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Pedro Doria: A digitalização do mundo acelerou

A transformação cultural estava em curso, de forma lenta. A pandemia pode acelerá-la.

Quando este nosso pesadelo coletivo passar e pudermos novamente ganhar as ruas, o mundo será outro. Nas últimas duas décadas, a ciência foi barbaramente questionada. Mas é a ciência que vai resolver o problema do novo coronavírus. Estamos há anos falando sobre ensino à distância, medicina à distância, trabalho por home office. E, no entanto, o processo de evolução é lento. Se passarmos mesmo alguns meses em quarentena, e é isto que tem cara de que vai acontecer, nossa relação com tecnologia e a natureza da economia se transformará de forma irreversível.

Alguns dos motivos são pragmáticos. Embora o presidente Jair Bolsonaro sugira por aí que, sem quarentena, a economia brasileira aguentaria o tranco, isto não é verdade. Porque a economia do mundo todo irá numa direção só. O Senado americano não acaba de aprovar um pacote de estímulo econômico no valor de 10% do PIB do país à toa. A nação mais conservadora do mundo no ponto de vista fiscal vai injetar US$ 2 trilhões na economia porque o tombo vai ser pesado. Ali do outro lado, quando tudo acabar, inúmeras empresas terão um problema de liquidez. Aí vão olhar para a quantidade de imóveis que têm. Ou para o preço do aluguel. Vão avaliar sua experiência com trabalho remoto. E não serão poucas que dirão: aprendemos algo. Este gasto em dinheiro é, ao menos, parcialmente desnecessário.

Quantos de nós não estamos descobrindo ferramentas como Zoom ou Google Hangouts, nos servindo em casa de uma taça de vinho ou de uma long neck e batendo papo com quem está à distância como se fosse uma mesa de bar?

É uma mudança cultural deste vulto que estamos para encarar. Não é apenas na vida profissional, é também na pessoal. Quantos de nós não deixamos por vezes de sair numa sexta à noite ou sábado com amigos porque o dinheiro está curto, porque temos que ficar com os filhos, por qualquer outro motivo? E quantos de nós não estamos descobrindo ferramentas como Zoom ou Google Hangouts, nos servindo em casa de uma taça de vinho ou de uma long neck e batendo papo com quem está à distância como se fosse uma mesa de bar. Na primeira é meio esquisito, mas aí vamos acostumando e de repente é rotina. Este não é um hábito que será perdido.

Em paralelo, os serviços de entrega entraram em colapso. De supermercados e farmácias tradicionais às startups de aplicativos. Ninguém tinha estrutura para aguentar uma realidade que se tornou quase toda online. Mas, como nos outros casos, este é um jogo de tempo. Quanto mais tempo ficarmos nesta situação, mais tempo os negócios vão se adaptar e mais nós nos acostumaremos. Em três meses, a maneira como se organizam vai mudar. Lojas físicas não vão desaparecer, mas haverá um boom dos serviços de entrega. Cada vez mais vamos preferir a comodidade de pedir online e deixar que os mantimentos venham a nós. Sim, já o fazíamos. É só que faremos mais.

Educação à distância não é novidade. Pesque qualquer adolescente que esteja próximo do Enem. Não há um que não assista aulas por YouTube ou não assine um serviço tipo Descomplica. Hoje, são supletivos. Complementam a aula, ajudam a reexplicar aquela fórmula que ficou mal compreendida na escola. Mas cursos universitários online não são absurdos. Neste exato momento, Stanford e Harvard, Yale e Princeton, as melhores dentre as melhores universidades americanas estão se direcionando rapidamente para a internet de forma a manter suas aulas.

Não é absurda a ideia de se formar numa das melhores universidades do mundo sem sair do interior do Piauí. É preciso entrar, claro. Mas sai muito mais barato.

Faz uma semana hoje que o historiador israelense Yuval Noah Harari publicou, no jornal britânico Financial Times, um longo artigo que mergulha nesta transformação cultural. Ela já estava em curso, de forma lenta. A pandemia pode acelerar a transformação digital do planeta.


Pedro Doria: O que é pior neste governo

Muitas características fazem, do governo atual, ímpar. Gosta de romper com políticas de Estado consolidadas há décadas, por exemplo. Tem dificuldades de lidar com os limites constitucionais impostos ao Poder Executivo. Não se envergonha de nepotismo e tem orgulho de ser obscurantista. Mas, quando passar —e todo governo passa —, uma destas características poderá custar muito, muito caro ao Brasil. É o obscurantismo. Ou, em outras palavras, a repulsa à ciência.

A repulsa à ciência aparece de muitas formas. Quando ministros põem em dúvida aquilo que é consenso entre cientistas, como as mudanças climáticas, é um caso. Ou, então, quando o governo enxerga ideologia em números do IBGE, do Inpe, certamente outros exemplos virão. De uma forma mais ampla, porém, esta recusa da ciência põe em perigo o futuro econômico do Brasil. De duas formas.

A era digital, na qual entramos, é em essência aerada matemática. Os dois braços de avanços tecnológicos nos quais estamos mergulhando —em biotecnologia e em inteligência artificial —têm por pedestal uma matemática muito sofisticada. É ama temática do DNA e ama temática por trás dos softwares capazes de aprender.

Não bastasse, a conclusão de que vivemos um tempo de violentas mudanças climáticas se baseia em modelos matemáticos.

Nunca o Brasil precisou tanto de gente que conhece em profundidade matemática. E isso ocorre justamente quando temos um presidente da República que encontra, nos números, ideologia.

É em cima de conhecimento matemático que produziremos o PIB do futuro. É com base nele que temos a oportunidade de deixar de ser um exportador de commodities e cérebros para nos tornarmos cultivadores de cérebros e exportadores de tecnologia.

Nunca foi tão importante pegar instituições como o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), as melhores universidades federais, estaduais e as PUCs e botar, nelas, todo gás. Concentrar nelas o melhor investimento.

Jamais foi tão relevante pegar experimentos como as Olimpíadas da Matemática e expandi-los, para que possamos descobrir desde cedo as melhores cabeças entre os brasileiros mais pobres, para que possamos —enquanto melhoramos o ensino público —pescar essa garotada e já dar ensino de excelência para eles desde cedo. Precisamos de qualidade em quantidade.

É a recusa dos números em plena era dos números que faz este governo olhar para a Amazônia e nela enxergar terra para pasto, para soja e minas diversas. Não vê a biodiversidade, a riqueza genética, a indústria farmacêutica do futuro, os bilhões e trilhões em patentes. Não se toca dos ciclos das chuvas, ignora que inteligência artificial em conjunto com edição genética permite produzir muito mais com muito menos terra.

Ao invés de promover o encontro entre iniciativa privada e professores universitários, de quebrar o preconceito da academia brasileira com o capitalismo do século XXI, o governo estimula o ódio à educação. Quando podia estar criando formas de estimular a geração de patentes e eliminar a burocracia para seu registro, tornar pesquisadores os grandes propulsores da nova riqueza nacional, o Planalto obscurantista os torna inimigos e, em estudantes, enxerga idiotas úteis.

O Vale do Silício existe por causa da Universidade de Stanford. Boston é um hub tecnológico por conta de Harvard e MIT, e Austin está chegando por causa da Universidade do Texas. A China investiu em formar matemáticos e hoje briga com os EUA. A Coreia do Sul. Quantos anos mais perderemos?

Em tempo: senhor presidente, diferentemente do que o senhor sugeriu e sua máquina de memes espalha, jamais fiz qualquer palestra para o governo federal. Muito menos pago pelo PT.


Pedro Doria: O jogo de Bolsonaro

Sua Excelência que ora ocupa o Alvorada diz não ter estratégia. Tem sim. E funciona

Tanto o jornalista José Roberto de Toledo, editor do site da Piauí, quanto o cientista político Christian Lynch, do IESP-Uerj, observaram o mesmo recentemente. Estes mais ou menos 30% de aprovação de Jair Bolsonaro não são tão pouco quanto parecem. Para os padrões médios americanos, a aprovação de Donald Trump é também historicamente baixa. O novo premiê britânico, Boris Johnson, tem os piores números de início de governo dos últimos 40 anos. Esta semana agora, numa entrevista que decidiu conceder de improviso à repórter Jussara Soares, do Globo, o presidente também garantiu: “Sou assim mesmo”, ele disse a respeito de suas declarações agressivas. “Não tem estratégia.” Acredite o desavisado que quiser acreditar. Porque seus 30%, as redes sociais e as declarações fazem, juntas, parte de um mesmo pacote. E compõem, sim, um tipo novo de jogo na política.

O que Bolsonaro, Trump e Johnson têm em comum é um discurso particularmente agressivo. Ofendem, flertam abertamente com a extrema-direita, seu comportamento foge ao padrão de qualquer chefe de Estado recente. Esta agressividade é sintoma e é reflexo do ambiente em que se elegeram. Nos EUA, o Partido Democrata está cindido entre esquerda e liberais. Há conflitos na bancada na Câmara e faz muito tempo que, entre os pré-candidatos à presidência, perfis tão distintos estão disputando. Estão brigando para determinar que perfil ideológico tem chance de vencer Trump. Os derrotados perigam dar as costas para o partido. Com os trabalhistas ingleses é igual. Seu atual líder, Jeremy Corbyn, representa uma esquerda que não chegava ao comando do partido há décadas, e assim abafou os liberais que dominavam a sigla. Fragmentado, sem saber para onde caminhar, o Partido Trabalhista ainda não consegue fazer frente ao governo.

No Brasil, mesmo com nossa pluralidade de partidos, o cenário é muito similar. Num ambiente de agressividade e rancor, esquerdas e liberais não se entendem – e abrem espaço para esta nova direita representada, aqui, por Jair Bolsonaro. Porque a oposição não se entende, e não tem cheiro de que vá se entender tão cedo, o cenário é de fragmentação. Não é só isso, porém, que faz dos 30% mais do que parecem.

Redes sociais têm uma característica própria. De longe, parecem democráticas. Afinal, qualquer um pode ir lá dar seu pitaco. Mas poder publicar e alcançar um público amplo são coisas distintas. Os algoritmos favorecem declarações que incitem emoções fortes. São as que chamam mais atenção, por isso mais lidas e mais comentadas. Não importa se há cem comentários negativos e dez positivos.

Quanto mais comentado, mais o sistema mostra aquele post ou tuíte para outros. Sim: nas redes sociais, até a repulsa ajuda o ultrajante a ganhar distribuição. É uma tecnologia que não premia a moderação, premia o extremismo.

Daí há um segundo aspecto. O número de coisas diferentes que as pessoas leem nas redes é limitado. Declarações ultrajantes muito distribuídas e criticadas ocupam mais e mais espaço – expulsando o resto. Num jogo de ocupação de território da informação exposta, o estilo Bolsonaro (ou Trump) é o que tem maior sucesso garantido.

E, assim, tudo se junta. Porque, depois de um ultraje após o outro, quem não abandonou o presidente é porque está fechado mesmo com ele. O núcleo de sua base é grande, e é sólido. Enquanto que, no outro lado, o que há é fragmentação, desânimo, depressão ou raiva. Um núcleo coeso, mobilizado pelas redes, as redes dominadas, e a oposição dilacerada.

Sua Excelência que ora ocupa o Alvorada diz que não tem estratégia. Tem sim. E funciona.


Pedro Doria: A metamorfose de Insta e Twitter

Se depender de quem manda nas redes sociais, elas ainda vão mudar muito

Quem está ligado às redes sociais por certo o percebeu. Afinal, a grita – assim como os elogios – foi imensa. O Instagram, no Brasil, parou de indicar a contagem de likes. O dono da conta sabe quantas pessoas curtiram suas fotos. Mas quem o visita não sabe. O que teve repercussão menor, mas que ocorreu no mesmo dia, foi a decisão do Twitter de incluir na plataforma o comando “esconder respostas”. Por enquanto, só vale para o Canadá. É só o início. Se depender de quem manda nas redes sociais, elas ainda vão mudar muito nos próximos meses e anos.

A lógica do Instagram não é difícil explicar. Do jeito que a plataforma evoluiu, logo surgiu um tipo novo de “instagrammer”. O profissional, o influenciador. Não se trata apenas de vaidade. É gente que faz dinheiro com isso. Constrói uma audiência, muita gente visita a rede, a moça que fala de beleza então vende produtos de beleza. A turma que passa a vida publicando fotos de viagem tece loas aos hotéis, às linhas aéreas e por aí vai. É um negócio de publicidade.

Tudo certo, mas gera dois problemas. O primeiro é que há um mercado negro que, ou usando software automatizado que se passa por gente, ou contratando gente para ter muitas contas simultaneamente, vende likes. O segundo é que estimula quem busca audiência alta a gerar imagens de impacto que chamem atenção pelo impacto, tudo por uma curtida, por rápido que seja dado. Afinal, a principal moeda corrente na publicidade, para avaliar quem influencia mais, é justamente esta contagem.

Ocorre que, para o Instagram, a lógica ideal é outra. O que a plataforma quer é gente que fique muito tempo nela. Um comentário, que demora mais para fazer e para ler, vale mais do que o like rápido. Ao esconder os likes, quer estimular este outro tipo de interação. Fazer com que a moeda de troca da publicidade seja o número de comentários. De quebra, e aí é melhor para todo mundo, ao produzir imagens que gerem comentários, e não likes, é possível que a rede fique também melhor para todos.

A mudança no Twitter é muito mais importante. É uma rede muito importante — é lá que estão políticos, jornalistas, analistas. É lá, mais do que em qualquer outro lugar, que se debate o mundo. Já não é uma rede, dado o limite de espaço, dada a profundidade. Nos últimos anos, tornou-se também um inferno. Dê um deslize, explique algo mal, ou tenha apenas uma opinião que um grupo organizado qualquer não tolere — não há rede tão selvagem, tão agressiva, quanto o Twitter. É preciso couro no lugar da pele.

Um dos principais problemas é que às vezes uma única resposta raivosa atrai a matilha, faz desaparecer os sensatos e torna tudo uma experiência desagradável. Quem escreve um tuíte passa a ter o poder de esconder qualquer resposta a ele. Não é o mesmo que bloquear quem escreveu, não é o mesmo que apagar o comentário. É esconder. O leitor que deslizar rápido verá um ícone de escondido. Quem estiver com pressa, passa direto. Quem tiver muita vontade pode se dar ao trabalho de clicar para ler o que foi escondido. A esperança é de que a maioria das pessoas não o fará, e daí os que estiverem dispostos a conversar, ao invés de ofender, se sobressaiam.

Nossa conversa política, não adianta, está ocorrendo nas redes. E, pela estrutura de suas normas, elas estimulam o embate violento, o que chama atenção de presto, tudo o que for sensacional. No sentido sensacionalista do termo. A virulência tomou conta da política mais ou menos no mesmo momento em que o diálogo sobre política foi para lá.

As mudanças são bem-vindas, ainda que apenas como teste. O mundo anda precisado.


Pedro Doria: Uma guerra irracional

A decisão americana de proibir relações comerciais com a Huawei, a gigante digital chinesa, também prejudica imensamente os consumidores

A bizarra e agressiva decisão americana de proibir relações comerciais com a Huawei, a gigante digital chinesa, no curto prazo abala a companhia. Também prejudica imensamente os consumidores. Quem mais se dá bem não é nenhuma empresa americana — pelo contrário, é uma sul-coreana, a Samsung. No médio e longo prazo, esta ação, que de americana não parece nada, tende a prejudicar justamente as companhias do Vale do Silício.

Aliás, talvez nem a tão médio prazo assim. Afinal, as gigantes do Vale e as gigantes da China têm uma relação simbiótica. Mude o tênue equilíbrio e a explosão pode ser feia.

Para a Huawei, as ameaças sérias e imediatas vêm de duas relações cortadas: com o Google e com a japonesa ARM.

O sistema Android, que roda em 9 de cada 10 celulares, funciona com uma licença de software livre. A Huawei pode continuar a usá-lo assim como pode usá-lo de base para construir seu próprio sistema — coisa que já está fazendo. Metade dos celulares que vende são na China. Não muda nada. Muda para a outra metade — os celulares vendidos na Europa e nas Américas. Aqui, componentes do Google como a busca, o Gmail e a própria PlayStore são essenciais. Sem poder usá-los, a Huawei perde.

É uma pena. Seu aparelho recém-lançado aqui no mercado brasileiro está no mesmo nível dos três melhores celulares que há – o último Apple iPhone, os Samsung S10 e o Google Pixel 3. Ter quatro celulares de peso disputando espaço faz bem para os preços — até porque a Huawei cobra propositalmente abaixo por algo de igual valor.

Se ARM mantiver o bloqueio a coisa é bem mais séria. Originalmente britânica, comprada recentemente pela japonesa Softbank, tem patentes fundamentais para a construção de chips. A Huawei pode viver sem Intel e Qualcomm — pode fabricar seus próprios chips. Mas, sem poder licenciar tecnologia da ARM, fica muito mais difícil. Não afeta apenas o negócio dos celulares, afeta também o equipamento para infraestrutura de telecomunicações que inclui antenas e roteadores que estão sendo usados por todo mundo para erguer redes 5G.

Se a Huawei não puder licenciar projetos da ARM para desenhar chips, não poderá fazer equipamento 5G. É a principal fornecedora do mundo deste tipo de equipamento. Para as operadoras de telecom, o preço de construir as redes vai aumentar, a qualidade vai piorar, e a demora será muita.

Bloquear a Huawei é um desastre para todo mundo.

Só que, grande como é, obstinada como é, e com o apoio do governo chinês, a Huawei vai sobreviver e, após um ou dois anos, dá a volta por cima. Já agora mesmo, tomados por ímpeto nacionalista, chineses estão largando iPhones para comprar P30s. Trata-se de uma empresa com imensa penetração no mercado asiático. Com chips próprios e sistema próprio, terá poder de fogo para abrir um rombo nos espaços que Apple e Google têm no continente mais populoso, aquele onde o mercado mais cresce. Para os americanos, é péssimo.

E pode ficar muito pior. Se a China optar por uma retaliação, ela terá na Apple o alvo perfeito. Cortar a Huawei do ecossistema balança a companhia chinesa. Corte a Apple e a proporção do terror é muito maior. Se Beijing optar por proibir negócios com a Apple, tem reservas bem mais que suficientes para indenizar as empresas locais que terão prejuízo. Mas a companhia fundada por Steve Jobs não terá onde fabricar iPhones, iPads e Macs no mesmo volume ou com a mesma qualidade.

A sirene de alerta vermelho está tocando em Cupertino.

O gesto do governo Donald Trump não é contra uma empresa — é contra todo o negócio da alta tecnologia que, no mundo, é interdependente. E é contra nós, consumidores.


Pedro Doria: A nova oposição digital

A internet é um camaleão. De sites e blogs, o ativismo foi para o Facebook. Agora está no Twitter e no WhatsApp

Fábio Malini, um dos coordenadores do Laboratório de Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo, captou um fenômeno interessante no Twitter. Foi por esses últimos dias. Aquilo que secundaristas publicam nessa rede social segue determinadas características. Ficam numa bolha à parte. Os seus são textos curtos, as reações emocionais seguem argumentos até simplórios. Em geral, seu tema predominante é entretenimento. Mas entre 9 e o 15 de maio das manifestações, os pesquisadores do Labic notaram uma mudança. Por um lado, num mesmo grupo de 170 mil perfis investigados, o conjunto de apoiadores do governo, responsáveis por 8% das postagens, se retraiu para ocupar 7% do espaço. E o grupo de adolescentes, que vivia lá em sua própria bolha, mudou. Os tuítes ficaram mais longos, começaram a retuitar gente de fora de seus círculos. Em cinco dias se tornaram atores políticos — um grupo maior do que o dos governistas ativos.

A internet é um camaleão. Quando no governo Lula, o PT acreditava com razão ter o domínio do digital por financiar uma extensa rede de sites e blogs que lhe produziam noticiário favorável, deixando sua militância sempre muito ligada. Atiçada. O partido não percebeu, já no governo Dilma, que a comunidade online trocara os sites da web pelo convívio nas mídias sociais. Para acompanhar os protestos pelo impeachment, o caminho já era o Facebook e suas páginas de eventos. Por conta de mudanças de algoritmo, a maior rede social do mundo deixou de ser um ambiente propício à agitação política. Esta migrou para WhatsApp e Twitter. É um espaço que a direita militante dominou e no qual a esquerda se perdeu.

Esta costura entre WhatsApp e Twitter é caótica e ágil perante a web, assim como mais descentralizada do que o Facebook. Sentimentos e intuições podem viralizar muito rápido, a mobilização ocorre em surtos repentinos. No Rio da última eleição, ninguém sabia quem era o ex-juiz tornado candidato Wilson Witzel até duas semanas antes do primeiro turno. Witzel disparou com a velocidade destas redes, surfando num vídeo com declaração de apoio do filho zero um.

Desde a posse de Bolsonaro, Twitter e WhatsApp são praia da sua turma, região de domínio, perante uma oposição à esquerda que ainda não compreendeu como foi atropelada. Só que agora mudou.

O governo foi tomado de surpresa pelo vulto das manifestações. Não só o governo — todo mundo. Se nos tempos de Facebook podíamos ter uma noção de se um ato encheria ou não pelo número de confirmações, o Twitter só é mapeável por pesquisadores com métodos sofisticados e, o WhatsApp, nem isso. Pela leitura do Labic da Ufes, só este grupo, o dos secundaristas, deixou de discutir as últimas séries para falar de ir às ruas nos últimos dias.

A manifestação foi convocada daquele jeito tradicional: pelos partidos de esquerda e centrais sindicais, pelo Lula Livre e contra a reforma da Previdência, contra o fascismo e slogans afins. Se fossem só eles, o Planalto não tinha qualquer motivo para se preocupar. São antigos, falam com o sotaque carregado dos anos 1960 e, fora os poucos convertidos que só conversam entre si faz anos, sua mensagem não ressoa com mais ninguém.

Mas não foi esta esquerda tradicional que deu volume às passeatas. Foi a turma do WhatsApp e do Twitter, os secundaristas são só uma parte. Ao invés de bandeiras estampadas e camisas vermelhas, a roupa do dia e cartazes escritos à mão. A pauta: educação.

Não dava para prever o tamanho e não dá para saber a solidez. As redes polarizam. O governo escolheu manter o jogo da campanha. Pode ter acabado de inventar um polo contrário, uma nova oposição na forma de movimento popular.


Pedro Doria: A quebra da democracia

A instantaneidade da internet, ampliada pelos sistemas de recomendação, abalaram o mercado de ideias

Esta era difícil de imaginar uns meses atrás: Alex Jones, um dos mais rábicos teóricos da conspiração da neodireita on-line americana, deu para trás. “Vivi uma forma de psicose”, explicou, “e passei a acreditar que tudo era uma encenação. Minhas opiniões estavam erradas.” Jones construiu entre Facebook, Twitter e YouTube uma legião de seguidores de seus delírios, que incluíam o envolvimento de Hillary Clinton numa rede de pedofilia, que Barack Obama nascera no Quênia, e que os massacres de crianças em escolas não aconteciam, era tudo trabalho de atores. Sua glória foi entrevistar Donald Trump ao vivo. Olavo de Carvalho chegou a considerá-lo “a melhor fonte de informações sobre a política americana”. Perante um processo no qual está ameaçado a ter de pagar indenização na casa dos milhões, saiu-se com a psicose.

A história de Jones, somada a outros dois casos também desta semana, merece uma reflexão sobre o efeito das redes na democracia.

Uma investigação da Bloomberg revelou que, logo após o massacre da escola secundária de Parkland, na Flórida, um grupo de funcionários do YouTube procurou a chefia. Estava preocupado com o crescimento em audiência de vídeos raivosos como os de Jones. Quanto mais gente os via, mais o sistema de recomendação os recomendava. Bola de neve. Os executivos ouviram a preocupação e mandaram nada fazer. Ocorreu em fevereiro de 2018. Jones terminaria banido do YouTube em julho do mesmo ano, e a preocupação com a qualidade do conteúdo começou a aparecer no discurso oficial do sistema de vídeos do Google.

E calhou de, domingo último, Mark Zuckerberg publicar um longo artigo no qual pede maior regulamentação governamental. Zuck quer regras, preferencialmente uniformes e globais, para temas como propaganda política, privacidade, conteúdo que cause dano — pelo ódio que provoca, por crimes que incita. Ele sabe que o debate já está intenso, na União Europeia e em Washington, a respeito dos monopólios formados pelas redes sociais.

O problema é complexo. As redes sociais desmontaram uma premissa fundamental de todo debate liberal que tem origem no desenho das democracias. Elas abalam, nada menos, do que o argumento que sustenta a liberdade de expressão.


Pedro Doria: A guinada radical do Facebook

Mark Zuckerberg planeja a maior mudança na rede social desde sua fundação

Na Quarta de Cinzas, Mark Zuckerberg surpreendeu a todos com um longuíssimo post no qual anuncia uma mudança radical na estratégia do Facebook para os próximos anos. Talvez a maior mudança desde sua fundação, quando Zuck ainda vivia num dormitório estudantil na Universidade de Harvard. Tendo construído a rede desde então para que fosse aberta, e estimulando o compartilhamento das vidas de todos, ele agora dá uma guinada na direção oposta. “Conforme penso sobre o futuro da internet”, escreveu, “me convenci de que uma plataforma de comunicação focada em privacidade se tornará ainda mais importante do que as atuais, abertas.”

Não será um desafio trivial. Para que a proposta seja levada a sério e se torne factível, o Face também precisará reinventar a maneira como se sustenta financeiramente.

O Facebook não é uma coisa só — é uma holding com três das maiores redes do mundo. Além dele próprio, também Instagram e WhatsApp. E foi baseado nas experiências com estas duas últimas que começou a se desenhar a nova ideia. Do Insta pescou o Stories — em verdade criado por um concorrente, o Snapchat. A ideia de um conteúdo volátil, aquelas populares fotos, divertidas, que se apagam após 24 horas. Do WhatsApp, a ideia de uma rede voltada para comunicação um a um, quando muito com grupos pequenos, de no máximo 250 pessoas, e na qual cada mensagem é encriptada no celular de origem. Nem os próprios donos do Zap conseguem saber o que foi escrito. Privacidade mais segura não há.

O novo Facebook imaginado por Zuckerberg continuará tendo uma parte pública, mas será menor. O grosso do conteúdo se apagará após algum tempo. Assim, os vacilos da juventude não voltarão para atormentar ninguém no futuro. A ênfase estará na comunicação pessoa a pessoa ou, no máximo, grupos pequenos. As três plataformas se comunicarão. Desta forma, ninguém precisará mais tornar público seu celular — do perfil no Face ou Insta será possível enviar uma mensagem para o WhatsApp de qualquer um. E a encriptação será forte, de forma que aquilo que cada um escreve ou publica não será visto por mais ninguém.

Zuckerberg está tentando resolver alguns problemas de uma só tacada. Um é o monstro que criou sem querer: uma máquina de manipulação política que afeta eleições. Outro, que nasce do primeiro, é a ameaça de regulação que parte dos governos de Europa e EUA. Mas há também a insatisfação dos próprios usuários, que se sentem cada vez mais expostos. As redes se tornaram um ambiente desagradável, de conflitos constantes e ataques. Como um vício do qual não conseguimos nos livrar.

Há, porém, duas questões para as quais ainda não há resposta. Por exemplo, o dinheiro. O Facebook vive de explorar aquilo que postamos publicamente. O sistema nos conhece, em alguns pontos, mais que nossos psicanalistas. E transforma isto em informação que vendedores usam para distribuir com foco sua publicidade. Numa rede mais privada, isto deixa de existir. O WhatsApp não dá dinheiro.

A outra questão, bem, a outra questão é o caso brasileiro. Ele exibiu uma fragilidade do WhatsApp. Embora pensado para comunicação um a um, foi transformado por aqui numa ferramenta de distribuição de informação em massa. E, aí, a ultraprivacidade opera contra. Quem distribui informação falsa para manipular eleições ou cometer crimes jamais é encontrado. O crime perfeito.

Por enquanto, os executivos da companhia acreditam que conseguirão reverter este processo e impedir o que consideram mau uso da plataforma. Se não conseguirem, é com o futuro de nações inteiras que estão brincando de vamos errando até acertar.


Pedro Doria: O fascismo e o digital

Grandes transições econômicas deixam todos numa grande insegurança

Deixe que uma discussão transcorra por tempo o bastante na internet, diz a Lei de Godwin, e alguém por certo será comparado a um nazista. Mais recentemente, a política do mundo parece ter embarcado nesta – tem muita gente vendo fascistas por todo lado. Há muito de paranoia, nisto. Há também uma intolerância da esquerda com a direita. Por tanto tempo se chamou o centro de direita que quando aquela, a verdadeira, dá suas caras muita gente a recebe com espanto. Mas há também, entre os que veem um mundo assombrado por fascistas, alguma razão.

Esta discussão tem tudo a ver com o ódio nas redes, assim como tem com a reforma da Previdência.

O fascista original é Benito Mussolini, convidado pelo rei italiano a formar gabinete como primeiro-ministro em 1922, e morto pela ira do povo em 45. História é pop e, em geral, o conhecimento que temos de história é aquele dos clipes curtos e uns marcos fundamentais. Fascismo, portanto, é aquele governo totalitário da direita de durante a Segunda Guerra, aquela mesma que fez o Holocausto.

Mas o fascismo original não nasceu totalitário, tampouco surgiu do nada. E, se a afirmação parece polêmica, ela é de Palmiro Togliatti, sucessor de Antonio Gramsci como secretário-geral do Partido Comunista Italiano, que comandou entre 1926 e 1964. O fascismo nasceu como improviso em cima de uma situação atípica.

A Itália imediatamente após a Primeira Guerra vivia uma situação econômica muito complexa. O conflito empobreceu a todos, custou a vida de 7% da população masculina e, não bastasse, a transição de uma economia agrícola para industrial estava a pleno vapor.

Estas grandes transições econômicas deixam a todo mundo numa grande insegurança. Profissões estão desaparecendo. Gente que achou que trabalharia no mesmo ramo de pais e avós, de repente, vê aquela garantia desaparecer. Não há ideia do que será o futuro, sobram insegurança e incerteza. É um cenário tão difícil que o liberalismo não tem respostas imediatas para dar. A democracia liberal é mais frágil quando o mundo está em mudança rápida. Só os radicais têm respostas claras. No biênio imediatamente anterior à repentina ascensão de Mussolini, parecia que os comunistas fariam na Itália sua segunda revolução. Era uma greve após a outra, quase deu. Naquele cenário pós-guerra, com inúmeros veteranos desempregados na rua, Mussolini os reuniu, vestiu-os com camisas pretas, e saiu por ali impondo ordem na base do murro. Morreu muita gente nos embates entre fascistas e sindicalistas.

E é isto que temos em comum com aquele tempo. Cá estamos na transição da economia industrial para a digital. Há muita gente que planejou um futuro e viu sua indústria desmoronar. Vai acontecer com mais pessoas – os sociólogos os vêm chamando de precariado. Como nos anos 1920, a democracia liberal não tem remédios rápidos ou mesmo claros. Não bastasse, mudanças demográficas e indústrias várias em crise fazem com que a previdência em todo o mundo tenha de ser reinventada.

Mas não temos um bando de veteranos de guerra desempregados e treinados para a batalha nas ruas. Tampouco temos sindicalistas que forçam greves para agravar a crise e forçar uma revolução. O fascismo não veio sozinho – com ele veio, também, o comunismo. Radicais e totalitários, ambos. Soluções demagógicas, com promessas fartas de utopias inalcançáveis. Desta feita, não parece que teremos nem um, nem outro. Talvez outras coisas.

Mas isto não muda um fato: nas mudanças econômicas profundas, a democracia liberal entra em crise e demagogos e radicais fazem a festa. O digital virou política, é causa e meio, e com ele não será diferente.


Pedro Doria: O problema do Facebook começa na Alemanha

Autarquia que investiga cartéis quer proibir rede social de colher dados fora de sua propriedade

Há um movimento se iniciando na Alemanha que pode se tornar um problema gigantesco para o Facebook. O Bundeskartellamt, autarquia nacional responsável pela investigação de cartéis, determinou que a rede social deve mudar a maneira como lida com as informações pessoais de seus usuários. Mudar a um ponto tal que pode inviabilizar o negócio de publicidade da rede social.

Nada mudará tão cedo. O que está ocorrendo, nos EUA e na Europa, é uma dança de cadeiras. Políticos e burocratas estão confluindo na direção do Facebook enquanto se perguntam: precisarão regular? E, caso precisem, qual é a regulação adequada? Ao mesmo tempo, aguardam acenos por parte do Facebook, gestos que demonstrem mudanças de postura que poderiam evitar a necessidade de intervenção governamental.

A Alemanha é, de longe, o país europeu mais obcecado com dar a seus cidadãos garantias de privacidade. Não é à toa. Passou seis décadas do século passado entre a Gestapo nazista e a Stasi comunista. Polícias secretas que, em governos totalitários, se especializavam em investigar a vida dos cidadãos comuns em busca de indícios de traição. Os alemães criaram verdadeiro horror a qualquer tipo de instituição, pública ou privada, que saiba demais sobre suas vidas. Estão sempre preparados para o pior.

A decisão do Bundeskartellamt se divide em duas, paralelas e complementares. A primeira é que dados do Facebook, do Instagram e do WhatsApp não podem ser cruzados jamais. O curtir que alguém dá no Insta não pode se tornar um dado que informe ao Face que aquela usuária anda procurando saias. Hoje, a empresa cruza estes dados a toda hora, de forma que nossos amigos de uma rede são recomendados na outra e os anúncios que recebemos são alimentados com informação a respeito de nossas ações em ambas.

Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, já anunciou que o sistema de mensagens do Instagram, o Messenger e o WhatsApp vão convergir até o final do ano. Em teoria, será possível mandar um recado de uma plataforma para alguém que está na outra e, assim, também o WhatsApp poderá informar o conjunto a respeito de nosso comportamento.

A segunda decisão periga ter ainda maior impacto: o Facebook não poderá colher dados fora de suas propriedades. Cada site que permite login com a conta do Face ou que apresenta em suas páginas um botão curtir é acompanhada pela empresa. A rede social não está sozinha nisto — o Google também acompanha o que fazemos pela internet mesmo quando estamos longe de suas propriedades. Pois, em valendo a determinação da autarquia alemã, dentro da Alemanha o Facebook estará proibido de usar estes dados.

Não é final. O Facebook poderá recorrer e seus advogados vão fazê-lo. É bastante provável, porém, que o rigor alemão em relação à privacidade prevaleça. Ou seja, para compreender nossos gostos, a rede social só poderá usar os sinais que distribuímos quando dentro dela. Seria uma máquina publicitária que perde muito de seu atrativo atual.

Valerá só para a Alemanha.

De cara, este é um problema técnico. Não é simples adaptar o sistema para agir de uma forma num país e, de outra, noutros países. Mas é possível. Daí, se torna um problema de ordem prática. Se cada país estabelecer suas regras e o Facebook — ou qualquer outra companhia digital — se vir obrigada a fazer pequenas grandes adaptações locais, a gerência do processo se torna alucinada.

O problema se tornará gigante se, animada com o exemplo, a União Europeia decidir instituir a mesma regra em todo seu território. E, daí, se meio mundo a seguir.


Pedro Doria: O bolsonarismo tuiteiro

Numa democracia, discordar do presidente é também um exercício patriótico

Ontem, pouco mais de meia hora após o deputado federal Jean Wyllys anunciar sua renúncia ao cargo, o presidente Jair Bolsonaro publicou um tuíte cifrado: “Grande dia!” Quase que imediatamente depois, o vereador carioca Carlos Bolsonaro, conhecido por operar as mídias sociais do pai durante a campanha, publicava outro em sua conta: “Vá com Deus e seja feliz!” Ambos usaram o app para iPhone na hora de publicar suas mensagens. Algumas horas depois, o presidente usou a mesma frase de Carlos dirigindo-se ao também vereador carioca David Miranda, que assumirá a vaga de Wyllys na Câmara dos Deputados: “Seja feliz!” Bolsonaro – o pai – negou que seu comentário fosse referência ao exílio autoimposto de Wyllys. Estava, disse, celebrando a participação em Davos.

Talvez. Mas o clima no Twitter indubitavelmente mudou após os Bolsonaro chegarem ao poder. É sua plataforma preferencial para divulgar mensagens oficiais. É, também, o ambiente no qual lutam como guerrilha.

Em seus anos no Planalto, o PT montou uma estrutura de sites e blogs tocados por jornalistas que haviam deixado redações que, junto a alguns amadores, se tornaram uma imprensa oficial paralela. Endossavam os pontos de vista do governo, atacavam a imprensa profissional, e punham na roda teses políticas para consumo da militância. A máquina petista era generosamente financiada com patrocínios e publicidade das estatais.

Os argumentos de defesa para cada escândalo que aparecia eram distribuídos por estes sites, abraçados pelos militantes e levados às redes sociais. Mas, desde o início, eles adotaram uma postura de mimetizar a imprensa. Embora fossem em essência uma máquina de propaganda do grupo no poder, esforçavam-se por parecer jornalismo para que o conteúdo que produzissem fosse distribuído como informação.

A estratégia digital bolsonarista é muito diferente. Busca a guerra de guerrilha nas redes sociais com alguns objetivos distintos. Um é municiar de argumentos sua própria militância quando precisa lidar com críticas. Outro é manter esta mesma militância em constante estado de alerta.

Um terceiro – e importante – é agir sobre as conversas, interromper o diálogo. Qualquer um que critique o presidente é imediatamente inundado de respostas, em geral ataques duros e com poucas palavras até para os padrões do Twitter. E a enchente de respostas torna impossível filtrar no meio quais os comentários interessantes, quem de fato buscava o diálogo. Ataques sistematizados assim, nos quais a turba é orientada a apontar para uma pessoa e bombardear, correspondem a uma das formas modernas de censura. Cala-se não proibindo a fala, mas fazendo com que ela desapareça no ruído.

A virulência é parte do método. A turba é agressiva. Ofende. Distribui acusações. Busca intimidar.

A mais importante conta da plataforma bolsonarista de comunicação no Twitter é a @Isentoes, que ostenta um retrato pouco generoso do ex-governador paulista Geraldo Alckmin como ícone. De isentão, o responsável anônimo não tem nada. Ele fixa o alvo e sai para o ataque continuado. Ontem, por exemplo, seus alvos simultâneos eram Jean Wyllys, David Miranda e o marido do novo deputado, o jornalista Glenn Greenwald. É nesta conta que são distribuídos documentos de ataque aos inimigos do poder.

É um jeito de fazer política, claro. Mas é um compreender o exercício do poder não como a arte do convencimento e sim como um rolo compressor que esmaga quem discorda. Quem lê os bolsonaristas no Twitter rapidamente percebe uma de suas frases mais comuns: “torcendo contra o Brasil”. Não entenderam bem que, numa democracia, discordar do presidente é também um exercício patriótico.


Pedro Doria: O governo sabe onde você está

Houve um tempo em que nos era permitido brincar ingenuamente com os memes e testes das redes sociais. Não mais

A onda da semana nas redes é o desafio dos dez anos: publicar, simultaneamente, uma foto da pessoa hoje e em 2009. Houve o tempo em que nos seria permitido brincar com todos os memes e testes das redes sociais ingenuamente. Mas não depois de a Cambridge Analytica usar testes inocentes para mapear o perfil psicológico de eleitores e usar esses resultados para manipular eleições. Desde então, para cada jogo da internet é sempre obrigatório que nos perguntemos: a quem beneficiaria?

Reconhecimento facial funciona a partir de uma forma de inteligência artificial chamada aprendizado de máquina. Jogue muitos dados relacionados para um algoritmo, e o software aprende. Se alguém quisesse, por exemplo, desenvolver um programa para, recebendo retratos de uma pessoa jovem, reconhecê-la mais velha, precisaria justamente de uma grande coleção de fotos de pessoas jovens e, digamos, dez anos depois. Consultora da indústria digital, é esta a bola que Kate O’Neill levantou, terça-feira, na Wired.

O’Neill não afirma que alguém esteja fazendo essa coleção com o objetivo de sofisticar um algoritmo de envelhecimento e reconhecimento facial. Aliás, não há qualquer indício de que alguma companhia do Vale esteja trabalhando nisso. É uma questão de princípios: na internet dos dias de hoje, é bom sempre desconfiar. E calhou que foi justamente na mesma terça-feira que 90 entidades civis escreveram, nos EUA, uma carta aberta a Amazon, Google e Microsoft pedindo que não vendam ao governo tecnologias de reconhecimento facial.

Quantas câmeras existem em nossas cidades? Câmeras de acompanhamento de trânsito, câmeras de segurança em lojas e prédios residenciais, câmeras registrando em vídeo ao vivo o caminhar de milhões de pessoas diariamente. Reconhecimento facial está ficando rápido e de uma precisão incrível. Já é usado ao vivo em situações pontuais — concertos, grandes eventos esportivos. Falta muito pouco para que possa ser usado consistentemente, em tempo real, a toda hora.

E aí é preciso um momento de pausa.

Desaparece uma criança, joga-se o retrato no sistema da polícia, e de presto todas as câmeras da cidade irão procurá-la. Alguém é suspeito de um furto, a polícia pede um mandado ao juiz e vai ao sistema buscar onde que a pessoa estava a tal hora de tal dia.

Não importa o motivo: o Estado teria o poder de acompanhar cada cidadão, qualquer cidadão, a toda hora. Bastaria a assinatura de um juiz de primeira instância ou a decisão espontânea de um burocrata de terceiro escalão com acesso ao sistema.

Tem nome: é um Estado de vigilância.

O maior problema é a Amazon, capaz de reconhecimento facial tanto quanto as outras duas, mas que negocia abertamente com o governo americano. E se parece coisa de ficção científica ou distante no estrangeiro, em julho o SPC lançou um serviço que permite aos lojistas tirarem um retrato de quem pede crédito para compará-lo a um banco de dados que confirma a identidade do sujeito. O banco de dados nasceu com os rostos registrados de 30 milhões de brasileiros.

Organizar um Estado não é coisa simples. Há o eterno conflito entre direitos do indivíduo e da comunidade. O problema do Estado é que, ao lhe conceder imenso poder sobre o todo, é preciso também impor-lhe freios. Tecnologias de vigilância que vêm fácil demais e podem ser exploradas sem regras claras serão abusadas. Porque o abuso é da natureza de quem tem poder. Bicho complicado este, a democracia.

As tecnologias avançam em um ritmo muito mais rápido do que nossas discussões sobre ela. E aqui no Brasil, então, com um governo que gosta de um controle, imagina se ouvem falar.