que isso for necessário, mas, por enquanto, a burocracia palaciana revela que nos primeiros cem dias de governo ele participará da reuniões do ministério às terças-feiras e de cinco encontros de “alinhamento”, sempre com outros colegas.

A trombada ocorrida na sexta-feira entre o que diz Bolsonaro e o que pensa a ekipekonômica mostra que faltam conversas. Isso na melhor das hipóteses, porque pode estar faltando disciplina. Choque com a ekipekonômica na primeira semana de governo é coisa nunca vista.

Os ministros com sala no Palácio têm um acesso informal ao presidente e essa circunstância cria um tipo especial de convivência. Para o bem, produz eficácia, para o mal, intrigas. É mais fácil se desviar de uma bola nas costas estando perto do juiz.

SANTAS PALAVRAS
Pode-se achar o que se queira do discurso de posse de Paulo Guedes, mas é impossível discordar de seu diagnóstico sobre os bancos públicos:

“Eles se perderam nos grandes programas, onde piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram contra o povo brasileiro.”

A BIC DE TEREZA
A caneta Bic de Tereza Cristina, ministra da Agricultura, tem mais tinta que a da maioria dos ministros civis.

O SAMBA DE ARAÚJO
O grande ausente na posse do chanceler Ernesto Araújo foi o escritor Oswald de Andrade (“Tupi or not tupi”). Quando o diplomata pediu a seu colegas que lessem mais José de Alencar e menos o New York Times, poderia ter feito uma ressalva, recomendando sua obra de ficção. Nela há um negro endiabrado sendo chamado de “bugio”, mas ficção é ficção.

Há um outro Alencar, político, deputado, ministro da Justiça e escravocrata convicto. Ele chamou a Lei do Ventre Livre de “iníqua e bárbara”. Isso em 1871, seis anos depois do fim da Guerra Civil que acabou com a escravidão nos Estados Unidos.

Alencar criticava o “fanatismo do progresso” e advertia: “A liberdade e a propriedade, essas duas fibras sociais, caíram desde já em desprezo ante os sonhos do comunismo.”

“Toda lei é justa, útil, moral, quando realiza um melhoramento na sociedade e representa uma nova situação, embora imperfeita, da humanidade. Neste caso está a escravidão.”

“Se a escravidão não fosse inventada, a marcha da humanidade seria impossível.”

Alencar sustentava que o Estado não deveria se meter a legislar sobre a relação trabalhista da escravidão.

O MITO DE ARAÚJO
Noves fora José de Alencar, o chanceler Araújo deu-se a comentários sobre figuras míticas, valendo-se do rei português d. Sebastião. Com sua erudição, poderia ter associado Jair Bolsonaro a uma centenas de outras figuras.

D. Sebastião era meio pancada, sumiu na batalha de Alcácer Quibir (1578) e, como tinha horror às mulheres, foi-se embora sem deixar descendência. Disso resultou na anexação de Portugal pela Espanha por 60 anos.

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e acha que os condenados na primeira instância do Judiciário devem ir para a cadeia sem direito a recurso.

O que o cretino não entende é por que o ministro Sergio Moro quer enviar ao Congresso uma emenda constitucional assegurando e prisão dos condenados na segunda instância.

Como juiz, Moro defendia esse procedimento e o tema está na pauta do Supremo Tribunal Federal para o dia 10 de abril.

Como é impossível que o Congresso aprove a emenda em tão pouco tempo, Eremildo ficou com a impressão de que a iniciativa seja uma pressão inútil. Até porque, o tribunal sempre poderá julgar a mudança inconstitucional.

A APPLE MANCOU
A queda do valor da Apple foi atribuída pelo mercado a uma retração dos compradores chineses.

Algo pior pode vir por aí. Depois de ter mudado os hábitos de consumo com os iPhones e os iPads, a Apple está mancando no novo mercado de aplicativos e de assistentes digitais que recebem ordens por comandos de voz.

Esses equipamentos têm o tamanho de um pequeno pote. Entre outras coisas, processam mensagens, ligam luzes, tocam músicas, registram ordens de compras e a cada dia expandem sua capacidade. O Echo da Amazon e o Google Home dominam o mercado, enquanto o HomePod da Apple está bem atrás. Steve Jobs não deixaria isso acontecer.

WITZEL NO PALANQUE
O governador Wilson Witzel ainda não desceu do palanque. Quando ele disse que o país precisa de “estabelecimentos prisionais destacados, longe da civilização, precisamos ter a nossa Guantánamo”, ofendeu a geografia e, tendo sido juiz, massacrou o Direito.

A prisão americana de Guantánamo não fica longe da civilização. Está a 899 km de Miami e a 65 km de Santiago de Cuba. Quando o presidente Bush resolveu mandar terroristas para lá, o que ele queria era mantê-los fora do alcance da Constituição dos Estados Unidos. A Corte Suprema cortou-lhe as asas.

TEMER PERDEU
O pente-fino determinado pela Casa Civil para o reestudo das últimas medidas tomadas pelo governo de Michel Temer é o preço que ele pagará por ter apostado no escurinho do fim de mandato para disseminar um testamento.

Deu o mau exemplo nomeando protegidos para a direção de agências reguladoras e acabará enrascado em maluquices de escalões inferiores.


Maria Cristina Fernandes: Os valores da farda que volta ao poder

Os oficiais do Exército brasileiro creditam à televisão, aos bancos, ao Congresso Nacional e às multinacionais, nesta ordem, o maior grau de influência política no país. Indagados que instituições deveriam exercê-la, os oficiais se incluem. Colocam as Forças Armadas em quarto lugar entre as aquelas que deveriam ter mais peso político, depois do Congresso, da academia e do Judiciário.

Confrontados com a afirmação do ex-ministro da Guerra do Estado Novo e ex-candidato à Presidência da República, general Pedro Aurélio de Góis Monteiro, de que a política deveria ser mantida fora dos quartéis, a maioria dos oficiais do Exército manifestou discordância. A maior aderência à afirmação de que "cabe ao Exército agir, mesmo que politicamente, quando a pátria estiver em perigo" se dá entre jovens tenentes (63,5%). A adesão à tese agrega menos da metade (48,7%) dos coronéis e generais.

Os dados estão em "A Construção da Identidade do Oficial do Exército Brasileiro", publicado no ano passado pela editora da PUC-RJ. O autor, o major Denis de Miranda, é professor da Academia Militar das Agulhas Negras, escola de formação de oficiais e única porta para o generalato na Força. Por lá passaram o presidente Jair Bolsonaro (turma de 1977) e todos os generais do primeiro escalão, o vice Hamilton Mourão (1975), o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Heleno Ribeiro (1969), o titular da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz (1974) e o da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva (1976).

O livro é resultado do mestrado em sociologia das instituições militares, da PUC-Rio, incentivado por convênio entre os Ministérios da Defesa e da Educação. Para escrevê-lo, Miranda enviou 2.015 formulários para oficiais formados na Aman. Recebeu de volta 643, o que deu à pesquisa uma margem de confiança de 98%. Entre aqueles que responderam, estão 90 generais e coronéis, 249 tenentes-coronéis e majores, 216 capitães e 88 tenentes.

No prelo, na mesma editora, está novo levantamento, ainda mais amplo, encabeçado pelo coordenador do núcleo de sociologia das instituições militares, Eduardo de Vasconcellos Raposo. Os primeiros tabulamentos sugerem uma convergência entre os valores militares e aqueles que se fizeram vitoriosos no eleitorado nacional.

A pesquisa de Miranda mostra que a geração de oficiais pós-redemocratização quis se notabilizar pelas operações militares propriamente ditas, mas foi tragada por atividades como o combate à seca e as operações de garantia da lei e da ordem. Mais da metade dos entrevistados reconhece que as ações subsidiárias lhes trazem mais reconhecimento da sociedade.

Esse perfil explica por que generais do Alto Comando do Exército têm demonstrado preocupação com a politização dos quartéis. A judicialização da política, como se viu, levou à politização do Judiciário. Não parecem infundados os temores de que a militarização da política leve à politização dos militares.

A corporação que se vê mais reconhecida em atividades civis e advoga o dever de agir politicamente quando a 'pátria' estiver em perigo revela sua maior insatisfação com os seus rendimentos. Este batalhão de insatisfeitos terá uma proeminência política inédita nos últimos 30 anos num governo supostamente comprometido com o ajuste fiscal.

A tabela de soldos das Forças Armadas é parte da explicação para o primeiro tiro do general Mourão no anunciado conflito com o Judiciário - "Eles não conhecem o Brasil" (Valor, 28/12/2018). O soldo de um tenente (R$ 7,5 mil) equivale a um terço do salário de entrada de carreiras do Judiciário e do Executivo.

A insatisfação salarial mitiga o espírito de corpo dos oficiais. Entre tenentes, grupo que tem menos de dez anos na carreira, mais da metade mudaria de carreira se pudesse preservar a estabilidade. No grupo de coronéis e generais, que já têm mais de 30 anos de Exército e estão às portas da aposentadoria, a intenção de virar a vida pelo avesso atinge apenas um em cada dez.

"Se não fosse militar, qual outra carreira seguiria?" A resposta demonstra o desacerto entre o espírito das Forças Armadas e o coração liberal do ministro Paulo Guedes. Ao ingressar na carreira, o oficial tem, a seu dispor, todo o plano de carreira das décadas seguintes, com as promoções e aperfeiçoamentos que precisará fazer para atingi-las. É essa mentalidade, e não o apetite da livre-iniciativa, que prevalece. Sem a farda, mais da metade rumaria para fazer um concurso público. Entre os mais jovens essa opção abocanha 72,7% de adesão.

Esse espírito de corpo se dilui no momento em que o Exército é mais endógeno do que nunca. A pesquisa de Miranda mostra que 45% dos oficiais são filhos de militares. Na década de 1960 a fatia de cadetes da Aman cujos pais estavam na carreira pouco ultrapassava um terço. Um outro estudioso das Forças Armadas e professor da Universidade Federal de São Carlos, Piero Leirner, atribui a essa endogenia o caldo de receptividade da base das Forças Armadas à candidatura de Jair Bolsonaro.
A primeira vez em que se deu conta disso foi em 2012, quando ministrou curso na Fundação Getúlio Vargas, no Rio, para uma turma majoritariamente de militares. Um major reclamou da Comissão da Verdade. Mais tarde, em viagem de pesquisa a São Gabriel da Cachoeira (AM), região que vivia sob uma onipresente liderança do general Heleno Ribeiro, o clima era o mesmo.

O relatório da Comissão colocaria sob o mesmo carimbo os brigadeiros Eduardo Gomes, patrono da Aeronáutica, e João Paulo Burnier, cuja ficha corrida vai da tentativa de golpe contra Juscelino Kubitschek à trama que planejava explodir o gasômetro do Rio em 1968 para incriminar os dissidentes da ditadura.

O relatório também teria abespinhado a geração da caserna que subiu a rampa com Bolsonaro por ter colocado no mesmo balaio Cyro e Leo Etchengoyen, respectivamente tio e pai do ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional do governo Michel Temer, Sérgio Etchengoyen. O primeiro foi apontado pelo coronel Paulo Malhães como um dos responsáveis pelo centro de tortura de Petrópolis, que ficaria conhecido como Casa da Morte, mas o irmão foi chefe do Estado-Maior sem registro de envolvimento com tortura.

Ao relatório some-se a reação da ex-presidente Dilma Rousseff ao manifesto do Clube Militar contra o documento. A determinação para que a entidade, de caráter privado, se retratasse, foi seguida por outro manifesto, ainda mais duro. Foi depois desses fatos que Bolsonaro compareceu, pela primeira vez como convidado, à uma cerimônia de formatura da Aman, em 2014. Dava início ali a uma campanha marcada pela presença em cerimônias militares de toda ordem, às quais não compareceria sem a anuência dos comandantes.

O capitão, que ao longo de seus seis mandatos anteriores como deputado federal não ultrapassara as plateias de mulheres e viúvas de militares, cativaria, ao longo do sétimo, as bases das Forças Armadas e seu comando.

Na pesquisa do major Miranda, o tema aparece na caixinha 'revanchismo político' como um dos maiores problemas das Forças Armadas, ainda que atrás das limitações materiais dos 'soldos baixos' e 'orçamento inadequado'. Serviu de amálgama a uma corporação, que desgastada pela ditadura, se construiu em torno de valores que buscavam diferenciá-la das instituições civis.

Se o revanchismo, a corrupção da esquerda à direita e a crise pavimentaram o apoio militar, não bastarão como norte para o governo. Na bússola do presidente não faltam ímãs que o empurram em direções opostas, a começar pela abertura ao investimento externo e à aliança incondicional com Donald Trump.

Ao longo das três décadas em que os militares estiveram longe do poder, o anticomunismo perdeu lugar para a defesa da soberania contra a internacionalização das organizações não governamentais.

O discurso que embala a revisão da reserva Raposa Serra do Sol vem daí. Leirner identifica na ascensão da Batalha dos Guararapes, do século XVII, em que as três raças se uniram para derrotar os batavos, a construção simbólica de um exército em busca de inimigos externos.

Parece um discurso desbotado, particularmente na era de um militar bandeirante, como Bolsonaro, mas ainda encontra ressonância. A presença das multinacionais identificada na pesquisa de Miranda como um dos interesses que exercem influência demasiada no país, é uma evidência clara das pressões para que o governo Bolsonaro se encaixe nos moldes do ultradireitismo nacionalista que tem em Trump e em Viktor Orbán, o primeiro-ministro da Hungria que prestigiou sua posse, como os principais representantes.

O nacionalismo, no entanto, está longe de unificar os militares do governo, a começar por Hamilton Mourão, de quem se registram, ao contrário dos demais generais do governo, posições mais alinhadas com o pró-americanismo pregado pelo novo Itamaraty do chanceler Ernesto Araújo.

Um posto avançado desta batalha já se estabeleceu na Petrobras. O novo presidente, Roberto Castello Branco, foi ungido por Paulo Guedes para comandá-la porque comunga de suas convicções liberais.

O ministro da Economia já deixou claro que pretende se valer da cessão onerosa para recompor o caixa do governo, ainda que sua regulamentação esteja pendurada no Congresso. Duas semanas antes da posse, no entanto, o almirante Bento Leite de Albuquerque Junior, nomeado ministro de Minas e Energia, pediu à empresa que providenciasse acomodações para que lá se instalasse com nove assessores. A presença de um cozinheiro na comitiva é um sinal mais do que eloquente da batalha que está por vir.


Alon Feuerwerker: Radicalização ideológica de Bolsonaro previne corrosão política enquanto a economia não reage

Todo poder político trabalha, antes de tudo, para perpetuar-se. Frases como “eles têm projeto de poder, nós temos projeto de país” servem para consumir papel e tinta (literais ou eletrônicos) mas não têm significado real no mundo da política. Um atributo notável de Jair Bolsonaro é a transparência: a alternância com a esquerda não está mesmo nos planos.

Era (e foi) esperado que esse apego viesse embalado como do mais alto interesse nacional. Tanto eficaz será a comunicação de qualquer líder e governo quanto mais o interesse particular for apresentado, e aceito, como interesse geral. Também por isso o governo Bolsonaro começou bem a disputa da comunicação. O “Brasil acima de tudo” continua funcionando.

Governar é decidir, e também saber comunicar a decisão. Quem pede moderação e conciliação no discurso bolsonarista pede que o novo regime abra mão de sua principal fonte de poder: a convicção popular, alimentada por anos, de que a solução para os principais problemas do país reside na eliminação de um pedaço da política. Ou da própria sociedade.

É esperado que os operadores encarregados de aprovar as coisas no Congresso peçam alívio no discurso. Também parece ser o sentimento dos estrategistas, quase todos militares. O problema? Quando propõem a conciliação, governos nascidos de batalhas políticas radicalizadas acabam passando a ideia de fraqueza. A última vítima disso foi Dilma Rousseff.

O poder é permanentemente rondado por quem deseja tomar o lugar. No caso de Jair Bolsonaro o perigo imediato não está na esquerda, isolada e por enquanto dividida. Vem da eleitoralmente pulverizada mas socialmente sempre influente direita não bolsonarista. É quem melhor personifica no Brasil o dito globalismo, besta-fera do bolsonarismo.

É uma corrente que está apenas à espera de as coisas começarem a dar errado para se apresentar como a solução à mão. Exemplos: 1) O PSDB oferecer-se para entrar no governo Collor, 2) o “ministério ético” do próprio Collor, 3) a nomeação de Fernando Henrique ministro da Fazenda de Itamar e 4) Dilma entregar a Michel Temer a articulação política na crise.

O único caso em que isso “deu certo” foi o terceiro, ao custo de Itamar abrir mão do poder real, concessão necessária para não ser derrubado. Na prática o governo Fernando Henrique Cardoso começou não em janeiro de 1995, mas em maio de 1993. Apesar das tentativas de manter viva a ideia de ter havido um governo Itamar Franco até o final de 1994.

Qual o desafio imediato de Bolsonaro? Inverter rapidamente as expectativas econômicas para impedir o surgimento de uma bolha de frustração que drene seu prestígio popular antes de o governo apresentar resultados. O instrumento à disposição é manter a luta ideológica bem aquecida e tentar despertar o chamado “instinto animal” do empresariado.

Jair Bolsonaro assume em condições bastante razoáveis. Inflação controlada, PIB em (lenta) recuperação, apoio maciço no empresariado e (potencialmente) no Congresso, imprensa ou favorável ou não radicalmente hostil, oposição entretida em disputas internas (coisa normal depois de derrota), Forças Armadas a favor e atuando como poder moderador.

Mas, como se diz, uma hora o governo precisará entregar a mercadoria. A economia precisa reagir, até porque a ideia é substituir progressivamente as proteções estatais ao povão por oportunidades que a economia privada oferecerá a esse povão. E quando esse despertar econômico é tentado mais pelo lado do investimento que do consumo o prêmio costuma demorar mais.

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Não há registro no Brasil de Congresso Nacional que tenha criado problemas para governos que largam com amplo apoio na elite. Fernando Collor tinha uma base formal estreitíssima e não teve a menor dificuldade para aprovar o enxugamento temporário de liquidez que quando ele caiu em desgraça se transformou no “sequestro da poupança". Recordar é viver.

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O governo Bolsonaro oferece uma grande oportunidade para o jornalismo. Acabou o tempo em que bastava se indignar e seguir a cartilha das causas pré-definidas como “do bem”. A coisa agora vai exigir mais sofisticação, pois o novo poder se apresenta com uma ideologia estruturada. Para criticar, antes de tudo é preciso entender o que outro está dizendo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


William Waack: Quem sabe faz a hora

Por uma ironia da História, o refrão ‘esperar não é saber’ pode mudar de mãos

Momentos decisivos na história são raros e o Brasil acabou de entrar num deles. A eleição de Bolsonaro foi só a preparação para o que vem agora: um País que, se quiser sair da mediocridade e estagnação, terá de confrontar a si mesmo.

O novo presidente prometeu libertar o Brasil de amarras que levaram gerações para serem confeccionadas. E que podem ser resumidas numa constatação preocupante: a sociedade brasileira falhou na tentativa de construir um Estado de bem-estar social nos moldes de países europeus. Nossa geração de riquezas não comporta um Estado de bem-estar social com o qual sonhamos.

Criamos um marco regulatório e legal que é um verdadeiro compendio de aspirações sociais, e que atribui ao Estado distribuir e garantir essas benesses e direitos codificados em leis. Esse papel garantiu a explosão de custos do setor público que financiamos através de aumentos de impostos nos últimos 30 anos (agora no nível do insuportável) e endividamento (beirando também o insuportável). Tudo junto mais a baixa produtividade são o famoso “custo Brasil”, que torna o País pouco competitivo.

O principal desafio de curto prazo é conhecido: lidar com as contas públicas, o que significa reformar a Previdência. Os principais obstáculos políticos são bem conhecidos também. Bolsonaro tomou posse graças a uma onda transformadora de amplo alcance e raízes profundas (ainda que em parte disfarçadas pelo repúdio ao petismo). O “mandato” conferido por esse fenômeno político para “defender a liberdade”, “acabar com corrupção e privilégios” e “fazer o Brasil crescer” é amplo para funcionar como inspiração, mas precisa ganhar contornos práticos e diretos imediatamente.

A combinação dos dois discursos de Bolsonaro no dia da posse é elucidativa. Ele reconhece que precisa do Congresso para governar e preferiu não esbravejar com o Legislativo – ao contrário, confia em velhas mãos (leia-se Rodrigo Maia como presidente da Câmara). Mas continua tratando de galvanizar o eleitorado como forma de manter a “temperatura” política necessária para, eventualmente, lidar numa posição de força com os senhores legisladores. Não parece que haverá em breve qualquer grande separação entre “palanque” e “governo”.

Ocorre que há sempre um limite para o nível de ebulição e efervescência políticas e o capital acumulado em termos de votos na recente eleição é erodido pelo tempo, que não é o cronológico. É o tempo da consagrada expressão alemã do “momentum”, a rápida conjunção de fatores estruturais e circunstanciais que abrem às vezes oportunidades únicas para alcançar objetivos amplos e difíceis.

Claro, seria muito mais elegante e refinado reescrever a Constituição (quem sabe tornando-a liberal) ou realizar uma ampla reforma política (a mãe de todas as reformas), mas isso significaria perder o ritmo e se deixar sufocar pelo peso monstruoso da crise fiscal, que já está paralisando serviços essenciais de saúde e segurança em vários Estados. O Brasil não é um país com mentalidade predominantemente liberal. Ao contrário: aqui a burocracia é encarada por muitos como proteção e não como obstáculo. O lucro é visto como pecado, e se alguém ficou rico é porque alguém ficou pobre.

O “ponto de equilíbrio” entre mudança e “status quo” no qual nos encontramos é o da instabilidade política, insegurança jurídica, estagnação econômica e mediocridade generalizada. Momento decisivo é empurrar o País para fora disso aí. Oportunidades desse tipo não se apresentam muitas vezes. E que ironia da História: cabe agora a um outro conjunto de forças políticas entoar o velho refrão – “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.


Sérgio Abranches: O desafio político do novo governo

Pistas dadas por Bolsonaro indicam agenda de reformas que exigirá várias emendas à Constituição

O novo governo começa embalado em altas expectativas e muita controvérsia. Sua eleição encerrou um ciclo do presidencialismo de coalizão, mas anulou o modelo político. Se o pleito presidencial implodiu o duopólio PT-PSDB, as eleições proporcionais resultaram em um multipartidarismo mais fragmentado, com bancadas partidárias significativamente menores. A formação de maiorias ficou mais difícil. Requer mais partidos, ao custo de menos afinidades político-programáticas. A pauta de demandas e desejos que elegeu Jair Bolsonaro tem um núcleo muito conservador, mas a maioria que o levou à vitória é difusa e diversificada.

O presidente eleito precisará de uma agenda que, sem desatender ao núcleo conservador, atenda a um espectro mais amplo de anseios, sob o risco de frustrar a larga faixa do eleitorado que votou mais contra o situacionismo. Ao mesmo tempo, terá que enfrentar os desafios que estão postos no campo fiscal e econômico.

O novo governo tem a seu favor um clima de otimismo como há muito não se registra no país. A esperança da opinião pública é um fator que impulsiona adesões no Congresso. Mas, embora um ingrediente necessário ao sucesso legislativo da agenda presidencial, não é suficiente.

Principalmente para um conjunto tão diferenciado de questões, que vão da economia — sobre a qual há relativo consenso no geral, todavia muita divergência no particular — até questões de direitos e costumes, em relação às quais não há concordância, nem no todo, nem nas partes.

O momento de maior probabilidade de sucesso corresponde aos primeiros quatro meses do primeiro ano do primeiro mandato. Em todas as presidências, desde 1990, com Collor, até Dilma, foi este o momento de maior sucesso parlamentar relativo, com o menor custo político e fiscal.

Pelo que informou o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, as prioridades e a agenda legislativa do novo governo serão apresentadas em reunião ministerial, no próximo dia 14. Prioridade clara e uma agenda focada também ajudam a conquistar maiorias.

Mas, no Congresso mais fragmentado da História, a formação de maiorias constitucionais exigirá coalizões com grande número de partidos, o que reduz a coerência interna e aumenta a dispersão de objetivos políticos e programáticos. A maior vantagem que terá no Legislativo será a afinidade do presidente eleito com o parlamentar mediano.

Mas ele se recusa a negociar uma coalizão multipartidária com as lideranças das legendas. Isso dificulta muito a agregação de parlamentares em número suficiente para aprovar uma agenda tão ambiciosa quanto aparenta ter o novo governo.

As pistas até agora dadas por Bolsonaro e seus principais auxiliares indicam uma agenda de mudanças e reformas que exigirá várias emendas à Constituição. Quanto mais PECs o presidente incluir em sua proposta parlamentar, maior a coesão multipartidária que precisará alinhavar para ter sucesso.

Fernando Henrique Cardoso tinha uma coalizão compacta, majoritária. Conseguiu aprovar um número significativo de emendas constitucionais e reescrever o capítulo econômico da Constituição. O forte impulso do Plano Real fez a diferença. Nenhum outro presidente conseguiu aprovar tantas PECs em um só ano.

Com a fragmentação e a resistência do presidente em negociar com os partidos, o mais provável é que não caibam muitas PECs na agenda de Bolsonaro. O sucesso objetivo de sua presidência depende da dimensão econômica de sua agenda e seus efeitos sociais.

O sucesso subjetivo, junto a seu eleitorado, depende das propostas sobre costumes, muito conservadoras e controversas. Se este quadro se confirmar, ele terá que encontrar um caminho de equilíbrio entre as reformas econômicas e sua pauta conservadora e garantir ganhos sociais. Um desafio e tanto.

*Sérgio Abranches é cientista político