Planalto

Foto: Beto Barata\PR

João Gabriel de Lima: Um quebra-cabeça chamado Brasil

Cabe ao próximo presidente triunfar onde os últimos fracassaram: apontar um rumo

Uma lista de “pequenas alegrias da vida adulta” – tomo de empréstimo o título da música de Emicida – circula nas redes sociais. Ela traz coisas boas que só existem no Brasil: sorvete de tapioca, mergulho vespertino em Ipanema, bateria de escola de samba, frango com batata frita. Se ser carioca é um estilo de vida, e não uma designação de origem, poucos cariocas são mais cariocas que o jornalista escocês Andrew Downie, o autor da lista. Fã de carnaval e futebol, ele é biógrafo do doutor Sócrates e torce fervorosamente pelo Hibernian – time que sempre chega perto do título escocês, mas não vence o campeonato desde 1952.

Saindo do terreno da memória afetiva, e indo para o universo da economia e das políticas públicas, temos várias razões para sentir orgulho do Brasil. Muitos Estados têm programas de excelência em Educação, como Espírito SantoPernambuco e o sempre citado Ceará. O Congresso criou um auxílio emergencial a toque de caixa durante a pandemia – programa que temos a obrigação ética de substituir urgentemente – e reduziu a pobreza em 2020. Domamos a inflação, somos referência em agricultura e a movida de startups em São Paulo é a mais vibrante da América Latina. Essa lista de façanhas surgiu, com facilidade, numa conversa com um dos maiores especialistas em Brasil, o economista José Roberto Mendonça de Barros, colunista do Estadão e personagem do minipodcast da semana.

Apesar de tudo isso, amargamos mais uma década perdida, brasileiros morrem em Manaus por falta de oxigênio – e, internacionalmente, somos motivo de pena pela gestão da covid, desconfiança por causa da Amazônia e zombaria por ter abraçado o cadáver de Donald Trump. A Ford foi embora, Andrew Downiefoi embora – e, acabo de lembrar, até eu mudei de país, ainda que temporariamente. O que acontece? José Roberto arrisca uma explicação. “Falta uma visão de rumo”, diz ele. E desenvolve: “Falta a sociedade chegar a um acordo sobre algumas coisas, e gerar aquela visão macro que possa ser absorvida por algum governo”.

O Brasil é rico em recursos naturais e eficiente em diversas áreas. Falta descobrir sua vocação, dar aquele salto que permitiu a alguns países marcar presença no mundo. Somos um quebra-cabeça com várias peças dispersas, mas não conseguimos formar uma figura a partir delas. Países como Austrália e Canadá tiveram, igualmente, abundância em recursos naturais no ponto de partida. Tornaram-se, com o tempo, economias inovadoras, com alta produtividade e área social resolvida – ficaram ricos, enfim. Enquanto isso, por alguma razão – ou várias razões –, o Brasil patina em suas mazelas.

Como lembrou o Estadão em seu primeiro editorial do ano, faltam algo como 17 mil horas para que o Brasil escolha seu próximo presidente. Parece uma eternidade, mas a eleição está na próxima esquina – o colunista Alberto Bombig, em podcast, fez um inventário dos candidatos que surgem no horizonte. Seria positivo se os postulantes ouvissem a sociedade e se dedicassem a montar o quebra-cabeça chamado Brasil. Se surgir uma visão coerente, é só colocar o nome “programa de governo”. Cabe ao próximo presidente triunfar onde os últimos fracassaram: apontar um rumo, sugerir uma direção. Para que o Brasil deixe de ser a terra das décadas perdidas, das empresas e cidadãos que deixam o país. Aquele time que parece fadado a disputar títulos, mas sempre perde no final do campeonato.


Silvio Almeida: Democracia e desigualdade devem ocupar lugar central no debate político pós-pandemia

Relação entre os dois temas será central no debate político pós-pandemia

Ano de 2021 começará com enormes desafios e não haverá mais lugar para pensamento idealista apartado dos conflitos da realidade.

Utilizo esta última coluna do ano para tratar do que considero os principais assuntos sobre os quais a sociedade terá que se debruçar nos próximos anos: democracia e desigualdade.

O debate sobre democracia e desigualdade não é recente nem uma novidade. Entretanto, a pandemia, a crise econômica e a incapacidade política demonstrada por grande parte dos governos expuseram as imensas contradições do que se convencionou chamar de democracia e a insuficiência das medidas contra a desigualdade.

O ano de 2020 evidenciou que as garantias jurídico-formais da democracia não são suficientes para assegurar a participação popular no processo político. Governos autoritários, com propensões genocidas e “suicidárias” (na expressão de Paul Virillo) foram eleitos e, utilizando-se da forma democrática, desorganizaram social e economicamente seus respectivos países, instalaram desconfiança no próprio sistema que os permitiu chegar ao poder e foram direta ou indiretamente responsáveis pela morte de milhares de pessoas devido ao modo com que se portaram no contexto da pandemia.

Da mesma forma mostraram-se falhas e limitadas as instituições encarregadas de zelar pela democracia. O domínio das fake news, o ambiente anti-intelectual e a distorção provocada pelos algoritmos das redes sociais colocam em xeque um dos postulados máximos do processo democrático, a informação baseada na verdade. Parte do problema também repousa na maneira como os interesses econômicos e o alinhamento às políticas neoliberais têm se refletido na tolerância da grande imprensa e do sistema de justiça com governos autoritários e comprovadamente incompetentes. Caminhamos para um mundo em que a degradação das condições de vida, a destruição ambiental e a desorientação existencial faz com que se instaure um grave dilema entre democracia e ordem social.

Tratar a questão da desigualdade será também assunto prioritário na próxima quadra histórica. Penso que o tema se desdobrará em duas grandes questões. O primeiro desdobramento será um novo debate sobre o papel do Estado na economia. Os delírios neoliberais de “cada vez menos Estado” mostraram-se um retumbante fracasso, inclusive para o mercado. Sem um sistema forte e coeso de proteção social, como é o caso do Sistema Único de Saúde, a tragédia da Covid-19 poderia ser muito maior. Nesse sentido, a instituição de uma renda básica universal está definitivamente na agenda brasileira, não apenas por sua capacidade de fortalecer o sistema de proteção social, mas pelos impactos positivos da medida sobre o conjunto da economia.

O segundo desdobramento será a questão racial. A ascensão de governos ancorados em um “neoliberalismo autoritário” expôs a forma como o racismo é um elemento organizador da desigualdade. O silêncio teórico da economia acerca do racismo foi quebrado, o que revelou ao fim e ao cabo a insuficiência de políticas de desenvolvimento econômico que não tratam da desigualdade racial. A partir de reflexões sobre política industrial, relações de trabalho, tributação, ciência e tecnologia e empreendedorismo terão que observar os impactos sociais do racismo.

O ano de 2021 começará com enormes desafios teóricos e práticos e não haverá mais lugar para que democracia e desigualdade sejam pensadas de modo idealista e apartado dos conflitos da realidade.

*Silvio Almeida, professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama.


O Estado de S. Paulo: Como youtubers bolsonaristas ganham R$ 100 mil mensais com informações privilegiadas do Planalto

'Estadão' teve acesso às 1.152 páginas do sigiloso inquérito dos atos antidemocráticos do STF que investiga a organização e o financiamento das manifestações contra a democracia

Patrik Camporez, Breno Pires e Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo

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BRASÍLIA - O sigiloso inquérito dos atos antidemocráticos aberto em abril para apurar a organização e o financiamento de manifestações contra a democracia revela que um negócio muito lucrativo estava por trás dos protestos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso. Mas o que mais causou surpresa foi a descoberta de que informações usadas por uma rede de canais no YouTube, investigados por promover esses atos no País, saíram de dentro do Palácio do Planalto.

A conclusão consta de inquérito com 1.152 páginas, ao qual o Estadão teve acesso. Após sete meses de diligências, as apurações mostraram os elos e a convivência harmoniosa da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) com os youtubers do “gabinete do ódio”, núcleo palaciano que adota um estilo beligerante nas redes sociais. No fim da manhã desta sexta, o governo afirmou em nota que  está prestando esclarecimentos à Justiça e chama de 'ilação' ligação com rede do ódio.

A existência desse grupo, com essa denominação, foi revelada pelo Estadão, em setembro de 2019. Trabalhando a poucos metros do gabinete do presidente Jair Bolsonaro, o assessor especial da Presidência da República Tércio Arnaud Tomaz e o Coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens, são os interlocutores do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, dono do canal Terça Livre, dentro do Planalto.

Tércio é apontado no inquérito dos atos antidemocráticos como elo entre o governo e os youtubers, que possuem acesso privilegiado a Bolsonaro e informaram faturamento de mais de R$ 100 mil por mês. Integrante do “gabinete do ódio”, Tércio repassa vídeos do presidente e participa de grupo de WhatsApp com os blogueiros para “discutir questões do governo”, segundo disse em depoimento à Polícia Federal. Cid, por sua vez, admitiu que, como “mensageiro” de Bolsonaro, leva e traz recados de Allan para ele. O blogueiro atua como uma espécie de representante das demandas dos demais canais.

A investigação feita pela Polícia Federal em inquérito conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, ainda não terminou, mas já atormenta Bolsonaro por fechar o cerco sobre a militância digital bolsonarista. Até agora, foram ouvidas mais de 30 pessoas, entre as quais o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), apontado como comandante do “gabinete do ódio”, e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filhos do presidente.

“A propaganda de conteúdo extremista no campo digital culmina, de fato, em ações subsequentes: as manifestações reais contra o Estado Democrático de Direito, criando um ciclo que se realimenta, com a difusão das manifestações pelos canais de internet dos produtores, que, por sua vez, são alardeados e replicados em perfis pessoais de redes sociais de agentes do Estado, gerando mais visualizações (difusores)”, constatou a Polícia Federal, em relatório de 9 de julho.

Não passou despercebido dos investigadores que, no período dos protestos antidemocráticos, alguns com a presença de Bolsonaro, vídeos com títulos apelativos pipocaram nas redes sociais. Nessa lista estavam “Bolsonaro rebate conspiradores”, “Bolsonaro dá ultimato para sabotadores e intromissões”, “Bolsonaro invade STF”, “A Força de Bolsonaro é maior que Congresso e STF”, “Bolsonaro e Forças Armadas fechados em um acordo para o Brasil” e “STF decidiu eliminar Bolsonaro”, como registrou a Procuradoria-Geral da República (PGR).

“Com o objetivo de lucrar, estes canais, que alcançam um universo de milhões de pessoas, potencializam ao máximo a retórica da distinção amigo-inimigo, dando impulso, assim, a insurgências que acabam efetivamente se materializando na vida real, e alimentando novamente toda a cadeia de mensagens e obtenção de recursos financeiros”, disse o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques, em manifestação ao STF.

Com atos contra democracia, canais bolsonaristas aumentaram inscritos e lucros

Levantamento do Estadão identificou que o número de inscritos de onze canais sob investigação aumentou 27% no total, de 6,7 milhões para 8,5 milhões, entre 1º de março e 30 de junho. O período coincide com o das manifestações antidemocráticas. De julho até o fim do mês passado, quando já não havia mais protestos, os canais cresceram apenas 6%.

Nos interrogatórios, a PF tem questionado se os donos de canais são “laranjas” de terceiros. Foi o que ocorreu no depoimento prestado por Anderson Azevedo Rossi. O criador do canal Foco do Brasil respondeu que não repassa dinheiro recebido de monetização do YouTube a outros. Rossi afirmou, porém, que recebe ajuda de Tércio Tomaz para abastecer a sua página.

Por meio do WhatsApp, disse ele, o assessor repassa vídeos de Bolsonaro. Tércio está sempre ao lado do presidente. Filma suas conversas de forma imperceptível e procura flagrar situações que possam constranger quem o incomoda.

Com 2,3 milhões de seguidores no YouTube, Rossi teve uma guinada na carreira desde a ascensão de Bolsonaro. Recebia um salário de R$ 3,5 mil como técnico de informática em sua cidade, Canela, no Rio Grande do Sul. Agora, com os recursos da monetização – a remuneração que o YouTube paga por anúncios publicitários nos canais – faturou com o Foco do Brasil US$ 330.887,08 entre março de 2019 e maio de 2020, o equivalente a R$ 1,7 milhão na cotação atual de câmbio. É um valor aproximadamente 33 vezes maior do que ganhava na função anterior. Rossi chegou a instalar uma sala física do canal em Brasília.

Em depoimento à PF, Tércio negou dar tratamento diferenciado aos donos de canais no YouTube que orbitam em torno de Bolsonaro. Admitiu, porém, ter participado de um grupo de WhatsApp com Allan dos Santos para discutir questões do governo federal. Allan, por sua vez, disse que recebe R$ 12 mil por mês, na condição de “sócio” do Terça Livre, também obtidos por meio de monetização, segundo depoimento prestado à PF. 

Já Fernando Lisboa, do Vlog do Lisboa, fatura de R$ 20 mil a 30 mil por mês. Emerson Teixeira, do canal “Professor Opressor”, informou que tem rendimento mensal de R$ 11 mil. Foco do Brasil, Terça Livre e Vlog do Lisboa veicularam propaganda da reforma da Previdência, paga pela Secretaria de Comunicação (Secom). Exibiram, respectivamente, 57.044, 1.447 e 2.081 inserções publicitárias no YouTube, de acordo com informações enviadas pela Secom à CPMI das Fake News no Congresso, no período de 6 de junho a 13 de julho de 2019.

A lista de canais que difunde o discurso do “gabinete do ódio” inclui ainda a Folha Política, de Ernani Fernandes Barbosa e Thaís Raposo, que informaram rendimento no YouTube de R$ 50 mil a 100 mil por mês. Ao todo, 11 canais, incluindo também o Direto aos Fatos, de Camila Abdo, e o TV Direita News, de Marcelo Frazão, continuam sendo investigados por disseminação de conteúdo contra as instituições. Um deles, da  extremista Sara Giromini, foi excluído do YouTube por ferir normas. Outro, do jornalista Oswaldo Eustáquio, não está mais disponível para acessos no Brasil. Os números de inscritos dos canais que seguem ativos, somados, atingem 9,1 milhões.

Desde a última sexta-feira (27) o Estadão tem pedido uma manifestação da Secom. A reportagem perguntou também se os assessores Tercio Arnaud Tomaz, José Matheus Sales Gomes, Mauro Cesar Barbosa Cid e  Mateus Diniz gostariam de se manifestar, já que são citados no inquérito do STF. Três e-mails foram enviados à Secom, mas não houve resposta.


El País: Na briga entre Eduardo Bolsonaro e a China, Planalto deveria temer destino da Austrália

Igor Patrick e Lucas Wosgrau para o El País

Presidente vê o Brasil como intocável, mas deveria olhar com atenção para as reprimendas comerciais que Pequim impôs ao gigante da Oceania

“Não temos problema nenhum com a China (...), nós precisamos da China e a China precisa muito mais de nós”. A mais recente declaração do presidente Jair Bolsonaro em relação ao maior parceiro econômico do Brasil é menos um reconhecimento da importância estratégica da relação bilateral que a tentativa de deixar claro que seu governo não vê —ou, pelo menos, evita anunciar— a China como um inimigo.

O presidente assumiu um papel pelo qual seu vice, o general Hamilton Mourão, se tornou conhecido na China: o de bombeiro de posicionamentos incendiários do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). A confusão patrimonial entre o que é governo e o que é família —marca da atuação dos Bolsonaro na política doméstica— revelou finalmente seu potencial de minar a relação estratégica entre Brasil e China.

A fala em dia eleitoral conclui uma semana marcada por tweets pró-Estados Unidos, e anti-China, assinados pelo deputado federal e membro da família presidencial. Provocativas, ameaçadoras e filosóficas, as mensagens trocadas na rede social favorita dos Bolsonaro (e dos diplomatas chineses) esticaram a corda na já tensionada relação Brasil-China.

A postura da embaixada da China, porém, denota uma subida de tom. Desta vez, a diplomacia não foi velada quanto a ameaças ao Brasil. Pelo Twitter, reagiu alertando para “consequências negativas” ao relacionamento bilateral e acusou o parlamentar de “solapar a relação amistosa” entre os países. É um sinal inequívoco de que, mais do que relegar ao quase-embaixador em Washington o papel de um simples parlamentar com viés sinofóbico, Pequim começa a dar ao “03” a importância de um oficial do Governo.

É óbvio —aqui e na China— que Eduardo Bolsonaro não é um deputado abusando de sua liberdade de expressão. Mourão, em março, deixou clara a mensagem que o pai do deputado, e presidente da República, não poderia dizer: “Se o sobrenome dele fosse Eduardo Bananinha, não era problema nenhum (...), ele não representa o Governo”.

O vice —personagem frequente na imprensa chinesa pela sua defesa da evolução das relações comerciais e culturais entre os dois países— tentava superar a verborragia do filho do presidente, que dias antes comparava a pandemia de covid-19 ao encobrimento da catástrofe nuclear em Chernobyl e acusava diretamente a China pelo espalhamento do vírus.

Se havia alguma dúvida sobre a origem e o respaldo aos comentários dentro do Palácio do Planalto, foi o chanceler Ernesto Araújo, o responsável por corroborar a impressão. A despeito dos apelos da embaixada chinesa por uma intervenção do Itamaraty na contenção de danos, o ministro criticou as declarações irritadas do embaixador Yang Wanming e negou que o deputado tivesse ofendido o Estado chinês.

À época, coube ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) colocar panos quentes. O recado veio por meio de uma reprimenda pública a Eduardo, cuja “atitude não condiz com a importância da parceria estratégica Brasil-China e com os ritos da diplomacia”, nas palavras de Maia. Em parte, também era uma tentativa de blindar o Congresso: pelo menos por enquanto, Eduardo segue como presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e, se não fala pelo Planalto, em alguma medida representa seus colegas congressistas.

Entre política de Estado e estratégia eleitoreira

Os tweets de Eduardo Bolsonaro foram percebidos em março como perigosa provocação e depois como tomada de posição. A China vem denunciando mundialmente o que considera “antagonismo à moda da Guerra Fria” e os danos dessa mentalidade ao multilateralismo, ao direito internacional e à possibilidade de avanço do desenvolvimento global percebido desde sua entrada na Organização Mundial do Comércio em 2001.

Em um país democrático, a representação oficial chinesa no Brasil deveria esperar opiniões críticas e expressões de parlamentares que buscam representar um eleitorado tradicionalista —mais que conservador— insensível a qualquer argumento econômico. A disputa se justifica, no entanto, porque o sentimento vocalizado por Eduardo ecoa na opinião pública brasileira, normalizando a antítese do pragmatismo ganha-ganha que marcou a construção da relação bilateral desde Geisel até Dilma.

A política doméstica chinesa e a legitimidade do governo Partido Comunista da China se tornaram assunto nos salões do Itamaraty e do Alvorada. A chancelaria de Ernesto Araújo reservou à Fundação Alexandre Gusmão (a histórica FUNAG) o espaço de crítica intelectual —por falta de melhor adjetivo— ao comunismo, globalismo e materialismo anti-ocidental.

Essa ideologia esquerdista teria encontrado na China —após a queda do muro de Berlim— uma campeã irresistível apoiada por elites liberais, Hollywood, Wall Street e o Vaticano do papa Francisco. Os aliados ideológicos da China, por serem modernos, são os inimigos íntimos do tradicionalismo defendido por Olavo de Carvalho e Araújo. É compreensível que os chineses critiquem a convivência de pragmatas —capitaneados por Mourão e os ministros Teresa Cristina (Agricultura) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura)— e cruzados dedicados à metapolítica.

Há, portanto, pouca margem de questionamento sobre por que a China deixou de ver Eduardo como um parlamentar sem filtros, com pouca influência na política externa brasileira para alguém que legitimamente fala em nome do governo. A resposta está em seu entorno, quando o líder da chancelaria, os membros da ala ideológica e, em alguma medida, até o presidente endossam seu discurso (mesmo que de forma mais sutil e, por vezes, normalizando embaraçosamente ideias pouco convencionais no debate público).

Esta abordagem caótica é, em parte, o reflexo direto de um problema nunca superado na cultura política brasileira e aprofundado consideravelmente nesta gestão bolsonarista: o patrimonialismo do presidente e sua família desconhece (ou ignora) a personalidade jurídica simbolizada na figura do Estado. Jogam para a claque porque o eleitorado fiel ou compra de bom grado a narrativa ou não se importa com as consequências dela. O bolsonarismo instrumentalizou o Itamaraty como braço da campanha de 2022.

Para os chineses —onde os limites entre Partido e Estado também são nebulosos—, os ruídos de comunicação são mais barulhentos que as vozes sensatas espalhadas em outras esferas políticas ou mesmo dentro da administração. Ainda que o Ministério das Relações Exteriores evite liderar acusações à China em matérias polêmicas, como as causas da pandemia da covid-19 e o leilão do 5G, o dano midiático já está feito.

Perdida, culturalmente ignorante sobre a história, a cultura e a política chinesa, a imprensa pouco faz para contestar o discurso xenofóbico e ignorante que escorre dos esgotos de Brasília. Sem repertório e com pouca tradição na cobertura de eventos internacionais, se fia pelos exemplos de outros países do hemisfério Norte na tentativa de encontrar alguma pista do que o futuro nos reserva nessa briga sem sentido. Mas as respostas não estão nos Estados Unidos: estão em um país da Oceania.

“Australização” das relações é ameaça real

No espectro de trocas bilaterais, poucos governos ocupam um espaço tão destacado para a política externa chinesa quanto o australiano. Não obstante ser o lar da maior comunidade chinesa fora da China em todo mundo, Camberra mantém fortes laços educacionais e comerciais com Pequim, essenciais ao seu crescimento. É a Austrália —não o Brasil— a principal fornecedora de carne bovina, vinhos e minério de ferro ao gigante asiático. Sua matriz exportadora é muito semelhante à nossa, guardadas as proporções em volume: a balança comercial deles com a China chegou a 103 bilhões de dólares (cerca de 600 bilhões de reais) em 2019, número maior que o Brasil registrou no mesmo período (pouco mais de 98 bilhões de dólares, ou 560 bilhões de reais).

Nada disso evitou as duras reprimendas comerciais chinesas aos australianos. Com o acirramento de relações e acusações que vão desde espionagem até crimes de guerra, passando pela insistência do premiê Scott Morrison em comandar uma investigação independente sobre as origens da covid-19, as trocas comerciais foram duramente afetadas.

Em agosto, a alfândega da China já tinha banido a importação de cinco tradicionais frigoríficos australianos, justificando a decisão por motivos sanitários (de acordo com os chineses, amostras indicavam o uso de cloranfenicol, um antibiótico veterinário para combate à febre tifóide). Coincidência ou não, a ordem foi anunciada dias após Morrison apresentar uma legislação dando ao governo federal o poder de veto a acordos com potências estrangeiras, uma clara tentativa de barrar cooperação comercial do Estado de Vitória com a iniciativa chinesa Um Cinturão, Uma Rota.

A mais recente investida de Pequim? A decisão de impor tarifas de até 212% ao vinho australiano, uma decisão que contrária ao próprio posicionamento chinês na Organização Mundial do Comércio, mas com potencial para efetivamente falir a indústria australiana.

Números e retórica tão dura assim ainda deixam margem para pensar que a China depende mais do Brasil que nós deles? Se ainda restar dúvidas, basta ver os movimentos recentes dos chineses. Em agosto, a Rússia anunciou que pretende ampliar o volume de suprimentos de soja para os chineses em 3,7 milhões de toneladas até 2024. Dois meses depois, Pequim fechou acordo para importar 103 milhões de toneladas de soja anualmente da Tanzânia, país com ambiente político muito mais favorável aos chineses. São iniciativas tímidas e incapazes de substituir o peso de Brasil e Estados Unidos para suprir a demanda do grão, mas funcionam como mensagem cifrada. Há alternativas.

A conta pelo isolacionismo promovido por Bolsonaro vem chegando aos poucos. Sem o apoio do “amigão” Donald Trump na cadeira da Casa Branca, os apelos de socorro podem encontrar uma comunidade internacional conscientemente surda e ansiosa por um escolha melhor e minimamente civilizada nas urnas de 2022.

Igor Patrick é um jornalista especializado na cobertura da China e mestrando em Política e Relações Internacionais na Yenching Academy da Universidade de Pequim. É diretor de comunicação da Observa China.

Lucas Wosgrau Padilha é advogado especializado em Direito Econômico e Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). É mestrando em Direito e Sociedade na Yenching Academy da Universidade de Pequim e diretor de estratégia da Observa China.


Bernardo Mello Franco: Um sem-teto no Planalto

Jair Bolsonaro não gosta dos sem-teto, mas poderia pedir uma carteirinha ao movimento. Na semana passada, o presidente completou um ano sem estar filiado a nenhum partido. Virou um desabrigado político com gabinete no Planalto.

O capitão deixou o PSL em novembro de 2019. A razão não foi ideológica. Ele perdeu a disputa com o dono da sigla, Luciano Bivar, pela chave do cofre. Só neste ano, a legenda recebeu R$ 199 milhões do fundo eleitoral.

A tentativa de criar um partido do zero tem sido um fiasco. Depois de receber 57 milhões de votos, o presidente é incapaz de coletar 492 mil assinaturas para registrar o Aliança pelo Brasil. Até aqui, ele só conseguiu validar 42 mil adesões. Isso equivale a 8% do total exigido por lei.

O fracasso da operação reflete a paralisia administrativa do governo. O bolsonarismo produz muito calor e pouca energia. Sabe criar polêmicas e agitar as redes, mas não tira quase nada do papel.

À desorganização, soma-se a vocação da turma para se perder em brigas internas. O secretário-geral da sigla, Admar Gonzaga, rompeu com a tesoureira, Karina Kufa. O marqueteiro Sergio Lima acaba de pular do barco.

Na segunda-feira, Bolsonaro admitiu a hipótese de desistir do Aliança e buscar uma “nova opção”. Isso significaria voltar ao PSL ou migrar para alguma legenda do centrão. Não será uma tarefa fácil.

O capitão exige mandar em tudo, da lista de candidatos à distribuição do dinheiro público. “É ele que tem de escolher quem entra, quem sai, quem disputa as eleições”, resumiu a deputada Carla Zambelli.

Ontem o presidente do Republicanos, Marcos Pereira, deixou claro que Bolsonaro não é bem-vindo a bordo. O deputado esclareceu que o Zero Um e o Zero Dois estão na sigla “de passagem”. Terão que se mudar assim que o pai encontrar um abrigo.

Depois de ser driblado no PSL de Bivar, o capitão deve pensar duas vezes antes de se filiar a partidos de profissionais, como o PTB de Roberto Jefferson ou o PP de Ciro Nogueira. Outra alternativa seria o nanico Patriotas. A legenda já tem histórico com aventureiros: em 2018, lançou Cabo Daciolo ao Planalto.


Míriam Leitão: O que a turma do Planalto não faz

Na frente de quatro chefes de Estado, o presidente do Brasil disse algo do qual recuou 24 horas depois. O fato mostra que não houve assessor, ministro, qualquer pessoa no gabinete ou na estrutura do Palácio que o alertasse de que ele não deveria ameaçar revelar uma lista de países supostamente cúmplices do desmatamento, porque não teria capacidade de sustentar o que dizia. O episódio mostra que o país não tem apenas um presidente irresponsável, tem uma presidência irresponsável.

Em qualquer governo há uma estrutura em torno do chefe de Estado que o alerta, informa e assessora. O Brasil de Bolsonaro não tem isso. Ou é falta de qualificação de quem está em torno dele ou é falta de coragem de enfrentar um presidente temperamental. Não se sabe se aquela estultice estava escrita no texto que ele lia ou se foi um improviso inconsequente. Mas o fato é que dois anos depois de assumir a presidência ele continua desrespeitando o papel de representante do país nos seus encontros internacionais.

Ele falou para os governantes da China, Índia, Rússia e África do Sul que em breve revelaria os nomes dos países que compram madeira ilegal do Brasil, mostrando entre eles “alguns que muito nos criticam”. No dia seguinte, em rede social, disse o oposto. “A gente não vai acusar país A, B ou C.” Ou seja, o presidente do Brasil mentiu. De novo. E diante daquelas testemunhas, quatro chefes de Estado.

Bolsonaro foi um deputado irresponsável, que se especializou em acusar sem provas ou dizer coisas que chamavam atenção pelo absurdo, como ameaçar fuzilar o ex-presidente Fernando Henrique, dizer que a ditadura deveria ter matado 30 mil, e que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela não merecia.
Os três fatos narrados acima são crimes. Foram vários outros. A Câmara optou, em seguidos mandatos, por deixar ele cometer esses crimes e jamais o puniu. A deputada Maria do Rosário o processou, mas a Justiça foi tardia e falha. Foi assim que Bolsonaro chegou à presidência, ficando impune de crimes de ameaça de morte, defesa da tortura, atentado à democracia, homofobia, ataques às mulheres e racismo. Ele levou esse estilo para a presidência. Mente e faz bravatas diante de seus apoiadores no cercadinho do Alvorada, mente e faz bravatas diante de chefes de Estado.

Não há qualquer anteparo. Nada que proteja o Brasil dos absurdos do presidente da República. Esse caso deixa nua a própria presidência, dado que ninguém o impediu de falar o que falou. O que disse mostra que ele é um desinformado, como já escrevi aqui. Mais de 80% do que o Brasil extrai de madeira da Amazônia é vendido para o próprio mercado brasileiro, segundo estudo do Imazon. Os empresários do setor também confirmaram isso e disseram que atualmente não chega a 15% o que é exportado. Países não importam, empresas, sim. E se sabemos quem compra então sabemos quem vende, como lembrou uma servidora do Ibama num telefonema para a CBN. Empresas que exportam legalmente, que cumprem as leis do país serão punidas agora com o fechamento do mercado para o Brasil. É gravíssimo insinuar que existe em poder da presidência brasileira uma lista de países receptadores de crimes ambientais.

Há erros seriais na declaração de Bolsonaro no Brics. E isso para ficar só num pequeno trecho do discurso cheio de equívocos que leu. A política ambiental é um atentado à economia. Diariamente o presidente dá razões para que se fechem mercados, que não se confirmem acordos, que o Brasil seja isolado comercial e economicamente. As empresas, os bancos, os fundos, o agronegócio exportador, todos estão alertando sobre isso. Mas o ministro da Economia quando fala sobre a questão ambiental repete a visão calamitosa do presidente da República.

Bolsonaro comete essas barbaridades e a estrutura da presidência não o impede, o ministro das Relações exteriores o estimula, o ministro da Economia confirma, o ministro da Justiça senta-se ao lado dele, com a Polícia Federal, para tentar, depois do fato, consertar o que não tem conserto. Foi um caso exemplar de desgoverno. Esta administração dá provas diárias de que é um perigo para o país em todos os sentidos, na gestão interna e nas relações internacionais. Uma presidência totalmente irresponsável.


Bruno Boghossian: Senador da cueca simboliza relação de Bolsonaro com baixo clero

Presidente levou representantes da planície da política para o Palácio do Planalto

O presidente não gostou da repercussão da batida policial que encontrou dinheiro na cueca do senador Chico Rodrigues (DEM). “Não tenho nada a ver com isso”, reclamou. O que se sabe do caso até agora não sugere uma conexão entre os desvios e o Palácio do Planalto, mas o protagonista do escândalo simboliza bem as relações políticas de Jair Bolsonaro.

Agora notório, Rodrigues foi um deputado típico do baixo clero por cinco mandatos. Nunca liderou a bancada de um partido e só presidiu uma única vez uma comissão da Câmara. Foi na planície que ele conheceu Bolsonaro, um político que habitou esse território por três décadas.

Num vídeo que voltou a circular depois da operação, o hoje presidente chama Rodrigues de “velho colega de Câmara” e brinca que a relação de 20 anos entre os dois era “quase uma união estável”. Não foi surpresa, portanto, quando o parlamentar inexpressivo se tornou vice-líder do governo no Senado, nos primeiros meses de mandato de Bolsonaro.

A função é quase alegórica. Quem apita, na maioria dos casos, é o líder de fato. Ainda assim, ela carrega algum peso –tanto é que, no meio do ano, o presidente usou os cargos de vice-líder na Câmara para mudar o perfil do governo: afastou deputados da chamada ala ideológica e instalou ali parlamentares do centrão.

Além da longevidade conjunta no baixo clero, o que uniu a dupla foram conexões políticas igualmente desimportantes. Na antiga gravação, Rodrigues enalteceu Bolsonaro por seu patriotismo e pela “defesa dos princípios da família”. Depois, já no Planalto, o presidente elogiou a postura do aliado contra a obrigatoriedade da troca de taxímetros.

Bolsonaro carregou para o gabinete presidencial as companhias e a lógica política de seus anos no Congresso. Estão com ele a mesma retórica vazia, as mesmas plataformas frívolas e as mesmas bandeiras moralistas. Rodrigues expõe ainda o hábito de certos personagens que costumam cultivar outros valores. Estes são guardados em dinheiro vivo.


Rosângela Bittar: Palácio em reforma

Estaria no Planalto a ferramenta para romper o impasse da governabilidade

Na gestão Jair Bolsonaro, por incrível que pareça, ainda existem pessoas que pensam estrategicamente. Isto significa, na crise permanente em que prefere atuar o chefe do Executivo, isolar no campo da propaganda eleitoral sua maneira excêntrica de exercer o poder. É indispensável evitar que a falta de lógica transborde e contamine a todos.

Enquanto o presidente faz política (a seu modo), enfrenta delírios persecutórios e arremessa bombas verbais nas instituições, sua retaguarda precisa oferecer condições objetivas de trabalho.
Retaguarda na política e, em especial, no Palácio do Planalto, pois a economia segue orientada. A urgência está em construir um canal de diálogo para votar as reformas enquanto o presidente se comporta como quiser. Estaria no Palácio do Planalto a ferramenta para romper o impasse da governabilidade.

Todos já sabem como atua o presidente e não adianta pensar em mudanças de personalidade. Por exemplo: ano passado, nesta mesma época, mas com epicentro em maio, o presidente convocou seus eleitores a irem às ruas, também contra o Legislativo e o Judiciário. Foram momentos decisivos do primeiro ano de mandato que ele repete agora e certamente triplicará no ano que vem, mais perto da campanha de reeleição.

Bolsonaro funciona testando limites. Este ano disputa com o coronavírus o título de quem pode mais. Se seus apoiadores destemidos enfrentarem aglomerações, o presidente colherá êxito total. Para não desestimular a tropa, já está, inclusive, provocando o adversário por exageros do alarme.

Sem base no Congresso, fortalecer o Palácio é a solução buscada para este momento.

A demissão do deputado Onyx Lorenzoni da Casa Civil foi um dos primeiros resultados dessas reflexões. Segue-se uma limpeza da equipe que o agora ministro da Cidadania levou para o Palácio. Com sua substituição pelo general Braga Netto (deu conta da intervenção no Rio, espera-se que dê conta da intervenção no Planalto), a expectativa é de que a Casa Civil adquira densidade administrativa e traquejo político para somar na negociação com o Congresso.

O sucesso do novo general do Planalto dependerá do tamanho da corda que o presidente lhe der. Seu currículo de sucesso nada valerá (o general Santos Cruz pagou para ver e perdeu), se o vereador Carlos Bolsonaro, derrubador de ministros, tiver algum dos seus interesses contrariados.

O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, está vivendo uma espécie de crise, não identificada publicamente, a cuja existência seus próximos se referem quando os rompantes causam estranheza, como foi o ataque recente a deputados e senadores. Mas não vai sair. Visto como um estabilizador de humor de Bolsonaro, explode antes do presidente, neutralizando as reações do chefe. Permanecerá com o mesmo papel.

O general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, está desequipado para realizar a tarefa que lhe cabe oficialmente, a de articulador político. Caiu na rede de Carlos Bolsonaro, de um lado, e ficou com fama de descumpridor de acordo, do outro. Sua situação no Planalto já é de sobrevivente. Se ficar, deve aumentar a equipe política que o assessora.

O Planalto tem hoje um homem forte, que permanecerá: o ministro Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral. Ele coordena, por dentro, a Presidência e boa parte do governo. Tem acesso a Bolsonaro, já trabalhou no Congresso. É, hoje, quem melhor responde às expectativas das partes em conflito.

Mesmo com as mudanças pontuais em cogitação, continuará faltando o maestro, um coordenador dos coordenadores. Está aí o nó da reforma do Planalto. A questão é que Bolsonaro é permanente, não suscetível de substituição, e não gosta do papel que lhe cabe, com exclusividade.


Ricardo Noblat: O Palácio do Planalto virou um puxadinho do QG do Exército

Ou não, segundo o Exército

Seus colegas de farda ainda se lembram dos argumentos esgrimidos pelo general Walter Souza Braga Netto em 2018 quando ele era Interventor Federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro depois de ter sido Comandante Militar do Leste.

Nas reuniões, em Brasília, do Alto Comando do Exército, Braga Neto se destacava por defender a tese de que a Arma à qual servia com muito orgulho deveria manter-se distante das eleições, especialmente do candidato Jair Bolsonaro.

Que a soldadesca reverenciasse o ex-capitão, afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética, tudo bem. Ou melhor: ninguém poderia impedi-la de agir assim. Mas não faria bem à imagem do Exército se oficiais se comportassem da mesma forma.

Como Braga Neto, sempre pensou a maioria do Alto Comando – à frente o general Eduardo Villas Boas. Contudo, quando a vitória de Bolsonaro desenhou-se como quase certa, alguns generais debandaram ostensivamente para o lado dele.

Foi um desses generais, o atual ministro da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos, quem ajudou Bolsonaro a convencer Braga Neto para que aceitasse a vaga de Chefe da Casa Civil da presidência da República aberta com a saída de Onyx Lorenzonni.

O anúncio do nome de Braga Neto só foi feito ontem porque Bolsonaro quis saber antes do Comandante do Exército, general Edson Pujol, e do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, se o Exército estava de acordo com a escolha que ele fizera.

Os dois responderam que sim. Braga Neto será o segundo general da ativa a ter um cargo no governo. O primeiro foi Eduardo Ramos, que continua na ativa. O Palácio do Planalto virou uma espécie de quartel. Ali, doravante, só haverá ministros militares.

Em nenhum governo anterior foi assim – nem na época da ditadura e dos seus generais-presidentes. Dos 22 ministros de Bolsonaro, seis são militares. De 1964 para cá, a Casa Civil coube a 27 civis e apenas a um militar. Braga Neto será o segundo.

Generais da reserva presidem os Correios, a Itaipu Binacional, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes. Um coronel, a Telebrás. Um delegado, a Agência Brasileira de Inteligência.

Nos primeiros nove meses de governo, segundo levantamento da Folha de S. Paulo, havia pelo menos 2.500 militares em cargos de chefia ou de assessoramento. Bolsonaro admite que há “civis excepcionais”. Mas prefere a companhia de fardados e ex-fardados.

“A gente (os militares) tem a característica de ser muito quadradinho, mais cartesiano”, disse ao GLOBO o general Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo. E completou: “É o que o presidente quer. O político tem que pensar em política”.

É Ramos que cuida da coordenação política do governo. Faz o meio do campo com deputados, senadores e governadores. Aprende rápido. Onyx prometera 40 milhões de reais por cada voto pela aprovação da reforma da Previdência. Foi o general que pagou.

Em tempo: por seus porta-vozes formais e informais, o Exército renova o aviso de que nada tem a ver com o governo Bolsonaro, como nada teve a ver com governo nenhum da redemocratização do país em 1985 para cá. Atém-se ao que manda a Constituição.

Para calar a voz da oposição, fora com ela!

Conselho da Amazônia

Sabe por que o presidente Jair Bolsonaro pôs seu vice, o general Hamilton Mourão, no comando do Conselho da Amazônia Legal e, do conselho, expurgou os 9 governadores da Amazônia Legal?

Pôs Mourão para dar-lhe algum tipo de ocupação menos decorativa. Um vice sem ter o que fazer sempre preocupa presidente muito ocupado. Esse não é bem o caso de Bolsonaro, mas, vá lá.

Expurgou os 9 governadores porque 7 deles são da oposição ou independentes demais para seu gosto. Mourão promete ouvi-los sobre os problemas da Amazônia, mas separados.


Bruno Boghossian: Reação de Bolsonaro prova que caso Queiroz volta a perturbar governo

Presidente ataca investigação que poderá sangrar o Planalto por um bom tempo

A quebra do sigilo bancário de Flávio Bolsonaro e de outras 85 pessoasperturbou o Palácio do Planalto. “Nossa Senhora, hein? É uma Lava Jato aí”, rebateu o presidente nesta quinta-feira (16), em Dallas. “Vai fundo, tá ok? O objetivo é querer me atingir”, provocou.

A reação do governo ao avanço das investigações sobre o gabinete do filho mais velho do clã Bolsonaro revela a dimensão dos danos que o inquérito pode provocar. O presidente, que buscava se descolar do caso, assumiu uma defesa pública de Flávio, enfrentou o Ministério Público e acusou promotores de ilegalidades.

Jair quer resguardar o filho no momento em que os investigadores apontam de maneira cada vez mais incisiva para um esquema de desvio de salários. O inquérito sugere que o ex-assessor Fabrício Queiroz comandava o recolhimento do dinheiro, mas os promotores dizem que ele não era o chefe daquele arranjo.

Ao tentar proteger o filho, o presidente acaba trazendo a investigaçãopara seu colo. “Querem me atingir, venham para cima de mim. Querem quebrar o meu sigilo? Eu abro o meu sigilo, não vão me pegar”, desafiou.

A extensão das apurações do Ministério Público indica que o inquérito tem potencial para sangrar o governo por um bom tempo e pode respingar no presidente. Entre os funcionários de Flávio que tiveram o sigilo quebrado, estão assessores que também trabalharam para Jair.

A família fez campanha com o discurso altivo da moralidade, mas agora ataca os investigadores. “Estão fazendo um esculacho em cima do meu filho”, queixou-se o presidente. É difícil ignorar, porém, as 19 transações imobiliárias de Flávio e as explicações contraditórias de Queiroz sobre sua movimentação financeira.

Enquanto não surgem respostas convincentes, os promotores tentam fazer uma pesca de arrastão. O inquérito lançou uma rede sobre os dados bancários de dezenas de pessoas nos últimos 11 anos. A medida, considerada excessiva, mostra que os investigadores estão dispostos a capturar peixes graúdos.


Rogério Furquim Werneck: Presidencialismo de confrontação?

Sobram razões para desaconselhar a ‘solução’ de deixar articulação com o Congresso a cargo de Paulo Guedes

Mal sabendo da crise que estava prestes a eclodir em Brasília, dei a meu último artigo, publicado há duas semanas, o título “Presidencialismo de improvisação”. Tivesse o artigo sido escrito na semana passada, em meio à ruidosa e desajuizada escalada de hostilidades entre o Planalto e o Congresso, o título talvez pudesse ter sido “Presidencialismo de confrontação”.

É bem possível que a forma desastrada com que o governo deu início às negociações com o Congresso já tenha condenado a reforma previdenciária a ser bem mais acanhada do que poderia ter sido. O certo é que o clima excepcionalmente favorável, de harmonia e colaboração, que se estabelecera entre o governo e os presidentes da Câmara e do Senado, foi perdido. E não será fácil restaurá-lo.

O estremecimento nas relações do Planalto com o Congresso deu novo alento às resistências à reforma. Os que a ela se opõem mostram-se agora bem mais aguerridos. E até dispostos a tentar barrar partes importantes da proposta do governo já na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), antes mesmo da sua tramitação na Comissão Especial e no plenário da Câmara.

Por sorte, a crise da última semana de março parece ter sido contornada, pelo menos por ora, com a celebração de um armistício pautado por gestos de reconciliação de lado a lado. E, nos segmentos mais lúcidos e ponderados do governo, ganhou força a percepção de que, além da incontrolável propensão ao destempero de Jair Bolsonaro, há algo de profundamente errado na forma com que o Executivo vem conduzindo sua relação com o Congresso.

Em audiência no Senado, na semana passada, o ministro da Economia reconheceu que estava havendo uma “falha dramática” do lado do governo. E, no próprio Planalto, os ministros militares começam a reconhecer que a articulação do Palácio com o Congresso não está funcionando e que a Casa Civil não está cumprindo seu papel. O ministro Santos Cruz, que responde pela Secretaria do Governo, não poderia ter sido mais franco: “O Onyx, como gaúcho da fronteira, não tem perfil conciliador” (“Valor”, 29/3).

Reconhecer com todas as letras que a articulação do Planalto com o Congresso não está funcionando foi um grande avanço. O problema é que, em face desse diagnóstico essencialmente correto, o governo está contemplando uma solução improvisada e altamente problemática para corrigir a deficiência: deixar a articulação com o Congresso a cargo do ministro Paulo Guedes.

Sobram razões para desaconselhar essa suposta “solução”. É bom lembrar que o ministro da Economia tem hoje sob sua alçada vasto leque de atribuições que, até dezembro, justificavam a existência de nada menos que quatro ministérios de porte: Fazenda, Planejamento, Desenvolvimento, Indústria e Comércio e Trabalho.

Conciliar tais atribuições com a concepção e a tramitação de uma proposta tão complexa como a da reforma da Previdência já tem sido um desafio mais do que extenuante. Especialmente agora, quando perspectivas menos promissoras para a economia brasileira nos próximos meses passaram a exigir do ministro dedicação ainda mais intensa à condução da política econômica.

É completamente despropositado esperar que, além de dar conta de tudo isso, o ministro possa se desincumbir a contento das intrincadas articulações políticas requeridas para, ao longo de muitos meses, levar adiante a aprovação da reforma previdenciária, num Congresso fragmentado em pelo menos duas dezenas de partidos em que os líderes têm pouca ou nenhuma ascendência sobre suas bancadas.

Não bastassem todas essas dificuldades, há ainda que ter em conta argumentos adicionais, de ordem política, que apontam para a imprudência de se deixar o ministro da Economia exposto na linha de frente das negociações com o Congresso.

Tendo feito o diagnóstico correto, o governo precisa entender que sua articulação com o Congresso não pode ser entregue ao ministro da Economia. Trata-se de função indelegável da Presidência da República que, até o momento, verdade seja dita, não conta com quem possa desempenhá-la com sucesso.


Leandro Colon: Não há mais tempo para erros no governo Bolsonaro

Planalto jogou cinco semanas no lixo e precisa colocar bola no chão para reforma

Com a posse do novo Congresso, em 1º de fevereiro, criou-se a expectativa de que o jogo para o governo de Jair Bolsonaro começaria para valer depois de um janeiro bem morno, de escassas medidas.

Fevereiro deveria ter sido o mês para o Planalto estabilizar uma base parlamentar aliada decente, ajustar os pontos frágeis de sua articulação política, após a entrega da reforma da Previdência, e entrar em março tinindo para o que der e vier.

Não foi o que vimos. O governo meteu os pés pelas mãos e jogou cinco semanas no lixo. Encalacrou-se na crise dos laranjas do PSL, que levou à queda de Gustavo Bebianno da Secretaria-Geral da Presidência e transformou o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, em um morto-vivo na Esplanada, apenas à espera de uma demissão inevitável.

No Congresso, sobraram críticas à capenga articulação política governista, visivelmente confusa e sem uma estratégia desenhada para garantir um apoio mínimo para o pontapé da reforma previdenciária.

Bolsonaro botou gasolina no fogaréu das redes sociais ao compartilhar em sua conta pessoal um vídeo obsceno no último dia de carnaval.

Ao demitir da direção de um instituto importante um diplomata experiente e respeitado pelos colegas, o Itamaraty expôs mais uma vez os traços de autoritarismo e perseguição ideológica que parecem dominar a gestão do ministro Ernesto Araújo.

A barafunda no Ministério da Educação é assustadora. Depois do constrangedor episódio da carta sobre a filmagem dos alunos cantando o hino nacional nas escolas, os pupilos do guru bolsonarista Olavo de Carvalho foram alijados pelo ministro Ricardo Vélez Rodríguez na sexta (8).

Basta vontade para o governo consertar logo os estragos das últimas semanas —alguns decorrentes de falhas evitáveis—, colocar a bola no chão e tentar controlar o jogo político. A partir de agora, o Congresso assume de vez o protagonismo da reforma da Previdência, crucial para o sucesso de Bolsonaro. Não há mais tempo para erros primários.