POLÍTICA EXTERNA

RPD 33 || Sergio Leo: Brasil, entre o marketing e a contenção de danos

“Contenção de danos” é a expressão usada em conversas reservadas no Itamaraty sobre a política externa, após a substituição do polêmico Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, notável por sua defesa pública da condição de “pária internacional” para o Brasil, com ataques às Nações Unidas e a aliados históricos do país no Mercosul e na Europa. À parte do discurso conciliatório do novo ministro, Carlos França, há sinais preocupantes sobre os principais desafios da diplomacia brasileira nos próximos meses. 

França, diplomata de boa reputação profissional, mas de experiência limitada, assumiu, em abril, com uma defesa do “diálogo multilateral” oposta à catilinária antiglobalista do antecessor. Diplomatas em missão no exterior se dizem mais à vontade para tomar decisões segundo a tradição da diplomacia, e, com a ajuda da derrota eleitoral do ex-aliado Donald Trump, acabou o alinhamento automático com os Estados Unidos nas instituições multilaterais. Em temas essenciais, porém, a mudança é insuficiente para trazer ao país o protagonismo que teve no passado recente. 

A atuação do Itamaraty nas negociações das Nações Unidas sobre o aquecimento global, por exemplo, é contida pelo negacionismo climático de Jair Bolsonaro, pela suspeita simpatia da cúpula palaciana com desmatadores e garimpeiros e pela visão ultrapassada de soberania, de seus generais sobre a Amazônia. Pior: há sinais de que se limita a iniciativas de marketing a principal estratégia das autoridades em Brasília nesse campo. 

Desde seu discurso de posse, em que repetiu o mantra tradicional sobre a matriz energética limpa do Brasil e a produtividade da agricultura brasileira, que permite maior produção com menos danos à cobertura vegetal nativa, o novo ministro foi incapaz de dar resposta para o que, de fato, tirou do país o papel de protagonista na questão do clima: o desmonte feito na fiscalização ambiental, com demissão de fiscais de carreira e mudanças nas regras, que facilitaram as queimadas e o desmatamento recorde na floresta. 

O Itamaraty já garantiu o aluguel de um espaço expositivo em Glasgow, na Escócia, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o clima nessa cidade, no fim do ano. A ideia? Uma mostra de propaganda sobre o que o país tem feito em matéria de meio ambiente. 

Neste ano, o Brasil assume a presidência temporária do Mercosul, outro desafio. Mas nas negociações com o segundo maior país do Mercosul, a Argentina, às voltas com uma crise inflacionária e fiscal e pressões políticas, a equipe do Ministro da Economia, Paulo Guedes, quer forçar o corte nas tarifas comuns de importação, sem nenhum gesto diplomático para lidar com pressões dos empresários e políticos na Argentina, um de nossos maiores mercados para bens industrializados. 

A volta da esquerda ao poder, na Bolívia e no Peru, e o avanço de movimentos populares, na Colômbia e no Chile, reduzem também o estímulo a concessões por parte dos governantes argentinos, que comemoraram as pesquisas eleitorais no Brasil, animando expectativas de queda do governo Bolsonaro e, até quem sabe, a volta à Presidência de Luís Inácio Lula da Silva. 

E há o desafio da cada vez mais agressiva competição por hegemonia entre Estados Unidos e China, uma das prioridades anunciadas no Senado americano pelo diretor da CIA, William Burns, que veio ao Brasil na semana passada. O que era para ser uma viagem discreta, foi alardeada pelo Planalto, que, numa gafe diplomática, divulgou até o endereço da residência privada do embaixador dos EUA, Todd Chapman, como local do encontro. O próprio Bolsonaro, em conversa gravada com apoiadores, vazou que o avanço da esquerda no continente foi um dos temas da conversa. Não chegou, porém, a contar que também foi discutida outra séria preocupação americana, a presença da China no fornecimento de tecnologia 5G para a Internet no Brasil. 

A gafe de Bolsonaro é reveladora das prioridades de sua “diplomacia”: prover material para as teses conspiratórias e para os temas contra a esquerda que alimentam sua base política nas redes sociais. Despreocupado com as consequências, para a imagem e interesses do país, de seus atos e pronunciamentos sobre temas diplomáticos, Bolsonaro, com a demissão de Araújo, apenas descartou um auxiliar mais empolgado, que somava às impropriedades diplomáticas do chefe algumas de sua própria lavra. Ao substituto, Carlos França, restou operar nas brechas onde ainda se pode fazer diplomacia; e se preparar para o rescaldo do que sobra da política externa brasileira, após as violências cometidas pelo Presidente da República. 

 Sergio Leo é jornalista e escritor, atua na imprensa desde 1983. Trabalhou nos principais jornais do país, nas revistas IstoÉ e IstoÉ Dinheiro, foi colunista no Valor Econômico e diretor de Comunicação na Febraban. Também colaborou nas revistas Notícias (Argentina) e na Rádio UBA, de Buenos Aires. Hoje, colabora nos sites El País Brasil e Revista Piauí, entre outras publicações. Em 2008, ganhou o Prêmio Sesc de Literatura com o livro Mentiras do Rio (ed. Record). Em 2014, publicou, pela Nova Fronteira, o livro-reportagem “Ascensão e Queda do Império X” sobre o fracasso empresarial do ex-bilionário Eike Batista.