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Revista Política Democrática || Rubens Barbosa: Encontros e desencontros entre Brasil e Argentina

Nova tensão entre Brasília e Buenos Aires ocorre por conta de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas entre um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, no Brasil, e um governo de centro-esquerda, prestes a assumir o poder na Argentina

Como é normal entre países vizinhos, Brasil e Argentina passaram por muitos desencontros e crises ao longo de suas histórias.

Poderíamos começar ainda no século XIX, quando, em 1826, as Províncias Unidas (hoje Argentina) organizaram complô para sequestrar Dom Pedro II, de modo a pôr fim à guerra com o Brasil pelo controle da Banda Oriental (hoje, Uruguai). No início do século XX, de 1906 a 1910, nova crise por um incidente menor: apreensão de um barco uruguaio no Rio da Prata, em área de demarcação contestada entre Argentina e Uruguai. O governo uruguaio pediu apoio ao governo brasileiro. O conflito aumentou e só foi resolvido por ação do barão do Rio Branco e do presidente argentino, Saenz Peña.

Mais recentemente, tivemos momentos de tensão bilateral por ocasião da construção da Hidrelétrica de Itaipu – com questionamentos públicos pela Argentina nos organismos multilaterais, por conta da questão do compartilhamento das águas –, durante a Guerra das Malvinas e no período de governos militares nos dois países.

Agora, nova tensão entre Brasília e Buenos Aires em decorrência não de uma crise, mas de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas entre um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, no Brasil, e um governo de centro-esquerda, prestes a assumir o poder na Argentina. Declarações de lado a lado acirraram os ânimos entre os presidentes, ministros e altos funcionários, que, do lado argentino, sequer tomaram posse.

A política econômica e comercial do novo governo argentino passou a ser preocupação do governo brasileiro, pela possibilidade de a abertura da economia e a ampliação da negociação externa do Mercosul serem contestadas por políticas protecionistas. Sinalizações nesse sentido poderiam questionar o comércio bilateral e a aprovação do acordo com a União Europeia.

A retórica confrontacionista põe em risco, de um lado, o relacionamento político e diplomático e a cooperação econômica e comercial entre os dois parceiros. E, de outro lado, o futuro do Mercosul.

O processo de integração sub-regional foi reforçado nas últimas reuniões presidenciais por medidas de modernização, enxugamento da burocracia e negociação de acordos comerciais com parceiros extra-zona. Na reunião presidencial do dia 4 de dezembro, encerrando a presidência brasileira, todos apoiaram o fortalecimento do Mercosul, e a sugestão de redução da Tarifa Externa Comum, sem acordo, ficou para 2020.

A Argentina e o Brasil têm, no âmbito do Mercosul, interesses comerciais importantes a preservar. O mercado brasileiro é fundamental para as exportações argentinas, que ajudarão na recuperação da economia, junto com políticas econômicas voltadas para a estabilização que o novo governo vier a tomar. Quanto ao setor privado brasileiro, o mercado argentino é importante para a indústria automobilística e a linha branca. A Fiesp recentemente emitiu nota a favor do fortalecimento do Mercosul, ressaltando que os problemas de funcionamento do bloco devem ser resolvidos de maneira consensual entre os países membros.

A diplomacia parlamentar do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quebrou o gelo e propiciou encontro com Alberto Fernández, que deveria assumir a Presidência no dia 10. Vozes moderadas do Itamaraty preferem aguardar as definições das novas autoridades argentinas e, depois de informados sobre a nova realidade, buscar consultas bilaterais em nível técnico. Ao Brasil interessa uma Argentina que volte a crescer, estável política e economicamente. Para tanto, Brasília deveria deixar de lado divisões ideológicas e mesmo provocações políticas, como os gestos em relação ao ex-presidente Lula, e manter a “paciência estratégica”.

O bom senso começa a prevalecer e declarações mais moderadas apontam para uma distensão retórica.

Ao longo da história, em todos os momentos de tensão entre os dois países, as crises foram superadas pela ação pragmática da nossa diplomacia, que sempre levou em conta interesses concretos. Essa lição do passado pode ser útil quando a Argentina e o Brasil atravessam mais um momento delicado na relação bilateral.

O determinismo geográfico da vizinhança é um fator que o governo brasileiro não poderá deixar de levar em conta. Diferenças ideológicas não podem contaminar o relacionamento civilizado entre os dois países.

Como disse Saenz Peña, ao superar a crise no início do século passado, “tudo nos une e nada nos separa”. Que suas palavras nos sirvam agora de exemplo. E que prevaleça o que é do interesse nacional dos dois países.


Ricardo Toledo Santos Filho: Os diplomatas vão à guerra

Contradição em que o Itamaraty se meteu confronta uma tradição de dois séculos

Quando idealizou a fundação do Estado nacional brasileiro, o patriarca da independência José Bonifácio de Andrada e Silva preocupou-se em construir uma aliança com as nações vizinhas, também elas libertadas do jugo do colonialismo europeu. Já em maio de 1822 deu instruções ao cônsul que enviaria a Buenos Aires, Manuel Antônio Correia da Câmara, para que iniciasse negociações com a Argentina visando à criação de uma federação sul-americana. O Império do Brasil foi então modelado, e a República consolidaria essa viga diplomática, sob o signo da boa vizinhança. A contradição em que o Itamaraty se meteu na crise da Venezuela agora confronta uma tradição de dois séculos.

Repousam na acomodação da história os incidentes que, por causas específicas e efeitos inevitáveis, fugiram dessa tradição consolidada —a exemplo dos conflitos geopolíticos no instável tabuleiro da bacia do rio da Prata e a Guerra do Paraguai. Desde esse conflito multilateral, encerrado há 149 anos, temos vivido em paz com os dez vizinhos com que compartilhamos 17 mil quilômetros de fronteira. As pendências surgidas nesse interlúdio de concórdia, como a do Acre, foram resolvidas pelo instrumento adequado, a negociação da diplomacia em vez da imposição das armas. Mas agora a casa de Rio Branco, o altivo negociador pacifista, nosso Ministério das Relações Exteriores se apequena como um apêndice extranacional na ofensiva de deposição do governo venezuelano.

Para decupar posições, deixe-se claro de antemão que não se trata aqui de defender o indefensável governo de Nicolás Maduro, mas de reconhecer que a causa é maior que o personagem. Embora gravíssimos, porque o país definha a cada segundo, imerso em uma crise sem precedentes da qual o bolivarianismo parece incapaz de tirá-lo, impondo a seu povo privações de travessia do deserto, os problemas da Venezuela só podem e devem ser resolvidos por seus nacionais.

Constituem dogmas das relações internacionais, amparadas pela Carta da Organização das Nações Unidas e o direito público internacional, reconhecer e preservar a independência e o autogoverno nacionais sem dirigismo externo. O artigo 4º da nossa Constituição é explícito ao determinar que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos princípios da autodeterminação dos povos, não intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz e solução pacífica dos conflitos.

O Itamaraty do chanceler Ernesto Araújo minimiza esses princípios, levando de roldão também os preceitos da Política de Defesa Nacional, fixada pelo decreto n.º 5.484, de 2005, atualizado em 2012. Ao formular a Estratégia de Defesa Nacional, o documento aprovado pelo Congresso Nacional começa por afirmar que “o Brasil é pacífico por tradição e por convicção. Vive em paz com seus vizinhos. Rege suas relações internacionais, dentre outros, pelos princípios constitucionais da não intervenção, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos e democracia.”

O normativo veda qualquer intromissão nos assuntos internos da Venezuela. Se há interesses em jogo, os do Brasil se apartam do apetite de outros países. Já temos suficiente petróleo... Queremos amizade e mercado. E paz na América do Sul. A possibilidade de um conflito armado ("todas as opções estão sobre a mesa”, disse o presidente Donald Trump), com inaceitável participação do Brasil, é um pesadelo geopolítico que a todo custo devemos prevenir.

Oxalá prevaleça a visão castrense do governo brasileiro que zela pela execução da política subcontinental de defesa, alinhando-se às posições antibelicistas que põem na mesa a ideia-força da paz. Nesse episódio, o Brasil cultiva uma nova jabuticaba: o paradoxo de diplomatas pregarem intervenção armada e soldados defenderem a diplomacia.

*Ricardo Toledo Santos Filho é  vice-presidente da seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil


Hamilton Garcia: O nacional e o democrático como desafios históricos

A nova direita mundial marca sua ascensão pela revalorização do nacional com base no cristianismo conservador, em meio à crise do globalismo capitalista, e é ridicularizada por isto. Não deveria.

Um dos alvos prediletos da zombaria, entre nós, é o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que, em um artigo que se tornou célebre, afirma que “a nação não é uma escolha, mas um fato indelével e fundacional na vida do indivíduo como o próprio nascimento”, e que o "niilismo", a "desidentificação de si mesmos" e a “desaculturação, pela substituição da história viva pelos valores abstratos, absolutos, (e) inquestionáveis” – que Marx chamava de fetichismo –, são o plano inclinado da “decadência ocidental”[i].

Embora os fatos sociais se distingam dos naturais por seu caráter histórico – permeado pelas vontades em meio às circunstâncias, nos ensinou o mesmo Karl –, Araújo não está nos falando de simples fábula, mas de experiências concretas cujo desprezo, outrora, custou caro ao mundo.

As nações modernas nasceram na Europa, à partir do séc. XIV, impulsionadas pelas transformações econômico-sociais operadas pelo crescimento comercial, na retomada das rotas ocidentais com o Oriente após a reconquista da Península Ibérica pelos cristãos. Tal processo desencadeou mudanças políticas significativas, Europa adentro, forjando a centralização político-administrativa que ficaria conhecida como absolutismo, de onde podemos destacar dois modelos típicos de Estado-nação: o lusitano e o inglês.

No primeiro, o nacional – centralização do poder numa nobreza controladora das fronteiras e dos impostos – se sobrepôs ao democrático – campo das classes sociais em processo de autonomização pela disseminação da ética comercial (burguesia) – catapultando a parceria público-privada que consagraria o mercantilismo. Não obstante o sucesso inicial, na etapa seguinte (revolução manufatureira), a fórmula lusitana, que subordinava a sociedade ao Estado, compelia a livre-iniciativa à dependência de mercês e incentivava o consumo de luxo em detrimento do investimento produtivo, entrou em decadência à medida que o segundo modelo se desenvolvia.

Neste (modelo inglês), o nacional enfrentaria desde o início a resistência do democrático (local) dando início a um conflito que impulsionaria, com o passar do tempo, a livre-iniciativa econômica e o movimento pela emancipação dos indivíduos, acabando por democratizar o Estado (liberalismo) depois de sangrentos conflitos ao longo do séc. XVII. A nova combinação entre Estado (nacional) e sociedade (democrático) se plasmaria no pacto político da Monarquia Constitucional sob a égide do Parlamento, de onde nasceria o moderno capitalismo industrial que rege os destinos mundiais até os dias de hoje.

O triunfo inglês, todavia, se significou a vitória da ideologia liberal, não implicou em sua disseminação como modelo político na Europa, e isto por uma razão simples: o liberalismo, em sua origem, foi um movimento social, que, na maioria dos países europeus, não teve o mesmo desenvolvimento. Isto possibilitou à Inglaterra tirar vantagem das dificuldades alheias, em detrimento de sua própria ideologia como postulado universal, por meio da economia política do livre-comércio internacional, que, na prática, transformava a periferia de então em vassalo da Inglaterra.

A reação à esta metamorfose do liberalismo foi marcada na França de 1789, onde a revolução democrática acabou assumindo um caráter anticapitalista (jacobinismo) cuja superação seria bonapartista (1799) – onde o nacional se arvorava à tutela do democrático em nome de seu desenvolvimento ordenado –, ao invés de liberal.

Já na Alemanha, o bonapartismo – cuja tradução germânica foi Bismarck – seria a mola propulsora da unificação hípertardia (1871), onde o Estado burguês vem à tona sem o povo (democrático), produzindo crises explosivas que poriam abaixo o Reich (1918) em proveito de um governo liberal-democrático apoiado por sindicatos que, no contexto do pós-guerra, sucumbiria ao caos, abrindo caminho ao nacional-socialismo (nazismo) com sua promessa de ordem social, pleno emprego e bem-estar. Somente após a derrota dos nazistas, em nova guerra insana, a Alemanha, finalmente, sepultaria o bonapartismo em prol do pacto democrático-nacional, que unificaria o país em 1991.

No caso dos países periféricos, que sofreram dominação colonial europeia ou nasceram sob ela, os contrastes do processo de modernização não foram menores. Nos EUA, o Estado-Nação nasceria liberal e democrático no séc. XVIII, depois de uma guerra pela independência (1775-1783) contra a Inglaterra, inaugurando modelo inédito de Estado sem nobreza (federalismo), cujas arestas seriam resolvidas por outra guerra (civil), quase um século depois (1861-1865), que impôs o democrático do Norte sobre o escravista do Sul.

No Brasil, ao contrário, o Estado-Nação foi extraído da espinha dorsal aristocrática lusitana, no séc. XIX (1822), sob a égide de um liberalismo de fachada apoiado no escravismo, subjugando a sociedade até o total esgotamento do modelo (1888).

Isto para não falarmos do Oriente, onde o Estado manteria as características patriarcais (China) e de casta (Índia), de origem milenar, até meados do séc. XX – com exceção do Japão (Revolução Meiji, 1868) –, quando um bonapartismo específico resolveria a transição moderna.

Olhando em conjunto tais experiências, são óbvias as desvantagens do modelo bonapartista em face do liberal no que diz respeito aos benefícios da modernização – não aos custos, altíssimos em ambos. Ocorre, porém, que, fora os anglo-saxãos, como observara Samuel Huntington[ii], a maioria das grandes civilizações se modernizaram pela via bonapartista, em variados graus/formatos, o que indica que tal opção está longe de poder ser atribuída a mero “equívoco estratégico", devendo ser entendida como tendência diante das resistências características destas formações sociais ao moderno, em meio a um mundo dominado pelo capitalismo inglês/norteamericano.

Para entendermos isso, em especial o Brasil, é preciso distinguir capitalismo politicamente orientado – usado por Raimundo Faoro[iii] para descrever o fracasso do mercantilismo lusitano diante do capitalismo inglês – de bonapartismo (franco-germânico), no qual o Brasil se espelhou em dois momentos depois de 1930 (1937 e 1964). Confundí-los, apenas por conta da hipertrofia do Estado-nação sobre a sociedade civil, é não levar em conta que o Estado português expressava uma transição primitiva do feudal ao mercantil, enquanto a Revolução Francesa – e ainda mais a alemã – já operava sob a era manufatureira, em meio às dores da urbanização e da emergência da contradição entre seus atores modernos, prometendo conciliá-los a partir do intervencionismo racionalizante do Estado – o que implicava num grau de controle do patrimonialismo inimaginável em Portugal e no Brasil.

Entre nós, o bonapartismo teve que enfrentar um liberalismo de fachada guarnecido por um Estado neopatrimonial fortemente ancorado na formação agrária e comercial do país, de tal modo que os impulsos democratizantes que se oporiam ao autoritarismo bonapartista, em 1945 e 1984, acabariam por ser fagocitados pelo etos patrimonial e sua extraordinária capacidade de adaptação, caracterizando um movimento pendular de modernização-autoritária e democratização-restauradora (revolução passiva) que impediu, até aqui, a plena modernização do Estado e da sociedade.

Do lado do "capitalismo de Estado”, o problema reside em sua relativa incapacidade de romper com a carapaça patrimonial, que envolve o Estado-nação desde sua origem (“capitalismo politicamente orientado"), truncando sua plena racionalização e evolução democrática. Isto se deve às características dos grupos dirigentes, nos dois períodos aludidos, por cima (militares, oligarquias dissidentes e burguesias) e seus apoiadores por baixo (pequena-burguesia e trabalhadores).

No que toca aos trabalhadores, é notória sua incapacidade histórica em resisitir ao neopatrimonialismo por baixo (proletariado), enquanto, por cima (camadas médias), facilmente se deixa seduzir pelo liberalismo de plantão, que segue sendo liberista para usar a categoria de Merquior –, basta ver sua subserviência às práticas neopatrimoniais – mesmo no PSDB – e seu ressurgimento no DEM/Centrão, onde o programa segue sendo a cereja do bolo.

O fracasso das revoluções jacobinas, desde o séc. XVIII, mostrou que não há solução democrática sem o nacional. Mas, em todos os lugares, tal encontro exigiu o abandono do etos patrimonialista, que corrói as bases do edifício democrático. Este é o desafio maior do Brasil ainda hoje.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF[iv])

São João da Barra, 16/03/19.

[i] Vide Trump e o Ocidente, in. Cadernos de Política Exterior, ano III, nº 6, 2017, IPRI-FAG-MRE/DF; pp. 339/348.

[ii] Vide A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, EDUSP/São Paulo, passim.

[iii] Vide Os Donos do Poder formação do patronato político brasileiro (vol. I), ed. Publifolha/SP, 2000, pp.96-97.

[iv] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).


Alon Feuerwerker: Uma característica dos países vizinhos é que eles estarão aí para sempre

É bom um pé atrás quando se ouve falar em “política de Estado e não de governo”. Costuma ser boa rota de fuga para quem, tendo perdido a eleição, ou uma disputa qualquer de poder, precisa ganhar na paz o que não conseguiu na guerra. Acontece no debate sobre a política exterior.

Os formuladores e executores dela levam uma vantagem na discussão: é fraco o argumento de que tem de ser de tal jeito porque há muito tempo vem sendo assim. Como é fraco o argumento de que não pode mudar porque atravessou governos de diferentes orientações.

O ponto é saber se ela atende o interesse nacional. Mas quem define o que é “interesse nacional”? Mesmo coisas supostamente consensuais podem não ser. Por exemplo, manter a América do Sul livre de armas de destruição em massa e da presença militar extra-continental.

Na política exterior bolsonarista, a prioridade regional parece outra: estreitar a relação com os Estados Unidos ao ponto de estabelecer uma aliança, inclusive militar, que se mostre escudo e vacina contra transformações políticas indesejadas aqui e nos demais países do continente.

Há precedente. Durante a Guerra Fria estava vedado ao forte Partido Comunista Italiano participar do governo, também porque o país era membro da Otan, a aliança militar ocidental criada para confrontar a URSS. Mesmo com o papel decisivo do PCI na resistência ao nazi-fascismo.

As tentativas de resumir a atual política externa a aspectos puramente “ideológicos” parece insuficiente. Num exercício de especulação, talvez projete o desejo de ingressar numa “Otas”, uma aliança no Atlântico Sul similar à que Washington lidera na parte norte do oceano.

Já houve conversas sobre isso no passado e o Brasil torpedeou.

Seria um gol e tanto para os Estados Unidos, estabeleceria aqui uma área de domínio militar (e portanto político) praticamente indisputável. Sem contar a projeção para a África Ocidental-Meridional. Um “Trampolim da Vitória” como o da Segunda Guerra, mas para o século 21.

O foco da política externa americana é conter a influência econômica da China pelo mundo. Os sinais são abundantes. Deixadas as coisas como estão, os chineses vão ultrapassar e dar tchauzinho logo logo. Então Washington simplesmente não pode deixar como está.

Daí o cerco a empresas chinesas de presença global, as ameaças a quem pensa em estreitar relações econômicas com Pequim, o esforço para derrubar governos que não rezem pela cartilha, mesmo que o método de governar seja igualzinho ao de aliados convenientemente deixados em paz.

Um presidente americano disse no século passado que para onde pendesse o Brasil penderia a América do Sul. Na época houve chiadeira, mas a experiência mostra que tinha algum fundamento. Ele só não explicou se a tendência viria na paz ou precisaria ser imposta no braço.

Outro dia o Alexandre Garcia me contou que perguntou durante a Guerra das Malvinas ao então presidente João Figueiredo por que o Brasil estava com a Argentina contra o Reino Unido. Figueiredo mostrou o mapa. “Está vendo a Argentina? Ela vai estar aqui perto para sempre.” #FicaaDica.

A Europa curtiu a Otan porque havia a URSS. Como os vizinhos brasileiros vão receber uma política que estabelece na prática uma hegemonia total americana coadjuvada pelo Brasil? Essa pergunta tem sua importância porque, afinal, esses vizinhos estarão aí para todo o sempre.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


William Waack: Lição americana

Toda política externa sofre quando profissionais são desprezados e vence a gritaria na internet

Para interessados em diplomacia e política externa, vale a pena ler The Back Channel, as memórias profissionais de William Burns, um dos mais importantes diplomatas americanos dos últimos 30 anos. Ele serviu a cinco presidentes e dez secretários de Estado e acompanhou todos os principais momentos que vão da vitória na Guerra Fria à concepção de mundo de Trump. É uma rica descrição da transição da diplomacia da era pré para a era pós-Twitter.

É uma obra com importantes lições para o debate atual sobre política externa brasileira, desatado pela crise da Venezuela. Burns serviu a republicanos e democratas e sua principal crítica a figuras como George W. Bush ou Barack Obama é basicamente a mesma: a de que o profissionalismo de diplomatas (e suas escolas) cedeu lugar à esfera do Twitter e ficou em segundo plano a ideia de que diplomacia serve sobretudo para comunicar, convergir e manobrar para obter vantagens futuras, especialmente por meio de alianças. Lição para o Brasil.

Burns contribui para provar que um “staff” profissional bem conduzido é capaz de identificar tendências com grande antecedência, como demonstra memorando que ele enviou a Bill Clinton, em 1992, afirmando que a vitória americana na Guerra Fria traria maior fragmentação e o mundo recuaria para nacionalismos e extremismo religioso, ou uma combinação dos dois – é uma boa descrição de parte das crises internacionais atuais. Como governantes se preparam ou reagem a contingências é outra história. Nesse sentido, Burns é duro com Obama, mas a paulada maior é na política da “America First” de Trump. “Uma sopa nojenta de unilateralismo beligerante, mercantilismo e nacionalismo bruto”, caracterizada por “posturas de força e afirmações desvinculadas de fatos”, escreve Burns. Lição para o Brasil.

O maior problema de Trump, porém, é o que Burns chama de “sabotagem ativa” contra o Departamento de Estado, ou seja, o “staff” profissional. Mais uma lição para o Brasil. Quando Lula assumiu em 2003 o Itamaraty foi subordinado à influência de um guru com ideias totalmente desvinculadas da realidade (e presas ainda ao esquerdismo infantil dos anos cinquenta) e um chanceler dedicado a vendetas contra qualquer um identificado com o “ancien regime” na casa, ou seja, que não fosse da turma dele. É muito similar ao que acontece agora, e as consequências começam a se desenhar da mesma maneira: perda de foco, ênfase no espetáculo em torno de um líder “infalível” e a confusão entre postulados ideológicos de franja do espectro político com interesse nacional de longo prazo.

A “lacração” típica do comportamento de militantes, empenhados em ganhar no grito “debates” em redes sociais, leva a afirmações do tipo “o Brasil guiou os Estados Unidos” na crise da Venezuela. A frase fica valendo como argumento para o qual não há fatos – a não ser que se despreze o fato básico de que só os americanos têm recursos para bater (com poderio militar sem rival no planeta) e para pagar (com o músculo financeiro para impor sanções ou conseguir alívio para amigos). E são eles os que batem e/ou pagam, que teriam sido conduzidos numa crise de amplas proporções internacionais por quem não consegue nem um nem outro.

A atual crise da Venezuela não foi uma “escolha” brasileira. Mas demonstra como a falta de profissionalismo na condução da política externa, ideias erradas e cumplicidade oportunista de classes empresariais (não só no episódio da molecagem diplomática que colocou a Venezuela no Mercosul) criam problemas de difícil solução. A época do Twitter, lamenta o veterano Burns, sepultou o frio racionalismo da diplomacia de contatos, informação e influência. Pior ainda quando a política externa fica a cargo de amadores arrogantes.


Rubens Barbosa: Mudança da Embaixada para Jerusalém

Consulado-geral na cidade poderia evitar mudança dramática na nossa política externa

Durante a campanha eleitoral, o candidato Jair Bolsonaro disse que, se eleito, iria transferir a Embaixada do Brasil de Tel-Aviv para Jerusalém: “Israel é um Estado soberano, que decide qual é sua capital, e nós vamos segui-lo”. A promessa respondia à reivindicação da comunidade evangélica, que apoiava fortemente o candidato.

Depois de eleito, o presidente decidiu dar prioridade às relações com Israel e se comprometeu a concretizar a transferência a ninguém menos que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que em entrevista disse que a “questão não é se, mas quando”. Posteriormente, Bolsonaro recuou ao afirmar que “essa não é uma questão de honra” e “por ora” não haveria transferência, o que deve ter estimulado o vice-presidente Hamilton Mourão a receber duas delegações árabes e observar publicamente que “não haverá mudança da embaixada para Jerusalém”. O chanceler Ernesto Araújo qualificou declarações anteriores e notou que a decisão seria “parte de um processo de elevação do patamar da relação com Israel, isso, sim, uma determinação, independente da mudança ou não da embaixada”. A comunidade evangélica reagiu e deixou saber que vai cobrar a decisão presidencial para concretizar a transferência.

Como era previsível, a ideia causou reação em diversas frentes. Na área diplomática, porque representaria uma guinada radical na política externa brasileira, que desde 1947 se mantém coerente com o apoio da política de uma solução negociada para o conflito Israel-Palestina, com a implementação da política de dois Estados, com a criação também do Estado Palestino. Caso venha a concretizar-se, o Brasil ficará em Jerusalém ao lado apenas da Guatemala, que se alinhou automaticamente aos EUA. Por outro lado, a Liga Árabe e a União das Câmaras Árabes de comércio manifestaram preocupação com essa eventual decisão e uma comitiva ministerial brasileira teve visita ao Egito cancelada.

Na área econômica houve reação mais explícita, com menção à perspectiva de as exportações brasileiras de frango e carne bovina poderem vir a ser suspensas. O Ministério da Agricultura e associações de produtores manifestaram apreensão quanto às consequências negativas para as exportações brasileiras e a balança comercial.

Nas prioridades para os primeiros cem dias de governo, o Itamaraty incluiu a visita presidencial a Israel e o interesse em ampliar a colaboração nas áreas de defesa, segurança e tecnologia. E em pronunciamento recente nas Nações Unidas, o representante alterno brasileiro reafirmou a política do Itamaraty de dois Estados, indicando que nada havia mudado.

O governo brasileiro tem assim nas mãos uma questão delicada a resolver, procurando evitar ao mesmo tempo um desgaste desnecessário com Israel e uma perda significativa para o agronegócio. Qualquer que seja a decisão do governo, não está em questão o interesse em elevar o nível do relacionamento bilateral com Israel, mantendo a posição tradicional de excelente relação bilateral.

Nesse contexto, cabe mencionar um antecedente histórico que poderia ajudar na busca de uma solução de compromisso para essa questão. O Brasil tem uma relação histórica com Israel, desde que o então presidente da Assembleia-Geral da ONU, Oswaldo Aranha, coordenou pessoalmente a aprovação da resolução de 1947 que determinou a criação dos Estados e Israel e da Palestina.

No governo de Juscelino Kubitschek, com Macedo Soares como chanceler, foi instalada a representação diplomática com a criação da legação do Brasil na capital, Tel-Aviv. Em 27 de março de 1958, a legação foi elevada ao status de embaixada. Como medida de rotina diplomática, e a fim de evitar contrariar a política dos dois Estados, por decreto de 22 de abril do mesmo ano o governo brasileiro decidiu criar um consulado-geral em Jerusalém. Em 1993, com Itamar Franco e Celso Amorim, o decreto foi revogado. O posto, assim, nunca chegou a ser efetivamente aberto.

A exposição de motivos que justificava a criação do consulado-geral, publicada nos jornais na época, causou controvérsia por imprecisões diplomáticas sobre as peculiaridades da disputa regional. Na consulta realizada ao governo de Tel-Aviv sobre a abertura do consulado foi afirmado que não seria objetada a criação de “uma seção consular” da embaixada, o que contrariava a decisão anunciada pelo governo de Juscelino Kubitschek, que talvez tenha motivado a não designação de pessoal para o posto. Indagado sobre as razões que levaram o governo brasileiro a abrir o consulado-geral em Jerusalém, Macedo Soares disse que foi “por razões espirituais, políticas e diplomáticas”. Mencionou também que “a existência de uma repartição consular brasileira” significava “a presença de milhões de católicos brasileiros na Cidade Santa”, que “a principal missão dos consulados é a defesa e o amparo de brasileiros que se acham no exterior” e, no caso de Israel, “de peregrinos que se encontravam naquela cidade”.

A recriação do consulado-geral em Jerusalém poderia ser uma solução para evitar uma mudança dramática de diretriz de política externa de mais de 60 anos. Essa solução - amparada em precedente histórico - seria até melhor, do ponto de vista brasileiro, do que outras soluções, como a criação de um escritório comercial em Jerusalém, a exemplo do que fez a Austrália. Ao anunciar o estabelecimento do escritório, o primeiro-ministro australiano manteve a coerência de sua administração e confirmou sua posição favorável à política de dois Estados.

Apresentada de maneira apropriada, o governo israelense e a comunidade evangélica entenderiam a decisão do Brasil, coerente com sua tradicional atitude, compreendendo as dificuldades internas para alterar uma política tão consolidada e evitar o isolamento internacional.

*Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio exterior (IRICE)


Fernando Gabeira: Salvação e salvadores

Política externa do PT foi desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita

Outro dia, li uma nota levemente crítica ao ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores. Ele escrevera um artigo afirmando que Deus estava na diplomacia, na política, em todos os lugares.

Embora não seja propriamente um teólogo, considero bastante previsível a crença na onipresença divina. Algumas religiões estendem o dom da ubiquidade a todos os espíritos. Para dizer a verdade, alguns deuses, como o hindu Shiva, têm poderes muito mais ecléticos: dança, destrói, faz um carnaval.

Não temos o dom divino da onipresença porque somos humanos e não toleraríamos a presença na vastidão. No meu caso, dispensaria Bruxelas sob chuva e as noites de Codó, no Maranhão.

O que me intriga no pensamento do ministro Araújo é sua crença na salvação do Ocidente, liderado por Donald Trump. Essa história de salvação, creio que surgiu, pela primeira vez, com Zoroastro, perpassou o cristianismo, reaparece na religião laica que é o marxismo e sobrevive em alguns setores da ecologia que acreditam poder salvar o planeta.

Se a salvação para mim é um conceito duvidoso, o que diria do salvador? De que podemos ser salvos por alguém como Trump, que diz às crianças que Papai Noel não existe e contrata advogados para silenciar mulheres com quem transou?

Se pelo menos Trump usasse o que se diz sempre — errar é humano, a carne é fraca, atire a primeira pedra —, os valores ocidentais estariam em melhores mãos. O problema central é a relação com os Estados Unidos. Ela precisa de equilíbrio, e há quem trabalhe nesse tema desde o século passado.

Afonso Arinos, em 1952, quando ainda esboçava suas ideias sobre uma política externa independente, defendeu o Acordo Militar Brasil-EUA. O governo Vargas queria isso, mas não teve coragem de dar as caras. Resultado, Arinos apanhou sozinho da esquerda.

Acontece que no acordo havia um só tópico que não interessava ao Brasil. Arinos ofereceu uma fórmula diplomática para contornar a dificuldade. Apanhou da direita.

Mesmo nos primórdios do que mais tarde seria uma política externa independente, a proximidade com os Estados Unidos representava um fato decisivo. Mas também era bastante claro que a proximidade não significava uma adesão acrítica a todas as propostas americanas.

No momento, esta questão vai aparecer com muita delicadeza, entre outras, nas relações com a China. Trump espera apoio na sua guerra comercial. Mas tem negociado intensamente com Xi Jiping.

Não está muito claro o papel que teremos nesse triângulo. Por enquanto, estamos ainda em discussões teológicas, ave-maria em tupi, José de Alencar e arroubos nacionalistas.

Tudo isso, para mim, anima um pouco o morno universo político brasileiro. Mas existem algumas contradições. Um forte tom nacionalista quando se trata de organismo multilateral. Uma duvidosa escolha do salvador, quando se trata das ameaças ao Ocidente.

Não imagino que o olhar severo do ministro Araújo esteja voltado contra os jogadores de I Ching ou leitores do Tao. Ele se preocupa com o marxismo chinês, com os grupos islâmicos, com a desaparição de traços culturais do país num mundo globalizado.

Mas é um exagero supor que nossa política externa seja uma medíocre omissão baseada em interesses comerciais. O desejo de defender a paz e solução negociada para os conflitos é um dado da cultura brasileira.

No século passado, o Peru inaugurou uma avenida com o nome de Afrânio Mello Franco, pai de Afonso Arinos. Os peruanos acham que o velho contribuiu para evitar uma guerra com a Colômbia.

Se isso não basta, lancemos um olhar para o próprio governo Bolsonaro. Dois dos seus ministros são generais destacados na manutenção da paz no mundo: Augusto Heleno, no Haiti; Carlos Alberto dos Santos Cruz, no Congo.

O Brasil não é uma invenção intelectual. A política externa do PT foi um desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita.

Política externa é fruto de um consenso nacional. Não adianta forçar a barra. Sofremos com isso, e o preço político que os vencedores do momento pagarão é bem maior que os equívocos domésticos, num país em que nem todos os meninos se vestem de azul, nem todas as meninas de rosa.


Míriam Leitão: ‘Nova’ diplomacia é velha e ruim

Depois de nomeado ministro, Ernesto Araújo poderia ter encontrado o equilíbrio para exercer o cargo. Mas continua sem nexo e histriônico

O futuro ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, continua se esforçando muito para produzir mais desatinos do que os governos petistas naquela pasta. E tem conseguido. O principal erro da diplomacia é quando ela se dispõe a representar uma parcela do país, desprezando ou ofendendo o resto. Agora ele diz que representará o agronegócio, porque o PT o fez com o MST. Talvez fosse bom ele entender que a Casa de Rio Branco deve espelhar o país e não um grupo, por mais importante que seja para a economia.

Durante os dois anos e meio do governo Temer, tentou-se corrigir as inclinações indevidas e a paralisia decisória do período anterior. Houve desde a mudança em relação ao governo chavista até a redução de pendências burocráticas. Só o atual chanceler, Aloísio Nunes Ferreira, aprovou quase mil remoções que estavam pendentes. O custo da política externa do PT pode ser quantificada pelos calotes no BNDES que o Tesouro terá de cobrir. Aconteceram também os vexames, como instalar o então presidente Lula numa tenda para ter aulas de geopolítica de Muamar Kadafi ou a imposição aos diplomatas de leitura obrigatória de textos de esquerda. A grande virtude no governo Temer foi a busca da normalidade.

Agora volta-se o pêndulo para o sentido oposto, com igual equívoco. Como se parecem. A diferença é que o embaixador Celso Amorim, apesar dos erros que cometeu, era um diplomata com carreira consolidada. O embaixador Ernesto Araújo é o equivalente a um general de divisão chamado a comandar o Exército.

Uma das decisões acertadas no período Temer foi a iniciativa de suspender a Venezuela do Mercosul, com base na cláusula democrática. O governo Maduro não é democrático, portanto, não cumpre o pré-requisito. Qualquer histrionismo em relação a ele só vai municiá-lo. O mais sábio com relação ao governo da Venezuela é não dar a Nicolás Maduro o que ele quer: um “inimigo” externo. Quando Maduro faz ameaças de armar as milícias, é bom ignorar. Algumas pessoas sabem disso no novo governo brasileiro, mas entre elas não está o nosso esbravejante chanceler com seus tuítes voadores.

Araújo soltou várias notas definindo o que ele chama de “nova política externa”. Disse que o Brasil vai exportar soja, frango, carne e açúcar, mas “também esperança e liberdade”. Segundo o novo chanceler, “a velha política e a velha mídia” querem “usar o agro como pretexto para reduzir o Brasil a um país insignificante”. A palavra “ridícula” é a mais apropriada para definir essas e outras manifestações do futuro ministro.

Os textos que ele assinava em seu blog sempre foram rasos. Mas naquele tempo ele era apenas uma pessoa se esforçando para ganhar espaço no futuro governo. Depois que atingiu o objetivo almejado, ser nomeado ministro, Ernesto Araújo poderia ter encontrado a centralidade necessária para o exercício eficiente do cargo. Contudo, permanece histriônico e sem nexo.

Sua mistura inusitada de despropósito político, fundamentalismo religioso, palavras intempestivas podem provocar um estrago grande nas relações do Brasil com o mundo. O clima de revolta entre diplomatas se espalha. Não por discordarem do futuro governo. Há pessoas com convicções políticas diferentes entre si e a mesma preocupação porque sabem que o futuro ministro tem ferido um a um os princípios de uma boa diplomacia.

A sua “nova” política externa será, na verdade, a diplomacia errada. Na economia, os governos do PT criaram a “nova matriz econômica”. Não era nova, estava equivocada e levou o país à recessão. Proclamar a adoração ao governo Trump vincula o país a uma administração, que é passageira, em vez de ser ao país, que é permanente. Além disso, representa um retrocesso de meio século na política externa, ao tempo do alinhamento automático.

As várias espetadas em diversos parceiros comerciais, cometidas por ele e por outros do futuro governo, têm o mesmo componente. São gratuitas. O Brasil nada ganha com isso e pode perder. Os perdedores são os mesmos que Ernesto Araújo alega que defenderá porque são, segundo ele, “a essência da brasilidade”, os empresários do agronegócio. Sendo o Brasil um dos mais eficientes produtores de alimentos do mundo, a militância fervorosa e maniqueísta do novo chanceler pode fechar portas que hoje estão abertas.


Eliane Cantanhêde: Sem reinventar a roda

Nunes Ferreira: política externa até pode mudar, mas ‘não vai acabar o mundo’

“O Brasil é um transatlântico navegando em mares internacionais turbulentos e precisa ser conduzido com prudência, numa rota que a gente conhece e a diplomacia brasileira sempre seguiu, com a Constituição, as leis, o bom senso e a altivez.”

Assim, o atual chanceler, Aloysio Nunes Ferreira, resume o que se espera da política externa do governo Jair Bolsonaro nesses tempos de Donald Trump nos EUA, Vladimir Putin na Rússia, Brexit no Reino Unido, mas o Brasil forte e em boas condições de atrair investimentos.

Segundo ele, que termina seu mandato no Senado e não disputou a eleição, “a mudança no Brasil é muito forte, muito importante, até mais do que as alternâncias anteriores, porque é até uma mudança cultural”. Logo, diz, “é natural que haja ajustes na política externa, como em qualquer área, porque a política é um ato do tempo”.

Ele, porém, ressalva que “o Itamaraty é uma escola, a nossa diplomacia é altamente qualificada e isso, certamente, será levado em conta pelo novo chanceler Ernesto Araújo”. Trata-se de uma clara defesa dos diplomatas e uma resposta à acusação do núcleo duro bolsonarista de que o Itamaraty está “infestado de petistas” ligados a Celso Amorim, chanceler de Lula.

Para Nunes Ferreira, política e ideologia nem sempre se confundem, os diplomatas têm carreira de Estado e, como os militares, trabalham com todos os governos, de esquerda, direita ou centro. O Barão do Rio Branco, ex-chanceler e ícone da política externa brasileira, era ideologicamente monarquista, mas atuou politicamente para consolidar a República.

Citou ainda os grandes diplomatas da época do general Ernesto Geisel e do chanceler Azeredo da Silveira, que eram ironizados como “os barbudinhos do Itamaraty”, mas “fizeram uma excepcional inflexão na política externa, com base no pragmatismo responsável que perdura até hoje”.

Diplomatas estão por trás das reportagens condescendentes com Lula e Dilma e críticas a Bolsonaro? “Isso é uma grande bobagem”, responde. “O PT é o único partido que construiu e cultiva conexões externas com partidos, jornais, organizações e universidades.” Por isso, não pelo Itamaraty ou por diplomatas, prevaleceu no exterior uma visão equivocada do impeachment de Dilma e da prisão de Lula.

O único líder que tentou furar esse bloqueio foi Fernando Henrique Cardoso, já como ex-presidente, mas sem sucesso. Além dele, o DEM, ainda quando PFL, começou a construir conexões com partidos liberais, especialmente da Europa, mas essa tentativa também não se consolidou.

O chanceler releva a mania de Bolsonaro e Araújo de seguirem Trump em tudo e prega bom senso. “Nós já nos livramos de um antiamericanismo ginasiano de certas esquerdas”, diz, destacando que a guinada na política externa começou com Michel Temer, que mudou o tom e a ação em relação à Venezuela e avançou em convergências, acordos e cooperação com os EUA, como na Base de Alcântara.

Para Nunes Ferreira, o futuro governo pode mudar muita coisa, mas tenderá a recuar em outras frentes, porque não é razoável sair do Acordo de Paris e do Pacto Global de Imigração, virar as costas para a ONU, a OMC e o Mercosul e confrontar o mundo árabe com a embaixada em Jerusalém, tudo ao mesmo tempo.

De toda forma, ele tem uma certeza: “O mundo não vai acabar. O Brasil vai continuar sendo a grande segurança alimentar, o grande exportador de minérios, um País amigável. E vai continuar na América Latina, não vai mudar nem de hemisfério nem de continente”.

Traduzindo: Bolsonaro pode quase tudo, Araújo pode muito, mas ninguém vai virar o País de pernas para o ar, nem reinventar a roda.

Bom Natal!


“Governo Bolsonaro têm tendência de cometer desastres na área internacional”, diz Rubens Ricupero

Em entrevista exclusiva à Política Democrática online de dezembro, diplomata e ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda aponta risco de marginalização do Itamaraty

Por Cleomar Almeida

Em entrevista exclusiva à edição de dezembro da revista Política Democrática online, o diplomata Rubens Ricupero, ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda, disse que o governo Bolsonaro é “desastroso em política externa”. “Aliás, uma característica dessa equipe de governo é que eles têm uma tendência de cometer desastres na área internacional”, afirmou.

O diplomata afirmou, ainda, que, “no caso do Itamaraty, a presença de um ideólogo, um doutrinador, vai abrir espaço para canais paralelos à semelhança do que foram os governos do PT com o Marco Aurélio Garcia e com a assessoria que havia na presidência”. De acordo com Ricupero, já é possível ver que “o verdadeiro chanceler é Eduardo Bolsonaro”, filho do presidente e deputado federal pelo PSL-SP. “Foi ele quem parece ter tido maior peso, tanto na escolha do chanceler, como em teses como a da mudança da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém”, afirmou o ex-ministro na entrevista.

» Acesse aqui a edição de dezembro da revista Política Democrática online

De acordo com Ricupero, tudo indica assim que será uma política externa de marginalização violenta do Itamaraty. “Uma característica curiosa disso é que o futuro chanceler investiu contra os próprios colegas. Não tem precedentes na história da diplomacia brasileira alguém que está se preparando para ser o chefe do Itamaraty, o líder do Itamaraty, comece a manifestar sua desconfiança e seu desapreço pelos próprios colegas aos quais considera todos como contaminados por ideologia globalista, pelo PT, por coisas desse tipo”, criticou o diplomata.

O entrevistado especial avaliou como preocupante a decisão anunciada pelo futuro governo de não sediar a Reunião do Clima em 2019. “O Brasil não é nem potência nuclear, nem militar, nem econômica, mas é potência ambiental, porque tem a maior floresta equatorial do mundo, a maior reserva de água doce, uma das maiores reservas de diversidade biológica, enorme potencial em fontes limpas e renováveis, solar e eólica, além de de experiência de quarenta anos com a biomassa do etanol da cana de açúcar, acentuou ele, na entrevista à equipe da revista.

O Brasil, na avaliação do diplomata, é incontornável na área ambiental e poderia fazer bela figura naquela reunião. “Tanto mais porque, sendo um país sem poder como as grandes nações, depende das regras internacionais, depende de um sistema baseado em normas e leis, adotadas em processo democrático, na seara da comunidade de nações, para fazer avançar seus interesses no concerto de nações”, ressaltou Ricupero.

Em outro trecho da entrevista, o diplomata afirmou que a busca do conflito e da tensão é inerente ao tipo de proposta que levou Bolsonaro ao poder e à própria personalidade dele. “Acho que ele tende a criar conflito, e até o busca conscientemente. Um exemplo disso é o fim prematuro do Programa Mais Médicos. Ele obviamente quis criar um problema com Cuba, porque antes mesmo de se pronunciar sobre o Programa Mais Médicos, já tinha mencionado algumas semanas atrás que se perguntava se deveria ou não ter embaixada em Cuba”, ponderou, para continuar: “É nessa área onde ele vai se concentrar, como Trump costuma fazer, o tipo de conflito e tensão que mantém a adesão dos mais convencidos. Não duvido que se chegue à ruptura”.

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Celso Lafer: A política externa e seus desafios

Cabe ao Brasil se orientar na diplomacia pelos princípios consagrados na Carta

Discuti neste espaço em 19/2 a relevância da política externa como política pública. Sublinhei que ela tem como nota identificadora avaliar a abrangência das necessidades internas do País e ponderar quais as possibilidades externas de torná-las efetivas. Pontuei que a conversão de necessidades em possibilidades requer um apropriado juízo diplomático que leve em conta os ativos e as especificidades do País e saiba orientar-se num mundo com as características do atual, dentro do qual se dá a inserção internacional do Brasil. Vale a pena retomar a discussão nesta antevéspera da posse do presidente Bolsonaro.

Destaco inicialmente que o novo governo partirá de um meritório reposicionamento da política externa empreendido no governo Temer pelos chanceleres José Serra e Aloysio Nunes Ferreira, que se dedicaram a conduzi-la como política de Estado. Deixaram de lado, num movimento que o resultado das eleições endossou, uma preponderante política de governo, inspirada pela visão circunscrita de um partido e seus interesses.

Aponto, por exemplo, o resgate da válida vocação original do Mercosul como expressão de regionalismo aberto, empenhado no livre-comércio, devidamente escoimado das distorções provenientes das preferências político-ideológicas.

A tarefa de damage control proveniente da erosão do soft power do País deverá ser uma faceta da condução da política externa. Trata-se de um dado das percepções, repercutidas na mídia internacional, que resultam de manifestações do presidente na campanha eleitoral em matéria de direitos humanos e convivência democrática. Para a erosão acima mencionada tem também contribuído a ideológica irradiação externa em circuitos de esquerda de uma autocentrada “narrativa” petista.

A agenda diplomática do próximo governo lidará, respaldada pela qualificada competência dos quadros do Itamaraty, com alguns significativos campos de atuação da política externa de um país.

Passo a comentá-los na sua abrangência, lembrando, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo, e não apenas estamos no mundo.

O primeiro campo é o estratégico. Diz respeito aos riscos de guerra que permeiam a vida internacional e o que um país pode significar para outros como aliado, protetor ou inimigo. No mundo atual, caracterizado por tensões difusas que exacerbam os conflitos e instigam a geografia das paixões, magnificando a insegurança internacional, esse é um campo relevante. Tem peso maior ou menor tendo em vista a lógica própria das regiões que compõem, com sua especificidade, a arquitetura do sistema internacional. É um tema forte da agenda do Oriente Médio, da Ásia e de países como EUA, China, Índia ou Rússia. É menos premente para o Brasil, em paz com seus vizinhos desde o fim do século 19, empenhado em fazer de suas divisas fronteiras de cooperação, e que sempre esteve mais distante dos focos de tensão da vida internacional. A menor premência não exclui, no entanto, a relevância.

O campo dos valores diz respeito às afinidades e dissonâncias que resultam de distintas formas de conceber a vida em sociedade. As dissonâncias, hoje em dia, num sistema internacional heterogêneo e fragmentário são consideráveis. Estão comprometendo a universalidade da agenda normativa, propiciando a intensidade das aspirações de identidade e reconhecimento, que obedece ao ímpeto centrífugo de sublevação dos particularismos, e revigorando o zelotismo dos fundamentalismos religiosos e políticos. Essa é uma das causas do drama de escala planetária dos refugiados que também nos afeta por causa dos desmandos autoritários da Venezuela de Maduro.

No contexto dessa Torre de Babel, cabe ao Brasil, na especificidade das conjunturas, orientar-se nas suas posições diplomáticas pelos princípios que regem as relações internacionais do País, consagradas na Constituição (artigo 4.º).

O campo das relações econômicas internacionais é prioritário para o Brasil. Explicita a importância de outras economias num mundo interdependente e globalizado, conferindo significado aos mercados, para importações e exportações, obtenção de financiamentos, atração de investimentos e de inovações.

No mundo contemporâneo isto tem como pano de fundo as novas tecnologias, que vêm levando à reorganização dos modos de interagir e produzir, de que é exemplo o papel das cadeias globais de valor da produção e da comercialização. Tem também como pano de fundo uma multipolaridade econômica não regida por um abrangente multilateralismo comercial de que são amostras o unilateralismo das guerras comerciais em andamento e as ameaças que pairam sobre a OMC.

É nesse contexto que o próximo governo deverá buscar convergências na diversidade na lida com as parcerias econômicas do País, incluídas as de nossa região, com acordos comerciais, e com os temas da liberalização comercial. Estes passam pelos desafios do acesso a mercados, dificultados por barreiras não tarifárias, por obstáculos em matéria de convergências regulatórias e por protecionismos, em especial de produtos agrícolas.

Finalizo com a agenda do meio ambiente, campo inter-relacionado com o dos valores e o das exigências de uma economia internacionalmente competitiva. Lembro que o acesso a mercados de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabilidade ambiental. Meio ambiente sob a égide do conceito de desenvolvimento sustentável consagrado na Rio-92 insere os custos da sustentabilidade do meio ambiente nos processos decisórios públicos e privados. Meio ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta a todos – as gerações presentes e futuras. Basta pensar no impacto das mudanças climáticas. Daí a relevância no plano interno da transição para uma economia de baixo carbono e de energias renováveis e limpas na matriz energética e de dar sequência aos compromissos internacionais de redução de emissões do Acordo de Paris.

✽ Celso Lafer é professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Roberto Abdenur: Riscos na política externa

As plataformas de política externa do PT/Haddad e de Bolsonaro acarretam riscos consideráveis aos interesses do Brasil. Ado PT começa com referência à crise financeira de 2008 — “crise do capitalismo” —e contém inverdades como a afirmação de que nos “países centrais” os governos “aprofundam os ataques contra os direitos políticos e sociais das classes trabalhadoras” e “aprofundam as agressões imperialistas contra a soberania nacional dos países economicamente mais frágeis ”.

O texto, erradamente, acusa o governo “golpista” de desconstruir a integração regional, desinvestir na vertente estratégica Sul-Sul, abandonara aposta num mundo multipolar e submetera política de defesa “aos interesses norteamericanos”. O atual governo tomou posição correta ao suspender o regime venezuelano ditatorial do Mercosul. Só fez trabalhar pela integração regional ao estimular aproximação do Mercosul coma Aliançado Pacífico. E prestigiou os mecanismos Sul-Sul, como o Brics.

Surpreendentemente, o texto define como “risco” a celebração de acordos de nova geração com países desenvolvidos. Isso justamente quando o Mercosul busca, após atraso de quase 20 anos, concluir acordo delivre comércio coma União Europeia—passo importantíssimo. O problema é que o PT incorpora uma visão negativa das relações com o mundo desenvolvido. Aparecem repetidas referências à “hegemonia norte-americana”. Expressa um tolo antiamericanismo.

No caso de Bolsonaro, praticamente não há plataforma de política externa como tal. O que há são esparsas referências, aqui e acolá, a temas internacionais. Bolsonaro repudia o que chama de escolhas “ideológicas” do PT — mas também ele parece guiar-se por um pensamento ideológico, só que oposto ao do PT. O candidato parece disposto a alinhar o Brasil com os EUA. Expressa admiração por Trump, de quem deseja aproximar-se. Mas ele precisa ter em mente que Trump já identificou o Brasil como alvo para futuras pressões em comércio e investimentos. E deve evitar o risco de colocar-se em posição subalterna perante Trump, o que seria vergonhoso.

*Roberto Abdenur é embaixador aposentado e foi secretário-geral do Itamaraty