política externa

Brasil em queda livre: imagem e participação nacional na política externa

A sensação é de que o Brasil está virando as costas para o mundo e se recusando a entrar na brincadeira

Renata Bueno / Plural Curitiba

O mundo conta atualmente com mais de 190 países que se relacionam de forma pensada e planejada, de acordo com seus interesses e objetivos. Para esse planejamento, que ocorre tanto em nível nacional quanto internacional, damos o nome de política externa. Uma espécie de jogo que ninguém é capaz de vencer sozinho e tem o intuito de oferecer mais qualidade de vida a todos os participantes.

Para estar apto a jogar é preciso diplomacia e reconhecimento internacional, duas características bastante presentes na história do Brasil e que premiam os países mais bem colocados com a vantagem de exercer um papel cada vez mais importante no sistema político, com facilidade de compra e venda de matéria-prima e acesso a novas tecnologias. Entretanto, a percepção do Brasil no âmbito mundial vem sofrendo uma grande decadência.

Devido às inúmeras riquezas e recursos naturais, o Brasil poderia facilmente ocupar um lugar de protagonismo mundial. Porém, hoje, quando falamos em grandes grupos internacionais, não vemos quase nenhuma participação brasileira. A sensação é de que o Brasil está virando as costas para o mundo e se recusando a entrar na brincadeira, como uma criança mimada. E para piorar, poucos líderes internacionais têm demonstrado interesse em se aproximar do Brasil, visto que o país não aparenta ser um bom aliado.

Mas por que essa decadência na imagem do Brasil?

Primeiramente, quero deixar claro que não acredito que o erro seja somente do governo, que claramente peca em diplomacia e planejamento, mas também de seus eleitores. Precisamos entender o porquê dessas escolhas para conseguir mudar a imagem do Brasil no exterior. Afinal, por mais que muitos pensem que não, há uma relação direta entre política internacional e hábitos populacionais. A pandemia foi um grande exemplo de como a internacionalização faz parte do nosso dia a dia.

Além da crise sanitária, o Brasil vem há mais de ano sofrendo com falta de água e queda de energia em diversas regiões do país, dois temas diretamente interligados às discussões de política externa. E mais do que nunca, neste cenário pós-pandemia, a sustentabilidade ganhou espaço na agenda das grandes potências mundiais, não como um padrão a ser alcançado, mas sim como uma estratégia de melhoria contínua dentro de cada setor da economia.

Agora, cabe ao Brasil tentar se adequar, não só como governo, mas como população em geral, dentro dos termos que vão de encontro com um futuro sustentável. Mais do que carros elétricos, precisamos de incentivo governamental para adequação das práticas diárias dos brasileiros e alinhamento com os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), da ONU. O Brasil precisa ganhar confiança no cenário mundial e a sustentabilidade pode ser definitivamente um grande caminho.

*Renata Bueno é advogada internacionalista e política brasileira. Foi eleita vereadora de Curitiba pelo Cidadania no ano de 2009 e, mais tarde, entre 2013 e 2018, atuou como deputada do Parlamento da República Italiana pela União Sul-Americana dos Emigrantes Italianos.

Fonte: Plural Curitiba
https://www.plural.jor.br/artigos/brasil-em-queda-livre-imagem-e-participacao-nacional-na-politica-externa/


Rubens Ricupero: ‘Uma chance de ouro para o Brasil, mas sem chantagem’

Paula Bonelli, O Estado de S. Paulo

Com a experiência de seus 36 anos no Itamaraty e outros 9 na ONU, o embaixador Rubens Ricupero vê, na reunião da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, uma chance de alterar a imagem negativa do País, criada pelo impacto do desmatamento ilegal na Amazônia e de queimadas no Pantanal.

A seu ver, “se o presidente tivesse o mínimo de bom senso, seria uma oportunidade de ouro para o País melhorar suas contribuições ao combate do aquecimento global. Mas ele adverte que isso “é difícil”. O Brasil “tem que dizer que precisa de dinheiro mas não colocando como uma chantagem”. Assim, poderia receber em troca a boa vontade dos Estados Unidos em relação à doação de vacinas excedentes ao Brasil contra covid-19, acredita Ricupero. O presidente Jair Bolsonaro está entre os 40 chefes de Estado convidados para o evento virtual nos dias 22 e 23.

Ricupero inaugura em maio curso da história da Diplomacia Brasileira no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) sobre a política externa brasileira do Império até os dias de hoje. “Se o Ernesto Araújo fosse chanceler ainda, eu não teria ânimo para falar de uma tradição que foi degradada. Ele deixou uma terra arrasada, agora precisa plantar, adubar, regar, fazer um esforço de reconstrução”, diz o ex-ministro da Fazenda.

Qual o balanço, a seu ver, da gestão de Ernesto Araújo?
É completamente negativo. No caso da pandemia da covid-19, ao invés de reconhecer que é um grande problema e colaborar com a Organização Mundial de Saúde, sua atitude desde o início foi de negá-la. Eles só entraram no consórcio Covax Facility porque a nossa embaixadora lá em Genebra os convenceu; mas, no final, o Brasil ficou com a cota menor.

Carlos Alberto França, o novo ministro das Relações Exteriores, pode mudar essa trajetória?
Se depender dele e da máquina do Itamaraty, sim. Mas se depender do presidente, do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, aí eu duvido. O primeiro teste do França é na reunião de cúpula do clima quando Biden pedirá que cada país melhore a proposta que tinha feito no Acordo de Paris, de 2015. Se o presidente tivesse o mínimo de bom senso, seria uma chance de ouro para o País melhorar suas contribuições no combate ao aquecimento global. E isso explicando que é difícil, que precisa de dinheiro, mas não colocando como uma chantagem. Agora, se o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles não fizer isso, o França não pode fazer porque não é a pasta dele. A cúpula do clima terá países que têm maior responsabilidade nas emissões. O Brasil é o sexto maior gerador de gases do efeito estufa. Com uma característica, os gases vêm do desmatamento e do uso da terra, da pecuária extensiva. Nos outros países eles se devem ao carvão para gerar energia.

Como vê os sinais iniciais do ministro França?
Ele provou que é capaz de fazer coisas boas porque tanto nos discursos de posse como na mensagem que enviou aos funcionários toca em todas as teclas corretas e não fala naquilo que não deve falar.

ONGs dizem que há negociação secreta do Brasil com o governo Biden, sobre temas ambientais.
A falta de transparência do que está se discutindo preocupa. Agora, o que preocupa mais é a falta de credibilidade do interlocutor do nosso lado, Ricardo Salles. O Fundo Amazônia tem, parados no BNDES, quase R$ 3 bilhões – por causa de um problema criado por ele, que discordou da governança do fundo. As doações vêm da Noruega principalmente e da Alemanha.

Bolsonaro enviou carta a Biden prometendo zerar o desmatamento ilegal até 2030.
A carta de Bolsonaro diz tudo o que Biden gostaria de ouvir, só que é o contrário do que o governo crê e pratica.

Biden esquecerá da demora de Bolsonaro em cumprimentá-lo quando venceu a eleição?
Eles são realistas. Sabem que terão que lidar com Bolsonaro e com seu governo até o final de 2022. Eu não acredito que os americanos vão adotar qualquer ação negativa mas também não vão fazer esforço para ajudar. O Brasil tem apelado por vacinas e os EUA adotado atitude evasiva. Eles já doaram vacinas ao México e ao Canadá mas ao Brasil não.


RPD || Hussein Kalout: O rastilho de destruição da diplomacia brasileira

Ainda é cedo para prever o grau de normalização que será possível alcançar com a saída do ex-Ernesto e a posse do novo chanceler, o embaixador Carlos França, avalia Hussein Kalout, sobretudo se a influência olavista seguir pairando sobre a cabeça no novo ministro

Ernesto Araújo, o sombrio ex-chanceler do governo Bolsonaro, também conhecido como “ex-Ernesto” nas mais do que inspiradas palavras da Senadora Katia Abreu, foi finalmente defenestrado. A experiência de misturar religião com política externa e a intentona de condicionar o futuro do Brasil a um governo estrangeiro, impingiu ao país severos danos. O rotundo fracasso e a consequente derrocada da finda gestão de Araújo, é bom ressaltar, somente teve ponto final após o levante coordenado pelo Senado da República que, altivamente, decidiu dizer: basta!  

Setores do estamento estatal acreditaram ou quiseram acreditar que o tempo iria, paulatinamente, moldar a política externa em consonância com a realidade, de tal modo que a distopia em andamento na nossa diplomacia fosse naturalmente corrigida. Já o empresariado, por sua vez, acreditou que, com uma pressão aqui, outra acolá, poderia insular as insanidades ideológicas do governo, para imunizar os interesses político-comerciais brasileiros das diatribes dos “condutores” das relações exteriores do país. Nada se encaminhou como imaginado, e ambos os espectros se equivocaram regiamente.  

Pressionado com a reação do Senado, o presidente da República encontrou, no embaixador Carlos França, os predicados para comandar a diplomacia nacional no mais grave período da história recente do país. Muito se argumentou que o novo chanceler não assumiu o cargo em virtude de experiência comprovada no campo da política externa, mas fruto de uma lealdade já demonstrada no Palácio do Planalto – isso sem falar que a indicação foi subscrita pelos cônsules da ideologização bolsolavista. Essa circunstância, na visão de vários parlamentares, não deixa de lançar dúvida sobre a capacidade do novo ministro de moldar decisões e moderar o ímpeto do próprio presidente.  

Uma percepção não foge ao olhar daqueles que acompanham pari passu a política externa brasileira. O método que comandou a escolha do novo chanceler obedeceu ao mesmo réquiem da primeira experiência: diplomata recém-promovido à posição de embaixador, de trajetória discreta, sem nunca ter exercido funções de mais alta responsabilidade e chefia no Brasil e no exterior, desprovido de amplitude política e de denso arco de apoio no espectro nacional. A inferência natural que se fez dentro e fora da chancelaria – ainda que de forma talvez apressada – é a de que a escolha se encaixa naquilo que a ala ideológica do governo buscava assegurar: o controle sobre a diplomacia brasileira.  

 Apesar da lógica do método, contudo, cumpre ressaltar que a temperança e o bom senso do novo ministro da Relações Exteriores, Carlos França, são inversamente proporcionais aos de seu antecessor, o ex-Ernesto. Não obstante, é importante por ora não elevar as expectativas em demasia sobre quaisquer mudanças essenciais nas linhas da política externa. Apesar do estilo sóbrio e profissional do embaixador Carlos França, ainda é cedo para prever o grau de normalização que será possível alcançar, sobretudo se a espada de Dâmocles olavista seguir pairando sobre a cabeça no novo ministro.    

Aliás, o discurso de posse do ministro França centrou-se em ilustrar como a diplomacia poderá contribuir na solução dos principais problemas do país e, especialmente, naqueles que o governo vem fragorosamente falhando em endereçar como: combate à pandemia, preservação do meio ambiente e crescimento da economia. A efetividade e o possível sucesso do trabalho do Itamaraty na solução de tais problemas, à par da boa intenção do discurso, dependem da moderação de uma única autoridade: o presidente da República. E é justamente aí que reside o perigo. 

Profundas mudanças nas linhas da política externa somente devem ser aguardadas, portanto, a partir do dia 1 de janeiro de 2023 – se o Brasil eleger, obviamente, um novo presidente. Porém, até lá, é preciso ficar atento aos temas que são – e sempre serão – vitais ao interesse nacional.  

Nesse sentido, China e EUA não deveriam seguir sendo opções excludentes no mapa geoestratégico da política externa do atual governo. Um país com vocação universalista como é a do Brasil, definidamente, não pode se condenar a escolher entre um ou outro lado. O pragmatismo e o bom senso recomendam extrair de ambos, chineses e americanos, os maiores benefícios para a sociedade brasileira e para os nossos interesses estratégicos – seja nas áreas comercial, tecnológica, ambiental, sanitária ou política.  

Não menos importante, a América do Sul é um imperativo estratégico. O Brasil precisa com urgência redimensionar seu papel como um indutor do processo de desenvolvimento da região e país promotor da paz. Uma “liderança natural” não sobrevive por inércia quando há vácuo de poder. É preciso retomar o diálogo com os países sul-americanos, e cabe ao Itamaraty articular, liderar e impulsionar boas políticas de cooperação regional – saúde e meio ambiente são os fios condutores no momento. 

A África, lamentavelmente, inexiste no mapa cartesiano da política externa bolsonarista. É um grave equívoco de avaliação achar que contaremos sempre com apoio dos países africanos mesmo estando ausentes do teatro diplomático e dos principais temas do continente. Aparições esporádicas e ações pontuais não ajudarão a consolidar as relações com a África. De maneira geral, o crescimento econômico dos países africanos, nos últimos anos, tem sido consistente, e as oportunidades econômicas e comerciais têm-se aberto àqueles países que estão sendo capazes de mensurar o valor estratégico do continente africano tais como: China, Turquia, Índia e Alemanha.  

O sistema multilateral, por sua vez, sempre foi a melhor raia em que a política externa navegou. É onde construímos nosso prestígio e ampliamos nossa influência desde os tempos de Oswaldo Aranha ou até antes, com a participação marcante de Rui Barbosa na segunda Conferência de Paz na Haia, em 1907. É preciso evitar mais desgaste e recobrar a capacidade do país de evitar o isolamento que se auto impôs nos mais variados foros. É preciso repensar alguns posicionamentos, especialmente, em matérias concernentes ao meio ambiente e aos direitos humanos.  

Se conseguir recolocar a política externa minimamente nos trilhos, na linha do que sinalizou em seu discurso de posse, o novo ministro das Relações Exteriores já estaria contribuindo para amainar o rastilho de destruição e minorar os graves prejuízos impostos ao país. A força do Brasil nas relações internacionais sempre foi sedimentada em sua dedicada capacidade de articular e de participar dos grandes palcos globais. Construído a duras penas, esse capital diplomático foi dilapidado nos últimos dois anos. Esperamos que o novo chanceler estanque a hemorragia e estabilize o doente. Diante da crise que nos acomete e das inclinações do presidente da República, isso seria sem dúvida um grande êxito e, quem sabe, um primeiro passo para a recuperação futura de nossa capacidade de defender nossos interesses no cenário internacional. Ao novo chanceler, desejamos boa sorte. Ele vai precisar. 

* Hussein Kalout é cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018).  

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Hélio Schwartsman: Com Bolsonaro e Araújo, Brasil corre risco de ficar sem aliados

Nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano

Há uma diferença importante entre o policial e o diplomata. Diante de crimes mais sérios, policiais não têm opção que não a de indiciar os suspeitos, independentemente do que achem da lei ou das circunstâncias que levaram ao delito.

Nas relações internacionais, as coisas são um pouco mais complicadas. Mesmo quando a diplomacia está diante de um crime gravíssimo e muito bem documentado, pode ver-se compelida a pegar leve com o autor. É o que acaba de fazer o presidente dos EUA, Joe Biden, ao deixar de responsabilizar o príncipe saudita Mohammed bin Salman pelo assassinato e esquartejamento do jornalista Jamal Khashoggi em 2018.

O problema de base é que, nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano. Sem uma autoridade central forte que a todos submeta, cada Estado é mais ou menos livre para agir como quiser. As principais limitações são a força de outros países, seguida de acordos e tratados internacionais, cuja imposição, entretanto, é fraca, e, no caso de democracias, da repercussão política que as ações possam ter para o público interno.

A resultante desses vetores em nível nacional costuma ser uma política externa pragmática, com algum tempero moral. Os EUA não podem dar-se ao luxo de romper com os sauditas, um de seus principais aliados na região, então Biden optou por pegar leve com o príncipe, mas sem deixar de sinalizar que reprova o homicídio e que poderá reagir de modo mais duro se violações desse tipo se repetirem.

Uma diplomacia totalmente pragmática, pautada exclusivamente por interesses, até pode funcionar para países autocráticos, onde o líder não deve satisfações a ninguém. Já uma diplomacia que se guie apenas por princípios acabaria rapidamente isolada, sem nenhum aliado.

O Brasil, com Bolsonaro e Ernesto Araújo no comando da política externa, corre o risco de terminar sem aliados e defendendo posições imorais.


Luiz Augusto de Castro Neves: ‘Papel do Itamaraty se tornou secundário’

Pragmático, governo da China busca outras vias de negociação, como os governadores, diz Luiz Augusto de Castro Neves

Francisco Carlos de Assis, O Estado de S.Paulo

Para o embaixador do Brasil em Pequim, de 2004 a 2008, e hoje presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), Luiz Augusto de Castro Neves, o governo chinês optou pelo pragmatismo e não tem levado em consideração os ataques recebidos de alguns membros do governo brasileiro. “O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades”. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estadão.

Apesar do discurso ‘antichina’ do governo, a exposição das exportações brasileiras à China saltou de 28%, em 2019, para 32%, em 2020. Teremos uma repetição deste aumento este ano?

Sim. A China, embora tenha crescido 2% no ano passado, sofreu uma desaceleração muito grande, o que gerou uma capacidade ociosa que deverá ser preenchida este ano. E o Brasil se mantém ainda em recessão e tem aumentado as exportações para o mercado chinês e reduzindo suas importações. O aumento das exportações para a China se dá por sua economia estar crescendo mais que a economia mundial.

Mesmo com as compras de insumos para vacinas as importações de produtos chineses não devem ter destaque este ano?

A compra de produtos chineses, de modo geral, tende a se estabilizar ou até diminuir. As importações dos insumos necessários para a fabricação de vacinas contra a covid-19, quantitativamente, não serão decisivas, no agregado, para gerar um aumento nas importações. Nossas importações da China são basicamente de bens intermediários essenciais para a indústria.

Os ataques feitos à China por membros do governo não causam ruídos nas negociações comerciais entre os dois países?

O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades. São manifestações vinculadas ao governo e que exprimem posições pessoais. Mas o que tem prevalecido é o pragmatismo e, bem ou mal, a China ainda é o nosso maior parceiro comercial.

Recentemente, os chineses andaram negociando com governadores e com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. É uma forma de reduzir o papel do Itamaraty, do Ministério das Relações Exteriores?

A China vai sempre negociar com interlocutores eficazes. O ex-presidente Michel Temer negociou com eles com a anuência do governo federal, mas é fato que o papel do Ministério de Relações Exteriores se tornou secundário. Mas esta tem sido uma tendência mundial. Se antes as negociações comerciais eram de exclusividade do Ministério de Relações Exteriores, hoje Estados e empresas privadas têm seus próprios canais de conexão com o mundo.


Roberto Abdenur: ‘Houve uma destruição da política externa brasileira’

Comércio com os EUA também foi afetado, apesar das concessões feitas por Bolsonaro, em uma postura de 'subserviência', avalia ex-diplomata

Douglas Gavras , O Estado de S. Paulo

O saldo dos dois primeiros anos de governo Bolsonaro nas relações exteriores é destrutivo, avalia o ex-embaixador na China Roberto Abdenur. Na entrevista a seguir, o ex-diplomata, que também já representou o Brasil em Washington, ressalta que a postura de “subserviência” do governo brasileiro em relação ao ex-presidente americano Donald Trump foi ruim para o País sob diferentes aspectos. 

É possível classificar a relação atual do Brasil com a China como uma dependência comercial?

A China despontou como parceiro comercial brasileiro, graças à imensa demanda por commodities, mas não creio que o Brasil seja dependente deles, no sentido de que eles não têm poder para ditar rumos ao governo brasileiro, assim como não éramos dependentes dos Estados Unidos, quando o peso deles era maior na balança brasileira. 

O que temos é uma parceria? 

Temos uma parceria estratégica, que ajudei a lançar quando era embaixador em Pequim, até o início da década de 1990. De lá para cá, isso floresceu, graças ao extraordinário crescimento da China. Na época, já via o avanço chinês com otimismo, mas não imaginei que eles fossem sustentar esse crescimento por quase 30 anos, e que o país se transformaria em uma potência econômica, comercial, militar e tecnológica. 

Como definir a política externa brasileira no atual governo?

O que houve nos dois anos de Bolsonaro é que o Brasil não teve, a rigor, uma política externa. Houve uma destruição da diplomacia. As coisas de que falam o chanceler, Ernesto Araújo, e os assessores da ala ideológica são devaneios, uma nuvem de teorias da conspiração. Chegamos a considerar as próprias Nações Unidas algo indesejável. Nos tornamos o único país do mundo que ataca o multilateralismo.

O saldo da relação muito próxima entre Bolsonaro e Trump é negativo para o Brasil, portanto?

No ano passado, houve um forte encolhimento do comércio com os EUA, muito por conta da pandemia, mas também por protecionismo. O ex-presidente Donald Trump impôs tarifas abusivas sobre aço, alumínio e etanol brasileiros. O comércio foi afetado, apesar de todas as concessões feitas por Bolsonaro, em uma postura inacreditável de subserviência.

A afinidade entre os dois governos feriu o interesse nacional?

Na primeira metade de seu mandato, Bolsonaro se pendurou em Trump. Também já fui embaixador em Washington e as relações com os EUA eram conduzidas de outra forma. Havia diferença de tom, mas também uma linha de continuidade que atravessou governos tão diferentes entre si, como o de Sarney, Collor, FHC e Lula.

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Com o chanceler brasileiro priorizando assuntos internos, governadores, prefeitos e deputados estão virando interlocutores-chave de governos, empresas e ONGs no exterior

Quando os assessores de Anthony Blinken, secretário de Estado do presidente americano Joe Biden, começaram, recentemente, a discutir o futuro da relação entre os Estados Unidos e o Brasil, surgiu uma pergunta incomum: quem no Governo Bolsonaro seria o principal interlocutor do novo Governo americano? Em tempos normais, seria o chanceler brasileiro, é claro. Na prática, porém, Ernesto Araújo não é uma opção para gerenciar a relação bilateral. Afinal, o novo Governo americano avalia, corretamente, que o papel fundamental de Araújo não é a condução da política externa brasileira, mas, por meio da promoção de teorias conspiratórias, a mobilização permanente da base bolsonarista.

Mesmo se Araújo priorizasse a gestão das relações exteriores do Brasil, seus comentários sobre o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro (segundo ele, os invasores seriam “cidadãos de bem”) e a respeito das eleições presidenciais americanas (para ele, fraudadas) já seriam suficientes para torná-lo persona non grata em Washington. O cenário em Berlim, Paris, Pequim e Buenos Aires é o mesmo: alguma comunicação oficial e um aperto de mão protocolar até podem envolver Araújo, mas a maioria dos governos já estabeleceu canais alternativos.

Não há vácuo de poder na política, e o mesmo vale para a política externa. Na ausência de um chanceler disposto ou capaz de gerir as relações do Brasil com o resto do mundo, outros políticos brasileiros tornaram-se figuras-chave nos palcos internacionais. Durante o primeiro ano do Governo Bolsonaro, enquanto Araújo cumpria seu papel de cheerleader do presidente Trump, o vice-presidente Mourão e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, se empenhavam no âmbito diplomático. Em viagem a Pequim, por exemplo, os dois souberam desfazer o estrago feito pelo presidente brasileiro na relação bilateral. Coube a eles acalmar os ânimos dos chineses porque Araújo, com seu histórico de ataques verbais à China, tinha perdido credibilidade em Pequim.

Para diplomatas chineses, ficou claro que, se for preciso resolver alguma questão com o Governo brasileiro, Mourão e Tereza Cristina serão interlocutores bem mais úteis do que o chanceler brasileiro. O cenário repetiu-se quando o ministro foi excluído das negociações com Pequim para a compra de vacinas contra a covid-19 e quando o governador de São Paulo, João Doria, e o então presidente do Congresso, Rodrigo Maia, tornaram-se interlocutores-chave para o Governo chinês e empresas farmacêuticas chinesas.

Nada disso é por acaso. Afinal, a marginalização do Ministério de Relações Exteriores (MRE) é um objetivo-chave da gestão atual, em uma tentativa de combater o que o bolsonarismo chama de deep state, estrutura composta por tecnocratas que supostamente sabotam as ideias do Governo. Como Eduardo Bolsonaro declarou depois da vitória de seu pai nas eleições presidenciais, o Itamaraty era “um dos ministérios onde mais está arraigada essa ideologia marxista e onde haveria uma maior repulsa ao presidente Jair Bolsonaro”. Ao permitir que outras figuras no Governo se ocupem de temas internacionais, Araújo está cumprindo sua missão de diminuir o controle do Itamaraty sobre a articulação da política externa. Mesmo no período pós-Bolsonaro, o MRE demorará para reconquistar o espaço perdido, um processo que dependerá muito da capacidade de futuros e futuras chanceleres.

A estratégia bolsonarista, porém, representa um risco político para o próprio presidente. Afinal, não são apenas ministros e familiares a preencher o vácuo que a atuação de Araújo está criando. Opositores de Bolsonaro, como o governador João Doria, também estão conseguindo se destacar no exterior com muito mais facilidade e são vistos por entidades públicas, privadas e da sociedade civil fora do país como interlocutores fundamentais para tratar de temas da relação bilateral. Em vez de chamar o chanceler brasileiro para participar de reuniões sobre o Brasil, cada vez mais, organizadores de eventos internacionais convidam governadores ou prefeitos capazes de articular uma visão mais pragmática.

Na hora de avançar a pauta ambiental com o Brasil, governos estrangeiros mantêm laços fortes com governadores e prefeitos da Região Norte, cientes de que é mais fácil trabalhar com eles do que com Ernesto Araújo ou Ricardo Salles, o controverso ministro do Meio Ambiente. Governadores e até prefeitos, como Eduardo Paes, têm hoje uma interlocução comparável ou até melhor do que a do chanceler com tomadores de decisão no exterior, uma situação sem precedentes na história do Itamaraty.

Esse novo cenário da multiplicação dos atores envolvidos na política externa brasileira ―um processo descrito por especialistas como pluralização ou fragmentação― pode ajudar a mitigar, em parte, o impacto nefasto da atuação internacional bolsonarista. O protagonismo de vários governadores no contexto do combate à pandemia e a obtenção de vacinas do exterior é apenas um dos vários exemplos disso. No futuro, porém, a perda de influência do Itamaraty complicará tentativas de governos pós-Bolsonaro de articularem e implementarem um projeto coeso de política externa. Quanto mais Araújo permanecer no cargo, mais árdua será a tarefa de seus sucessores de reerguer o Itamaraty.

É claro que governos estrangeiros, como a nova administração de Joe Biden nos Estados Unidos, não podem lidar apenas com entidades subnacionais brasileiras. Resta saber, no entanto, com quem no Governo Bolsonaro o novo Governo americano, por exemplo, buscará estabelecer um diálogo produtivo. Desta vez, o vice-presidente Mourão dificilmente poderá desempenhar o papel de interlocutor racional e “adulto na sala” porque tem sido visto como isolado em Brasília. O mesmo vale para Paulo Guedes, cuja palavra já não tem tanto peso no exterior. O mais provável é que os EUA e outros países com relações delicadas com o Brasil identifiquem seus interlocutores caso a caso, seja Tereza Cristina, da Agricultura, seja Roberto Campos Neto, do Banco Central, seja Mourão.

O uso do Itamaraty para animar a base bolsonarista traz vantagens inegáveis para o presidente, e o combate contra o “globalismo” e o “comunismo” são populares nos grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro. Ao mesmo tempo, fica cada vez mais claro que o presidente também acaba entregando, de bandeja, a oportunidade ímpar aos seus adversários de se tornarem atores-chave na política externa brasileira e dar visibilidade às consequências desastrosas da estratégia internacional de seu Governo.

Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra).


William Waack: Crianças à solta

Militares não foram capazes de entender que calar-se para grotescos erros, apegados a princípios como lealdade ou hierarquia, compromete as instituições

Vamos simplificar as questões de política externa do governo Jair Bolsonaro. Supunha-se que os adultos – militares com formação acadêmica e experiência direta de conflitos internacionais – fossem supervisionar as crianças. Aconteceu o contrário. As crianças é que emparedaram os adultos.

Em alguma medida, é uma repetição do que aconteceu na Casa Branca, onde gente de excelente formação profissional nas áreas de segurança, estratégia e relações internacionais foi chutada por um inepto como Donald Trump, que Bolsonaro escolheu emular. No Brasil, os órgãos de assessoramento da Presidência da República e o próprio Itamaraty acabaram sendo subordinados à profunda ignorância em matéria de relações internacionais de um filho do presidente e suas preferências pessoais.

Os resultados negativos se acumulam. Com o resultado das eleições americanas, o Brasil conseguiu a proeza de se estranhar ao mesmo tempo com as duas principais potências do planeta, pois já se dedicava em provocar a China. Como 11 em 10 analistas de relações internacionais assinalaram, o campo da política externa é, por definição, o campo da impessoalidade, e o alinhamento automático de Bolsonaro ao perdedor Trump é um erro crasso não importa o mérito, postura ideológica ou intenções de qualquer um dos dois.

O mesmo vale em relação à China e à Índia. Somadas, essas duas gigantescas potências asiáticas têm mais ou menos uns 8 mil anos de experiência em política externa e conflitos geopolíticos de enorme amplitude. O Brasil desdenhou da Índia na Organização Mundial do Comércio, e tomou o troco ao ser jogado para o final da fila dos países para os quais os indianos estão exportando vacinas e insumos.

No caso da briga dos elefantes (China contra Estados Unidos) o Brasil desperdiçou a oportunidade que a geografia lhe dá de tratar a ambos com distanciamento e equilíbrio. Ao contrário, preferiu cutucar os chineses da forma infantil característica de amadores que acham que entendem de política externa, como acontece na assessoria internacional de Bolsonaro, ou confundem a repetição de lemas de movimentos de extrema-direita (contra a China, por exemplo) como afirmação de postulados nacionalistas.

Cego aos dados da realidade, Bolsonaro ainda não demonstrou ter compreendido a natureza das várias rasteiras internacionais que tomou nas últimas semanas, e o impacto que essas fragorosas derrotas – como o chute eleitoral levado por Trump e a recusa da Índia e China na questão das vacinas em nos atender nos prazos que pretendíamos – acarreta na posição política interna de um presidente que só pensa em reeleição.

O tamanho dos reveses exigiria de Bolsonaro uma rápida e nítida correção de rumo. Sim, estaria admitindo ter cometido erros grosseiros – por escolhas, repita-se, pessoais – mas dado os trunfos que o Brasil ainda dispõe (Amazônia e produção de alimentos) conseguiria se reposicionar no cenário internacional. Um passo desses, porém, pressupõe dois fatores que não se vislumbra no momento.

O primeiro é Bolsonaro entender que na raiz das derrotas que Trump sofreu está o desprezo e a negligência em relação aos “staffs” profissionais treinados para tratar de complexas questões internacionais e suas implicações para os interesses do País. Ao se apegar ao que seu filho e amigos acham que é a política internacional, e relegar a terceiro plano a burocracia meritória do Itamaraty, por exemplo, o presidente apenas reitera uma conduta evidentemente errada.

O segundo fator que não se vislumbra está ligado à postura daqueles adultos – militares formados em academia de ótimo nível – que não foram capazes de entender que calar-se para os grotescos erros de política externa, apegados a princípios como lealdade ou hierarquia, compromete as instituições (Forças Armadas, por exemplo) às quais pertencem e, no final das contas, os torna cúmplices no estrago na defesa de interesses da Nação.

Em lugar nenhum eles aprenderam que o Brasil deveria ser um pária internacional. A posição na qual chegamos.


Sergio Amaral: Cena internacional mudou, política externa terá de se ajustar

O Brasil precisa estar presente nas negociações que definirão as regras de convívio internacional

As relações entre os Estados Unidos e a China, de cooperação ou de conflito, serão, na visão de Henry Kissinger, o eixo central da nova ordem internacional. Barack Obama optou pela cooperação. Donald Trump, pela adoção de sanções unilaterais. Sua estratégia, no entanto, alcançou resultados modestos.

Após as sanções da guerra comercial, o déficit com a China permanece no mesmo patamar de antes, ou seja, cerca de US$ 350 bilhões, na média, por ano. As restrições à transferência de tecnologia abalaram a Huawei, mas também prejudicaram empresas e consumidores norte-americanos. A rejeição da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), que reunia 12 países sob a liderança dos Estados Unidos, mas sem a presença da China, mostrou-se um erro estratégico de Trump, ao ensejar a formação da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP em inglês) na Ásia, assinada em novembro passado, entre 15 países asiáticos, que representam um terço da população e do produto mundiais, sob a liderança de Beijing, sem a presença dos Estados Unidos. Por fim, a China saiu fortalecida da covid-19 e da crise econômica mundial, pela capacidade de conter a expansão do vírus e de recuperar mais rapidamente a sua economia.

Joe Biden propõe-se a reverter várias das políticas de seu antecessor. No plano interno, deverá promover a volta da política e a caminhada para o centro, em vez do populismo nacionalista e da radicalização. Na diplomacia, as mudanças serão substanciais. Em lugar das sanções unilaterais, a prioridade do presidente eleito estará na retomada das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, para a negociação de um modus vivendi com a China, na retomada do Acordo de Paris sobre o Clima, na renegociação das salvaguardas nucleares com o Irã e no fortalecimento do multilateralismo.

Os Estados Unidos de Biden e a Europa pós-crise coincidirão na agenda climática, inspirada por um green new deal que encontra adeptos fervorosos em ambos os lados do Atlântico. É preciso ter presente que ambientalismo, mais do que uma decisão de governo, é um compromisso da sociedade. É a utopia do século 21, que como uma mancha verde influencia os consumidores, espalha-se pela economia, pela política e pela cultura.

Não há razão para que Biden tome a iniciativa de hostilizar o Brasil. Mas fortes correntes políticas tanto em Washington quanto em Bruxelas farão pressão para a imposição de restrições comerciais se o Brasil não mostrar determinação em reduzir a taxa de desflorestamento na Amazônia. União Europeia e Estados Unidos, juntos, representam quase 50% das exportações brasileiras. Se a esse grupo adicionarmos a China, quase 70% das exportações poderão ser postas numa zona de risco, seja por motivações ambientais, seja pelas provocações contra Beijing.

O mundo mudou. É hora de mudar a política externa, em consonância com as opções da sociedade, com os interesses da economia, especialmente do agronegócio, e a necessidade de recuperar a imagem do Brasil entre os importadores e investidores.

A esse respeito valeria considerar quatro temas de uma nova agenda:

1) Revisão da política sobre o clima, de modo a considerar a Amazônia não como um passivo, mas como um valioso ativo e fator de uma liderança natural que o País já exerceu e pode voltar a exercer. A região precisa ser vista não como um problema recorrente ou hipotético objeto de cobiça externa, mas como um patrimônio a ser explorado de modo sustentável, mediante o engajamento da sociedade, particularmente do setor privado e da comunidade científica.

2) Preservação de espaços de autonomia ante a disputa hegemônica entre as duas grandes potencias. Em artigo recente para a revista Foreign Affairs, um grupo de influentes militares norte-americanos, entre os quais Jim Mattis, ex-secretário de Defesa, condenou a pressão de Trump sobre aliados para o seu alinhamento a interesses norte americanos, por serem contraproducentes. Destacados intelectuais, como Joe Nye, e diplomatas como o embaixador Tom Shannon reconheceram publicamente o direito soberano do Brasil de tomar decisões no seu interesse nacional.

3) Revalorização das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, o Mercosul e a Aliança para o Pacífico, de modo a fortalecer a presença externa do País.

4) Reafirmação do multilateralismo como instrumento tradicional da diplomacia e um caminho para sair do isolamento em que o Brasil se colocou, seja em foros internacionais, como a OMS, o BID e a Ompi, seja em suas relações bilaterais, por vezes na insólita companhia da Polônia e da Hungria.

No momento em que os principais atores mundiais estão engajados em redefinir as bases da economia, forjar uma nova configuração geopolítica e promover a revisão das instituições internacionais, o Brasil não se pode isolar nem deixar de estar presente às mesas de negociação em que serão definidas as novas regras do convívio internacional.

*Conselheiro de Felsberg e advogados, foi secretário executivo do ministério do Meio Ambiente e da Amazônia


RPD || Hussein Kalout: A diplomacia do caos

Política externa sob Bolsonaro se destaca pela irracionalidade, sem responder a interesses concretos do país, se pautando pelo combate frívolo a ameaças imaginárias, além de não refletir interesses ou valores nacionais, avalia Hussein Kalout

Desde a fundação da República, a política exterior do Estado brasileiro tem sido reflexo de consensos nacionais, balizada nos ditames do Direito e executada em conformidade com a dinâmica da ordem internacional. Pela primeira vez em nossa vida republicana, contudo, uma política externa destrutiva e irracional passou a ser implementada por meio de uma antidiplomacia, que, no lugar de buscar soluções, gera conflitos e tensões desnecessários.

Apesar da dissonância de visões ou de ênfases, ao largo dos diferentes governos republicanos, mínimos denominadores comuns uniam aqueles que assumiram a responsabilidade de formular os rumos da política externa nacional. O princípio da não-intervenção, o respeito à soberania do Estados, a defesa da autodeterminação dos povos e o respeito ao Direito Internacional compuseram as linhas mestras do processo decisório de nossa política exterior e guiaram a perseguição do interesse nacional desde pelo menos o Barão do Rio Branco.  

Hoje se assiste a uma ruptura com essa linha de continuidade. Não se trata de uma política externa simplesmente diferente. Trata-se, antes, da irracionalidade erigida como política de governo, uma vez que não responde a interesses concretos do país, mas se pauta pelo combate frívolo a ameaças imaginárias. Ao contrário do que apregoa, não reflete interesses ou valores nacionais, mas generaliza como visão nacional o que não passa de uma linha de pensamento marginal, cujo principal traço distintivo é a crença em teorias conspiratórias.

Essa política levou à destruição da reputação internacional do Brasil por meio da implementação de uma “estratégia” única: contra os perigos ilusórios do globalismo, supostamente refletidos nas instituições multilaterais e na aliança improvável de financistas, progressistas e grande mídia, que seriam os responsáveis últimos pela decadência do Ocidente, só restaria a alternativa da aliança subserviente com o governo Donald Trump. Trata-se de um equívoco monumental que seria risível se não fosse trágico.

Uma relação equilibrada e produtiva com os EUA é desejável e sempre foi o objetivo do Estado brasileiro. Mas o recurso à submissão não coaduna com a vocação de uma nação da envergadura do Brasil. É, na realidade, francamente contrária à vocação universalista da política externa brasileira e sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento, em benefício de nossos próprios interesses.

"Não reflete interesses ou valores nacionais, mas generaliza como visão nacional o que não passa de uma linha de pensamento marginal, cujo principal traço distintivo é a crença em teorias conspiratórias"
Hussein Kalout

Essa subserviência está por trás das posições, ações e omissões desastrosas de nossa política externa, em contradição com os dispositivos da Constituição. Alguns dos exemplos vergonhosos são o apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a compra por valor de face da narrativa norte-americana sobre o Oriente Médio.  

O projeto em curso, além de violar flagrantemente a Constituição Federal e seus ditames, impinge ao país custos irreparáveis como o desmoronamento de nossa credibilidade, perdas econômicas e fuga de investimentos.

Na área ambiental, o Brasil que era visto, desde Rio-92, como líder natural no tema do desenvolvimento sustentável, agora é tratado com “pária ambiental”. A medíocre participação na COP-25, em Madri, foi o mais puro retrato da imposição de um auto fracasso diplomático –– e de custos irreparáveis ao nosso país.  

No sistema multilateral, éramos reconhecidos como ícones do respeito a uma ordem internacional baseada em regras, mas hoje somos vistos como um Estado “rejeitado”. Em vez de reformar e fortalecer o multilateralismo, para aprimorar sua capacidade de encontrar soluções comuns para problemas compartilhados, preferimos tecer loas ao unilateralismo, em detrimento de nossos próprios interesses, uma vez que o Brasil, embora seja país grande, conta com o poder suave da persuasão e não com o poder duro da força para influenciar processos decisórios internacionais.

Na América do Sul, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas e antidemocráticas. A relação entre Brasil e Argentina levou duas décadas para que as mútuas desconfianças fossem eliminadas, e a relação, estabilizada. Graças a uma diplomacia presidencial consciente de sua responsabilidade histórica, José Sarney e Raul Alfonsín, ainda nos anos 1980, puseram fim às fricções entre os dois países. A rivalidade deu ligar à cooperação. Como resultado, nasceu o Mercosul. Contudo, a abordagem ideológica e a tensão desnecessária com Buenos Aires podem arruinar as conquistas de uma diplomacia construtiva entre os dois países.

Prevalece, atualmente, o ceticismo em relação à integração regional, além do desprezo a qualquer iniciativa que não seja empreendida por governos afins ideologicamente. Com isso, o Brasil cede terreno a potências extrarregionais e abre mão da capacidade de defender seus interesses, como demonstra a retirada de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro da Venezuela, um verdadeiro tiro no pé motivado pelo sectarismo.  

Na Europa ocidental, o Brasil perdeu seu peso gravitacional. Qual é o ganho em confrontar parceiros estratégicos e tradicionais como França e Alemanha? O acordo Mercosul-União Europeia e o projeto de ingresso na OCDE dependem, em boa medida, de amplo consenso entre os países europeus. A antidiplomacia atual somente afasta o país de seus objetivos estratégicos, ao hostilizar países essenciais para a própria implementação da agenda econômica do atual governo.

O papelão de nossa diplomacia diante da maior crise mundial de saúde é estarrecedor. A ausência de liderança, o desrespeito à ciência e às instituições de pesquisa científica e a desnecessária agressividade contra o nosso maior parceiro comercial que é a China, revelam o nível de degradação institucional. Atacar os chineses em um momento em que a nossa economia precisa preservar o escoamento de sua produção e garantir acesso a produto hospitalares é um crime lesa-pátria. O atrito com Pequim somente irá gerar desinvestimentos, declínio da produtividade e aprofundar o fosso do desemprego. É difícil encontrar uma justificava racional mínima para explicar tamanho despautério.  

A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e necessária. Não há mais tempo a perder. O resgate dos princípios constitucionais das relações internacionais do Brasil não requer a reinvenção da roda, apenas o retorno à racionalidade e à nossa tradição diplomática, para que deixemos de lado a subserviência e a importação de conflitos que não nos pertencem. E para que o foco volte a ser no que interessa: a segurança, o bem-estar e a prosperidade do Brasil.

Sem os ingredientes do realismo e do pragmatismo não será possível construir qualquer projeto de política externa minimante defensável. Sem abandonar a ideologia, as fantasias e as alegorias fantasmagóricas que atualmente animam nossa “política externa” de corte fundamentalista, não será possível voltar a enxergar a realidade tal como ela é e não através de lentes psicodélicas. É preciso trabalhar para restaurar o corolário doutrinário da política externa. Devemos trazer a política externa ao seu leito tradicional, de Rio Branco a San Tiago Dantas, cujos elementos centrais foram consagrados pela Constituição Federal.  

Homens públicos de diferentes estirpes e crenças legaram ao país, por gerações e gerações, resultados tangíveis e amparados na melhor feição do patriotismo e da decência republicana. Para implementar uma política externa da destruição, ao arrepio dos princípios constitucionais, é preciso que se instale a amnésia diplomática, é imperativo que se desaprenda a fazer diplomacia, entendida como um método racional, implementada com base em memória histórica e institucional, enriquecida por uma tradição consolidada de maneira laboriosa por um corpo diplomático profissional.

Enfim, o que está sendo legado ao Brasil, desde o início da administração Bolsonaro, é a promoção de rupturas paradigmáticas nos cânones da política externa e, consequentemente, a tentativa de fundar um novo corolário doutrinário para expressar o interesse nacional sob o falso trinômio de liberdade, democracia e nacionalismo. Tudo para combater, em suma, o que se erigiu, fantasmagoricamente, de males que ameaçam o Brasil: comunismo, globalismo e autoritarismo. Essa diplomacia do caos e seus tentáculos obscurantistas cedo ou tarde têm encontro marcado com história.  

(*) Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard.  Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018).  


Marco Antonio Villa: O suicídio de uma nação?

A política externa do governo Bolsonaro transformou o Brasil numa espécie de África do Sul, na época do Apartheid

O Brasil passa pela crise mais grave da história republicana. Não há nada que se compare ao desastre representado pelo governo Jair Bolsonaro. A crise sanitária avança a cada dia e a tendência é que permaneça por boa parte do ano tendo em vista a dificuldade das autoridades de impor, com eficácia, o isolamento social. O maior aliado do coronavírus é Bolsonaro e suas sucessivas ações e declarações que desmoralizam o protocolo estabelecido pelo próprio Ministério da Saúde. A ampliação do número de infectados e de óbitos, além da extensão no tempo da epidemia, deve deixar um rastro de destruição que vai perdurar por alguns anos, principalmente nas comunidades mais pobres.

À crise sanitária deve ser acrescentada a crise econômica. Seus efeitos devem se estender a 2021. O efeito vai ser devastador levando ao fechamento de milhares de empresas e a uma fabulosa taxa de desemprego. Para piorar, há uma séria crise político-institucional. Bolsonaro faz do ataque às instituições o seu passatempo favorito. E ao afrontar os outros dois poderes estimula seus adeptos a comportamentos que se assemelham às milícias nazi-fascistas.

Além das tensões internas, o governo Bolsonaro patrocina ações externas lesivas ao interesse nacional. Hoje o Brasil é uma espécie de África do Sul na época do Apartheid. Estamos isolados na comunidade internacional. A pecha de país pestilento, onde o chefe do governo age de forma irresponsável, sem paralelo no mundo democrático, já percorre o planeta. Sem exagero, poderá ocorrer de brasileiros terem de passar por uma quarentena ao chegar, por exemplo, a Europa. E nisto estão incluídos não só os turistas, como os empresários.

Pior será se transformarem — e nossos concorrentes estão à espreita — as nossas exportações (do agronegócio, especialmente) em mercadorias que podem estar também contaminadas. Também dificilmente será aprovado o acordo da União Europeia com o Mercosul e a China deve retaliar o Brasil comprando menos e diversificando seus fornecedores de carnes e grãos. No primeiro caso, a Europa está estarrecida com o comportamento de Bolsonaro nos campos sanitário e político; no segundo devido ao xenofobismo anti-chinês de vários membros do governo, a começar pelo Presidente. Só temos uma saída: o impeachment de Bolsonaro. Se ele não consegue comandar o Brasil em plena pandemia, o fará no momento da reconstrução, quando precisaremos, principalmente, de estabilidade política?


Revista Política Democrática || Ruy Fabiano: O plágio, de Borges a Machado

Já se disse quase tudo de Machado de Assis, avalia Ruy Fabiano. Para ele, pouco, no entanto, se mencionou sobre o Machado vítima de plágio. Não um plágio qualquer, mas um cometido por outro gênio da literatura – ninguém menos que o argentino Jorge Luís Borges 

A respeito de Machado de Assis já se disse quase tudo. Quase. Sua gigantesca fortuna crítica, que não para de crescer, é marcada por antagonismos. A controvérsia, que em vida lhe causava tédio, o enriquece e o torna ainda mais esfíngico perante a posteridade.

Como todo artista de gênio, Machado é um ser poliédrico, que pode ser lido e compreendido sob ângulos diversos, que aparentemente se contradizem, mas, ao final, formam uma unidade. Já se falou das influências francesas, inglesas, portuguesas, alemãs, espanholas, greco-romanas e judaicas na obra de Machado de Assis.

Já se falou do Machado cético, ateu, irônico, humorista; Machado apolítico e, inversamente, político; Machado alienado, habitante de uma torre de marfim ou, muito pelo contrário, engajado a seu modo nas questões políticas e sociais do Segundo Reinado, como constatou o crítico e ensaísta Astrojildo Pereira.

Poucos, no entanto, mencionaram (ou mesmo perceberam) o Machado vítima de plágio. Não um plágio qualquer, mas um cometido por outro gênio da literatura – ninguém menos que o argentino Jorge Luís Borges. Tudo começa no capítulo VI, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o Delírio, que Eça de Queiroz recitava de cor e proclamava antológico. Nele, Brás descreve sua própria alucinação.

Não bastasse a circunstância singular dessa descrição – já que o delírio interrompe a razão, ao passo que o relato literário é um exercício que exige razão –, seu conteúdo é ainda mais espantoso. E esotérico. Brás, depois de se constatar transformado na Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, vê-se arrebatado por um hipopótamo, que o informa que irão “à origem dos séculos”. E o conduz ao alto de uma montanha, de onde, de certo ponto específico, vê passar por seus olhos, como “coisa única” uma redução dos séculos, “um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas”.

Faz aí menção a um lugar do Universo em que a história humana – toda ela – estaria armazenada: passado e futuro, unificados num presente contínuo. Para descrever esse desfile dos séculos em turbilhão – diz Machado – seria preciso uma impossibilidade física: “fixar o relâmpago”.

Vejamos agora Borges.

O conto chama-se “O Aleph, talvez o mais festejado de seu magnífico acervo. Na história de Brás Cubas, a perda de uma mulher, Virgília, que o troca por outro, o leva àquele estado delirante.

Em Borges, também uma perda feminina, a morte de Beatriz Viterbo, o leva a encontrar o Aleph, que, na definição do homem que dele lhe dá notícia, um poeta medíocre, que julga louco, chamado Carlos Argentino, é “um dos pontos do espaço que contém todos os pontos”. A mesma ideia de Machado, o mesmo fundamento esotérico.

Para contemplar o Aleph, o observador, em vez de subir ao topo de uma montanha (como Brás), deita-se ao rés do chão, no porão de uma casa em ruínas, prestes a ser demolida, e fixa o olhar numa escada velha. Muda o cenário em que cada personagem se instala, mas não o essencial, o que vê.

O personagem de Borges fixa o olhar na parte inferior do degrau, à direita, e percebe uma pequena esfera furta-cor, o Aleph. A partir daí, o que descreve é uma variante do delírio machadiano.

Diz ele:

“Naquele instante gigantesco, vi milhões de atos deleitáveis ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que meus olhos viram foi simultâneo (...). ”

E descreve cenas análogas às de Brás Cubas: o desfile dos séculos, dos impérios, cenas locais de sua cidade, de seu bairro, de seu quarto, mescladas a cenas de outras civilizações e de outras eras, coisas que não entendia, coisas que reconhecia. O Todo em simultaneidade; o relâmpago fixo. A Memória Universal em desfile.

Em um e noutro – em Machado e em Borges –, o tom quase bíblico do relato, à maneira do Apocalipse de São João, igualmente arrebatado, na Ilha de Patmos, por visões místicas, que um psiquiatra não hesitaria em diagnosticar como “alucinações”.

Mas o que é uma alucinação: algo que se vê e não existe ou algo que existe, mas só se vê em estados especiais de consciência, como aqueles que Dostoiévski atribuía às pessoas acometidas de patologias mais graves? Em síntese, é uma ilusão ou uma instância da realidade, acessível e acessável apenas em momentos especiais?

Tais questionamentos permeiam tanto o relato de Machado como o de Borges. Mas há ainda outras coincidências: os personagens Brás e Carlos Argentino evocam seus respectivos países: Brás, de Brasil, e Argentino, de Argentina; e há ainda a semelhança dos nomes Virgília e Viterbo. Atos falhos?

Provavelmente, sim, o que não macula ou diminui a obra de Borges, que é indiscutivelmente original e grandiosa.

Mas, por óbvias razões cronológicas, Borges leu Machado, e Machado não leu Borges. Machado morreu em 1908, quando Borges tinha nove anos. Susan Sontag, no ensaio Vidas Póstumas – O Caso de Machado de Assis, se engana, ao afirmar que Memórias Póstumas só foi traduzido para o espanhol em 1960.

A obra de Machado começou a ser traduzida para o espanhol exatamente em Buenos Aires, a partir de 1940, quando Borges estava em plena atividade, não só como escritor, mas também como crítico literário e ensaísta. E o primeiro livro de Machado em castelhano foi, muito a propósito, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Carlos Fuentes, no ensaio Machado de La Mancha (Editora Fondo de Cultura, México, 2001), captou essas “coincidências” e registra que o próprio Borges, posto diante delas, as reconheceu, declarando: “Por incrível que pareça, acredito que exista (ou tenha existido) outro Aleph” – a que Fuentes acrescenta: “De fato: o de Machado de Assis”.

Maria Esther Vasquez, colaboradora e amiga de Borges por décadas, informou, em entrevista à Folha de S. Paulo, em 1999, por ocasião do lançamento da biografia Borges, Esplendor e Derrota, de sua autoria, que “havia dois escritores de língua portuguesa que ele (Borges) amava: Camões e Machado de Assis”. Borges, porém, nas numerosas entrevistas que concedeu ao longo de sua vida, jamais fez referências a Machado de Assis.

O escritor brasileiro que ele mencionava com frequência era Euclides da Cunha, mais especificamente, seu épico Os Sertões, que considerava obra-prima universal. Citava também dois outros autores de língua portuguesa, Eça de Queiroz e Camões. Ninguém mais.

É possível que tenha omitido Machado de Assis exatamente para não trair a influência. Euclides da Cunha, estilisticamente falando, nada tem a ver com Borges. Nem muito menos Eça ou Camões. Já Machado tem – e muito. Possuem afinidades de concisão, elegância, ironia e erudição, destilada com critério e precisão, em frequentes citações. Os dois tinham ainda em comum o amor à literatura inglesa. Shakespeare os unia.

E mais: foram ambos leitores de Schopenhauer e mesclaram a visão pessimista daquele filósofo à busca aflitiva de transcendência em seus escritos. Ambos se proclamavam sem religião, mas não sem espiritualidade. A busca do conhecimento, em qualquer nível que se dê, vinculada ou não a uma doutrina específica ou a uma crença religiosa, conduz à religação buscada pelos místicos.

Constitui, pois, ato religioso por excelência – que tanto Machado como Borges souberam cultivar, com genialidade.