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Pedro Doria: Menos Mises, mais Mill

O 2020 foi tão intenso, gera tanta expectativa para 2021, que esquecemos que começa uma década

Aquele 2020 foi tão intenso, gera tanta expectativa para este 2021 e mal esquecemos que hoje não é só um ano que começa. É, também, uma década. Os anos 20 do século passado foram os da esperança, da celebração de vida pós-Primeira Guerra e gripe espanhola, enquanto a democracia liberal desmoronava no entorno perante fascistas e bolcheviques. Estes nossos anos 20 não precisam ser assim. Mas, para que seja um tempo de esperança, precisamos compreender que o Brasil está muito atrasado para chegar ao século XXI. E isto pode representar uma crise muito séria.

Na década de 10, apostamos numa imagem de país que data dos anos 1950. Apostamos em petróleo, em estaleiros, numa indústria hidrelétrica que ignora a mata e, claro, na agroindústria. Nada contra. Mas deveríamos ter colocado mais fichas na indústria de software, no conhecimento genético, energia limpa, e incrementado em muitos níveis a educação para termos brasileirinhos bem formados em matemática. No final deste século, trocamos aquela visão por outra – a dos ditadores dos anos 1960. China, Índia e Rússia mergulharam no século XXI. Pois é.

O problema é o seguinte: nesta década que entra algumas tecnologias vão se encontrar. São 5G, a inteligência artificial que chamamos “aprendizado de máquina” e robótica. O resultado será a completa automação do mundo físico. O resultado será também uma imensa onda de desemprego.

Se o Brasil for apanhado neste momento sem uma indústria de século XXI e com o desemprego que virá da automação, estaremos no pior dos mundos. E ainda temos dois anos do mais inepto dos governos pela frente. Ou seja: nas eleições de 2022, não podemos errar.

A um ponto da história, ocorreu este feliz encontro entre estas duas ideias – a democracia e o liberalismo. A democracia trazia consigo o sufrágio, o voto popular. O liberalismo, a ideia de que não pode haver opressão contra cada pessoa. Todos somos iguais em nossos direitos e deveres. E, assim, construímos um Estado de leis, atribuímos a todos direitos humanos, garantimos que o sistema pode ser democrático, mas a maioria nunca tem o poder de oprimir a minoria. Que ninguém tem o poder absoluto – os poderes são divididos, distribuídos. A democracia temperada pelo liberalismo é um achado. Que precisamos preservar.

Liberais-democratas sempre demonstraram a capacidade de se reinventar perante a realidade que encontravam. É a velha sabedoria do Eclesiastes: há um tempo para plantar e outro para colher. Ou, como diria John Maynard Keynes, há o tempo de o Estado entrar, e o tempo de ele sair. Keynes, um liberal.

Em meados do século XIX, perante o estrago social e a mancha de miséria trazidos pela revolução industrial em Londres, Karl Marx imaginou que, perante a incapacidade de se reformar dos liberais, só a guerra entre classes promoveria uma sociedade na qual todos podem de fato ser iguais em seus direitos.

Enquanto isso, um seu vizinho na mesma cidade, John Stuart Mill, percebia que o Estado precisava entrar para garantir que todos tivessem a mesma base. Percebeu que liberdade só existiria se dignidade fosse garantida a todos. Estas democracias com as quais nos acostumamos no pós-guerra são todas fruto do pensamento de Mill.

Nas últimas décadas, liberais brasileiros se abraçaram demais com a escola austríaca de Luwig von Mises. Pois bem, precisaremos de um grande investimento do Estado em educação a partir de 1.º de janeiro de 2023. De regras muito ágeis, sem burocracia, para a nova indústria. E de políticas que mantenham o povo fora da miséria mesmo com o tranco do desemprego. Precisaremos de um Estado com muito foco. E, para termos este foco, a conversa tem de começar já.

Quem sabe até Caetano Veloso não possa chegar a 2030 se encontrando com seu lado liberalóide.


Pedro Doria: O dia em que o Google quase parou a Terra

Para alguns, o Google estar fora do ar é pior do que mero inconveniente

Durou por volta de uma hora a queda completa de serviços do Google — Gmail, Calendário, Drive, Docs, Meet, Cloud, Photos, YouTube. O Google estar down, fora do ar, é daquelas coisas que todo mundo percebe na hora. Os e-mails cessam de chegar, o vídeo não carrega, o compromisso na agenda se torna inacessível. Para alguns, é pior do que mero inconveniente.

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Aqui no Brasil estamos ainda engatinhando nas casas inteligentes, mas, nos EUA, elas são mais e mais comuns. Termostatos da Nest, a marca para estes acessórios do Google, também se tornaram inacessíveis. O mesmo vale para fechaduras e câmeras de segurança. Assim como para as caixas de som inteligentes.

Sempre tivemos situações do tipo — ficar sem água, sem luz, sem gás. Mas quando as utilidades públicas são oferta de uma empresa global o impacto é, igualmente, global. Conforme entramos numa década que será marcada pelo domínio do 5G e da internet das coisas, na qual cada instância de nossas vidas será automatizada, esta concentração dos serviços em poucas empresas deve ser motivo de preocupação.

Se a concentração se mantém, uma interrupção de serviço destas, em dez anos, não afetará só YouTube, as aulas das crianças no Meet e a agenda. Vai fazer o automóvel parar pois não saberá para onde ir — depende dos mapas. Poderá trancar pessoas fora de casa. Não reconhecerá o rosto doutros tantos para atividades essenciais.

Não se trata de criticar o Google — poucas empresas de tecnologia oferecem soluções tão complexas e incrivelmente estáveis como essa turma de Mountain View. São ousados. Quando outros no Vale do Silício perderam a criatividade e se burocratizaram, eles continuam forçando os limites da tecnologia. Da inteligência artificial. Constroem mesmo o futuro.

Assim como constituem um monopólio e quando acontece de seu serviço cair, bilhões de pessoas são atingidas. Quando os criadores da internet a desenharam inicialmente como uma rede descentralizada, não o fizeram à toa. Queriam algo confiável. Se um pedaço da rede cai, o resto continua de pé. Um dos responsáveis pelo protocolo que deu este design elegante à rede é, hoje, alto funcionário do Google. Vint Cerf.

Cerf e os outros pioneiros estavam certos em sua visão. Os serviços digitais precisam ser descentralizados como a internet foi imaginada originalmente. Os monopólios forçam sua centralização. Aí, quando cai — e qualquer serviço cai, por melhor que seja — quase todo mundo é afetado. Da próxima vez poderá ser muito mais grave.


Pedro Doria: Facebook terá caminho mais difícil entre as gigantes de tecnologia

A década de 20 será a década do antitruste para as empresas de tecnologia

A década de 20 será a década do antitruste para as gigantes da tecnologia. Delas, três enfrentarão processos mais difíceis - GoogleFacebook e Amazon. O primeiro contra o Google já saiu, agora é a vez do Facebook. A Amazon ainda aguarda a sua vez. E, das três, nenhuma empresa enfrentará um caminho tão difícil tanto politicamente quanto nos tribunais quanto o Face.

Politicamente, nos EUA, porque por motivos diferentes tanto o Partido Republicano quanto o Democrata olham para a gigante social com profunda desconfiança. Os republicanos têm convicção de que entre algoritmos e decisões de executivos, há censura de vozes conservadoras correndo solta. Os democratas veem algo completamente diferente: uma empresa que perdeu o controle de sua tecnologia ao mesmo tempo que substitui responsabilidade cívica por lucro. Que assim permitiu que a base de sustentação da democracia fosse sequestrada e ameaçada por manipulação do debate público e da informação.

Ambos podem ler de formas diferentes o problema, mas compartilham o fato de não confiarem na companhia.

Nos tribunais, a vida do Facebook não será mais fácil. A empresa é acusada de comprar WhatsApp e Instagram de forma agressiva para impedir que houvesse competição. Para bloquear o livre mercado. Será difícil argumentar o contrário. Afinal, há também a história da rede social que o Face não comprou — é a Snapchat. Quando os acionistas da startup se recusaram a assinar o acordo de venda, a gigante frustrada respondeu copiando os principais recursos e os aplicando no Insta. É o que chamamos de Stories.

O resultado concreto é que o que a Snap trazia de inovador foi copiado sem pudores pela gigante que tentou comprá-la. A rede nova foi abatida quando decolava em seu voo.

Ali, o Facebook mandou um recado para qualquer startup que ameaçasse seu mercado. No dia que uma proposta de compra viesse, melhor aceitar. Ou, então, sua criatividade seria copiada e suas chances de estourar, esmagadas.

A FTC, agência reguladora que garante que o mercado americano seja livre, não está pedindo pouco. Quer que o Facebook seja desmembrado. Que WhatsApp e Instagram voltem a ser empresas independentes. Para isso, precisará provar no tribunal que o Face abusa de seu poder de monopólio. Argumento, tem.


Pedro Doria: Duas ideias novas pela democracia

Em essência, elas preveem que os algoritmos das grandes plataformas digitais precisam ser mais transparentes

Esta semana, duas propostas diferentes para como lidar com a desinformação on-line foram postas na mesa. São inovadoras, se implementadas mudarão de forma radical como as grandes plataformas digitais funcionam. Ambas têm por objetivo defender as democracias dos movimentos populistas e autoritários que as capturaram subvertendo as redes sociais. Uma é um projeto de lei da União Europeia. Outra, a ideia de um trio de acadêmicos puxados pelo cientista político Francis Fukuyama. E ambas podem funcionar juntas, se completam.

Os detalhes da nova legislação europeia iam ser divulgados na terça-feira, durante uma teleconferência em que as grandes companhias do Vale do Silício estariam representadas. A conversa foi adiada para a quarta que vem. De qualquer forma, o DSA — ou Ato dos Serviços Digitais na sigla em inglês — será apresentado também na semana que vem ao Parlamento Europeu. A partir daí, ao longo de 2021, os países membros da UE deverão ratificar o texto um por um. Então vira lei no mercado comum.

Em essência, os princípios são simples. Quando o Facebook apresentar ao usuário um post, deverá ter um botãozinho que explique por que aquele e não outro foi selecionado. Vale também para publicidade. E toda propaganda precisa ter explícito quem pagou por sua veiculação.

Em essência, os algoritmos precisam ser transparentes. É fundamental que as pessoas compreendam: as redes sociais, os sites de vídeo, os mecanismos de busca estão escolhendo o que nos apresentam. Pois precisarão explicar por quê. Vale para as grandes: Facebook, Google, Amazon — as líderes de mercado.

A nova legislação também exigirá que as companhias compartilhem os dados com reguladores em determinadas situações. Assim como pode, noutras, exigir que dados sejam compartilhados com concorrentes para não criar vantagens indevidas.

As gigantes digitais apresentam um dilema novo no debate sobre monopólios. Um dos problemas é que por um fenômeno chamado Efeito de Rede, no digital empresas tendem ao monopólio. Quanto mais gente usa uma rede social, mais aquela rede é útil. Quanto mais vídeos há num site, melhor ele é. Mas quando a conversa sobre política se concentra nestes ambientes e o que chega a nós é escolhido pelos algoritmos escritos pelas gigantes do Vale, elas terminam com poder demasiado.

Assim como, descobrimos, suas plataformas podem ser sequestradas por populistas que burlam os sistemas.

A proposta da União Europeia é tornar obrigatório explicar como os algoritmos escolhem a informação que chega a nós. A de Francis Fukuyama e do cientista da computação Ashish Goel, ambos de Stanford, que se reuniram com o economista especializado em antitruste Barak Richman, de Duke, vai em paralelo: middleware.

Ou, ao invés de as gigantes fornecerem o algoritmo, vamos tercerizá-los.

Continuamos usando Facebook, Twitter, YouTube. Mas poderemos escolher outras empresas que fornecem algoritmos de seleção do conteúdo que preferimos. Estes filtros escritos por terceiros podem literalmente escolher o que aparece. Ou serviriam para etiquetar o que é informação falsa, controversa, que falta contexto.

De acordo com a ideia da proposta do trio puxado por Fukuyama, em um artigo publicado na revista Foreign Affairs, estes terceiros seriam obrigados a manter total transparência a respeito de seus critérios editoriais e técnicos.

As duas propostas, a europeia e a dos professores, podem funcionar separadamente ou em conjunto. Em comum têm o fato de serem originais. Além de atentarem para o problema imenso que temos em garantir a proteção da democracia com um ambiente de informação no qual as pessoas voltem a ter voz a respeito do que recebem.


Pedro Doria: O golpe de Trump e as redes

Nesta semana, um presidente americano tentou impedir que votos fossem contados. Isto tem nome. É golpe de Estado

É inevitável, nesta semana eleitoral americana, que nos debrucemos sobre a constatação de que mudou de vez a maneira como se portam as plataformas de redes sociais. Facebook, Instagram e Twitter agiram ativamente para conter a circulação e alertar os usuários a respeito das tentativas de inflamar a população e dos ataques frontais aos ritos democráticos pelo presidente americano, Donald Trump. A ação não surpreende — já haviam anunciado que fariam isso. A decisão é responsável. É também polêmica. Por um motivo muito simples: é uma decisão editorial. Uma decisão de editor.

A questão fundamental aqui é simples: o que é uma rede social? Melhor começar pelo que não é. Parece, mas não é a praça pública. Embora seja um ambiente no qual muitos de nós nos reunimos para conversar sobre o que é do interesse da sociedade ou mesmo nos informarmos, embora elas até pareçam com uma versão digital da praça pública, elas não são um bem coletivo. O problema não é nem que tenham dono, que sejam privadas. O problema é que seu controle é planetariamente concentrado nas mãos de poucos. O ideal é que tivéssemos muitas redes sociais e nenhuma fosse dominante, que todas fossem de donos distintos e que portanto seu impacto total fosse distribuído. Que a decisão de um destes donos não tivesse capacidade de estragos imensos na sociedade. Não é assim, infelizmente.

A praça pública é este ambiente coletivo que criamos, enquanto sociedade, no qual discutimos sobre o que é de nosso interesse conjunto. É onde, juntos, nos convencemos uns aos outros em diálogo constante para que possamos ir às urnas tirar conclusões. Mas a realidade é que este ambiente privado e com pouquíssimos donos, as redes sociais, é onde conversamos hoje sobre nossa política. Esta propriedade concentrada está diretamente ligada à ascensão de populistas autoritários e, em grande parte, isto ocorre porque o ambiente foi construído com inúmeros vícios. Um deles são os algoritmos que manipulam nossos cérebros para nos prender. Ficamos horas e horas perante estas telas. Outro é que estes mesmos algoritmos são susceptíveis a distribuir mais o que nos incita uns contra os outros. A reforçar tribalismo ao invés de união.

Muitos ativistas defendem que as redes não deveriam interferir manualmente para que notícias falsas circulem, para que líderes populistas possam atacar suas democracias. Afinal, se interferem nisto, podem interferir em qualquer coisa. É verdade. Podem mesmo. Mas interferência já existe. Edição já existe. É a dos algoritmos. A entrada ‘manual’, a decisão de entrar num post no qual Donald Trump incita sua militância a considerar fraude eleitoral a contagem de votos numa democracia não é apenas correta. É a medida responsável a se tomar.

Só que é uma medida que também redefine estas redes sociais. Elas não são meras plataformas, ambientes neutros nos quais conversas ocorrem. São veículos que definem o que pode e o que não pode ser dito nelas. Elas editam, como jornais e revistas. Assim como jornais e revistas, quando uma autoridade mente, elas informam a seus leitores — não usuários, leitores — que aquilo dito é mentira. E as redes como são muito poucas, sua propriedade é concentrada e têm escala planetária, oferecem às democracias um problema novo, muito grande e barbaramente complexo.

Isto tudo posto, é preciso reconhecer que houve avanço. Porque é importante não ter ilusão, esta semana o inimaginável ocorreu. Um presidente americano tentou impedir que votos fossem contados. Isto tem nome. É golpe de Estado. Não chegou perto de ter chances de dar certo. Em grande parte, porque as redes sociais atuaram como editoras. Corretamente. Que atuem com a mesma responsabilidade por aqui.


Pedro Doria: Hora de voltar às garagens

A atuação das gigantes do Vale é global e engole todas as democracias

O primeiro processo de antitruste do governo americano contra o Vale do Silício foi aberto. É esperado há uns três anos. Nasceu. A empresa escolhida foi o Google — mas não todo o Google. Não entrou o sistema operacional Android. Não entrou o YouTube. Não entraram os mapas. Tampouco a ampla publicidade digital. Apenas busca. E não toda busca. Só busca de texto e suas partes — a busca propriamente dita, a propaganda que a acompanha e os serviços que vêm junto. Buscas de imagem ou vídeo ficaram de fora.

Foi conservador o Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

Ainda assim não é pouco — só começou, há muito preparado, mais virá. O último processo contra um monopólio deste vulto ocorreu há vinte anos. Foi aberto em maio de 1998 e encerrado, com um acordo entre companhia e governo, em novembro de 2001. Quando começou, a internet comercial havia acabado de nascer e a Microsoft usara todo seu poder sobre o Windows para coibir os espaços do browser Netscape. Queria dominar a web e fez uso das armas que tinha para eliminar o concorrente. Ninguém tinha aquele tipo de força. Aí a batalha legal sugou tanto a energia dos executivos da empresa que, ao final daqueles três anos e meio o bonde havia passado, uma explosão criativa ocorrera no Vale e novidades como o Google surgiram. A Microsoft não foi dividida em duas. Seu poder de dominar a internet, porém, desapareceu. Ao fim, era outra empresa.

Foi assim nos anos 1980, quando a batalha contra o monopólio da AT&T nas telecomunicações levou realmente à divisão da empresa. Da fragmentação daquele mercado nasceram possibilidades várias — entre elas, a internet comercial. Ainda antes, nos anos 1970, foi com a IBM e seu monopólio sobre a computação. Como no caso da Microsoft, a atenção dos executivos foi drenada no combate legal ao governo. E enquanto estavam distraídos brotaram empresas como Apple e, ora, a própria Microsoft com a indústria dos computadores pessoais.

A história recente da tecnologia diz que estes monopólios tendem a se formar, que se tornam anticompetitivos, e que faz bem não só ao consumidor, mas à própria diversidade do mercado, a boa aplicação da lei antitruste. Monopólios sufocam novas ideias. E, neste momento, as conversas do mundo estão concentradas. Nos sistemas que operam nossos celulares, por duas companhias. Nas redes, quase que por uma só. No comércio, também por uma. E nas buscas também.

A atuação destas gigantes do Vale é global, engole todas as democracias. Ameaça as democracias. O Google não quer ameaçar. O Facebook não quer ameaçar. Nenhuma delas o deseja. Seus melhores cérebros estão concentrados no problema. Mas não conseguem resolvê-lo. Porque o problema está no modelo de negócios que depende de sugar a total atenção, pela maior quantidade possível de tempo, e explorar os dados produzidos por cada um de nós para vender publicidade.

Nunca foi tão urgente a aplicação deste conceito tão essencialmente liberal, tão essencialmente pró-mercado, tão fundamentalmente democrático que é o antitruste. E embora estas empresas atuem globalmente, só o governo americano pode agir. Porque num mundo que em verdade já se globalizou, o limite de nossas leis ainda é nacional e aquelas são empresas americanas. O populismo nacionalista e extremista, que manipula justamente as fraquezas criadas no rastro das criações maravilhosas destes gênios do Vale, gostaria que fosse diferente.

Mas não é. Saudades de Steve Jobs. Saudades do Vale do Silício criativo. Ficou pesado, burocratizado. Este sistema de liberdade é capaz de fazer frente ao autoritarismo chinês em criatividade. Precisa só permitir às garagens que voltem a brotar férteis.


Pedro Doria: A política do ódio

A verdade é que ter voz ativa no debate público no mundo de hoje é estar exposto a cancelamentos corriqueiros

Se fosse na vida real, o nome seria linchamento, mas como é nas redes sociais, chamamos cancelamento

Quem acha que o ataque contra Thammy Gretchen, por conta da publicidade de Dia dos Pais da Natura, e aquele feito contra a professora Lilia Schwarcz, por sua leitura do filme de Beyoncé, são coisas distintas está se enganando. Claro, do ponto de vista ideológico, vêm de extremos opostos. O primeiro vem de uma direita transfóbica e, o segundo, da militância negra habitualmente à esquerda. Mas a ferramenta é exatamente a mesma: a massa contra uma pessoa. Se fosse na vida real, o nome seria linchamento. Como é nas redes sociais, chamamos cancelamento.

Quando o cancelamento vem da esquerda, há quem argumente que é uma reação social normal contra a opressão. Que historicamente quem é oprimido, uma hora, se ergue e responde. De fato. Desde John Locke consideramos que é um direito reagir à opressão. Só há um detalhe que não é irrelevante. A Revolução Francesa foi contra a Coroa. A Russa, contra o Império. Anarquistas, grevistas, os estudantes da França em 1968 ou os da China em 1989, todos se ergueram contra governos, contra indústrias — não contra indivíduos.

Se fosse na vida real e uma multidão avançasse contra uma pessoa, chamaríamos de covardia. Quando a direita faz — foi o caso de Thammy — é a lei do mais forte contra o mais fraco. Quando a esquerda faz, alguns chamam de justiça. Os exemplos desta semana são exemplos, toda semana há exemplos novos. Porque o que ocorre é sempre o mesmo: um bate, depois o segundo, aí vem a avalanche. Às vezes é provocado, noutras espontâneo.

Quem está tomando a surra aprende lá pela segunda ou terceira vez o truque para lidar quando se é cancelado. É sair da rede. Em geral, uma semana basta. Aí reaparece como quem não quer nada e todo mundo já esqueceu. Recomenda-se não ler as mensagens mais antigas.

Há truque também quando ser cancelado faz parte da rotina. Cada rede tem seus filtros. Um dos jeitos é sair bloqueando pessoas a torto e direito. Outro é emudecer — a pessoa não é bloqueada, pode ler as coisas que você escreve. Mas você não precisa ler os desaforos que vêm como resposta. Em grande parte, funciona.

Há um último truque para os frequentemente cancelados: psiquiatras. A verdade é que ter voz ativa no debate público no mundo de hoje é estar exposto a cancelamentos corriqueiros. Não conheço quem tenha se acostumado. Mas conheço quatro que entraram no tarja preta para aguentar o tranco.

Outro argumento em defesa dos cancelamentos, este usado por esquerda e direita, é de que é o jeito para quem não tem espaço se fazer ouvir. Quem acredita nisso se ilude. Não são ouvidos. Quando se abre a rede e a timeline é um girar e girar o mouse e só vem pancada, nada é lido. É muito possível que existam observações interessantes ali no meio, argumentos que talvez até pudessem levar a mudanças. São perdidos na avalanche de ódio.

O resultado, na verdade, é outro. É calar o debate com violência. Faz parte da minha função, como jornalista, conversar diariamente com cientistas políticos, sociólogos, antropólogos, historiadores. Está começando a acontecer: ouço uma observação interessante, peço para gravar em vídeo. “Não, isso não posso falar.”

Professores doutores intimidados. Não é só pela direita, não. É pela esquerda também. Não estão sozinhos. O cancelamento, lentamente, vai esganando o debate público. Vai o restringindo a guetos. E aí olhamos para os palácios de governo aqui e alhures e, com cada vez mais frequência, percebemos dentro deles autoritários que chegam ao poder galgando a raiva gerada na internet.

Não são fenômenos separados. São o mesmo fenômeno. E a cada pá nova de ódio vai enchendo esta cova. Lá dentro está o debate que mantemos em público sobre nossos valores e a sociedade. É a democracia.


Pedro Doria: A Lei do WhatsApp pode funcionar

Uma das consequências da Lei das Fake News que foi aprovada no Senado e segue tramitando na Câmara é que a sociedade civil rachou. Boa parte das pessoas que estudam redes sociais, desde o início, viu ali a abertura para um risco de censura pelas plataformas — Facebook, Twitter, Google.

Mas houve um grupo bastante específico, aquele dos que estudam não as redes, mas os apps de mensagens, que defendeu o projeto. E eles têm um bom argumento.

De certa forma, quando o assunto é desinformação, damos atenção excessiva às redes sociais. Elas são importantes mas, no Brasil, central mesmo é o WhatsApp. Boa parte do trabalho do gabinete do ódio, da máquina de ataques, explora as fragilidades deste aplicativo.

Trata-se, evidentemente, do app utilizado para a comunicação básica do dia a dia por dez entre dez donos de smartphones entre nós. E o artigo 10 da lei aprovada, que fala destes serviços de mensageria, pode ter chances de funcionar.

É inteligente o suficiente para não exigir das plataformas — que incluem apps como o Messenger e o Telegram — mudanças de código que expulsem suas empresas do mercado brasileiro. O artigo não exige que a criptografia do Zap seja quebrada. E, ainda assim, é capaz de identificar quem disseminou informações que manipulam a percepção de realidade de cada cidadão.

Estes são, todos, pontos muito importantes, pois acertam em cheio os argumentos sobre ser impossível controlar estes apps. Oficialmente, o que executivos do WhatsApp dizem, no Brasil e lá fora, é que eles não são serviços de broadcast. Servem a conversas entre poucos. E têm números — mais de 90% das trocas de mensagens ocorrem entre duas pessoas.

O problema é que há um certo cinismo neste discurso. Ninguém pode criar um serviço de assinatura de informações. Assine aqui e enviaremos notícias, piadas, imagens, seja lá o que for. Mas o WhatsApp inclui, entre as possibilidades, grupos de conversas e listas de transmissão.

Uma pessoa envia uma mensagem para uma lista de transmissão com 256 contatos e cada um destes contatos reenvia para uma lista do mesmo tamanho, já dá 65 mil pessoas que receberam em segundos um meme. Na segunda rodada, já passa do milhão.

Quem lê gabinete do ódio por vezes pensa em um ou dois assessores na antessala do presidente Jair Bolsonaro. É muito mais do que isso. Na primeira hora após o assassinato da vereadora Marielle Franco, antes que a maioria das pessoas sequer soubesse do crime, já circulava no Zap falsificações a seu respeito.

Qualquer um que tenha frequentado um grupo bolsonarista sabe que há dezenas de áudios, de memes, de vídeos novos todos os dias. Sobre os assuntos do dia, sobre os inimigos do dia. A máquina não para.

Encriptação não é um problema por uma razão simples. Os arquivos maiores que circulam muito, vídeos, áudios ou mesmo algumas imagens, não são encriptados como as mensagens de texto. São armazenados nos servidores do WhatsApp. Quem encaminha não envia do seu celular para outro aquele arquivo pesado. Para economizar banda e processamento, estes arquivos o WhatsApp já mantém nos servidores. E é nisto que o texto do artigo entra.

Como já são armazenados de qualquer forma, a lei pede que as empresas de mensageria mantenham o registro de quem enviou consigo. Vale para quando uma mesma mensagem foi mandada por mais de cinco usuários num intervalo de 15 dias.

Se aquele arquivo chegou a menos de mil pessoas, descarta. Caso tenha chegado a mais gente, se um juiz pedir para saber a origem da mensagem em processo que envolve conteúdo ilícito, aí a empresa identifica.

Este é, possivelmente, o artigo mais importante da lei inteira. E pode funcionar.


Pedro Doria: O boicote vai fazer sucesso?

Será que agora o gigante – Facebook – enfim se move para enfrentar de vez a questão do discurso de ódio e da desinformação?

Para atacar o problema, o Facebook só tem um jeito: mexer em seu algoritmo. 

Em meio à campanha de boicote à publicidade no mundo digital em curso, há uma confusão que precisa ser esclarecida. A campanha promovida por ONGs contra racismo como a Liga Anti-Difamação (contra antissemitismo) e NAACP (que enfrenta preconceito contra negros) não tem por foco todas as redes sociais. O que propõe é que grandes negócios não anunciem no Facebook e no Instagram, que pertence à holding. Mais de 500 companhias já se juntaram, incluindo-se na lista a Unilever, segunda maior anunciante do mundo.

Será que agora o gigante enfim se move para enfrentar de vez a questão do discurso de ódio e da desinformação?

Não está claro. Segundo informações obtidas pelo site The Information, que costuma acompanhar com lupa os bastidores do Vale do Silício, o CEO Mark Zuckerberg está desafiante. “Nós não vamos mudar nossas políticas por conta da ameaça a uma pequena parcela de nosso faturamento”, ele afirmou a um grupo de funcionários. De fato, são companhias gigantes com verbas publicitárias enormes, mas o negócio dos anúncios na maior de todas as redes sociais é muito fragmentado. Segundo uma estimativa, os 100 maiores anunciantes representam 6% do faturamento. Ou seja: é dinheiro, mas o Facebook pode perfeitamente viver sem isto.

Só que este jogo não se conta em dinheiro. Se conta em reputação. As companhias economizam com o dinheiro que gastariam e, mais de um analista já observou, a decisão de deixar a plataforma faz bem a sua imagem. É deste jeito que Zuckerberg está avaliando o tabuleiro: como um jogo no qual estas empresas estão ganhando reputação às custas de sua rede. “Minha aposta”, ele disse, “é de que estes anunciantes retornam à plataforma logo.”

Pode ser que retornem. O Facebook fez alguns gestos, como o de anunciar que informará que é discurso de ódio, quando for o caso, postagens de gente graúda, como o presidente americano Donald Trump. Para as ONGs, é muito pouco, quase nada. Como desde então mais e mais empresas se juntaram ao boicote, parece que pequenos gestos não serão o suficiente.

Só que não é simples o que as companhias estão pedindo de Zuck. E o problema é ele, sempre ele, o algoritmo. Um software movido a inteligência artificial que tem uma única missão: fazer com que os usuários fiquem a maior quantidade de tempo possível dentro da rede. E o que o software descobre todos sentimos na pele. Basta nos deixar indignados. Quanto mais indignados, mais retornamos. E retornamos. Para comentar, protestar, ler avidamente tudo o que há.

É neste cenário que políticos agressivos crescem e políticos amistosos desaparecem. É também um cenário propício à manipulação de opiniões, pois um número pequeno de pessoas publicando em ritmo de bombardeio ideias pesadas ganham muito mais distribução do que outras. Criam a ilusão de consenso e passam, quais pescadores, um arrastão levando os incautos. A sociedade se torna mais agressiva em todos os lados. Mais extremista.

É neste ambiente que racismo, homofobia, agressões de toda sorte que eram consideradas coisas a se esconder há poucos anos ganham a luz do dia impunes, ditas por uma gente que ainda sorri sarcástica e fala: ‘só não sou politicamente incorreto’. O termo é outro. É desumano. Incapaz de compaixão, de empatia.

Só que para atacar o problema só tem um jeito, mexer no algoritmo. Fazer com que os posts distribuídos apelem não para o que há de pior em nós mas para qualquer outro critério. E isto terá resultados. Estaremos menos viciados em redes sociais. O Facebook fará menos dinheiro.

Só que se o boicote se estende, aquelas companhias ganham boa reputação. E o Facebook perde. Neste caso, merecidamente.


Pedro Doria: A verdadeira ameaça à democracia

É preciso entender o que separa movimentos populares espontâneos e sem liderança do populismo digital

Quando esta coluna fechou, o Senado ainda não havia passado pela votação do projeto de lei que visa combater notícias falsas. Não foi pequena a controvérsia no seu entorno. Sua última redação, do senador Ângelo Coronel (PSD-BA), atraiu notas de repúdio de organizações como Human Rights Watch, Boatos.org e E-farsas, as agências de checagem brasileiras e a IFCN – que reúne os checadores de notícias no mundo –, atraiu críticas até do Comitê Gestor da Internet brasileira. Não é um início promissor. Mas, de todo o debate, um ponto muito importante ficou de fora. Quem vê fake news, assim como quem vê robôs no Twitter ou consultores da Cambridge Analytica está vendo árvores. Não a floresta. O que facilitou a eleição do presidente Jair Bolsonaro – ou de Donald Trump, ou do Brexit – foi bem mais complicado do que isso. Hackearam a democracia.

É preciso entender, antes, o que separa movimentos populares espontâneos e sem liderança, que foram e são promovidos online desde a Onda Verde no Irã, do populismo digital. Entre os espontâneos há nosso junho de 2013, assim como a Primavera Árabe, os Indignados espanhóis, Occupy Wall Street e mesmo as passeatas chilenas de 2019. Em comum têm, principalmente, o caos. Pegam governos de surpresa, não costumam ter muitos resultados concretos, deixam um cenário de instabilidade. E embora tudo isto seja verdade, são populares. No sentido de que não são artificiais: nascem de fato da sociedade e gritam sua insatisfação em relação aos governantes.

O populismo digital não tem nada disso. Como no caso de todos os populismos anteriores, é o movimento de um grupo político que busca a tomada do poder, normalmente via eleições. O populista sempre constrói um discurso no qual ele é o único a representar os interesses do povo contra uma elite mal-intencionada. E é na construção deste discurso populismo digital usa a internet. Quem olha de fora, desatento, acredita que há uma mobilização popular instantânea. Não, não há. É tudo criado artificialmente.

Quem desenvolveu a técnica tem nome. É um milanês morto dum câncer cerebral em 2016 chamado Gianroberto Casaleggio. Era executivo da Olivetti, foi CEO de uma consultoria online chamada Webegg, e fazendo experimentos sociais em fóruns online percebeu que conseguia manipular a construção de consensos. O que Casaleggio percebeu é uma dinâmica típica do mundo virtual. Se, num debate, muitas pessoas caminham na direção de um consenso, o resto do grupo tende a acompanhar.

Ou seja: surge um debate na internet. Os manipuladores, em massa, começam a publicar opiniões num mesmo sentido. Estes manipuladores podem ser pessoas de verdade. Podem ser três ou quatro operando 50 contas falsas. Podem ser robôs. Não importa. A maioria do grupo, sem perceber que está sendo manipulado, tende àquele caminho.

A técnica de Casaleggio foi empregada para inventar um partido político do nada, o Movimento 5 Estrelas, e transformá-lo no maior da Itália. Foi o suficiente para chamar atenção do populista britânico Nigel Farage, que foi a Milão, tomou notas e mergulhou no processo, voltou para o Reino Unido e o empregou – conseguiu aprovar o Brexit. Saltou aos olhos de Steve Bannon, que adaptou as técnicas em território americano enquanto tocava a campanha de Donald Trump. E, claro, copiando Trump o time Bolsonaro fez o mesmo no Brasil.

Funciona.

As plataformas têm responsabilidade. Seus algoritmos ajudam a ampliar a voz de poucas pessoas, acelerando a estratégia para formar consensos artificialmente. Fake news, assim como bots, fazem parte da palheta de ferramentas da manipulação. Mas o que ameaça a democracia é seu sequestro pelo método de Casaleggio. É hora de botar foco nisto. A União Europeia já tem relatórios sobre o assunto. 


Pedro Doria: Siga o dinheiro

Seja pelo inquérito de fake news, seja pelo que investiga as origens dos atos antidemocráticos, o STF pegou o caminho recomendado por nove entre dez especialistas que lidam com noticiário falso

Seja pelo inquérito de fake news, seja pelo que investiga as origens dos atos antidemocráticos, o STF pegou o caminho recomendado por nove entre dez especialistas que lidam com noticiário falso: siga o dinheiro. Se tudo der certo e aqueles responsáveis por financiar a falsificação da realidade para desorientar o eleitor forem pegos e responderem pelo crime, outros pensarão duas vezes. Mas as mudanças tecnológicas nos obrigam a encarar duas questões cruciais difíceis para o futuro da democracia brasileira.

O primeiro é um ponto em geral pouco compreendido a respeito de fake news. O problema não são as notícias falsas per se. Elas causam dano pontual mas o impacto maior está no conjunto e no ambiente que permite sua distribuição.

Este é um ponto que o físico Augusto de Franco, um geek de democracia que mergulhou no tema a ponto conhece-lo com profundidade ímpar, chama atenção. Em toda história deste ciclo democrático que se iniciou na Inglaterra do século 17, tivemos sempre uma esfera pública.

Um ambiente comum no qual as opiniões sobre os temas relevantes da sociedade eram debatidos. Panfletos no século 18, conversas nos cafés do 19 ou as ondas de rádio e TV no 20, o debate sempre teve como premissa um conjunto comum de fatos a respeito do qual todos concordavam.

O que as plataformas de mídias sociais e apps de mensagens criaram, neste nosso século 21, são várias esferas públicas. Não uma ou duas — várias. Cada comunidade de interesses comuns tem a sua própria, acompanhada de premissas particulares e seu conjunto de fatos. Em essência, a sociedade se dividiu em tribos e cada uma vive numa realidade própria.

É por isso que fake news muitas vezes soam absurdas por completo a um grupo e, no entanto, parecem plausíveis a outro. Este ambiente de várias esferas públicas é o que viabiliza guerras culturais, choques de valores profundos nos quais nos metemos.

Jair Bolsonaro, cá no Brasil, é um presidente minoritário. Chegou ao Planalto levado por pouco mais de um terço dos eleitores aptos e hoje conta com, de acordo com a maioria das pesquisas, algo mais próximo do um quarto dos brasileiros. E caindo.

Se há várias esferas públicas, porém, cada qual com sua visão muito particular da história recente do país, cada uma num contínuo espanto perante a ‘cegueira’ de todos os outros que não pertencem à tribo, uma pergunta se impõe.

Será possível voltar a eleger um presidente razoavelmente consensual como foram, em suas primeiras eleições, Fernando Henrique e Lula? E, se estamos para encarar um futuro de presidentes minoritários, será que a democracia aguenta o tranco? O problema não é apenas brasileiro.

A manipulação de notícias falsas pode ser contida com a aplicação da lei. Mas a fragmentação da realidade é bem mais complicada.

De qualquer forma, cá no Brasil teremos outro debate pela frente. E tem a ver com liberdade de expressão. Na segunda metade do século 20, os EUA formaram uma visão bastante tolerante com opiniões as mais radicais. A Europa, não. A diferença está no fato de que os europeus reconheceram em si um bug cultural.

Populistas e demagogos que exploram preconceitos longevos, principalmente o antissemitismo, em momentos de crise são capazes de mobilizar as massas e promover e por em risco a democracia. Não é paranoia. Aconteceu agora, na Hungria, onde Viktor Orbán assumiu poderes totais. Sua ascensão começou explorando justamente este veio, apontando para o investidor George Soros como, no passado, os nazistas apontaram para os banqueiros da Casa Rothschild.


Pedro Doria: Bolsonaro não está nem aí para a privacidade

A preocupação de Bolsonaro com a privacidade tem um quê de cínica para um presidente que chegou ao Planalto querendo montar uma Abin particular 

Tem ruído na linha no debate sobre a privacidade digital. O ruído não nasce de incompreensão, nasce de desinformação proposital. E foi posto ali não por acidente, mas para boicotar a quarentena. O presidente da República, Jair Bolsonaro, mandou que o Ministério da Ciência e Tecnologia interrompesse uma ação em conjunto com as operadoras de telefonia celular para monitorar o fluxo de pessoas pelo País. O custo de não ter estas informações será pago em vidas. Impressiona que tenha ocorrido na mesma semana em que Apple e Google, rivais de morte, tenham anunciado um ousado produto feito em conjunto justamente para dar mais informação que permita controle da pandemia.

O acordo do ministério com as operadoras era simples. Elas passariam dados sobre localização geográfica dos aparelhos celulares. Não é complexo: todo mundo anda com um smartphone no bolso, mesmo que simples. Este aparelho sabe onde está e constantemente passa a informação para as operadoras. É esta possibilidade que permite a apps como Waze e Google Maps que informem sobre o trânsito – afinal, sabem quanto tempo está demorando para andar um quilômetro em qualquer rua.

O argumento de Bolsonaro é igualmente simples. Diz que é preciso ter certeza de que a iniciativa não viola a privacidade de cidadãos. A preocupação tem um quê de cínica para um presidente que chegou ao Planalto querendo montar uma Abin particular. Mas não é acidental. Faz duas semanas que o gabinete do ódio tem metralhado o governador paulista João Doria por uso do mesmo recurso para acompanhar como anda o isolamento social no Estado.

Ameaça à privacidade existiria se os donos de cada celular fossem identificados. Porque, aí, o Estado estaria literalmente acompanhando por onde cada cidadão anda. É o que a China faz. Aliás, não só ditaduras. Israel também tem feito isto. Mas, no Brasil, não há ninguém fazendo nada do tipo. Não há um único indivíduo sendo espionado por governo nenhum. (Quer dizer: a não ser que a Abin o esteja fazendo. Só que aí não tem a ver com esta iniciativa.)

Esta pandemia é muito complexa e seu combate depende de informação. Por exemplo, sobre qual o nível de respeito à quarentena. Saber que há muita gente circulando permite a governadores e prefeitos que se preparem para o impacto na rede hospitalar em 15 dias. Informação que vem de testes massivos também ajuda – é para se ter uma compreensão massiva do nível de infecção na sociedade. Informação sobre para quem as pessoas contaminadas podem ter passado o vírus, idem. Para que o combate possa ser mais ágil e quem é suspeito de ter a doença possa se resguardar antes de passar para outros.

A parceria de Apple e Google quer atacar este último elemento. As duas incluirão em iPhones e Androids um recurso que permitirá criar apps para informar que você esteve faz pouco tempo em contato com alguém positivo. As duas empresas terem entrado no jogo é a garantia de que um recurso assim poderá existir com o máximo de resguardo possível à privacidade de todos. É o melhor de dois mundos: quem está doente não é identificado, quem esteve perto é informado de que há risco.

Uma democracia liberal se constrói na eterna tensão entre os direitos do indivíduo e os da sociedade. Ambos importam e os conflitos que surgem deste atrito ocorrem toda hora. Defender privacidade, no tempo digital, é fundamental. Salvar a maior quantidade de vidas possível não é incompatível. Dá para fazer. Fingir que não dá é que é grave. É irresponsável. E gente vai morrer por causa disso.