populismo

Valor: Populismo atinge países muito diferentes ao mesmo tempo pela primeira vez, diz Badie

Especialista em relações internacionais Bertrand Badie afirma que fenômeno atinge países muitos diferentes ao mesmo tempo

Por Helena Celestino, do Valor Econômico

"O populismo não descreve regime nem doutrina, mas uma situação de crise profunda, de falta de confiança entre o povo e instituições"

RIO - Os ex-alunos de Bertrand Badie são onipresentes no Quai d'Orsay, a maneira como os íntimos tratam o Ministério das Relações Exteriores da França. Alguns estão em postos com altas responsabilidades políticas e muitos foram parar nas redações de jornais ou em influentes "think tanks" da Europa. Especialista em relações internacionais, professor-estrela do Instituto de Estudos Políticos de Paris, a prestigiada Sciences Po, Badie tem uma dúzia de livros escritos e dirige há dez anos uma obra coletiva em que anualmente intelectuais fazem um diagnóstico sobre o estado do mundo. "A volta dos populismos" foi a capa de "L'Etat du Monde 2019", tema considerado por todos como o grande fenômeno político da atualidade.

"Pela primeira vez na história do mundo, tantos e tão diferentes países vivem um mesmo fenômeno político. É único, o populismo tornou-se quase universal", diz Badie, de 68 anos. Na análise do professor, são populistas o presidente dos EUA, Donald Trump, assim como o da Rússia, Vladimir Putin, e o brasileiro Jair Bolsonaro. Também o são os governos escandinavos, da Itália e das Filipinas. E ainda estão nessa lista, por exemplo, o partido de esquerda La France Insoumise, de Jean-Luc Mélenchon, assim como o de extrema-direita Rassemblement National (ex- Front National), de Marine Le Pen.

O populismo, explica Badie, é uma onda que vai e volta desde o século XIX: estamos agora vivendo a quarta dessas vagas; a mais dramática foi entre as duas guerras mundiais, com o aparecimento do fascismo e do nazismo. "O populismo não descreve nem um regime nem uma doutrina, mas uma situação de crise profunda, de falta de confiança entre o povo e suas instituições", diz o professor.

Filho de imigrantes persas - ele se recusa a dizer Irã -, Badie jamais voltou ao país de seus pais depois da revolução dos aiatolás. Formado politicamente nos protestos de Maio de 68, ele agora vê aparecer nos protestos, pela primeira vez, a bandeira francesa, empunhada ao som da "La Marseillaise". "Esta é a marca dos protestos dos coletes amarelos. Para nós, é profundamente novo isso. Há um século, quando há contestação social, é sempre empunhada a bandeira vermelha, e não a tricolor [azul, vermelha e branco]. É sempre ao som da 'Internacional', e jamais ao da 'Marseillaise'. Isso mostra a ruptura muito profunda. É a direitização da contestação social", constata.

O movimento dos coletes amarelos, cuja base é a classe média baixa do interior da França, há três meses faz manifestações todos os sábados contra o governo Macron e as elites globalizadas.

Valor: A volta dos populismos é o fenômeno mais importante de 2019? Ou da próxima década?
Bertrand Badie: Pela primeira vez na história do mundo, um fenômeno político atinge ao mesmo tempo países tão diferentes quanto Estados Unidos, os da Europa Ocidental, o Brasil, a Turquia, muitos países do Norte, do Sul, do Leste e Oeste. É uma coisa única, um fenômeno quase universal. Estamos na quarta etapa do populismo: a história do mundo é ritmada por sequências populistas, a primeira no fim do século XIX, a segunda entre as duas guerras, a terceira em alguns países do Sul depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945], e agora estamos na quarta fase, ou seja, tem também um elemento histórico. O populismo traz uma contradição extremamente forte com a globalização - populismo e globalização são como a água e o fogo, uma contradição que pode prejudicar a globalização e levar o populismo a um impasse, ou seja, a uma incapacidade de gerir a política.

Valor: Os populismos trazem junto o crescimento do nacionalismo e da extrema-direita ao redor do mundo, certo?
Badie: Exato. A ligação é íntima. A esquerda não soube oferecer uma perspectiva moderna sobre a globalização. Então, todo o debate foi levado entre uma direita globalizada e liberal versus uma direita nacionalista e hostil à globalização. A esquerda, quase em todos os lugares do mundo, ficou fora da corrida

Valor: Quais são as características comuns a todos esses governos populistas? Eles são muito diferentes, não?
Badie: Sim, porque populismo não descreve nem um regime nem uma doutrina, mas uma situação de crise, de falta de confiança entre o povo e suas instituições. Essa situação leva a métodos de mobilização idênticos, tem sempre a personalização da liderança política, a mobilização da população e uma forte estratégia de comunicação de massa. Mas, depois disso, as fórmulas são enormemente diferentes. No mundo ocidental, vemos poucos populismos de esquerda, como por exemplo o France Insoumise e alguns partidos na Escandinávia. Mas a maioria deles é de direita, muito liberais, como o do presidente Jair Bolsonaro ou como o governo da Áustria, liderado por um partido populista que é ultraliberal. Ou Trump nos Estados Unidos. Além disso, vemos populismos que aceitam o jogo democrático e outros extremamente autoritários, como Vladimir Putin, na Rússia, e Erdogan, na Turquia. Mas todos eles têm em comum o fato de exagerar o peso da nação no contexto da globalização.

Valor: O senhor acha que o populismo é um risco para os valores democráticos?
Badie: Incontestavelmente. A raiz do populismo é uma desconfiança em relação às instituições, o que se traduz em uma marginalização das instituições da democracia a favor do que chamamos de democracia direta, uma ligação direta entre o povo e o líder. Efetivamente isso se traduz, em todos os lugares, por um desprezo pelo parlamento, uma hostilidade contra as mídias, acusadas sempre de complô. É só olhar os EUA, onde Trump está sempre em guerra com o Congresso e a CNN ou o "Washington Post". Essa atitude contra as instituições cria prejuízos à democracia, já que ela só existe por meio do respeito às instituições.

Valor: Além dos EUA, em que países o senhor está pensando ao dizer isso?
Badie: É preciso ser honesto. Muitos desses governos chegaram ao poder com eleições. Na Itália ninguém pode contestar o processo pelo qual [os vice-primeiros-ministros] Matteo Salvini e Luigi Di Maio chegaram ao poder, a partir de um respeito à democracia. Mas é próprio dos populismos considerar o povo e a nação como bens superiores; a democracia é vista como um valor secundário. Os populistas não respeitam a gramática democrática, isso é verdade em todos os lugares, seja na Rússia de Putin, seja no Brasil atualmente. Mas é preciso diferenciar entre os que chegaram ao poder democraticamente e os que usaram a força e a pressão para isso.

Valor: O senhor atribui essa virada populista à crise econômica de 2008 ou a algo mais profundo, como a uma crise de civilização?
Badie: Não gosto da expressão "crise de civilização", é imprecisa. O afastamento entre o povo e as instituições é causado pelo sentimento de que elas são ineficazes porque não funcionam democraticamente ou porque são incapazes de proteger o cidadão. É um fenômeno novo que se traduz numa crítica global às elites, às instituições e aos políticos. Na base de todo populismo existe sempre o mesmo fator essencial, o medo. Estamos com medo e achamos que as instituições não são mais capazes de nos proteger. O medo nessa quarta onda populista é o medo da globalização, que se traduz pelo medo da crise econômica, da insegurança econômica, mas também o medo de perder a soberania nacional, o medo do estrangeiro e da imigração, o medo das grandes empresas multinacionais. É a situação de medo do estrangeiro.

Valor: É uma espécie de nova utopia que está sendo criada? É possível conjugar um país fechado ao "estrangeiro" com as tecnologias digitais?
Badie: É pior que uma utopia. A força da utopia é a invenção de um modelo novo - as grandes utopias do século XIX permitiram a invenção do liberalismo, do socialismo e do comunismo. Agora não é uma utopia, é uma utopia regressiva, que não produz o futuro e tenta se proteger através de uma negação do real e de uma volta ao passado, o que é impossível. É mais uma patologia do que uma utopia. Essa tentativa de gerir o medo através de uma volta ao passado torna esses governos incapazes de gerir a atualidade e se inserir na globalização. Trata-se de uma patologia que agrava a crise em vez de resolvê-la. E vemos bem como a Itália está se afundando numa crise econômica perigosa e, como os EUA quando saem dos acordos multilaterais, se isola cada vez mais do mundo e perde sua capacidade hegemônica. Vemos como o Reino Unido está perdendo suas vantagens no plano mundial por causa do Brexit, outra demonstração de populismo.

Valor: A maioria desses governos populistas é bem recente. Como prevê os próximos movimentos?
Badie: Vejo uma década de muitas dificuldades, o mundo vai pagar caro por essa patologia populista. Mas, a meu ver, ao fim de dez anos, os populistas terão esgotado a sua capacidade política.

Valor: A Europa vive uma fase de grande instabilidade política. Na França, por exemplo, os coletes amarelos estão fazendo balançar o governo Macron. É uma repetição do Maio de 68 com sinais trocados?
Badie: É totalmente diferente, Maio de 68 era a entrada na globalização, era a primeira construção da globalização na França, na Itália, na Alemanha. Havia uma mobilização contra a Guerra do Vietnã, a favor da Palestina; os ídolos eram Mao Tsé-tung e Che Guevara. Era também um movimento progressista, o grande momento da liberação dos comportamentos, da condenação de todos os conservadorismos sobre o aborto, a homossexualidade. Os coletes amarelos são muito conservadores do ponto de vista social, hostis à globalização e à imigração, assim como ao casamento gay, hostis à liberação de costumes.

Valor: Vi um dos coletes amarelos dizer diante do ministro do Meio Ambiente que ele estava preocupado com o fim do mês e o ministro, com o fim do mundo. Como reconciliar esses mundos?
Badie: Esse é um outro aspecto: o pensamento e a política neoliberal deixaram de lado a questão social e favoreceram a questão econômica. Subestimamos a força da ideia de progresso social com que a sociedade europeia foi construída. E, de repente, tornou-se dominante a ideia de que o progresso social viria com o enriquecimento dos mais fortes e mais ricos. Isso criou uma crise social profunda que não se estava percebendo. É preciso repensar a economia de uma maneira social.

Valor: Que marca os coletes amarelos deixarão no governo Macron?
Badie: Ainda é cedo para saber. Eu vejo dois cenários: existe a possibilidade de esse movimento desaparecer e não deixar marcas - isso pode acontecer, já que o movimento é espontâneo, não tem organização nem líderes, e a cada semana são menos 10 mil nas ruas. A outra possibilidade é o governo ser mais atingido do que o previsto e uma crise de verdade instalar-se. A grande incógnita hoje é se o governo Macron conseguirá reagir e governar. Se não, vamos entrar em uma coisa ainda pior, em uma espécie de decomposição do sistema político francês - já não há partido ou líder político forte na França. Esse risco de decomposição política existe, pode vir a acontecer o mesmo que na Itália: com o desaparecimento da democracia cristã e do Partido Comunista, não sobrou nada, e esse vazio foi ocupado por formações extremistas.

Valor: Como Macron acabou com seu capital político em um ano e meio?
Badie: A aposta de Macron foi perigosa: tomar o poder na França sem apoio de um partido político e de um número razoável de homens e mulheres com peso e experiência política. Isso não é possível. Não se pode gerir a sexta economia do mundo a partir de um grupo de amigos e de pessoas que, na sua maioria, não tinha a menor experiência de poder. Nas democracias, quando há crise de autoridade, cabe aos partidos políticos reconstituírem essa autoridade. Macron, quando um ministro sai do governo, precisa de um mês para achar um sucessor. Jamais se viu isso na história francesa. Atualmente, ele está com dificuldades de mostrar que superou a contestação dos coletes amarelos, ele não tem com quem revezar o trabalho de reconectar o governo com a opinião pública. Os deputados que ele elegeu são desconhecidos. Eu, que há 40 anos sou professor de ciência política, não sou capaz de dizer o nome do deputado do meu "arrondissement". São desconhecidos, insignificantes…

Valor: O senhor compara o governo Macron com esse início de governo Bolsonaro?
Badie: Não é a mesma coisa. Bolsonaro é um populista verdadeiro. Macron teve um pequeno lado populista quando criticou os partidos e disse que ia mandar embora a velha classe política, mas ele não tem um projeto populista como Bolsonaro. Macron é a favor da globalização, liberal, muito pouco nacionalista. E, em relação aos costumes, ele não é homofóbico, não é racista, não é machista. Felizmente. O equivalente de Bolsonaro na França é Marine Le Pen.

Valor: Estava fazendo referência ã fragilidade do partido e à falta de experiência administrativa das equipes de Bolsonaro e Macron...
Badie: Desse ponto de vista sim, mas não chamaria de semelhança, porque essa espécie de marginalização de políticos experientes em favor de novatos está praticamente generalizada no mundo. Veja Trump nos EUA ou o governo italiano, totalmente inexperientes. Mesmo no Reino Unido, um país conservador, os vencedores do Brexit eram líderes inexperientes, como Nigel Farage [líder do Ukip na época do plebiscito]. Acontece um pouco em todos os lugares do mundo a chegada de gente sem experiência ao poder. É um fenômeno preocupante.

Valor: Todas as dificuldades enfrentadas pelo Reino Unido depois do Brexit, de alguma maneira, acabaram esvaziando o discurso de políticos contra a União Europeia?
Badie: É uma atitude paradoxal, ninguém mais fala em sair da União Europeia. Le Pen não fala, Salvini não fala, todos os eurocéticos pararam de falar em sair do bloco. Mas ninguém fala também na construção da Europa. A primeira foi a associação de Estados para construir a paz e a própria Europa, exangue após a Segunda Guerra Mundial. Tudo isso foi realizado com sucesso, mas aconteceu há 20 anos. A Europa agora precisa de solidariedade entre as sociedades e isso não avançou nada. A crise da imigração mostrou isso. Compreende-se, portanto, a decepção das pessoas. Não faz o menor sentido perguntar aos britânicos se eles querem ficar dentro ou fora da Europa.


Fábio Konder Comparato: Por falar em democracia

Soberania popular é hoje confundida com populismo

Desde a Antiguidade clássica até a segunda metade do século 19, a democracia sempre foi tida como regime político subversor da hierarquia social. Montesquieu sustentava que, numa sociedade democrática, as mulheres, as crianças e os escravos já não se submeteriam a ninguém, já não haveria bons costumes, amor à ordem, virtude, enfim.

Por sua vez, James Madison, um dos "founding fathers" dos Estados Unidos, sublinhou que a democracia, por ele entendida como a "sociedade consistente num pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo diretamente", incentivaria o espírito de facção, pondo em constante risco a ordem social.

Entre nós, menos de um ano após a independência, quando se elaborava a Constituição do novo Estado, o jovem imperador lançou um brado de alerta:

"Algumas Câmaras das Províncias do Norte deram instruções aos seus deputados em que reina o espírito democrático. Democracia no Brasil! Neste vasto e grande Império é absurdo; e não é menor absurdo o pretenderem elas prescrever leis aos que as devem fazer, cominando-lhes a perda ou derrogação de poderes, que lhes não tinham dado, nem lhes compete dar".

Durante todo o século 20, contudo, o juízo de valor que se fazia sobre a democracia era exatamente o inverso. Com raras exceções, nenhum partido ou movimento político ousava dizer-se antidemocrático. Todos, ao contrário, esforçavam-se por se apresentar como os únicos verdadeiros defensores do "governo do povo, pelo povo e em prol do povo".

Tal unanimidade a propósito de democracia era evidentemente suspeita. Ao fazer do elogio desse regime um simples chavão político, ela revelava formidável confusão semântica. O povo, que pela própria etimologia (demos, povo + kratos, poder) seria o principal beneficiário dessa forma de organização política, sempre pareceu ter sérias dificuldades em entender o que está por trás das palavras encantatórias da propaganda.

Pesquisa realizada pelo instituto Latinobarômetro revelou que o apoio dos latino-americanos à democracia chegou em 2018 ao nível mais baixo já registrado: 48%, uma queda de cinco pontos percentuais em relação à 2017. No Brasil, esse apoio é ainda menor: 34%.

Pois bem, atualmente a aprovação da democracia se enfraquece no mundo todo; isso tem suscitado apreciável número de estudos sobre o fenômeno, até mesmo nos Estados Unidos, apresentado como parâmetro desse regime político após a Segunda Guerra Mundial.

A soberania popular é hoje, cada vez mais, como se acaba de ver em nosso país, confundida com populismo; ou seja, a revolta do "povão" contra as elites e a busca de um homem forte no governo; se possível, um militar da ativa ou da reserva, cercado de seus colegas de farda.

Pergunta-se: é possível vencer essa tendência declinante? De minha parte, respondo afirmativamente, desde que se compreenda qual a condição essencial de um regime de autêntica soberania popular, e não de uma oligarquia fantasiada em democracia, como sempre aconteceu em nosso país.

Esse pré-requisito essencial implica a ausência de uma profunda desigualdade social, a qual sempre existiu entre nós. Hoje, conforme relatórios da prestigiosa ONG internacional Oxfam, sabe-se que as seis pessoas mais ricas do Brasil têm o mesmo patrimônio que a metade mais pobre do país. De sua parte, a WID (World Wealthand Income Database) colocou nosso país como líder mundial em desigualdade, atrás até mesmo dos países do Oriente Médio.

Tudo isso, como ninguém ignora, tem consequências políticas arrasadoras. A Constituição em vigor, como várias que a precederam, declara solenemente que "todo o poder emana do povo". Mas este jamais teve a mínima condição de exercê-lo.

*Fábio Konder Comparato é professor emérito da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra


Helio Gurovitz: Bolsonaro, a imprensa e o ardil do populismo

Bolsonaro, a imprensa e o ardil do populismo Jair Bolsonaro ainda é uma esfinge. A campanha eleitoral, ditada pela polarização e pelo discurso raivoso, não permitiu que suas propostas fossem analisadas em detalhes, nem submetidas a debates com visões antagônicas. Seu programa de governo começa a ganhar forma agora, ditado pelas circunstâncias das articulações políticas. Sua personalidade será decisiva para determinar o êxito do governo.

Nas primeiras declarações e movimentos depois da vitória, ele procurou se mostrar sereno e conciliador, em contraste com a rebeldia, a agressividade e as ofensas que marcaram a carreira de deputado e a campanha. Tentar vislumbrar a realidade que existe atrás do “mito” Bolsonaro continua a ser um desafio, diante da falta de conhecimento de qualidade sobre sua ascensão. Quem estiver interessado em conhecer em profundidade o novo presidente terá enorme dificuldade.

Com exceção de um livro publicado pelo próprio filho Flávio no ano 2000, a única biografia disponível de Bolsonaro saiu neste ano. Publicada pelo jornalista Clóvis Saint-Clair diante da oportunidade oferecida pela corrida eleitoral, tem os defeitos inerentes a um livro produzido às pressas.

Sem acesso a Bolsonaro ou testemunhos de sua trajetória, o texto se resume a reunir o material já publicado sobre as principais polêmicas da carreira dele até o início da campanha (sem, portanto, as últimas decisões nos tribunais, nem o atentado de que foi vítima). O estilo é pobre, apoiado em chavões (como “nem tudo são flores”), metáforas gastas (Cavalão, apelido de Bolsonaro no Exército, dá azo a imagens hípico-equinas recorrentes, como “coice”, “páreo” ou “pule de dez”) e falhas de revisão (como “extratos (sic) sociais”). Mas o livro tem o mérito de reproduzir com fidelidade as declarações de Bolsonaro, sem omitir o contexto.

Está tudo lá na íntegra. Entrevistas e pronunciamentos com loas à ditadura e à tortura, ofensas a gays, mulheres e minorias, até os embates com parlamentares, como Maria do Rosário ou Jean Willys, que lhe renderam a censura dos pares no Congresso e processos na Justiça. Saint-Clair obviamente se opõe a Bolsonaro. Sua posição política fica clara quando chama Dilma Rousseff de “presidenta”. Mas ele não deixa que isso interfira na forma como lida com a informação. Seu trabalho jornalístico ao reproduzir as polêmicas é honesto e preciso. Só por isso, seu livro tem valor como referência.

O maior valor, contudo, está em ilustrar o principal desafio diante dos jornalistas ao cobrir o novo governo. Saint-Clair mostra que Bolsonaro é, em suas próprias palavras, “mais berro que argumento”. O presidente eleito segue a cartilha de populistas como Donald Trump, Hugo Chávez ou o próprio Luiz Inácio Lula da Silva ao declarar guerra ao jornalismo profissional e eleger veículos da imprensa como inimigos políticos.

Profere bravatas sob medida para provocar sensibilidades “politicamente corretas” e despertar controvérsias e a reação irada nas páginas dos grandes jornais. Só que, ao morder a isca dos “berros”, a imprensa apenas contribui para alimentar a retórica populista e confirmar a opinião do séquito de fiéis que Bolsonaro conduz com destreza pelas redes sociais. Não é coincidência que seu primeiro pronunciamento depois de eleito tenha sido numa delas, nem que os grupos de mensagens por celular tenham sido tão relevantes em sua campanha.

Seria demais ignorar declarações escandalosas ou ofensivas. Mas há uma lição a aprender com os erros da imprensa americana na cobertura do governo Trump, ao transformar todo tuíte em manchete.

O que define um presidente é menos o que diz e mais o que faz.

Bolsonaro está apoiado numa rede articulada de ideólogos, pensadores e políticos do mundo todo. Representa aspirações legítimas da maioria dos brasileiros na economia, na segurança e nos costumes. É para elas que os jornalistas deveriam voltar os olhos, em vez de cair no ardil óbvio dos arroubos ofensivos e dos ataques à “mídia”. Entender como e por que ele conseguiu captá-las tão bem é a missão que cabe ao jornalismo — e a novas biografias.


Hélio Schwartsman: Explorando as ambiguidades

Declarações da campanha de Bolsonaro apresentam característica da retórica populista

Jair Bolsonaro conseguiu a façanha de ser eleito presidente sem ter dito o que pretende fazer depois de 1º de janeiro. Ou melhor, sua campanha soltou tantas e tão contraditórias declarações que qualquer proposta que o governo venha a apresentar será compatível com alguma das sinalizações emitidas.

Podemos tanto esperar uma reforma da Previdência vigorosa, quanto uma versão ultra-aguada daquela que foi proposta na gestão Temer. Para os que gostam de marcar “nenhuma das anteriores”, outra possibilidade é a mudança do regime de repartição para um de capitalização, que a maioria dos técnicos considera pouco viável.

Também não sabemos se veremos um programa de privatizações tão ousado que inclua praias e parques nacionais —seria a única forma de chegar ao R$ 1 trilhão desejado por Paulo Guedes—, ou um tão tímido que deixe de fora estatais “estratégicas” como Petrobras, BB, CEF e Eletrobras, que são as que valem dinheiro grosso. Em algum momento, tudo isso foi vocalizado ou ao menos insinuado por algum membro do núcleo duro bolsonariano.

Tal ambiguidade não chega a ser uma surpresa; ao contrário, é uma característica da retórica populista, que evita definições que possam alijar eleitores ou converter-se em cobranças no futuro. O próprio discurso da vitória de Bolsonaro teve uma versão mais institucional para o grande público, que não foi ruim, e outra, com mais provocações, para a turma das redes sociais.

É interessante notar que mesmo as falas mais veementes e ultrajantes do clã Bolsonaro costumam depois, caso provoquem comoção, ser relativizadas como se não passassem de brincadeira ou tivessem sido descontextualizadas. É uma forma de tentar normalizar a intimidação.

O problema com a ambiguidade é que ela funciona melhor na campanha do que no governo. Para fazer as coisas acontecerem, Bolsonaro precisará tomar decisões, isto é, arbitrar perdedores.


Sérgio C. Buarque: Ameaça é o populismo

Na guerra verbal da política brasileira, tem sido frequente destratar os adversários com o epíteto de fascistas, qualificativo tão incompreendido quanto inapropriado. E, no entanto, um grupo de professores e estudantes da Universidade Federal de Pernambuco acaba de criar um “comitê contra o fascismo”, divulgando um manifesto no qual, entre outras impertinências, acusa as instituições jurídicas (Ministério Público, Polícia Federal e Judiciário) de perseguição ao ex-presidente Lula e utilização de métodos fascistas. Embora cite manifestações de intolerância e hostilidade realmente visíveis no ambiente político brasileiro, é um despropósito falar de fascismo no Brasil. Os universitários utilizam um conceito inadequado e chegam a um diagnóstico errado e simplista, confundindo mais que esclarecendo. O que é mais grave, escondendo a verdadeira ameaça à democracia brasileira: o populismo.

O manifesto dos professores afirma que “o fascismo se caracteriza essencialmente por ser um movimento de massas movido pelo ódio” e adverte contra a “banalização de atos de hostilidade e desqualificação contra adversários”. De quem o manifesto está falando? A tolerância política e o respeito aos adversários não é, em absolulto, uma qualidade dos políticos do chamado “campo popular”, como se situam os assinantes do manifesto, seja lá o que signifique isso. O noticiário está repleto de casos de violência e agressão, verbal e física, da parte de militantes do PT e seus aliados, como a depredação de instalações e equipamentos da própria Universidade Federal, a sistemática agressão a políticos que não integram esse “campo”, inclusive dentro de universidades, como ocorreu com o senador Cristovam Buarque em Minas Gerais, apenas para citar dois casos recentes.

Os “fascistas” são sempre os adversários. Assim, a invenção e exploração de um “inimigo interno” para capitalizar e mobilizar a insatisfação da população, outra característica do fascismo que os universitários identificam no Brasil atual, seria pratica dos adversários do tal “campo popular”. E, no entanto, o mesmo manifesto, repetindo o que fazem com frequência os petistas e seus aliados, aponta a rede Globo, a “imprensa golpista”, o sistema bancário e, agora também, o Judiciário, como inimigos internos do Brasil, todos conspirando contra Lula que, no fundo, seria o “salvador da pátria”.

O manifesto dos universitários esquece esta que é a principal característica do fascismo e do nazismo e que, efetivamente, os distingue de qualquer outra ditadura: a liderança de uma figura carismática, salvadora da pátria, com grande comunicação direta com as massas e capacidade de mobilização e manipulação, mito que tenta substituir as instituições da república pela ligação direta com o povo. No Brasil de hoje temos Lula, o salvador da pátria. O ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva não é fascista, embora ninguém duvide do seu poder de comunicação e de mobilização das massas com afirmações simplistas e, não raro, apregoando a intolerância com os adversários, especialmente a imprensa e o Judiciário. Mas aqui, a presença desta liderança popular tem outro nome não menos inquietante:  populismo.

Felizmente estamos muito longe de uma ameaça real de fascismo. Infelizmente, contudo, as condições de desagregação social e moral, de desmoralização da política, de elevada desconfiança do eleitorado e descrédito da população criam um ambiente favorável para o populismo. Liderança carismática, salvador da pátria que vende soluções fáceis, mágicas e enganadoras para a complexidade e dramaticidade da realidade brasileira, e que ameaçam levar o país ao desastre econômico e financeiro, para não falar na radical polarização política. A intolerância está presente nos dois lados da polarização política no Brasil. Mas não há como negar a enorme contribuição do PT e de Lula para a criação deste ambiente de radicalização e ódio, com seu discurso que segmenta os brasileiros entre “nós” (campo popular???) e “eles” (todo o resto não lulista).


Luiz Carlos Azedo: O passado e o futuro

Os elos entre o passado e o presente no Brasil são cheios de surpresas e singularidades. Vejamos, por exemplo, o caso do populismo. As forças que resistiram ao regime militar somente tiveram êxito porque recusaram a centralidade do Estado e buscaram reforçar e organizar a autonomia da sociedade civil na luta pelo restabelecimento da democracia. Feita a transição, porém, mesmo após a Constituinte, o patrimonialismo, o clientelismo e o fisiologismo, que sobreviveram a duas modernizações autocráticas, continuaram firmes e fortes e o velho populismo renasceu das cinzas depois do fim da “guerra fria”.

Tanto um quanto outro, porém, entraram em crise com a globalização e as novas relações do Brasil com o mundo em transformação, que cobram uma mudança nas relações entre o Estado e a sociedade. Um novo ciclo está se fechando, mas o novo ainda não se abriu, seja por causa desses laços com o passado, seja em razão de que a nova agenda do país não foi construída. Por onde passa essa agenda? Em primeiro lugar, pela transnacionalização das nossas cadeias produtivas e integração competitiva à economia mundial; em segundo, por um novo pacto entre o Estado, o mercado e a sociedade, no qual a modernização não se dê à custa de mais exclusão e desigualdades regionais; terceiro, pela renovação política e fortalecimento da nossa democracia representativa, o que não é uma tarefa fácil diante das mudanças em curso e da emergência das redes sociais e a crise ética dos partidos.

Esse novo cenário faz com que os sinais sejam trocados. Forças que desempenharam um papel democrático e transformador, com as mudanças em curso, ao se oporem a elas, não no sentido da sua forma específica apenas, mas ao rumo geral, acabam se colocando no papel de elementos reacionários e conservadores, num contexto delicado da vida nacional, em que estamos saindo com êxito de uma das mais graves recessões da nossa história, graças a um governo eficiente do ponto de vista da economia e das relações com o Congresso, mas que opera mais uma modernização sem ser moderno e não goza de popularidade por causa da crise ética.

É neste contexto que vamos às eleições de 2018. Por circunstâncias muito singulares, a coalizão que aprovou o impeachment da presidente Dilma Rousseff, formada por forças que participavam do antigo governo e da oposição, não consegue se reproduzir como uma alternativa unificada de poder. É curto o prazo que lhes resta para isso. As alternativas postas com mais vigor para a sucessão do governo Michel Temer representam uma recidiva de tendências populistas de direita e de esquerda, um anacronismo em relação não ao futuro próximo, mas ao próprio presente. Tanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto o deputado Jair Bolsonaro (que está de saída do PSC para o Patriotas) defendem modelos que se baseiam no fortalecimento do capitalismo de Estado e em velhas teses nacional-desenvolvimentistas. Ambos desdenham da democracia representativa, da liberdade de imprensa e da autonomia da sociedade civil.

Diferenças históricas

Por que será, então, que propostas mais comprometidas com a democracia e as mudanças que o país exige não conseguem se apresentar novo processo como alternativa de poder, ainda? Por dois motivos. Um é a crise do PSDB, que somente agora vê uma luz no fim do túnel, com a eleição do governador Geraldo Alckmin à presidência da legenda, mas que não conseguiu ainda se impor ao conjunto das forças que apoiaram ao impeachment como alternativa real de poder. De certa forma, muito mais do que unir um partido fragilizado pelo envolvimento de alguns de seus líderes mais expressivos na Operação Lava-Jato, com forte repercussão eleitoral em alguns estados, falta ao virtual candidato do PSDB à Presidência da República um projeto político de modernização do país que combata as desigualdades e a exclusão e seja capaz de empolgar a sociedade.

O segundo motivo é o governo de transição. Não somente devido ao enorme desgaste causado pelo envolvimento de alguns dos seus principais ministros na Operação Lava-Jato, mas por causa das divergências entre Temer e seus aliados e os tucanos paulistas, que acabam de desembarcar do governo. Por mais cordiais e cavalheirescas que sejam as relações entre o presidente e o governador paulista, essas divergências são de natureza histórica: em princípio, o PSDB nasceu para negar o PMDB. Mas também não é isso que impede a aliança. É a vontade de Temer e seus aliados de terem seu próprio candidato em 2018, de preferência o próprio, bafejado pelo sucesso de suas reformas, quiçá a da Previdência, por indicadores econômicos como as menores taxas de inflação e de juros em décadas.


El País: O discurso de ódio que está envenenando o Brasil

A caça às bruxas de grupos radicais contra artistas, professores, feministas e jornalistas se estende pelo país. Mas as pesquisas dizem que os brasileiros não são mais conservadores

Artistas e feministas fomentam a pedofilia. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o bilionário norte-americano George Soros patrocinam o comunismo. As escolas públicas, a universidade e a maioria dos meios de comunicação estão dominados por uma “patrulha ideológica” de inspiração bolivariana. Até o nazismo foi invenção da esquerda. Bem-vindos ao Brasil, segunda década do século XXI, um país onde um candidato a presidente que faz com que Donald Trump até pareça moderado tem 20% das intenções de voto.

No Brasil de hoje mensagens assim martelam diariamente as redes sociais e mobilizam exaltados como os que tentaram agredir em São Paulo a filósofa feminista Judith Butler, ao grito de “queimem a bruxa”. Neste país sacudido pela corrupção e a crise política, que começa a sair da depressão econômica, é perfeitamente possível que a polícia se apresente em um museu para apreender uma obra. Ou que o curador de uma exposição espere a chegada da PF para conduzi-lo a depor forçado ante uma comissão parlamentar que investiga os maus-tratos à infância.

“Isto era impensável até três anos atrás. Nem na ditadura aconteceu isto.” Depois de uma vida dedicada a organizar exposições artísticas, Gaudêncio Fidelis, de 53 anos, se viu estigmatizado quase como um delinquente. Seu crime foi organizar em Porto Alegre a exposição QueerMuseu, na qual artistas conhecidos apresentaram obras que convidavam à reflexão sobre o sexo. Nas redes sociais se organizou tal alvoroço durante dias, com o argumento de que era uma apologia à pedofilia e à zoofilia, que o patrocinador, o Banco Santander, ante a ameaça de um boicote de clientes, decidiu fechá-la. “Não conheço outro caso no mundo de uma exposição destas dimensões que tenha sido encerrada”, diz Fidelis.

O calvário do curador da QueerMuseu não terminou com a suspensão da mostra. O senador Magno Malta (PR-ES), pastor evangélico conhecido por suas reações espalhafatosas e posições extremistas, decidiu convocá-lo para depor na CPI que investiga os abusos contra criança. Gaudêncio se recusou em um primeiro momento e entrou com um pedido de habeas corpus no STF que foi parcialmente deferido. Magno Malta emitiu então à Polícia Federal um mandado de condução coercitiva do curador. Gaudêncio se mostrou disposto a comparecer, embora entendesse que, mais que como testemunha, pretendiam levá-lo ao Senado como investigado. Ao mesmo tempo, entrou com um novo pedido de habeas corpus no Supremo para frear o mandado de conduçãocoercitiva. A solicitação foi indeferida na sexta-feira passada pelo ministro Alexandre de Moraes. Portanto, a qualquer momento Gaudêncio espera a chegada da PF para levá-lo à força para Brasília.

“O senador Magno Malta recorre a expedientes típicos de terrorismo de Estado como meio de continuar criminalizando a produção artística e os artistas”, denuncia o curador. Ele também tem palavras muito duras para Alexandre de Moraes, até há alguns meses ministro da Justiça do Governo Michel Temer, por lhe negar o último pedido de habeas corpus: “A decisão do ministro consolida mais um ato autoritário de um estado de exceção que estamos vivendo e deve ser vista como um sinal de extrema gravidade”. Fidelis lembra que o próprio Ministério Público de Porto Alegre certificou que a exposição não continha nenhum elemento que incitasse à pedofilia e que até recomendou sua reabertura.

Entre as pessoas chamadas à CPI do Senado também estão o diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo e o artista que protagonizou ali uma performance em que aparecia nu. Foi dias depois do fechamento do QueerMuseu e os grupos ultraconservadores voltaram a organizar um escândalo nas redes, difundindo as imagens de uma menina, que estava entre o público com sua mãe e que tocou no pé do artista. “Pedofilia”, bramaram de novo. O Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito e o próprio prefeito da cidade, João Doria (PSDB), se uniu às vozes escandalizadas.

Se não há nenhum fato da atualidade que justifique esse tipo de campanha, os guardiões da moral remontam a muitos anos atrás. Assim aconteceu com Caetano Veloso, de quem se desenterrou um velho episódio para recordar que havia começado um relacionamento com a que depois foi sua esposa, Paula Lavigne, quando ela ainda era menor de idade. “#CaetanoPedofilo” se tornou trending topic. Mas neste caso a Justiça amparou o músico baiano e ordenou que parassem com os ataques.

A atividade de grupos radicais evangélicos e de sua poderosa bancada parlamentar (198 deputados e 4 senadores, segundo o registro do próprio Congresso) para desencadear esse tipo de campanha já vem de muito tempo. São provavelmente os mesmos que fizeram pichações recentes no Rio de Janeiro com o slogan “Bíblia sim, Constituição, não”. Mas o verdadeiramente novo é o aparecimento de um “conservadorismo laico”, como o define Pablo Ortellado, filósofo e professor de Gestão de Políticas Públicas da USP. Porque os principais instigadores da campanha contra o Queermuseu não tinham nada a ver com a religião. O protagonismo, como em muitos outros casos, foi assumido por aquele grupo na faixa dos 20 anos que durante as maciças mobilizações para pedir a destituição da presidenta Dilma Rousseff conseguiu deslumbrar boa parte do país.

Com sua desenvoltura juvenil e seu ar pop, os rapazes do Movimento Brasil Livre(MBL) pareciam representar a cara de um país novo que rejeitava a corrupção e defendia o liberalismo econômico. Da noite para o dia se transformaram em figuras nacionais. Em pouco mais de um ano seu rosto mudou por completo. O que se apresentava como um movimento de regeneração democrática é agora um potente maquinário que explora sua habilidade nas redes para difundir campanhas contra artistas, hostilizar jornalistas e professores apontados como de extrema esquerda ou defender a venda de armas. No intervalo de poucos dias o MBL busca um alvo novo e o repisa sem parar. O mais recente é o jornalista Guga Chacra, da TV Globo, agora também  classificada de "extrema esquerda". O repórter é vítima de uma campanha por se atrever a desqualificar -em termos muito parecidos aos empregados pela maioria dos meios de comunicação de todo o mundo-, 20.000 ultradireitistas poloneses que há alguns dias se manifestaram na capital do pais exigindo uma “Europa branca e católica”.

Além de sua milícia de internautas, o MBL conta com alguns apoios de renome. Na política, os prefeitos de São Paulo, João Doria, e de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr., assim como o até há pouco ministro das Cidades, Bruno Araújo, os três do PSDB. No âmbito intelectual, filósofos que se consideram liberais, como Luiz Felipe Pondé. Entre os empresários, o dono da Riachuelo, Flávio Rocha, que se somou aos ataques contra os artistas com um artigo na Folha de S. Paulo no qual afirmava que esse tipo de exposição faz parte de um “plano urdido nas esferas mais sofisticadas do esquerdismo”. O objetivo seria conquistar a “hegemonia cultural como meio de chegar ao comunismo”, uma estratégia diante da qual “Lenin e companhia parecem um tanto ingênuos”, segundo escreveu Rocha em um artigo intitulado O comunista está nu.

“Não é algo específico do Brasil”, observa o professor Pablo Ortellado. “Este tipo de guerras culturais está ocorrendo em todo o mundo, sobretudo nos EUA, embora aqui tenha cores próprias”. Um desses elementos peculiares é que parte desses grupos, como o MBL, se alimentou das mobilizações pelo impeachment e agora “aproveita os canais de comunicação então criados, sobretudo no Facebook”, explica Ortellado. “A mobilização pelo impeachment foi transversal à sociedade brasileira, só a esquerda ficou à margem. Mas agora, surfando nessa onda, criou-se um novo movimento conservador com um discurso antiestablishment e muito oportunista, porque nem eles mesmos acreditam em muitas das coisas que dizem”. A pauta inicial, a luta contra a corrupção, foi abandonada “tendo em vista de que o atual governo é tão ou mais corrupto que o anterior”. Então se buscaram temas novos, desde a condenação do Estatuto do Desarmamento às campanhas morais, que estavam completamente ausentes no início de grupos como o MBL e que estão criando um clima envenenado no país. “É extremamente preocupante. Tenho 43 anos e nunca tinha vivido uma coisa assim”, confessa Ortellado. “Nem sequer no final da ditadura se produziu algo parecido. Naquele momento, o povo brasileiro estava unido.”

O estranho é que a intensidade desses escândalos está oferecendo uma imagem enganosa do que na realidade pensa o conjunto dos brasileiros. Porque, apesar desse ruído ensurdecedor, as pesquisas desmentem a impressão de que o país tenha sucumbido a uma onda de ultraconservadorismo. Um estudo do instituto Ideia Big Data, encomendado pelo Movimento Agora! e publicado pelo jornal Valor Econômico, revela que a maioria dos brasileiros, em cifras acima dos 60%, defendem os direitos humanos, inclusive para bandidos, o casamento gay com opção de adotar crianças e o aborto. “Em questões comportamentais, nada indica que os brasileiros tenham se tornado mais conservadores”, reafirma Mauro Paulino, diretor do Datafolha. Os dados de seu instituto também são claros: os brasileiros que apoiam os direitos dos gays cresceram nos últimos quatro anos de 67% para 74%. Paulino explica que “sempre houve um setor da classe média em posições conservadoras” e que agora “se tornou mais barulhento”.

As pesquisas do Datafolha só detectaram um deslocamento para posições mais conservadoras em um aspecto: segurança. “Aí sim há uma tendência que se alimenta do medo crescente que se instalou em parte da sociedade”, afirma Paulino. Aos quase 60.000 assassinatos ao ano se somam 60% de pessoas que confessam viver em um território sob controle de alguma facção criminosa. Em quatro anos, os que defendem o direito à posse de armas cresceu de forma notória, de 30% a 43%. É esse medo o que impulsiona o sucesso de um candidato extremista como Jair Bolsonaro, que promete pulso firme sem contemplações contra a delinquência.

Causou muito impacto a revelação de que 60% dos potenciais eleitores de Bolsonaro têm menos de 34 anos, segundo os estudos do instituto de opinião. Apesar de que esse dado também deve ser ponderado: nessa mesma faixa etária, Lula continua sendo o preferido, inclusive com uma porcentagem maior (39%) do que a média da população (35%). “Os jovens de classe média apoiam Bolsonaro, e os pobres, Lula”, conclui Paulino. Diante da imagem de um país muito ideologizado, a maioria dos eleitores se move na verdade “pelo pragmatismo, seja apoiando os que lhe prometem segurança ou em alguém no que acreditam que lhes vai garantir que não perderão direitos sociais”.

Apesar de tudo, a ofensiva ultraconservadora está conseguindo mudar o clima do país e alguns setores se dizem intimidados. “O profundo avanço do fundamentalismo está criando um Brasil completamente diferente”, afirma Gaudêncio Fidelis. “Muita gente está assustada e impressionada.” Um clima muito carregado no qual, em um ano, os brasileiros deverão escolher novo presidente. O professor Ortellado teme que tudo piore “com uma campanha violenta em um país superpolarizado”.

 


Míriam Leitão: O preço do populismo

A Venezuela desce a ladeira há tantos anos que ninguém se surpreendeu pelo fato de três agências de risco terem declarado que o país está em default, e o Brasil ter reclamado junto ao Clube de Paris por não estar recebendo do país vizinho. O populismo, seja de esquerda ou de direita, sempre termina em desastre, que aprisiona o país por anos, como ocorre na Venezuela.

O encontro com a verdade, que o populismo adia com discursos de ódio contra os supostos inimigos, algum dia chega. E na Venezuela tem estado presente há muitos anos, mas agora está num ponto de não retorno. Nesta quinta-feira, os credores reunidos na Isda, uma associação internacional de detentores de títulos, ainda conversarão com o governo, mas a tendência é a de se juntarem às agências Standard&Poors, Moody's e Fitch e também declararem que a Venezuela não paga dívidas. O acordo fechado ontem com a Rússia não ajuda muito. A dívida total do país é de US$ 150 bi, e a parte renegociada é de US$ 3,1 bi. Rosamnis Marcano, da consultoria venezuelana Econometrica, conta que a negociação pouco tem avançado. Os EUA determinaram que credores americanos não devem negociar sem a presença da Assembleia Nacional, controlada pela oposição e que, depois do plebiscito, perdeu poderes.

— É preciso mais que uma revisão da dívida. O normal nesses processos é o devedor apresentar um plano de ajuste que convença os credores sobre a capacidade de pagamento. Mas o governo não apresentou nada capaz de equilibrar as contas — diz.

Um dos pontos de desequilíbrio é o controle de câmbio. Empresas que têm boas relações com o governo conseguem o câmbio super artificial de 10 bolívares por um dólar; no paralelo, a cotação passa de 10.000. As reservas venezuelanas são mínimas, em torno de US$ 10 bi. No Brasil, são de US$ 380 bi.

Caso o default se torne oficial, os credores poderão requisitar as garantias. Isso atingiria em cheio a indústria petroleira, praticamente o único setor em que a Venezuela é competitiva. Os navios da estatal PDVSA em águas internacionais poderão ser tomados. A petroleira também é dona da Citgo, que detém refinarias nos EUA e teve metade das ações colocada em garantia aos empréstimos venezuelanos. A situação é dramática. O default atingiria em cheio a indústria que é responsável por mais de 90% das exportações do país.

A produção de petróleo, intensiva em investimento, já definha. Pelos dados da Opep, em outubro o país extraiu menos de 2 milhões de barris por dia. Há 28 anos a Venezuela não produzia tão pouco. A empresa de petróleo sempre foi ordenhada pelo chavismo e não tem conseguido investir em novos campos. Neste momento em que o petróleo sobe no mercado internacional, o país não é capaz de se aproveitar dos preços porque tem produzido cada vez menos. Até parte da produção futura já foi negociada em contratos de empréstimos, especialmente com os russos. Eles, inclusive, usam esses títulos para negociar com os EUA, driblando o embargo imposto desde o conflito na Ucrânia.

A maior atingida, claro, é a população. Com o petróleo trazendo cada vez menos dinheiro, a crise de abastecimento se agrava. A Venezuela produz pouco, importa até gasolina. A Econometrica divulga um índice de escassez da economia, que hoje está em 50%. A cada dois produtos, um está em falta. No caso dos produtos de higiene, como os desodorantes, a escassez é de 80%. A pior situação é nos medicamentos. Falta desde amoxicilina, para inflamações de garganta, a remédios para o tratamento da Aids, passando pela insulina. Rosamnis conta que na terça-feira havia uma fila de um quarteirão no caminho do seu trabalho. No mercado, havia chegado farinha de milho, também escassa, que os venezuelanos usam para fabricar a arepa, onipresente na dieta local.

Essa mesma farinha eu vi sendo negociada em comércio paralelo no canto de um corredor do Palácio Miraflores, em 2003, quando fui entrevistar Hugo Chávez. O desabastecimento é crônico. O caso da Venezuela tem inúmeras lições sobre o que se deve evitar em qualquer país. Políticas públicas, sejam quais forem, se não tiverem uma base de sustentação fiscal acabam desmontando a economia. O país vive há anos um quadro de recessão, inflação e crise cambial. Foi levado a isso pelo populismo chavista. O longo retrocesso da Venezuela mostra o que não fazer com a economia e a democracia.

 


Alberto Aggio: As múltiplas vigências do populismo

Foi Isaiah Berlin que, em maio de 1967, numa conferência proferida em Londres, chamou atenção para o fato de que o “complexo de Cinderela” rondava o conceito de populismo. Mobilizando os componentes da fábula, Berlin afirmava que a essência do populismo, seu núcleo fundamental, não se encontrava na realidade, mas no comportamento intelectual de se buscar, por toda a parte, o chamado “populismo puro, verdadeiro, perfeito”, tal como o príncipe que, naquela estória, sapato em punho, vagueava errante em busca do pé da donzela que o encantara. Mesmo que sua ocorrência se tivesse dado em um único lugar, não importando sua vigência no tempo, o que se buscava pelo nome de populismo era, na verdade, a realização de um “ideal platônico”. Por ser assim, o populismo “realmente existente” seria sempre uma versão incompleta ou uma perversão. Apesar desse imenso déficit analítico, o populismo continuou a ser, nas ciências sociais ou na linguagem política, uma referência conceitual para caracterizar lideranças, movimentos ou regimes políticos, da mesma forma que, sem assumir-se como tal, correntes políticas diferenciadas continuariam a expressar a perspectiva de sua realização por meio de estratégias variadas de ação política.

A pré-história do conceito registra que o neologismo nasceu da tradução para o inglês do movimento narodnik na Rússia da segunda metade do século XIX. No mesmo período, ele também seria utilizado, em menor escala, para identificar o movimento político de pequenos e médios produtores rurais no hinterland norte-americano. Depois da Rússia, a América Latina é a “grande pátria do populismo”, escreveu José Aricó. Foi nela que o conceito fincou raízes e se generalizou, a ponto de ser a denominação de um período da sua história.
Como conceito, o populismo resultou de um movimento reflexivo que visava explicar a inadaptação das camadas populares, advindas do campo, à vida urbana que se impunha de maneira irrefreável na América Latina desde a década de 1930. A teoria sociológica registrou uma conexão entre a atitude mental de reação à modernidade dessas camadas populares e os fenômenos de natureza pré-democrática que derivavam da inexperiência política do conjunto da sociedade latino-americana na transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna. Os líderes que tiveram o respaldo político dessas camadas populares e se tornaram os principais protagonistas dos processos de superação da forma política de dominação oligárquica foram chamados de populistas, ainda que nenhum deles tenha assumido tal identidade.

O populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo e de ascensão de massas, na América Latina e no mundo. Enquanto governos ou regimes, o populismo orientou sua política para a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, ao mesmo tempo em que normatizou a “questão social”, incorporando as massas ao mundo dos direitos. Superou o liberalismo das oligarquias por meio de uma “fuga para frente” cujo objetivo foi o de realizar transformações sem rupturas violentas, evitando o que havia ocorrido nos processos capitalistas e socialistas de industrialização retardatária. O populismo promoveu a superação do atraso, sem revolução, garantindo, pela primeira vez, que o tema da cidadania fosse equacionado pela política nesta parte do Ocidente. Se aprofundarmos essa leitura, a “era do populismo” poderia ser compreendida por meio da categoria gramsciana da “revolução passiva”, abrindo novas perspectivas de interpretação.

Seja como for, o populismo interditou a via de passagem “clássica” à modernidade, caracterizada pela integração autônoma das classes populares às estruturas políticas da democracia liberal de perfil europeu. Ao invés disso, conectou desenvolvimento econômico e espaços institucionalizados de integração político-social de massas, reservando ao Estado um papel central. Essa configuração foi compreendida pelas ciências sociais como a principal razão de a sociedade latino-americana expressar claros limites para vivenciar a modernidade. Um diagnóstico poderoso e de muitas implicações: mais do que um conceito, o populismo era, no fundo, uma teoria explicativa a respeito dos descaminhos da modernidade latino-americana. Esta visão acabou produzindo uma cristalização cognitiva, fazendo com que a palavra populismo se generalizasse como representação de um passivo insuperável.

A história tratou de questionar essa interpretação. A luta política contra os regimes autoritários, especialmente no Brasil, deslocou o populismo do centro da política latino-americana, recusou a centralidade do Estado e promoveu a autonomia da sociedade civil em sua dinâmica de expansão da cidadania. No plano mundial, a globalização alterou a relação entre política e mercados. Tudo isso parecia enterrar definitivamente o populismo como um constructo ideológico passível de ser mobilizável apenas na “era dos Estados Nacionais”, mas anacrônico no contexto de globalização. Nessas circunstâncias, a política democrática começava a agregar novos valores à “revolução passiva”, agora em registro positivo, invertendo os vetores de sua orientação, com a mudança dirigindo a conservação.

A trajetória do populismo no século XX foi, em certo sentido, democratizadora, ainda que, em geral, avessa ao constitucionalismo e ao liberalismo. Contudo, a partir do início do século XXI, a mesma conjuntura que viu o avanço das amplas liberdades, do pluralismo e da alternância de poder nas democracias latino-americanas recém-saídas do autoritarismo também produziu uma espécie de “revanche do populismo” que, hoje, se expressa na moldura do bolivarianismo. Nela se supõe a emergência de uma forma de política na qual a relação entre governantes e governados abriria passagem para a construção de uma democracia direta e participativa, superior à democracia representativa, entendida como obsoleta e ineficiente. O populismo do século XXI busca uma identidade integral entre a instituição do “povo-sujeito” e a política, anulando a ideia de representação bem como a noção de “governo do povo”, entendida como uma contradição em termos.

Para Laclau, a razão populista e a razão política são idênticas, o que desloca para o plano secundário a deliberação racional vigente nas democracias ocidentais. Essa radicalização contraposta à modernidade, avessa ao individuo e sua expressão autônoma, que dá sustentação ao populismo do século XXI, sintetizada por Félix Patzi, ex-ministro da educação da Bolívia, como “uma espécie de autoritarismo baseado no consenso”.

Laclau realiza uma simbiose entre a teoria do populismo e as expectativas decantadas pelo marxismo quanto a uma revolução promotora da unificação, como dissemos acima, entre a razão do povo e a razão política. Por isso, faz sentido ele afirmar que hoje “há um fantasma que assombra a América Latina: esse fantasma é o populismo”. A paráfrase de Marx é imediatamente reconhecível e pode-se deduzir que Laclau pensa em reservar ao “populismo atual” um lugar idêntico ou semelhante ao que Marx imaginava para o comunismo na Europa dos idos de 1848.

Mas, ao contrário de Laclau, pelo menos até agora, o que se pode anotar é que o populismo dos dias que correm é visivelmente uma força regressiva no político. Hoje, no interior da moldura do bolivarianismo, nele predominam o autoritarismo, a intolerância e o antipluralismo. Onde é possível, afronta os direitos humanos, suprime as liberdades, reprime opositores, persegue juízes e jornalistas. Onde a ordem constitucional democrática é mais legitimada, a resistência é maior.

 


El País: O obscuro uso do Facebook e do Twitter como armas de manipulação política

As manobras nas redes se tornam uma ameaça que os governos querem controlar

Por Javier Salas

Tudo mudou para sempre em 2 de novembro de 2010, sem que ninguém percebesse. O Facebook introduziu uma simples mensagem que surgia no feed de notícias de seus usuários. Uma janelinha que anunciava que seus amigos já tinham ido votar. Estavam em curso as eleições legislativas dos Estados Unidos e 60 milhões de eleitores vieram aquele teaser do Facebook. Cruzando dados de seus usuários com o registro eleitoral, a rede social calculou que acabaram indo votar 340.000 pessoas que teriam ficado em casa se não tivessem visto em suas páginas que seus amigos tinham passado pelas urnas.

Dois anos depois, quando Barack Obama tentava a reeleição, os cientistas do Facebook publicaram os resultados desse experimento político na revista Nature. Era a maneira de exibir os músculos diante dos potenciais anunciantes, o único modelo de negócio da empresa de Mark Zuckerberg, e que lhe rende mais de 9 bilhões de dólares por trimestre. É fácil imaginar o quanto devem ter crescido os bíceps do Facebook desde que mandou para as ruas centenas de milhares de eleitores há sete anos, quando nem sequer havia histórias patrocinadas.

Há algumas semanas, o co-fundador do Twitter, Ev Williams, se desculpou pelo papel determinante que essa plataforma desempenhou na eleição de Donald Trump, ao ajudar a criar um “ecossistema de veículos de comunicação que se sustenta e prospera com base na atenção”. “Isso é o que nos torna mais burros e Donald Trump é um sintoma disso”, afirmou. “Citar os tuítes de Trump ou a última e mais estúpida coisa dita por qualquer candidato político ou por qualquer pessoa é uma maneira eficiente de explorar os instintos mais baixos das pessoas. E isso está contaminando o mundo inteiro”, declarou Williams.

Quando perguntaram a Zuckerberg se o Facebook tinha sido determinante na eleição de Trump, ele recusou a ideia dizendo ser uma “loucura” e algo “extremamente improvável”. No entanto, a própria rede social que ele dirige se vangloria de ser uma ferramenta política decisiva em seus “casos de sucesso” publicitários, atribuindo a si mesma um papel essencial nas vitórias de deputados norte-americanas ou na maioria absoluta dos conservadores britânicos em 2015.

O certo é que é a própria equipe de Trump quem reconhece que cavalgou para a Casa Branca nas costas das redes sociais, aproveitando sua enorme capacidade de alcançar usuários tremendamente específicos com mensagens quase personalizadas. Como revelou uma representante da equipe digital de Trump à BBC, o Facebook, o Twitter, o YouTube e o Google tinham funcionários com escritórios próprios no quartel-general do republicano. “Eles nos ajudaram a utilizar essas plataformas da maneira mais eficaz possível. Quando você está injetando milhões e milhões de dólares nessas plataformas sociais [entre 70 e 85 milhões de dólares no caso do Facebook], recebe tratamento preferencial, com representantes que se certificam em satisfazer todas as nossas necessidades”.

E nisso apareceram os russos

A revelação de que o Facebook permitiu que, a partir de contas falsas ligadas a Moscou, fossem comprados anúncios pró-Trump no valor de 100.000 dólares colocou sobre a mesa o lado obscuro da plataforma de Zuckerberg. Encurralado pela opinião pública e pelo Congresso dos Estados Unidos, a empresa reconheceu que esses anúncios tinham alcançado 10 milhões de usuários. No entanto, um especialista da Universidade de Columbia, Jonathan Albright, calculou que o número real deve ser pelo menos o dobro, fora que grande parte de sua divulgação teria sido orgânica, ou seja, viralizando de maneira natural e não só por patrocínio. A resposta do Facebook? Apagar todo o rastro. E cortar o fluxo de informações para futuras investigações. “Nunca mais ele ou qualquer outro pesquisador poderá realizar o tipo de análise que fez dias antes”, publicou o The Washington Post há uma semana. “São dados de interesse público”, queixou-se Albright ao descobrir que o Facebook tinha fechado a última fresta pela qual os pesquisadores podiam espiar a realidade do que ocorre dentro da poderosa empresa.

Esteban Moro, que também se dedica a buscar frestas entre as opacas paredes da rede social, critica a decisão da companhia de se fechar em vez de apostar na transparência para demonstrar vontade de mudar. “Por isso tentamos forçar que o Facebook nos permita ver que parte do sistema influi nos resultados problemáticos”, afirma esse pesquisador, que atualmente trabalha no Media Lab do MIT. “Não sabemos até que ponto a plataforma está projetada para reforçar esse tipo de comportamento”, afirma, em referência à divulgação de falsas informações politicamente interessadas.

O Facebook anunciou que contará com quase 9.000 funcionários para editar conteúdos, o que muitos consideram um remendo em um problema que é estrutural. “Seus algoritmos estão otimizados para favorecer a difusão de publicidade. Corrigir isso para evitar a propagação de desinformação vai contra o negócio”, explica Moro. A publicidade, principal fonte de rendas do Facebook e do Google, demanda que passemos mais tempos conectados, interagindo e clicando. E para obter isso, essas plataformas desenvolvem algoritmos muito potentes que criaram um campo de batalha perfeito para as mentiras polícias, no qual proliferaram veículos que faturam alto viralizando falsidades e meia-verdades polarizadas.

“É imprescindível haver um processo de supervisão desses algoritmos para mitigar seu impacto. E necessitamos de mais pesquisa para conhecer sua influência”, reivindica Gemma Galdon, especialista no impacto social da tecnologia e diretora da consultoria Eticas. Galdon destaca a coincidência temporal de muitos fenômenos, como o efeito bolha das redes (ao fazer um usuário se isolar de opiniões diferentes da sua), o mal-estar social generalizado, a escala brutal na qual atuam essas plataformas, a opacidade dos algoritmos e o desaparecimento da confiança na imprensa. Juntos, esses fatos geraram “um desastre significativo”. Moro concorda que “muitas das coisas que estão ocorrendo na sociedade têm a ver com o que ocorre nas redes”. E aponta um dado: “São o único lugar em que se informam 40% dos norte-americanos, que passam nelas três horas por dia”.

A diretora de operações do Facebook, Sheryl Sandberg, braço direito de Zuckerberg, defendeu a venda de anúncios como os russos, argumentando que se trata de uma questão de "liberdade de expressão". Segundo a agência de notícias Bloomberg, o Facebook e o Google colaboraram ativamente em uma campanha xenófoba contra refugiados para que fosse vista por eleitores-chave nos estados em disputa. O Google também aceitou dinheiro russo para anúncios no YouTube e no Gmail. Não em vão, o Facebook tem pressionado há anos para que não seja afetado pela legislação que exige que a mídia tradicional seja transparente na contratação de propaganda eleitoral. Agora, o Senado pretende legislar sobre a propaganda digital contra a pressão dessas grandes plataformas tecnológicas, que defendem a autorregulação. Tanto o Twitter quanto o Facebook expressaram recentemente a intenção de serem mais transparentes nesta questão.

A responsabilidade do Twitter

Em meados deste ano, o Instituto de Internet da Universidade de Oxford publicou um relatório devastador, analisando a influência que as plataformas digitais estavam tendo sobre os processos democráticos em todo o mundo. A equipe de pesquisadores estudou o que aconteceu com milhões de publicações nos últimos dois anos em nove países (Brasil, Canadá, China, Alemanha, Polônia, Taiwan, Rússia, Ucrânia e Estados Unidos) e concluiu, entre outras coisas, que “os bots [contas automatizadas] podem influenciar processos políticos de importância mundial”.

Nos EUA, os republicanos e a direita supremacista usaram exércitos de bots para “manipular consensos, dando a ilusão de uma popularidade on-line significativa para construir um verdadeiro apoio político” e para ampliar o alcance de sua propaganda. E concentraram seus esforços nos principais estados em disputa, que foram inundados com notícias de fontes não confiáveis. Em países como a Polônia e a Rússia, grande parte das conversas no Twitter é monopolizada por contas automatizadas. Em estados mais autoritários, as redes são usadas para controlar o debate político, silenciando a oposição e, nos mais democráticos, aparecem as cibertropas para intencionalmente contaminar as discussões. As plataformas não informam nem interferem porque colocariam “sua conta em risco”.

“Os bots utilizados para a manipulação política também são ferramentas eficazes para fortalecer a propaganda on-line e as campanhas de ódio. Uma pessoa, ou um pequeno grupo de pessoas, pode usar um exército de robôs políticos no Twitter para dar a ilusão de um consenso de grande escala”, afirma a equipe da Oxford. E concluem: “A propaganda informática é agora uma das ferramentas mais poderosas contra a democracia” e é por isso que as plataformas digitais “precisam ser significativamente redesenhadas para que a democracia sobreviva às redes sociais”.

Zuckerberg diz que é “loucura” pensar que o Facebook pode definir eleições, mas se gaba de fazer isso em seu próprio site

O Twitter também deletou conteúdo de valor potencialmente insubstituível que ajudaria a identificar a influência russa na eleição de Trump. Mais recentemente, pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia alertaram sobre o desenvolvimento de um mercado paralelo de bots políticos: as mesmas contas que antes apoiaram Trump, tentaram mais tarde envenenar a campanha na França a favor de Le Pen e, depois, produziram material em alemão colaborando com o partido neonazista Afd. Zuckerberg prometeu fazer o possível para “garantir a integridade” das eleições alemãs. Durante a campanha, sete das 10 notícias mais virais sobre a primeira-ministra alemã Angela Merkel no Facebook eram falsas. O portal ProPublica acaba de revelar que a rede social tolerou anúncios ilegais que espalhavam informações tóxicas contra o Partido Verde alemão.

Galdon trabalha com a Comissão Europeia, a qual considera “muito preocupada” nos últimos meses em dar uma resposta a esses fenômenos, pensando em um marco europeu de controle que, atualmente, está muito longe de ser concretizado. “Há quem aposte pela autorregulação, quem acredite que deve haver um órgão de supervisão de algoritmos como o dos medicamentos e até mesmo quem peça que os conteúdos sejam diretamente censurados”, diz a pesquisadora. Mas Galdon destaca um problema maior: “Dizemos às plataformas que precisam atuar melhor, mas não sabemos o que significa melhor. As autoridades europeias estão preocupadas, mas não sabem bem o que está acontecendo, o que mudar ou o que pedir exatamente”.

SAIR DA BOLHA
Tem sido muito discutido o verdadeiro impacto do risco das bolhas de opinião geradas pelas redes, depois do alerta do ativista Eli Pariser. “Esse filtro, que acaba reforçando nossos próprios argumentos, está sendo decisivo”, alerta Galdon. Recentemente, Sheryl Sandberg, do Facebook, disse que a bolha era menor em sua plataforma do que na mídia tradicional (embora tenha negado categoricamente que sua empresa possa ser considerada um meio de comunicação). Cerca de 23% dos amigos de um usuário do Facebook têm opiniões políticas diferentes desse amigo, de acordo com Sandberg.

“Sabemos que as dinâmicas do Facebook favorecem o reforço de opiniões, que tudo é exacerbado porque buscamos a aprovação do grupo, porque podemos silenciar pessoas das quais não gostamos, porque a ferramenta nos dá mais do que nós gostamos. E isso gera maior polaridade”, diz Esteban Moro. Um exemplo: um estudo recente do Pew Research Center mostrou que os políticos mais extremistas têm muito mais seguidores no Facebook do que os moderados. “Vivemos em regiões de redes sociais completamente fechadas, das quais é muito difícil sair”, afirma. E propõe testar o experimento de seus colegas do Media Lab, do MIT, que desenvolveram a ferramenta FlipFeed, que permite entrar na bolha de outro usuário do Twitter, vendo sua timeline: “É como se você fosse levado de helicóptero e lançado no Texas sendo eleitor de Trump. Assim você percebe o quanto vivemos em um ecossistema de pessoas que pensam exatamente como nós”.

 

 


Tio Sam

Monica De Bolle: Assim começa

“Desse momento em diante, será América primeiro. Todas as decisões sobre o comércio, a tributação, a imigração, assuntos externos, serão tomadas para beneficiar os trabalhadores americanos e as famílias americanas. Temos de proteger nossas fronteiras da devastação que outros países causaram ao produzir nossos produtos, roubar nossas empresas, destruir nossos empregos. Proteção trará maior prosperidade e força (…). América começará a vencer novamente, a vencer como nunca antes (…) E, sim, juntos faremos América great again.”


“Primeiramente, vocês querem empregos, certo? Esse é o único e principal objetivo (…) – trazer empregos para todos. Esse país pertence a nós e temos de lutar para mantê-lo assim. Para que a América seja great again, precisamos que a classe média revolucionária triunfe (…) Temos de purgar o país de todos os elementos e ideias que hoje infestam nosso país. América para os americanos!”


Proponho um desafio aos leitores. Como muitos devem ter acompanhado, a primeira citação é do discurso de posse de Donald Trump. Mas, e a segunda? Seria de algum de seus inúmeros rallies de campanha? Ou talvez do tour da vitória depois das eleições de novembro?

Como era de se esperar, Trump iniciou seu mandato com um discurso populista, nacionalista, protecionista. Quem imaginava que a retórica de campanha era apenas um punhado de palavras vazias enganou-se tanto quanto os que previram derrota Trumpista. Nos últimos dias, muitos comentários vi no Brasil de gente questionando qual o problema de Trump falar, e repetir, que será a América em primeiro lugar – não seria isso, afinal, o que todo líder quer para sua nação, seus interesses primeiro? Sim. E não. Não porque os EUA não são nação qualquer, mas a maior economia do planeta, o país cujo posicionamento geopolítico tem a maior influência sobre a ordem mundial.

Não à toa, todos os presidentes americanos do pós-guerra – todos – salientaram em seus discursos de posse o compromisso com seus aliados mundo afora, com a manutenção da ordem global, com a sustentação da economia mundial como algo que a todos interessa. Trump nada disse sobre a prosperidade global como algo que interessa aos EUA. Trump repudiou o mundo ao acusar a devastação causada por países que destroem empregos e roubam indústrias. Trump disse que proteção trará prosperidade.

Há muito o que dissecar sobre a integração global e seus efeitos nas economias maduras. Há tanto quanto o que dissecar sobre o advento de novas tecnologias e seus efeitos sobre a indústria tradicional, o encolhimento da economia do rust belt americano, o achatamento da classe média nos EUA. Algo, entretanto, está comprovado há tempos: o protecionismo não é o caminho nem para o resgate desses empregos, nem para a prosperidade. Os resultados do isolacionismo brasileiro estão aí para mostrar a falácia desse pensamento simplório. O protecionismo é reducionista, não expansivo. O protecionismo americano propalado por Donald Trump na melhor das hipóteses haverá de piorar as condições de vida dos “homens e mulheres esquecidos”. Na pior das hipóteses – porque o Brasil apequenado não é a América – levará à percepção de que a maior potência do planeta já era. Os vácuos serão preenchidos, aumentando as incertezas sobre os rumos da economia mundial diante da ausência de líderes com visão clara.

Os mercados, até recentemente, acreditavam, não sem alguma ingenuidade, que Trump faria bem para a economia americana, promoveria o crescimento por meio de cortes de impostos e mirabolantes planos de infraestrutura. Ignoraram o protecionismo e o nacionalismo, relegando-os à categoria de meros instrumentos retóricos de campanha. Pois foi sobre o protecionismo e o nacionalismo que Trump discursou em seu primeiro pronunciamento. Nada disse sobre o resto.

Líderes como Trump são velhos conhecidos na América Latina e na literatura. A segunda citação é de Nathanael West, em A Cool Million, romance publicado em 1934. Quem discursa é o líder populista Shagpoke Whipple em um rally de campanha. Whipple, Trump. A vida de fato imita a ficção.


Marco Aurélio Nogueira: Déspotas, populistas e demagogos, os arautos dos tempos atuais

Quando Silvio Berlusconi surgiu na cena política em maio de 1994, houve espanto e curiosidade. Não pelo fato de um magnata vencer eleições e governar a Itália, mas porque Il Cavaliere, como era conhecido, simplesmente reunia, em sua persona, a figura do rico empresário, do bon vivant e do homem da indústria do entretenimento, condição derivada do controle que mantinha sobre a maior rede privada de comunicação do país.

Era a imagem perfeita de uma liderança política que iria se sintonizar com os tempos que então se anunciavam: tempos de dificuldades para a democracia, de crise da representação, de desorganização política e social, de redução da densidade ética e política dos estadistas. Beneficiado pelas circunstâncias, Berlusconi assumiu o governo como premiê e nele construiu uma casamata de proteção dos próprios interesses, impulsionado por um império midiático e por um movimento de novo tipo (a “Força Itália”) que erodia as bases de reprodução dos partidos políticos, devorando-os por dentro e por fora.

No arco de quase duas décadas, Berlusconi ganhou e perdeu eleições, mas permaneceu no centro da política italiana. Chegou por três vezes ao cargo de primeiro-ministro, a última das quais se encerrou em 2011. Ao todo, ocupou o cargo de primeiro-ministro durante nove anos, um tempo considerável. Saiu da cena política formal em 2013, deixando um rastro de escândalos e tramoias que ainda hoje cercam sua trajetória, fazendo dela um verdadeiro case político.

Berlusconi foi um arauto. Com ele, a democracia representativa passou a conviver com personagens que carregam consigo a utilização abusiva dos meios de comunicação, que fazem da imagem, do histrionismo cênico e do personalismo os principais canais de interpelação dos cidadãos. Com eles, a política foi “reinventada”, passando a ser praticada com ingredientes explosivos: a mentira, a centralidade da televisão e das redes, a pregação racista, a xenofobia explícita, o separatismo, a demagogia populista, a ameaça, o baixo nível generalizado, a rusticidade argumentativa, o marketing movido a rios de dinheiro.

Uma visão em grande angular da política atual mostra bem como esse novo padrão está em marcha ascendente. De Trump a Marine Le Pen, do Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo na Itália ao Brexit e a Nigel Farage na Inglaterra, dos racistas holandeses e dinamarqueses à Alternativa para a Alemanha (AfD), de Frauke Petry, dos nacionalistas populistas aos vários separatismos, tudo se acomoda na ideia de que a extrema-direita encontrou uma estrada para acessar o grande palco da política, nele não só acampando como fazendo-o de forma totalitária, animada pela ideia de tomar o poder para atenuar as liberdades, repor a “ordem” e conter a democracia. Mantêm-se as instituições e as rotinas eleitorais, mas mudam-se o conteúdo e os estilos, com a infiltração na cultura democrática de valores e procedimentos que a corroem e desvirtuam.

Uns falam em “pós-democracia”, outros em morte dos ideais iluministas, outros ainda em novo irracionalismo. Todos procuram as chaves explicativas do processo em curso. Sabem que ele se associa à globalização e à reorganização do capitalismo, que estão a enfraquecer os Estados nacionais, a fragmentar as sociedades e a desestruturar as economias, levando os cidadãos à angústia da desproteção e fazendo com que o sistema representativo e seus operadores (a começar dos partidos políticos) mergulhem em uma fase de impotência e diluição. O cenário é perfeito para a multiplicação de pessoas providenciais.

Quando Berlusconi iniciou seu controle sobre a política italiana, o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004), um liberal-socialista então com mais de 80 anos, saiu em seu encalço. Como explicar o fato, como aceitar que um magnata do entretenimento, controlador dos principais órgãos de comunicação do país, concentrasse em suas mãos o poder político e o fizesse com aplausos entusiasmados de parte ponderável do eleitorado italiano?

Bobbio escreveu diversos artigos na imprensa diária da Itália para tentar não somente entender o fenômeno mas sobretudo alertar a opinião pública. Viu Berlusconi como um autêntico ovo da serpente, do qual nasceriam demônios difíceis de serem controlados.

Uma seleção desses artigos foi então reunida pela revista Critica Liberale no volume Contra os novos despotismos. Escritos sobre o berlusconismo, que a Editora Unesp e o Instituto Norberto Bobbio acabam de publicar no Brasil.

Os textos mostram o que Bobbio tinha de melhor: a retórica afiada e elegante, a argúcia argumentativa, sempre movimentando um pêndulo entre a realidade factual da política e as grandes elaborações teóricas e filosóficas, com as quais a política foi sendo pensada ao longo do tempo. Estão ali alguns de seus maiores achados e praticamente todas as suas obstinações: a complexidade, a indispensabilidade e as promessas fracassadas da democracia, o perigo dos totalitarismos, a importância dos partidos políticos, a força criadora do liberalismo social, a face demoníaca do poder, a relevância do cidadão politicamente educado.

Para Bobbio, o perigo representado por Berlusconi derivava do fato de que ele reunia, em uma só pessoa, aquilo que devia ser separado: o poder econômico, o poder político e o poder cultural. Não lhe parecia razoável que alguém que detinha um quase monopólio das redes de comunicação pudesse disputar um cargo público e chegar à posição de primeiro-ministro, a partir da qual teria força não somente para defender seus próprios interesses como para burlar e desorganizar o sistema democrático, enxertando nele sementes de um novo tipo de despotismo, que, do antigo, conservava o fundamental: ser um “governo sem leis nem freios”.

Tal como tantos líderes de hoje, Berlusconi criava partidos e movimentos ad hoc, para servi-lo. Se os grandes partidos o rejeitavam, explorava suas correntes internas, de modo a extenuá-los. Conseguia, assim, ir formando partidos pessoais, obedientes às suas ordens. Como insistiria Bobbio, a “Força Itália” berlusconiana não era um partido, mas “um conjunto de comitês eleitorais difusos por todo o país”. Não se sabia quem a financiava, quem a compunha, qual o seu projeto para o país. Era, na verdade, uma “rede de grupos semiclandestinos”, uma invenção sem precedentes com a qual se imaginava fazer funcionar a democracia.

O líder dispensava o trabalho diuturno de edificação partidária para se dedicar à montagem de uma “videocracia triunfante”, na qual o poder seria exercido não mais somente por meio da palavra falada escrita ou falada, mas “por meio da imagem que entra insistentemente na casa de todos e se fixa na memória, bem mais do que um discurso”. Desta forma, transmitia-se à sociedade mensagens que valorizariam a figura providencial do “grande homem” e destilariam medos e ameaças de todo tipo, voltados sobretudo para o ataque às esquerdas e à democracia. O poder televisivo mostraria, assim, sua pior face: forneceria ao poder político a posse dos “meios essenciais para a formação do consenso”.

O novo despotismo está solto pelo mundo. Faz-se acompanhar de demagogos e populistas de variada espécie, quase todos autoritários e que se apresentam como “determinados e enérgicos”, contrários à temperança e ao que veem como “frouxidão” dos adversários. São tipicamente de direita, mas a praga, a rigor, não escolhe campo para proliferar.

Bobbio foi direto ao ponto. “Uma das características mais conhecidas e documentadas da ‘personalidade autoritária’ é a absoluta confiança em si mesmo, nas próprias possibilidades de resolver os mais difíceis problemas não apenas para si mesmo, mas também para os outros”. O líder autoritário não falha e sempre tem razão, cerca-se quase sempre de uma “missão divina” que o põe um palmo acima dos outros, sua generosidade é proverbial, apresenta-se como um serviçal do povo. É performático, estampando na face a estudada indignação de quem se julga vítima dos poderosos, dos aristocratas endinheirados de Wall Street ou dos que controlam os esquemas tradicionais da política. São invariavelmente inescrupulosos quando se trata de poder.

O filósofo se atormentava com a incapacidade que os progressistas tinham de bloquear a irrupção dos novos déspotas. “Tenho a impressão de que nesse universo globalizado continuamos a discutir sobre ideias, enquanto o que conta agora são os grandes interesses econômicos e financeiros, que passam por cima da política e não estão muito preocupados com a cultura”. (p. 81).

Olhando os dias que passam, magnatas como Berlusconi continuam atuantes na política. Talvez já não causem mais espanto, mas continuam a produzir uma sombra sobre a dinâmica democrática, especialmente quando sabem o que fazer com os meios de comunicação. Junto com eles, estão em campo populistas autoritários pouco preocupados com a institucionalidade democrática. Bobbio escreveu que, na Itália dos anos 1990, “um vento de loucura está arrastando nosso já frágil sistema político”. É um diagnóstico que permanece atual para onde quer que se olhe no mundo de hoje.

*Professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp