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Folha de S. Paulo: Em plebiscito histórico, chilenos decidem acabar com Constituição de Pinochet

Com 99,85% das urnas apuradas, aprovação da mudança vence por ampla margem (78%)

Sylvia Colombo, de Santiago

Pouco mais de um ano depois dos protestos que incendiaram o Chile, deixaram 30 mortos e dezenas de feridos e forçaram o governo a convocar um plebiscito histórico, o país decidiu neste domingo (25) acabar com a Constituição da época da ditadura de Augusto Pinochet.

Com 99,85% dos votos contabilizados, o resultado foi a vitória do “aprovo” à nova Carta, por 78,27% contra 21,73% do “rejeito”. Os eleitores chilenos também decidiram que o novo documento será redigido por meio de uma Assembleia Constituinte inteiramente renovada, sem a participação de legisladores já eleitos.

A escolha dessa assembleia será por meio de uma eleição, a ser realizada em abril de 2021, em que haverá paridade de 50% entre homens e mulheres. A proposta venceu por 78,9% dos votos, contra 21% que optaram por uma assembleia mista, que contasse com parlamentares já no cargo. Também ficou decidido que os que quiserem se candidatar a esses postos não precisarão ter vínculos com partidos políticos.

Às 21h25, o presidente Sebastián Piñera declarou que a votação marca o "princípio de um processo constituinte". Ele disse ainda que faria de tudo para "impulsionar uma nova Constituição em que estejam refletidos os valores e os princípios que marcam a alma da nossa sociedade, que reconheça e proteja os cidadãos de abusos e de discriminações, que reforce o Estado de Direito, a Justiça e a igualdade".

Enquanto o presidente falava, do palácio de La Moneda, que foi iluminado com as cores da bandeira nacional, nas ruas se ouvia buzinas e rojões. Na praça Italia, uma multidão festejava com batuques e bandeiras. Houve festejos também em outros pontos do país, embora o Servel (órgão eleitoral), ainda não tivesse feito nenhum pronunciamento oficial.

“Nunca tínhamos visto um processo de participação como o que estamos vendo”, disse o presidente do Servel, Patricio Santamaría, logo após o fechamento das urnas, quando ainda não haviam sido divulgados os números de comparecimento.

Enfrentando uma fase crítica da pandemia de coronavírus, com quase meio milhão de casos registrados e mais de 14 mil mortos em decorrência da doença, o governo adotou um rígido protocolo sanitário, que levou à formação de longas filas nos locais de votação em Santiago, principalmente nos bairros de Recoleta, Providencia e Las Condes.

A demora irritou alguns eleitores, mas já era sinal de que o comparecimento havia sido alto —o que não vinha acontecendo em outros pleitos.

Embora o padrão eleitoral no Chile seja de 14,7 milhões, a abstenção tem sido um problema crescente nos últimos anos. Nas eleições municipais de 2016, o comparecimento foi de apenas 36%. Nas presidenciais, aumentou para 50% dos eleitores aptos a votar.

O último pleito com mais de 60% da presença dos eleitores ocorreu em 1993, com a vitória de Eduardo Frei Ruiz-Tagle, da coalizão de centro-esquerda Concertação.

Neste domingo, os chilenos puderam votar a partir das 8h e na maior parte do dia, o clima foi tranquilo na capital, com muitos policiais nas ruas.

Uma hora e meia antes do fechamento das urnas, marcado para as 20h, um grupo de manifestantes e policiais chegaram a se enfrentar na praça Itália, recentemente rebatizada de praça Dignidade. É ali, em torno da estátua do general Baquedano, que os protestos costumam acontecer desde outubro do ano passado.

As ruas na região foram fechadas, e os policiais usaram jatos de água para dispersar os grupos, que retrocederam.

O presidente chileno votou ainda de manhã no centro da capital e disse esperar que “este seja o dia da democracia e da expressão pacífica da vontade dos chilenos e da rejeição a métodos violentos de grupos como os que incendeiam igrejas e provocam distúrbios”.

“Não há uma preferência única no gabinete do governo por uma das opções. Temos visões distintas, mas o mais importante é que respeitaremos o resultado das urnas e esperamos que todos façam o mesmo. Vamos resolver os problemas do Chile pelas urnas, que é o modo adequado e institucional”, afirmou Piñera.

“Não devemos perder de vista quais são as prioridades agora, recuperar os trabalhos e vencer o vírus.”

O mandatário fez questão de realizar todos os procedimentos de votação lentamente, para mostrar cada passo dos protocolos sanitários.

Assim como os outros eleitores, Piñera entrou sozinho na sala de votação, teve de levar sua própria caneta azul, mostrar um documento e higienizar as mãos com álcool em gel. Depois disso, recebeu as duas cédulas de papel.

Em uma delas, o eleitor escolhe se aprova ou rejeita a elaboração de uma nova Constituição. Na outra, diz se prefere que a nova Carta, caso aprovada, seja realizada por uma Assembleia Constituinte totalmente eleita numa votação em abril, ou se será mista.

Nesta segunda opção, metade dela seria formada por parlamentares que já exercem seu mandato e seriam escolhidos pelos partidos, sem nova votação. A outra metade, por constituintes eleitos em abril.

Em ambos os casos, na nova eleição, 50% dos novos escolhidos devem ser mulheres.

Depois de marcar seu voto, o presidente teve de fechar suas cédulas com um adesivo, e não mais com a língua, como se fazia, para ajudar a evitar a contaminação. Em seguida, depositou os dois votos em duas urnas de plástico diante dos mesários. Foram eliminadas as cortinas de pano que existiam nas eleições anteriores, também para ajudar a arejar o ambiente.

O único procedimento que Piñera não precisou fazer foi baixar por três segundos a máscara, a uma distância de 2 metros dos mesários. Essa medida é exigida a todos os eleitores, para que possam ser identificados.

A atual carta chilena foi promulgada em 1980, durante a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990) e com pouca participação popular.

Liberal, ela não obriga o Estado a fornecer diretamente saúde, educação e proteção social, o que estimula a atuação privada nessas áreas. Os que defendem alterar o texto acham que uma mudança constitucional poderia obrigar o governo a ser mais atuante e ampliar o acesso da população a serviços básicos.

Atualmente, o voto é obrigatório no Chile ara os cidadãos entre 18 e 70 anos.

Entre os protocolos estabelecidos para o referendo deste domingo, também foram reservados horários para os idosos, das 14h às 17h.

Piñera insistiu que eles não tivessem medo e os convidou a sair de casa para votar. “Creio na sabedoria dos que têm o cabelo grisalho”, disse, sorrindo e apontando para a própria cabeça.

Corina Concha, 65, chegou para votar em Temuco em uma cama hospitalar. Impedida de andar há mais de cinco anos e sem sair de casa desde o início da pandemia, ela afirmou que não podia perder esse dia histórico. “Quem pode andar, que não perca essa oportunidade, e quem não pode peça ajuda. É o dia de todos os chilenos”.

Além do horário exclusivo, os idosos também tiveram uma fila especial durante todo o dia para votar de modo mais rápido. Funcionários do Servel auxiliaram as pessoas mais velhas a caminhar ou as levaram até suas mesas de votação, empurrando suas cadeiras de rodas.

Os idosos que venceram o medo da pandemia geralmente apareciam com muitas precauções. Havia gente com mais de uma máscara, com proteções de rosto e com roupas térmicas fechadas do pés à cabeça.

No estádio Nacional, Carmen, 87, chegou numa cadeira de rodas, empurrada pela filha Josefa, 64. “Aqui nesse estádio ficaram presos os perseguidos pela ditadura, muitos morreram, eu me lembro. Não podia perder a oportunidade de votar num dia histórico como hoje, que pode apagar de vez o último vestígio daquela época terrível para todos os chilenos”, disse Carmen à Folha.

Uma pesquisa do Instituto Tresquintos divulgada na sexta (23) à noite indicava que a mudança de Constituição seria aprovada por 69% dos eleitores, e que a preferência por uma Assembleia Constitucional inteiramente nova era de 57% dos eleitores.