PCB

Foto: João da costa Pimenta/Acervo/Estadão

O centenário do PCB 2022 e a questão democrática no Brasil

Antônio Fernando de Araújo Sá* | Observatório da Democracia

Dentro do Ciclo de Debates (2022) do Observatório da Democracia (UFS), a organização, pelo Grupo de Pesquisa História Popular do Nordeste (UFS/CNPq), de mesa redonda sobre o centenário do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a questão democrática, serve de ponto de partida para se pensar as batalhas memoriais e políticas no Brasil contemporâneo, especialmente após as transformações advindas da crise do socialismo real, no final da década de 1980. Foram convidados professores e militantes, com perfis diferenciados, para discutir as comemorações do Partido Comunista Brasileiro, nesse ano: Osvaldo Maciel, professor/pesquisador na Universidade Federal de Alagoas, do Rio de Janeiro, Ivan Alves Filho, historiador, e o militante político sergipano Marcélio Bomfim.

Em um momento em que o discurso político da extrema direita tem associado o nazismo como ideologia de esquerda e o colocado no mesmo patamar do comunismo, pensamos ser oportuno discutir os limites da democracia no Brasil ao longo de um século de existência do PCB, que passou praticamente sua vida política na clandestinidade. Por outro lado, a mesa destacou a contribuição para o debate historiográfico por parte de intelectuais vinculados ao partido, bem como na edição de periódicos, livros e jornais, além da presença no cinema, teatro, literatura e artes visuais.

Dois momentos do processo de desestalinização no século XX incidiram na reescrita da história do PCB, como no caso do relatório de Nikita Kruschev apresentado no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, e no quadro da glasnost e da perestroika, com o governo Gorbachev. As disputas memoriais nesses dois momentos significaram conflitos que resultaram em cisões políticas internas e revisões na historiografia (POLLAK, 1989: p. 4-5).

Para o historiador Michel Pollak,

Toda organização política, por exemplo - sindicato. partido etc. -, veicula seu próprio passado e a imagem que ela forjou para si mesma. Ela não pode mudar de direção e de imagem brutalmente não ser sob risco de tensões difíceis de dominar, de cisões e mesmo de seu desaparecimento, se os aderentes não puderem mais se reconhecer na nova imagem, nas novas interpretações de seu passado individual e no de sua organização. O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo (POLLAK, 1989: p. 10).

No Brasil, nesses dois momentos de desestalinização, rupturas políticas resultaram, em um primeiro momento, na constituição do Partido Comunista do Brasil (PC do B), no início dos anos 1960, e, no segundo, na extinção do PCB, por parte dos setores ligados a Roberto Freire, que, em 1992, fundaram o Partido Popular Socialista (PPS), que depois se transformou no Cidadania, em 2019. Mas, apesar de minoritário à época, um grupo convocou uma Conferência Extraordinário de Reorganização do partido, conseguindo posteriormente resgatar a sigla (SECCO, 2022).

Todos esses agrupamentos políticos vão disputar e defender o passado comunista, com diferentes versões e visões sobre a estratégia e a tática do partido para a definição de um programa socialista e em torno da democracia interna. Não podemos esquecer ainda de setores próximos ao trotskismo, que também disputam essa tradição política no Brasil.

A construção da memória do PCB refundado pode ser identificada em escritos de intelectuais e militantes a ele vinculados, que defendem o projeto político revolucionário na conjuntura atual. Para Ivan Pinheiro, “não se tratava apenas de preservar o partido, como se fosse uma peça de museu, mas de mudar radicalmente sua política e seu caráter, no processo que chamamos de Reconstrução Revolucionária” (PINHEIRO, 25/01/2022. Endereço eletrônico: https://pcb.org.br/portal2/28341. Acesso em 03/04/2022).

Osvaldo Maciel, inspirando-se no pensador comunista Antônio Gramsci, colocou que escrever a história política de um partido não apenas se está realizando um trabalho historiográfico, mas se está contando a história de um país, por meio de um ponto de vista monográfico.

Marcélio Bomfim estabeleceu uma revisão de sua trajetória histórica, de modo crítico, identificando equívocos e acertos, inclusive adotou uma postura autocrítica de ter participado da construção do Partido Popular Socialista (PPS) como vereador do município de Aracaju (SE). Para ele, no tempo presente, há a necessidade do fortalecimento para a reconstrução do PCB em uma perspectiva revolucionária, reivindicando este agrupamento político como “legítimo herdeiro do movimento”, em continuidade à política oficial do PCB. Nesse sentido, “resgatar a história do PCB é recuperar a memória de um Brasil insurgente, que, no combate permanente às imposições do modo de produção capitalista e do imperialismo, comprova que só pode fazer futuro quem tem lastro no passado” (https://pcb.org.br/portal2/28298. Acesso em 03/04/2022).

Já o historiador Ivan Alves Filho, em Os Nove de 22: O PCB na vida brasileira (2021), pela Fundação Astrogildo Pereira, estabeleceu uma linha genealógica que remonta aos nove militantes que fundaram o partido, passando pelas suas transformações políticas que resultaram no PPS e, depois, no Cidadania. Para o autor, “Não se trata de retornar ao passado, (...) mas de imaginar que determinados elementos desse passado possam se incorporar ao presente, humanizando mais a vida”. Na proposta de interligar o passado e o presente, Alves Filho afirmava não ser possível escrever a história do Brasil do século XX sem o PCB e, mesmo com todas as divisões e dos equívocos cometidos, “ainda tem muito a nos ensinar, conforme Roberto Freire, Francisco Inácio de Almeida e Cristóvão Buarque têm apontado. Que o seu legado continue a influir na vida brasileira pelos próximos cem anos” (ALVES FILHO, 2021: p. 257 e 268).

Apesar do transformismo de ex-comunistas, como Roberto Freire, vemos que o Cidadania, como um partido “de centro com um programa neoliberal ‘progressista’ que manteve a Fundação Astrojildo Pereira”, tem insistido em “disputar a memória pecebista” (SECCO, 2022).

Por outro lado, o Partido Comunista do Brasil (PC do B) também disputa essa memória, construindo uma narrativa que tem como marco fundador a reunião dos dias 25, 26 e 27 de março de 1922, na cidade de Niterói (RJ). Os documentos “Cinquenta anos de luta” (1972) e de “PCdoB: 90 anos em defesa do Brasil, da democracia e do socialismo” (2012), aprovados pelo Comitê Central, conformaram a base do documento lido por Renato Rebelo “PCdoB: um século de lutas em defesa do Brasil, da democracia e do socialismo”, aprovado por unanimidade, na reunião da Comissão Política Nacional do partido, no dia 18 de março de 2022. Esses documentos reiteram um acerto de contas contra as posições reformistas e revisionistas de Prestes à frente do PCB, no período de 1956 a 1962, especialmente a Declaração de Março de 1958 e a luta política no 5º Congresso do Partido (1960), quando houve o afastamento do Comitê Central de lideranças como João Amazonas, Maurício Grabois e Diógenes Arruda (https://pcdob.org.br/noticias/pcdob-um-seculo-em-defesa-do-brasil-da-democracia-e-do-socialismo/. Acesso em 03/04/2022).

A presença dos trotskistas no centenário do PCB foi rememorada, por Michel Goulart da Silva, pela participação de João Pimenta, delegado no congresso do PCB em 1922, como “um dos fundadores da primeira organização trotskista no Brasil”, além da adesão ao partido de nomes “centrais do trotskismo, como Lívio Xavier e Mario Pedrosa”, por volta de 1924 e 1925”. Entretanto, a tônica é de crítica à trajetória do PCB, que motivou a ruptura dos trotskistas, “devido às debilidades da direção do partido, ao oportunismo de parte de sua direção e à influência da burocracia stalinista”. O articulista comentou a disputa dessa memória, por parte do atual PCB, do PCdoB e dos grupos herdeiros do prestismo, não estabeleceu “um balanço sério sobre os crimes e as traições de Stalin e dos burocratas que o apoiaram e sobre a degeneração teórica e política que representou o stalinismo” (SILVA, 25/03/2022. Endereço eletrônico: https://www.marxismo.org.br/o-centenario-do-pcb-e-o-lugar-dos-trotskistas/#_ftnref2 Consultado em 02/04/2022).

A construção da memória do centenário do PCB demonstra, de modo cabal, que a cada vez que há “uma reorganização interna, a cada reorientação ideológica importante reescrevera-se a história do partido e a história geral. Tais momentos não ocorrem à toa, são objeto de investimentos extremamente custosos em termos políticos e em termos de coerência, de unidade, e portanto de identidade da organização” (POLLAK, 1992: p. 206).

Vemos que, desde a década de 1980, a crise do modelo clássico de comemoração, marcado pela soberania impessoal e afirmativa da Nação, da República, do Estado, resultou em batalhas memoriais em partidos, sindicatos e associações que assumiram a organização das comemorações, evidenciando todos os conflitos internos e as contestações inevitáveis, como aqui demonstrado, mas que também representam um processo de democratização e laicização dos eventos comemorativos (NORA, 1997: p. 4688).

Apesar do revival do comunismo, em parte puxado pela renovação do PCB e a tentativa de ampliação da ação em sindicatos e movimentos sociais, em parte como fenômeno das redes sociais com youtubers e outras personalidades, fica a pergunta se a preocupação obsessiva em torno da memória nessas comemorações do centenário do PCB, por setores da esquerda comunista, não seria um “prêmio de consolo” frente à sua fragilidade política na história do Brasil contemporâneo?

[1] O debate O Centenário do PCB (2022) e a questão democrática no Brasil foi realizado, no dia 4 de abril de 2022, pelo Grupo de Pesquisa História Popular do Nordeste (UFS) e Observatório da Democracia (UFS), no Canal YouTube do Departamento de História (UFS). Agradeço o apoio ao evento e a leitura crítica do texto do Chefe deste Departamento, Prof. Dr. Carlos Malaquias.

REFERÊNCIAS

ALVES FILHO, Ivan. Os nove de 22. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2021.

NORA, Pierre. L’ ére de la commémoration. In: NORA, Pierre (dir.). Les Lieux de Mémoire (Les Frances). v. 3. Paris: Gallimard, 1997.

PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL. PCdoB: Um século em defesa do Brasil, da democracia e do socialismo. https://pcdob.org.br/noticias/pcdob-um-seculo-em-defesa-do-brasil-da-democracia-e-do-socialismo/. Acesso em 03/04/2022.

PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO. 2022: o ano do Centenário do PCB. Endereço eletrônico: https://pcb.org.br/portal2/28298. Acesso em 03/04/2022.

PINHEIRO, Ivan. O dia em que o PCB não morreu: 25 de janeiro de 1992: 30 anos do “racha”. 25/01/2022. Endereço eletrônico: https://pcb.org.br/portal2/28341. Acesso em 03/04/2022.

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992. Endereço eletrônico: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941/1080

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989. Endereço eletrônico: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417

SECCO, Lincoln. O centenário do PCB. A Terra é Redonda. 26/3/2022. Endereço eletrônico: https://aterraeredonda.com.br/o-centenario-do-pcb/ . Acesso em 03/04/2022.

SILVA, Michel Goulart da. O centenário do PCB e o lugar dos trotskistas. 25/03/2022. Endereço eletrônico: https://www.marxismo.org.br/o-centenario-do-pcb-e-o-lugar-dos-trotskistas/#_ftnref2 Consultado em 02/04/2022.

Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá

Departamento de História

Universidade Federal de Sergipe

*Publicado originalmente no Observatório da Democracia


Roberto Freire: "Esquerda é prisioneira de dogmas dominantes no século 20"

Cleomar Almeida e João Vítor*

O presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, criticou nesta sexta-feira (25/3) a esquerda por entender que ainda não acompanhou os anseios da sociedade. “Especialmente no Brasil, temos uma esquerda que ainda é prisioneira de dogmas que foram dominantes no século 20”, disse. Ele participou de seminário em celebração aos 100 anos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em Niterói (RJ), e destacou a importância de usar o marco histórico para pensar no futuro.

Veja vídeo abaixo:

https://youtu.be/YeQI8jYvMCI

100 anos do PCB: evento resgata memória e aponta desafios em Niterói (RJ)

A Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília, realizou o seminário do centenário do partido no auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). O PCB se reformulou com o passar dos anos e, em 1992, tornou-se o Partido Popular Socialista (PPS) antes de avançar para a nova identidade política com o Cidadania, em 2019.

Freire destacou o que chamou de "esquerda democrática", a qual, segundo ele, "não fica presa a dogmas, não é ortodoxa e pretende entender interpretar a história conseguindo ser atual, como é na Europa hoje e totalmente hegemônica". Na avaliação dele, não é o caso da América Latina.

Seminário 100 anos do PCB na Faculdade de Direito da UFF, em Niterói (RJ) | Foto: Washington Reis

Dezenas de militantes e dirigentes do partido participaram do evento, que também contou com a presença do diretor-geral da FAP, o sociólogo Caetano Araújo, e do secretário-geral da direção estadual do Cidadania no Rio de Janeiro, Roberto Percinoto. Uma placa foi descerrada em homenagem a todos dirigentes mortos pela ditadura militar e pessoas que fizeram parte da luta histórica do PCB.

"Perspectiva com jovens"

De acordo com Freire, a celebração do centenário deve ser usada para reflexão sobre a importância da luta do PCB no Brasil e, sobretudo, para estimular a juventude a compreender o contexto histórico com vistas para o futuro. “Não é só conversando sobre o passado, lembrando exílios e missões, mas esse partido, com o Cidadania, está montando uma perspectiva com jovens para pensar no futuro”, ressaltou.

https://open.spotify.com/episode/0GZjTu7gFPbt5klrK4tihV?si=e7fc12860456403f

“Eu quero dizer que está havendo um grande enfrentamento com o tempo histórico em relação ao pensamento de esquerda”, disse Freire, para ressaltar depois a necessidade de essa linha política avançar. “Pensar nessa perspectiva é o que nós temos que fazer e é por isso que continuo na luta e que pode nos levar adiante”, afirmou.

"Lições"

O diretor-geral da FAP citou algumas “lições” que marcaram a história do partido e que, segundo ele, podem auxiliar no avanço das lutas por uma sociedade menos injusta, menos desigual e menos excludente. É o caso da mobilização pela equidade, igualdade e em defesa da democracia, que passou a ser ameaçada, sobretudo, durante o atual governo.

“A desigualdade é difícil de superá-la. O Brasil não consegue fazer isso, mas temos que continuar lutando”, destacou. Ele também defendeu a luta incessante pela democracia. “A revolução tem que ser feita de baixo para cima. Tem que acontecer nas mentes e depende de debates, ou seja, democracia. Equivocado o pensamento de que a revolução tem que ser violenta. Isso não produz mudança”, acentuou.

https://open.spotify.com/episode/46LJXpn7xMGYTT0Wm0goUT?si=f8bf709374374421

É por isso que Caetano acredita que a democracia é a saída mais possível para solução dos imbróglios na sociedade, inclusive para a crise sanitária mundial da covid-19. “Todos os nossos problemas, para serem resolvidos, precisam de acordos mundiais, e isso também vale para a pandemia. O risco persiste. Exige enfrentamento global com nossa história. Temos muito a contribuir com as lutas do Brasil e com o mundo”, salientou.

"Aprender muito mais"

Com discurso marcado pela emoção, Percinoto chorou ao lembrar sua trajetória no PCB. “Antes de ingressar no velho partidão, eu era simpatizante, não só das reuniões, mas das discussões políticas”, disse ele, que também participou da clandestinidade durante o período em que militantes do partido foram perseguidos pela ditadura militar.

Ao final, o secretário demonstrou que ainda está bastante disposto a seguir na luta partidária.  “Não estou desanimado e quero aprender muito mais. Olhar para frente sem o farol de ré ligado”, afirmou Percinoto.

O evento teve debates sobre a fundação do PCB e seu histórico, a relação do partido com o mundo da cultura e intelectuais, além de seu vínculo com lutas sindicais e sua preocupação com a formação política da juventude.

https://open.spotify.com/episode/3GvGUuW2OVt6Uo6U6h3EVa?si=3d11f0ce59254dd8
https://open.spotify.com/episode/2EZQ9DNBeJApnmZDwVcJ3t?si=db9dca69466d4e23
https://open.spotify.com/episode/459pxqE6tkhDwC37OlNAaz?si=6ff129524d3c48c5

Transmissão ao vivo

O seminário em Niterói teve transmissão ao vivo no portal da FAP, na página da instituição no Facebook e no canal dela no Youtube. O objetivo foi tornar o evento acessível ao maior público possível para registrar a importância do legado do partido principalmente na luta pela democracia.

Desde 2021, a FAP tem realizado diversas atividades e eventos online em celebração ao centenário do partido. Antes do evento em Niterói, a fundação organizou o Seminário Internacional 100 Anos do PCB, realizado de 8 a 10 de março.

*João Vítor é integrante do programa de estágio da FAP, sob supervisão do jornalista, editor de conteúdo e coordenador de Publicações da fundação, Cleomar Almeida.

Veja vídeos de eventos do centenário




Caetano Araújo explica história, princípios e identidade do Cidadania 23

Prof. Dr. pela UnB, diretor-geral da FAP e consultor legislativo do Senado Federal ministrou a Aula 01 do curso Jornada Cidadã 2022, que segue com inscrições abertas

João Rodrigues, da equipe da FAP

Com o tema “História, princípios e identidade do Cidadania 23”, a primeira aula oficial do curso Jornada Cidadã 2022 foi realizada na noite desta segunda-feira (18/10) pelo diretor-geral da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e consultor legislativo do Senado Federal, Caetano Araújo.
O curso, destinado a pré-candidatos para as eleições do próximo ano e suas equipes, segue com inscrições abertas por meio da plataforma Somos Cidadania.
A aula completa está disponível no Youtube da FAP.

Confira o vídeo com parte da aula do Prof. Dr. Caetano Araújo.




Alberto Aggio: O Gramsci que conhecemos e o que ele inspirou

Teorias de Gramsci se tornaram de uso comum e identificáveis por meio de conceitos como “hegemonia”, “guerra de posições”, “revolução passiva”

Gramsci é, no Brasil, um autor bastante conhecido e com um número estável de leitores. A primeira edição dos Cadernos do cárcere é da década de 1960 e foi reeditada no final da década seguinte, num contexto de luta contra a ditadura. Uma nova edição dos Cadernos, que mescla a edição temática dos anos sessenta com a edição crítica publicada na Itália a partir de 1975, veio à luz nos últimos anos do século passado, com vários dos seus volumes já reimpressos.

Há tempos registra-se uma difusa assimilação do pensamento gramsciano. As teorias de Gramsci se tornaram de uso comum e identificáveis por meio de conceitos como “hegemonia”, “guerra de posições”, “revolução passiva”, “transformismo”, “americanismo” e outros. O pertencimento de Gramsci à história do marxismo e do comunismo é patente, ainda que ele seja reconhecido, mas não generalizadamente, como um pensador político original. Desde o final da década de 1970, a progressiva difusão do pensamento gramsciano contribuiu e alimentou um novo “programa de ação” para a esquerda brasileira: organizar a luta contra o autoritarismo.

Capa dos volumes da edição brasileira dos Cadernos do Cárcere

Além de Gramsci, outros pensadores animaram esse movimento, como Norberto Bobbio, Hannah Arendt e Jürgen Habermas. Mas foi com Gramsci que se instituiu no universo de reflexão da esquerda as temáticas e as visões críticas da história brasileira a partir de uma perspectiva de longa duração. Com a difusão e a assimilação de Gramsci se começa a pensar o Brasil tomando como referência a Alemanha e a Itália, países que não chegaram à ordem burguesa por meio do percurso revolucionário francês. Por meio das referências gramscianas, passa-se a reconhecer que o país era “ocidental” e que se havia estruturado como um país moderno pela via autoritária, sobretudo a partir de 1964. Isso requeria da esquerda uma nova leitura da democracia. Sem ela, a esquerda não seria capaz de se tornar um ator relevante na luta contra o autoritarismo e lhe faltaria uma “grande política” que pudesse guiá-la numa nova situação democrática.

Naquele contexto, o Gramsci que conheceríamos não seria aquele da luta operária, mas o Gramsci inspirador de uma luta política geral, cuja tradução política se exprimia na ideia de que, para combater o autoritarismo, era necessário “fazer política” e construir alianças que objetivassem a conquista da democracia. O Gramsci dos intelectuais, da hegemonia e da guerra de posição se encontrava então em campo aberto, em diálogo com outras correntes de pensamento, em particular as liberais, jogando a esquerda para dentro do debate público sobre as questões do pluralismo como horizonte político-cultural: um diálogo a que nem a esquerda nem os liberais estavam acostumados. Em síntese, a difusão das ideias de Gramsci contribuiu para amadurecer na esquerda brasileira uma perspectiva crítica a respeito da sua história precedente, de forte matriz golpista e autoritária, pouco afeita aos temas decorrentes da política democrática.

Carlos Nelson Coutinho (1943-2012)

No contexto de luta pela democracia no Brasil, o mais importante ensaio de corte gramsciano foi, sem dúvida, “A democracia como valor universal”, de Carlos Nelson Coutinho (1979), que representou um marco divisório na cultura política da esquerda brasileira, sobretudo no que diz respeito à revalorização da democracia. O ensaio tem muitos méritos e foi extremamente influente. Embora Carlos Nelson Coutinho valorizasse temáticas como a “ampliação do Estado”, ajudando a esquerda a compreender a natureza “ocidental” da sociedade brasileira, entendia que não se deveria cogitar nenhuma “leitura mais complexa” do conceito gramsciano de revolução passiva.

No ensaio de 1979, as formulações a respeito da realidade brasileira aparecem inteiramente subordinadas ao enfoque leninista, assim sintetizada no subtítulo do seu segundo item: “o caso brasileiro: a renovação democrática como alternativa à via prussiana”. A ênfase não era irrelevante nem foi esporádica. Em diversos textos posteriores, Carlos Nelson Coutinho se empenhou em definir a transição brasileira à modernidade capitalista identificando revolução passiva a uma “contrarrevolução prolongada” (a expressão é de Florestan Fernandes), por definição reativa à mudança social (registre-se aqui que a categoria da via prussiana já havia sido mobilizada para interpretação da formação social brasileira em Liberalismo e sindicato no Brasil, de Luiz Werneck Vianna, em 1976).

Este é um tema importante na discussão sobre Gramsci no Brasil: se admitirmos que o conceito de “via prussiana” descreve uma situação histórica na qual está anulada a possibilidade do ator da antítese ao capitalismo de assumir, pela política, um papel afirmativo no processo de modernização capitalista, a pergunta que emerge naturalmente é se a categoria de “revolução passiva”, elaborada por Gramsci, pode ser compreendida no sentido de se admitir um novo protagonismo do ator da antítese no interior do processo de modernização capitalista.

Luiz Werneck Vianna, em seu livro Revolução passiva: americanismo e iberismo no Brasil (1997), responde afirmativamente a esta pergunta, esclarecendo que na revolução passiva se pode desenvolver a ação de um ator que represente uma “antítese vigorosa” e empenhe de maneira intransigente todas as suas potencialidades (p. 78). A revolução passiva, como critério de interpretação de processos históricos, é útil ao ator que se invista da representação de portador das mudanças, “capacitando-o, a partir de uma adequada avaliação das circunstâncias que bloqueiam seu sucesso imediato e fulminante, a disputar a hegemonia numa longa ‘guerra de posições’, e a dirigir o seu empenho no sentido de um transformismo ‘de registro positivo’, assim desorganizando molecularmente a hegemonia dominante, ao tempo em que procura dar vida àquela que deve sucedê-la”. […] “A exploração do transformismo de ‘registro positivo’ é indicada em processos societais novos na sociedade brasileira, muito especialmente depois da institucionalização da democracia política em meados dos anos 80” (p. 9). A revolução passiva é, portanto, um critério de interpretação “que poderia servi-lo no sentido de mudar a chave da direção do transformismo: de negativo para positivo”. Graças a esse conceito, Gramsci cria “a possibilidade de uma tradução do marxismo como uma teoria da transformação sem revolução ‘explosiva’ de tipo francês”.

Luiz Werneck Vianna

Como se sabe, a história brasileira nunca protagonizou uma revolução de tipo “jacobino”. As grandes transformações históricas do país foram moleculares ou caracterizadas por uma “dialética sem síntese”, no interior da qual os elementos de novidade e de modernidade foram introduzidos, no mais das vezes, por grupos sociais anteriormente contrários à modernização. Os ciclos da longa “revolução passiva á brasileira” (L. W. Vianna) vão da fundação do Estado Nacional até o recente processo de democratização vivido pelo país, passando pelo período Vargas, pela democracia de 1946 e pelo autoritarismo das décadas de 1960 e 1970. Neste longo período histórico, o Estado assume o papel de agente modernizador e condutor das transformações históricas, em geral sem a participação da sociedade civil, estabelecendo a lógica de conservar-mudando. Essa lógica faz com que as transformações históricas no Brasil ocorram sem abalos violentos, o que ajuda a conservar a precedente hegemonia dos grupos sociais mais atrasados.

Nos dias que correm, contrariando as enormes esperanças, os governos do PT, desde 2002, não se constituíram numa alternativa ao longo processo da “revolução passiva à brasileira”. Ao contrário, no governo, o PT conduziu a modernização associando-se às elites agrárias e industriais, abrigando-as no seio de um enorme Estado, inteiramente dependente do Poder Executivo. O alargamento do poder de consumo das classes populares fez parte dessa estratégia e a figura de Lula passou a ser essencial a esse tipo de transformismo. Manteve-se o dirigismo estatal, o patrimonialismo e o corporativismo ao invés de se estabelecer um nexo renovador entre democracia, autonomia, mercado e bem-estar.

Nascido do moderno parque industrial paulista, isto é, da face americanista mais visível do país, o PT no governo foi derivando progressivamente para a velha tradição ibérica de supremacia do Estado sobre a sociedade que havia marcado a história brasileira. O PT é, como já se disse, uma monografia particular do Brasil, articulada por uma síntese de americanismo e iberismo, na qual o Estado continua a contrapor-se à sociedade civil, controlando molecularmente as transformações, obedecendo à lógica do conservar-mudando e impedindo consequentemente o desenvolvimento autônomo da sociedade civil.

Mudar as relações entre a sociedade civil e o Estado e fazer com que a mudança dirija a conservação não significa adotar uma espécie de antirrevolução passiva, instalando um processo de rupturas de corte jacobino. Transformar o caráter recessivo da “revolução passiva à brasileira” demanda a construção de uma cultura política republicana, que contribua para a geração de uma sociedade civil autônoma, capaz de associar-se politicamente para a condução dos destinos do país. É esse o desafio que está colocado: buscar, com realismo, as balizas e os parâmetros de uma grande reforma da política, de caráter republicano, que reverta os termos da atual modalidade de “revolução passiva à brasileira” e ao mesmo tempo recomponha a confiança do país em continuar vivenciando e ampliando a democracia política.

Imagem de Gramsci grafitada em uma cidade italiana

O pensamento de Gramsci apresenta-se hoje no Brasil essencialmente por meio de uma disjuntiva. De um lado, o Gramsci da “política democrática”, ou seja, da política-hegemonia, enquanto “hegemonia civil”. De outro lado, temos o Gramsci como expressão da “política revolucionária”. Na primeira “leitura”, a revolução não é mais o centro da elaboração política e a perspectiva se deslocou no sentido de exercitar o conceito de revolução passiva até seus limites, isto é, acionar permanente e intransigentemente a política democrática no interior da perspectiva de “rovesciare” a longa revolução passiva à brasileira, de marca autoritária e excludente, e lhe dar finalmente outro direcionamento.

Essa perspectiva implica compreender que Gramsci se descolou da sua originária demarcação revolucionária, distanciando-se assim de um marxismo que ainda tem como referência uma época histórica de revoluções. De outro lado, a perspectiva de um “outro Gramsci” se desdobrou gradativamente em “outros Gramsci”, mantendo-os, contudo, no universo diversificado da noção de “representação”, agora num duplo sentido: representação de classe, com o fora anteriormente, e portanto numa perspectiva revolucionária, e, noutro sentido, representação como conservação e difusão de um imaginário revolucionário, no qual se quer resguardar os signos e significados de uma época revolucionária terminada há décadas.

(Esse texto é a versão em português do artigo publicado no L’Unità (07.12. 2015), e corresponde à súmula da palestra proferida na Fondazione Istituto Gramsci de Roma, em 25,11.2015. Em português foi publicado em Política Democrática, n. 44, Brasília: FAP, 2016, p. 40-44 e também em AGGIO, A. Itinerários para uma esquerda democrática. Brasília: Verbena/FAP, 2018, p. 165-171)

Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/o-gramsci-que-conhecemos-e-o-que-ele-inspirou/


“Os Nove de 22: o PCB na vida brasileira” registra legado quase centenário

Obra do historiador Ivan Alves Filho será lançada em webinar da FAP na terça-feira (14/9)

Cleomar Almeida, da equipe FAP

Sustentado no tripé do mundo do trabalho, da cultura e da defesa pela democracia, o histórico Partido Comunista Brasileiro, que celebrará o centenário de sua fundação no próximo ano, tem agora a sua trajetória registrada em livro. A obra “Os nove de 22: O PCB na vida brasileira” (283 páginas), do historiador Ivan Alves Filho, será lançada, na terça-feira (14/9), a partir das 10h, em evento virtual da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), que editou a publicação.

Assista!



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O evento de lançamento online do livro terá transmissão, em tempo real, no portal da FAP, na página da entidade no Facebook e no canal dela no Youtube. Além do autor, também confirmaram presença no webinar o presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire; o diretor-geral da FAP, Caetano Araújo; a diretora executiva da fundação Jane Monteiro Neves e o historiador José Antônio Segatto.

As pessoas interessadas em participar diretamente do lançamento, por meio da sala virtual do aplicativo Zoom, devem enviar a solicitação ao departamento de tecnologia da informação da FAP e se identificarem. O contato deve ser realizado por meio do WhatsApp (61) 98419-6983 (Clique no número para abrir o WhatsApp Web), até 20 minutos antes do início do webinar.

O livro é resultado de um levantamento do historiador, mas também representa um relato dele como militante político. Não tem nada de acadêmico. É, conforme o próprio autor define, uma tentativa de construir um instrumento político adaptado às demandas do século 21. Dessa forma, reforça o legado de nove homens que sonharam em mudar o mundo no ano de 1922, em uma casa de Niterói, com a fundação do partido.

Os fundadores do PCB aparecem, juntos, em uma foto histórica (abaixo). Em pé, estão Manoel Cendon, Joaquim Barbosa, Astrojildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Peres e José Elias da Silva (da esquerda para a direita). Sentados, estão Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro (da esquerda para a direita).

Os fundadores do PCB. Foto. Reprodução

A fundação do partido ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, no Sindicato dos Alfaiates e dos Metalúrgicos, nos dias 25 e 26 de março, e em Niterói, no dia 27 de março de 1922. “O deslocamento para Niterói, mais precisamente para uma casa pertencente à família de Astrojildo Pereira, se deu em função de uma denúncia de que a polícia estaria prestes a invadir o encontro dos comunistas no Rio de Janeiro”, conta o livro.

Produzida sob a perspectiva histórica do PCB, a obra também lança luz sobre o presente do país diante da “extensão e velocidade do desmoronamento da esfera pública no Brasil”, segundo o autor. “Há uma verdadeira esquizofrenia social entre nós. Os números e indicativos econômicos são dramáticos e a corda social só faz esticar”, escreveu Ivan Alves Filho.

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O livro mostra que o PCB foi um partido criado, na época, sob a influência do movimento anarquista então dominante nos meios sindicais. Atravessou a maior parte de sua história na clandestinidade, mas apresenta um saldo de realizações nos mundos do trabalho, da ciência, da cultura e da formulação de políticas públicas no Brasil muito superior ao que o número reduzido de militantes naquele contexto poderia projetar.

“O mais impressionante é que o partido saiu do movimento anarquista. Todos os partidos comunistas do mundo surgiram do antigo movimento social democrata. O único que surgiu do movimento anarquista foi o PCB, o que o fez ter muita sensibilidade para a sociedade civil”, destaca o autor.

Uma grande quantidade de informação é apresentada ao longo do livro, na forma de pequenas unidades, organizadas em torno de temas. Eles equivalem às áreas em que a atividade dos militantes comunistas foi relevante e suas consequências duradouras, ou das personalidades marcantes, tanto na perspectiva interna da organização quanto na perspectiva maior, da sociedade como um todo.

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“São, na verdade, cápsulas de informação, reunidas num conjunto que lembra um mosaico. O livro não pretende, portanto, ser uma obra de síntese, tampouco um registro minucioso da influência das organizações e personalidades vinculadas ao PCB na vida cultural, científica e política do país”, explica o diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, no prefácio.

De acordo com o prefaciador, o livro deve ser visto antes como coletor e organizador de um conjunto de informações e, ao mesmo tempo, sinalizador e guia para pesquisas futuras. “Sua vocação é tornar-se uma obra seminal”, afirma. “Claro que há, ao longo de todo o texto, informação proveniente de fontes bibliográficas. A maior parte, contudo, procede da biografia do autor, de sua convivência com grande parte dos personagens citados”, diz, em outro trecho.

Filho de um dirigente do partido, Ivan Alves Filho conheceu na infância, na sua casa, diversos dos dirigentes históricos do PCB. Lançado ao exílio, no começo de sua vida adulta, radicou-se em Paris, ponto de encontro das andanças dos exilados brasileiros, onde teve a oportunidade de conhecer outros tantos militantes e dirigentes. No seu retorno, historiador formado, dedicou-se a pesquisar a história do partido.

Lançamento online de livro: Os nove de 22
Data: 14/9/2021
Transmissão: das 10h às 11h30
Realização: Fundação Astrojildo Pereira


100 anos do Partido Comunista Brasileiro (PCB)

Confira vídeos, podcasts, textos, publicações e especiais sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB)

1922 é um ano emblemático da modernidade brasileira, nas artes e na política. Acontece a Semana de Arte Moderna, nasce o Partido Comunista. Quase sempre ilegal, o PCB cumpriu uma trajetória marcante e talvez tenha sido a grande escola da nossa política. Vídeos e depoimentos aqui recolhidos jogam luz sobre este agrupamento singularíssimo do século 20 entre nós.

Está página foi criada para agrupar os diversos eventos que ocorreram e ocorrerão para celebrar o centenário do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Aqui, você encontra todas atividades do grupo "100 anos do PCB", idealizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) no segundo semestre 2020. Além disso, há sugestões de livros, filmes, podcast e outros arquivos relacionados ao Partidão.





26/03/2021
Podcast sobre a história do PCB com o jornalista Luiz Carlos Azedo




Astrojildo Pereira e os centenários da Semana de Arte Moderna e do PCB
Finalmente, as obras do Astrojildo Pereira serão lançadas neste ano de 2022 pela Editora Boitempo, com apoio da Fundação Astrojildo Pereira.

Seminário internacional destaca os 100 anos do Partido Comunista Brasileiro
Em comemoração aos 100 anos do Partido Comunista Brasileiro (PCB)

Sérgio Besserman: Narrativa do comunismo caiu com o Muro de Berlim
Economista mediou debate em pré-celebração ao centenário do PCB, no dia 29 de julho

‘Passado maldito está presente no governo Bolsonaro’, diz Luiz Werneck Vianna
Doutor em Sociologia pela USP e presidente de honra da FAP, cientista social defende construção de ampla frente democrática para “derrubar” o presidente

‘Lutar pelo SUS é a tarefa imediata da esquerda democrática’, diz Luiz Sérgio Henriques
Ensaísta é um dos organizadores do lançamento da série de debates on-line sobre o centenário do PCB, a partir das 19h desta quinta-feira (25/3)

Lição de 1964 marca luta do PCB por ampla frente democrática no país

Especialistas começam a discutir centenário do partido, celebrado em março de 2022, em série de webinars da Fundação Astrojildo Pereira que será lançada no próximo dia 25/3

SÉRIE DE REPORTAGENS "NADA CONSTA" - METRÓPOLES


Livros referentes ao Partido Comunista Brasileiro (PCB)
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Judeus progressistas em São Paulo e a Casa do Povo

Fluxo migratório para o Brasil dos judeus progressistas (comunistas e socialistas) se intensificou após a ascensão do Nazismo ao poder na Alemanha, em 1933, e por razões econômicas pós crise de 1929, além da fuga das ditaduras fascistas e antissemitas da Polônia e Romênia

Dina Lida Kinoshita / Militante e dirigente do PCB, PPS e Cidadania

Com o estabelecimento das “quotas” por nacionalidade para emigração aos Estados Unidos, nos anos 1920, o Brasil passa a ser uma das possibilidades para os judeus do Leste Europeu. É uma emigração pós pogroms ocorridos durante a Guerra Civil, nas regiões do Império Czarista onde a Revolução de Outubro fracassou, sobretudo na Polônia e na Lituânia. Com a ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha em 1933 e, a política britânica de conter a ida de judeus para a Palestina a partir de 1936, esse fluxo migratório para outros países, entre eles o Brasil, se intensificou. Essa emigração ocorre não só devido ao perigo nazista, mas principalmente por razões econômicas pós crise de 1929 e pela fuga de judeus progressistas (comunistas e socialistas) das ditaduras fascistas e antissemitas da Polônia e Romênia.

Esses judeus progressistas foram forjados nas lutas contra a opressão da autocracia czarista e posteriormente nos países do “cordão sanitário”, criados para que a “praga bolchevique” não se alastrasse. Vinculados aos círculos socialistas surge um novo tipo de intelectual dentro “...da tradição marxista que levou o movimento político fundado nos trabalhadores a dar ênfase particular ao desenvolvimento da teoria, considerado indispensável para orientar uma prática transformadora da realidade...”[1]. Apesar da pouca ou nenhuma educação formal uma vez que vigia ora o “numerus clausus” ora o “numerus nulus”, formavam-se verdadeiros intelectuais autodidatas para quem a questão cultural era central para esse fim. Havia nos estratos populares uma fome de cultura e esses autodidatas tinham uma militância ativa e nada do que é humano lhes escapava. Além do que, antes do surgimento da indústria cultural, os círculos comunistas e socialistas eram os grandes difusores da cultura laica nas classes populares.

Desde os primórdios da imigração judaica do Leste Europeu, os progressistas de São Paulo criaram várias entidades. Nos anos 1920, inicialmente o Tsukunft (O Porvir) e, depois o Yugnt Club (O Clube da Juventude), que privilegiava o aprimoramento cultural, do ponto de vista marxista, dos poucos operários e uma maioria de mascates, muitos deles militantes de bairro.  

Esses imigrantes tentaram se integrar ao novo país onde viviam, porém nunca deixaram de lançar seu olhar ao que ocorria no “Velho Lar” onde houve uma Revolução que prometia “pão, paz e terra”[2].

As décadas de 1930-40 talvez tenham sido o auge do que Eric Hobsbawm denominou “A Era dos Extremos”[3]. Embora nos anos 1920 já houvesse ditaduras fascistas na Itália e em Portugal, a ascensão do nazismo ao poder agravou deveras o contexto político europeu. Essa última vitória decorre em grande parte devido à política de “classe contra classe” definida no VI Congresso da Internacional Comunista (IC), em 1928.

Para barrar o avanço do nazi fascismo a IC convoca para julho de 1935, o VII Congresso, onde são aprovadas as teses do búlgaro Gyorgy Dimitrov, de construção das “frentes populares”. Neste congresso houve uma sessão de grandes escritores e intelectuais de todo o mundo, “Em Defesa da Cultura”[4]. A fração judaica que acorreu a essa reunião convocou um congresso para julho de 1936, a ser realizado em Paris. Houve um boicote de alguns no mundo Ocidental, mas no cômputo geral, o Congresso “Em Defesa da Cultura Judaica” obteve grande êxito e ao final, foi criado o “Ídicher Cultur Farband” (ICUF)[5]. O representante do Brasil foi Menachem Kopelman.

A organização do ICUF tinha uma estrutura que consistia de um comitê internacional inicialmente sediado em Paris, posteriormente transferido para os EUA, devido à invasão nazista; os comitês nacionais, nos países onde havia comunidades que se expressavam na língua iídiche, e uma vasta rede de entidades locais. A cada três anos eram previstos os congressos nacionais. Essa estrutura seguia muito de perto, a das Internacionais Socialista e Comunista, bastante hierarquizada e verticalizada. Certamente não corresponde às redes modernas, onde as novas tecnologias propiciam muito mais horizontalidade. Mas com certeza, havia um grande intercâmbio entre estes setores progressistas das diversas comunidades. A II Guerra Mundial e o extermínio dos judeus europeus haviam diminuído a importância do Comitê Internacional e os comitês regionais e nacionais adquiriram mais força.[6]

De toda maneira a frente formada em torno do ICUF, é a que se havia constituído nas organizações clandestinas de resistência nos guetos e nos destacamentos partisans durante a II Guerra Mundial e que perdurou no imediato pós-guerra, onde atuavam comunistas, bundistas e sionistas de esquerda. Basta verificar os nomes e filiações partidárias dos mais destacados comandantes, militares ou intelectuais, da resistência antifascista judaica na Europa Oriental: Mordechai Aniliewicz, Josef Kaplan e Arie Wilner do Hashomer Hatzair (Jovem Guarda), Josef Lewartowski e Itzik Vitenberg do Partido Comunista Polonês, Marek Edelman e Michal Klepfisz do BUND e Dr. Emanuel Ringelblum do Linke Poale Tzion (Esquerda dos Operários de Sion).

Judeus brasileiros integraram as tropas das Brigadas Internacionais. Foto: Reprodução

Cabe lembrar que enquanto ocorria este Congresso, judeus provenientes do Brasil estavam lutando nas Brigadas Internacionais ao lado da República Espanhola, durante a Guerra Civil.  [7].

A grande ausência notável no Congresso, foi de uma delegação soviética de escritores que se expressavam no idioma iídiche.

No plano nacional, a década de 1930 se inicia com a ditadura de Getulio Vargas que simpatiza por muitos anos com o nazi fascismo. Foi um período de muita intolerância do governo e resistência judaica com numerosas prisões e deportações. A espada de Dâmocles pendia sobre a cabeça desses imigrantes, uma ameaça real numa Europa fascista[8]. A construção do aparelho repressivo no Brasil, a partir do começo do século XX até os anos 1930, com a instituição do Estado Novo através da Constituição de 1937, mais conhecida como a “polaca”, a repressão se agrava. Especialmente a política varguista com relação aos imigrantes judeus vindos das regiões do antigo Império czarista e de suas possíveis simpatias com a Revolução de Outubro[9]. Não se pode esquecer que nos fins dos anos 1920 e até meados dos anos 1930 a IC havia dedicado uma atenção especial ao Brasil, na medida em que Luis Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, líder máximo da Coluna Prestes, havia ingressado no PCB e vinha-se preparando o Levante de 1935. Um número expressivo de judeus estava envolvido nisso.

O Uruguai, país com estabilidade democrática, prestou solidariedade e refúgio a perseguidos políticos. Pode-se citar como exemplo, os casos de Hersch Schechter que em sua segunda deportação, ocorrida em 1941, e até sua volta após a democratização de 1945, e em seu exílio entre 1964-68 esteve no Uruguai trabalhando no jornal Unzer Fraint (Nosso Companheiro), ou no caso de Alter Kowalski e de Volf Feldman que se fixaram definitivamente no país vizinho e realizaram um trabalho de enlace político-partidário entre as comunidades desses países vizinhos da região. Srul Fajbus Roclaw também passou vários anos no Uruguai, enquanto Josef Lipski esteve no Uruguai e Argentina.

Casa do Povo Monumento Vivo



Havia também decretos secretos proibindo a entrada de judeus no país[10].

Se a difícil situação econômica e a perseguição são condições gerais para os judeus do Leste Europeu, os judeus de esquerda em todas as suas vertentes, são duplamente perseguidos. Embora a história dos judeus de esquerda hoje seja escamoteada e pertença à história dos silenciados e vencidos, sua importância pode ser conferida pelo papel desempenhado pelo BUND na formação do Partido Operário Social Democrata da Rússia, bem como em obras literárias como “A Família Muskat”[11] de Isaac Bashevis Singer, nas memórias de velhos militantes como Hersz Smoliar[12] ou em livros como Le Yiddishland Revolutionaire[13], ou ainda “Le Pain de la Misére” de Weinstok[14]  

Enquanto alguns preferiram inserir-se nas lutas gerais do povo brasileiro, a maioria, ao chegar a terras de língua, hábitos e costumes estranhos, reproduz os seus modos de organização dos países de origem.  

Parte dos comunistas judeus nascidos no Brasil ou que chegaram aqui bem jovens, entre os quais poder-se-ia citar Leôncio Basbaum, Hersch Schechter, Sara Becker (mais tarde Sara de Mello), Felícia Itkis (mais tarde Schechter), Noé Gertel, Jacob Wolfenson e  José Gutman, abraçavam em primeiro lugar, as lutas gerais do povo brasileiro, já que a comunidade era e continua relativamente pequena e nunca se respirou o “idishkeit” (atmosfera judaica) da Europa Central e Oriental com muita intensidade. Porém, vários imigrantes que já vinham dos círculos socialistas europeus, como Jacob Frydman, tentaram inserir-se inicialmente nessas lutas do povo brasileiro, e só após muitas perseguições e deportações, os que permaneceram no país, muitas vezes se organizaram no meio judaico. Talvez,  o Levante de 1935 organizado pelo PC em consonância com a IC, tenha propiciado um acerto de contas internacional, uma vez que os integralistas, que tinham forte simpatia pelas forças do Eixo, participavam do governo Vargas[15]. De toda maneira, a violenta repressão que se abate a partir dos anos 1935, praticamente liquidam essa primeira onda de entidades da esquerda judaica.

Em 1942 Vargas muda de posição após uma negociação com o Presidente Franklin D. Roosevelt, em que os Estados Unidos construiriam a Companhia Siderúrgica Nacional, em troca de permissão para construção de uma base militar em Natal, no Rio Grande do Norte, ponto estratégico para a travessia do Atlântico rumo à África. Esse acordo dá margem a fissuras no regime brasileiro. As forças que lutam pela democracia começam a se reorganizar.

Os judeus progressistas também buscam os caminhos para satisfazer as  melhores aspirações populares. Num caminho de vai e vem, abraçavam todas as causas condutoras ao enraizamento na nova terra e ao mesmo tempo preservavam os valores político-sociais, humanistas e literários adquiridos em suas terras natais da Europa Oriental. Foi nesta época que surge o Centro Cultura e Progresso. É um momento de muita efervescência política bem como cultural.

Merece uma menção especial o papel desempenhado pelo teatro  nessa entidade. Unindo o ensinamento de I. L. Peretz, “O teatro é escola para adultos”, e o de Romain Rolland, “O teatro deve compartilhar o pão do povo, de suas inquietudes, de suas esperanças e de suas lutas”, o Dramkraiz (Círculo Dramaático) de São Paulo fez “...do trabalho teatral uma prática deliberada não só de arte, como de educação e política, sem renunciar  contudo, nos vários momentos de sua trajetória e de suas preferências ideológico-estilísticas, à busca da artisticidade, senão da forma, na linguagem dramático cênica.”[16]  Há indícios  de que ainda em 1938, no tempo do Yugnt Club, Riven Hochberg encenou uma peça teatral. O espetáculo ocorreu no teatro  do Clube Luso-Brasileiro. Mas no período do Estado Novo e da II Guerra foram proibidas todas as atividades de estrangeiros.

Porém por volta de 1942, com a “abertura” surge o Centro Cultura e Progresso e as atividades teatrais são retomadas a todo vapor.

Outra atividade essencial era a biblioteca. Havia uma quantidade grande de livros, a maioria em iídiche e português mas também em russo e polonês. Quem cuidava da biblioteca como voluntário era Avrum Rajnsztajn e posteriormente, também Felícia Itkis Schechter.      

Com a mudança de rumo da política internacional do governo Vargas, navios alemães atacam as costas brasileiras e a população começa a se manifestar pela entrada na guerra ao lado dos Aliados. O governo brasileiro vê-se obrigado a organizar a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Muitos judeus se alistam para lutar na Itália, contra o nazifascismo. Entre eles, Boris Shnaiderman, professor de literatura russa da USP; o artista plástico Carlos Scliar; Salomão Malina, o último Secretário Geral do PCB e Samuel Safker, ativista e dirigente da Associaçao Scholem Aleichem do Rio de Janeiro.

Com a derrota do nazi fascismo cai a ditadura de Vargas. Não obstante a pouca atividade das entidades vinculadas ao ICUF durante a guerra, por razões já mencionadas, no imediato pós-guerra, tiveram um grande florescimento e se associaram às congêneres argentinas e uruguaias. Como primeira atividade, trabalharam no auxílio imediato aos sobreviventes do Holocausto que se encontravam, sobretudo na Polônia e, pouco depois nos diversos DP Camps na Alemanha.

Etapas da Casa do Povo em seu início. Foto: Acervo/Casa do Povo

A criação do ICIB e outras atividades afins

Em 1942, enquanto se desenrolava na URSS a sangrenta e decisiva Batalha de Stalingrado, turning point da II Guerra, Manoel Casoy prometeu doar uma soma de dinheiro, caso os nazistas fossem derrotados, para erigir um monumento em homenagem aos heróis e mártires tombados. Terminada a guerra, Casoy cumpriu a promessa. Ao tomar conhecimento da barbárie do extermínio das comunidades judaicas no Leste Europeu, formou-se uma comissão que decidiu construir o Instituto Cultural Israelita Brasileiro (ICIB), mais conhecido como o Folks Hois ou a Casa do Povo.

O espaço também abrigaria a Escola Scholem Aleichem e um Clube Infanto-Juvenil. I. L. Peretz, ambos em homenagem a dois patriarcas da literatura iídiche. Outras atividades que não poderiam faltar eram o Clube de Xadrez, o Leinkraiz (Círculo de Leitura) e o Coral que cantava belas canções populares do  repertório iídiche bem como músicas revolucionárias e de combate. Os  três grupos teatrais, o Dramkraiz e outros dois em língua portuguesa se apresentavam em outros teatros  da cidade, inclusive no Teatro Municipal. Esses grupos amadores de alto nível foram premiados por diversas vezes. O Teatro de Arte Israelita Brasileiro (TAIB) só foi inaugurado em 1960. 

O edifício é uma espécie de Palácio da Cultura, para preservar pelo menos uma pequena parte do que foi destruído. A comunidade judaica de São Paulo engrossou sua simpatia pela esquerda pois os soviéticos libertaram a maioria dos grandes campos de concentração e de extermínio. Quase toda a comunidade contribuiu ainda que fosse com um tijolo. Foi uma demonstração do apreço pelos progressistas. O ICIB foi fundado em 1948 mas o edifício só foi inaugurado em 1953. A biblioteca já existente nas entidades anteriores foi incorporada à nova sede.

Os arquivos da Casa do Povo têm muitas lacunas, não por incompetência dos que o organizaram. Os longos períodos de autoritarismo no Brasil, durante o século XX, e a tradição revolucionára do Leste Europeu é rica em silêncios. Muitos eventos não constam nos arquivos, outros não têm data ou são anunciados de uma maneira hermética que só quem estava presente pode recordar do que se trata. Um exemplo disso é um convite para ouvir um camarada que viajou para a Europa. Se visitou em Paris o Moulin Rouge ou a redação do Sovietish Heimland em Moscou é impossível saber.

Porém houve muitas conferências e debates. Escritores e intelectuais importantes, militantes da cultura iídiche como Aron Kurtz (presidente do ICUF nos EUA), os poetas H. Lêivik e SZmerke Kaczerginski, bem como da cultura universal, como, Pablo Neruda (Prêmio Nobel de literatura, Chile), Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, o cantor Paul Robson, Ida Kaminska (atriz do Teatro Estatal Judeu da Polônia e intérprete principal do filme, A Pequena Loja da Rua Principal, Mario Schenberg (intelectual e eminente físico teórico), entre muitos outros proferiram conferências ou participaram de atividades artísticas na entidade. Marcos Ana, poeta libertado das masmorras franquistas nos anos 1960 também foi ouvido na Casa do Povo. Foram homenageados em seus natalícios ou em datas fúnebres, Scholem Aleichem, I. L. Peretz, Moishe Olguin, M. Gebirtig, Avrum Reisn, bem como W. Shakespeare, Rubén Dario, Euclides da Cunha, Albert Einstein, Julio Cortázar, Machado de Assis, Rafael Alberti,  entre outros.

A Escola Israelita Brasileira “Scholem Aleichem” de São Paulo foi a primeira escola de pedagogia moderna, durante muitos anos considerada como escola avançada, servindo de modelo às escolas de aplicação e experimentais implantadas na rede de  ensino público mais tarde. Do ponto de vista da educação judaica, o enfoque era laico, sendo a única escola judaica que ensinava no pós-guerra a língua iídiche e não o hebraico. Enquanto os sionistas consideravam o iídiche como a língua dos judeus dos guetos que foram aos crematórios como carneiros, os progressistas afirmavam que em memória aos combatentes e heróis da resistência dos guetos e dos destacamentos de partisans, em memória a toda uma cultura progressista criada em íidiche e destruída durante o Holocausto, e com a esperança de um renascimento sócio-cultural das comunidades judaicas nas Democracias Populares, decidiram manter o iídiche e não ensinar o hebraico. Mas mais importante talvez seja o sentimento transmitido aos alunos de “...serem lutadores invencíveis pelas causas da humanidade.

Além dessas atividades havia outras de caráter nacional:

- O jornal Unzer Shtime (Nossa Voz), cujo redator-chefe nem constava do expediente por ser estrangeiro e havia sido deportado nos anos 1920 e 1940. Quem respondia pelo jornal era o estudante de medicina, Israel Nussenzweig. Mas todos sabiam que Hersch Schechter era a cabeça e a alma do jornal e escrevia todos os editoriais. O jornal se referia às questões da paz e quanto à questão judaica, sempre enfatizava, diferentemente dos jornais sionistas, propostas plurais de experiências das comunidades judaicas, e também demonstrava grande esperança na reconstrução de uma vida sócio-cultural judaica nas Repúblicas Populares e na URSS pós-holocausto. A redação do jornal foi invadida e empastelada logo após o golpe militar perpetrado em 1º de abril de 1964 quando o jornal deixou de ser editado – é difícil prever como esta proposta evoluiria, se houvesse continuidade. Além disso, havia um esforço muito grande, no sentido de encorajar os setores progressistas da comunidade judaica, a se integrarem ao povo brasileiro e às suas lutas mais gerais. O jornal jamais teve uma linha isolacionista. Apesar da década de 1970 ter sido a época de ouro dos jornais alternativos no Brasil, que se colocavam claramente contra o regime ditatorial, como o Pasquim, sucedido pelo Opinião e pelo Movimento, não havia condições de relançar o Unzer Shtime, porque quase ninguém mais lia em íidiche e a Casa do Povo vivia permanentemente vigiada, alguns de seus ativistas e diretores estavam presos no Doi-Codi[17], não permitindo grandes atividades. Quanto à orientação, o Unzer Fraint segue a mesma tônica e também não resistiu ao regime ditatorial uruguaio dos anos 1970;

Atividades desenvolvidas na Casa do Povo. Fotos: Acervo/Casa do Povo

- A juventude publicava a revista O Reflexo entre 1946 e 1951 sob a direção de Luiz Israel Febrot. Também organizavam bailes e comemorações festivas.

A simpatia da comunidade judaica pela esquerda no imediato pós-guerra, teve reflexos de algum modo no número e destaque intelectual de quadros de origem judaica da geração de 1945, na direção do PCB. Pode-se citar Salomão Malina, Jacob Gorender, Mário Schenberg, Marcos Chaimovitch, Isaac Scheinvar, Maurício Grabois, Moisés Vinhas e Carlos Frydman entre outros. Num determinado momento, o setor judaico do PCB em São Paulo foi a base mais importante e Eliza Kaufman Abramovich, diretora da Escola Scholem Aleichem, foi a vereadora mais votada e a bancada de comunistas majoritária na Câmara dos Vereadores da cidade. Já em 1946, na eleição para a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, foi eleita uma bancada expressiva de deputados comunistas, entre eles, Mário Schenberg. É difícil fazer comparações com eleições anteriores uma vez que de 1930 a 1945 só houve uma eleição direta para a Assembléia Nacional Constituinte de 1934, quando poucos judeus no Brasil puderam votar, por sua condição de estrangeiros ou porque muitos chegaram após esta data;

- A Colônia de Férias Kinderland funcionava como um prolongamento da escola em época de férias. Além das atividades recreativas, havia uma vasta programação cultural e um aprofundamento da noção de vida coletiva em detrimento do individualismo.

A Associação Feminina Israelita Brasileira (AFIB) se espelhava na tradição de Clara Zetkin e Rosa Luxemburg, das mulheres combatentes de todos os tempos pela liberdade e pelos direitos humanos, desde as operárias de Manhattan em greve pela redução da jornada de trabalho, até pelas combatentes Niuta Teitelboim do Gueto de Varsóvia e Vita Kempner do Gueto de Vilna. As voluntárias da AFIB administravam[18] a Colônia.

Passeio sonoro pelo Bom Retiro



Assim, esta frente, paralelamente à atividade política, realizava um trabalho nas áreas de educação e cultura.

Ao analisar as atividades da Casa do Povo, vem à lembrança o texto de T. Grol a respeito do Bund na Polônia: “Paralelamente à atividade política e sindical, o BUND realizava um trabalho ramificado e multicolorido nas áreas de educação e cultura. Quem de nossa geração não se lembra da maravilhosa rede de escolas populares judaicas, bibliotecas, associações culturais, clubes esportivos, sanatórios infantis, jornais, boletins e revistas na Polônia do pré II Guerra Mundial, organizadas pelo BUND?”[19] Se o movimento não adquiriu a mesma pujança é preciso guardar as devidas proporções quanto ao tamanho das respectivas comunidades e ao tempo de enraizamento nos vários lugares.

A questão da paz é recorrente ao longo de todas as décadas, com ênfase especial na obtenção de uma paz negociada, justa e duradoura no Oriente Médio, que contemple todos os povos da região. Mas nunca deixaram de lutar por um mundo mais igualitário e pacífico e pelo banimento dos artefatos bélicos nucleares. Transcrevo abaixo um trecho de uma convocatória do XXV aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia:

“... Hoje, quando comemoramos o XXV Aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia, que tão tragicamente nos lembra a II Guerra Mundial, sentimo-nos inquietos com os conflitos que surgem e se desenvolvem no mundo. Inquieta e nos revolta a tragédia do Vietnã, onde diariamente milhares de preciosas vidas de homens, mulheres e crianças são impiedosamente ceifadas e que poderá culminar com o emprego de armas atômicas, e como conseqüência, provocar uma III Guerra Mundial, com o perigo de aniquilamento de grande parte da humanidade. Portanto, é nosso dever unirmo-nos a todos os povos amantes da Paz, para clamar contra  os conflitos que surgem e se desenvolvem no mundo. .”

“...A Israel cabe criar condições de vida e segurança para o País e aos seus cidadãos, como também achar soluções pacíficas para os problemas de fronteiras ou outros, com seus vizinhos Árabes.

No interesse do Estado de Israel e do povo judeu espalhado pelo mundo, no interesse, felicidade e bem estar de toda a humanidade, é necessário que juntos, todos os povos, empreguem os meios e esforços para que a paz e a liberdade sejam preservadas.” (1968)

A política soviética com relação aos judeus durante
a II Guerra Mundial e no imediato pós guerra

É inegável que, durante os anos do Grande Terror stalinista foram liquidados muitos judeus, Mas, ninguém atribuía este fato ao antissemitismo. Era considerado como um acerto de contas genérico do stalinismo com todos que não rezavam nesta cartilha: trotskistas, bukhrinistas e outros “istas” menos conhecidos por quem não é íntimo da história do PCUS e do regime soviético.

E nos anos da Grande Guerra Patriótica, como os soviéticos denominavam a II Guerra Mundial, os judeus se destacaram não só por seu heroísmo e bravura em combate contra o invasor nazista, mas também, pela proximidade entre os idiomas iídiche e alemão que lhes rendeu missões militares especiais.

Durante o período de guerra, abriram-se certas brechas no regime stalinista uma vez que Stalin estava empenhado em demonstrar que não estava interessado em exportar a Revolução, mas, tão somente, na aliança com os Aliados do Ocidente para derrotar os nazistas. Foi neste contexto que a comunidade judaica soviética havia logrado criar o Comitê Judaico Antifascista. Por outro lado, até 1944 os Aliados do Ocidente ainda não haviam aberto a II Frente na Europa e o peso do conflito nesta região era suportado pelos soviéticos. Stalin constituiu em 1943 uma Comissão Antifascista Judaica para visitar os EUA visando angariar fundos para o esforço de guerra soviético e, conclamar a grande comunidade judaica norte-americana oriunda da antiga “Zona de Residência” para se manifestar pela abertura da II Frente.

Esta comissão era composta pelos próceres da intelectualidade judaica soviética que se expressavam em iídiche: Solomon Mikhoels, grande ator e diretor do Teatro de Arte Judaico de Moscou, e os poetas Itzik Feffer e Peretz Markish. Esta Comissão acabou tendo contatos com intelectuais e artistas como o ator e cantor negro Paul Robeson que participou do maior evento pró-soviético promovido nos EUA pela comunidade judaica de Nova Iorque, com o apoio de Albert Einstein. O evento em favor da abertura da II Frente na Europa, ocorreu no dia 8 de julho de 1943.   Logo após a II Guerra, a URSS era vista como a grande vitoriosa da guerra na Europa e gozava de muito prestígio. 

No imediato pós guerra a URSS estava  interessada em meter uma cunha no Oriente Médio contra os países colonialistas, a saber, Grã-Bretanha e França. Quem presidiu a Assembleia Geral da recém criada ONU, em novembro de 1947, foi o diplomata brasileiro Oswaldo Aranha, mas quem encaminhou e defendeu a proposta da partilha da Palestina, que deu ensejo à criação de um Estado judeu — e de um Estado árabe-palestino — , foi Andrey Gromyko, embaixador soviético neste organismo. Os Estados Unidos votaram a favor da proposta com muitas reticências, a Grã-Bretanha se absteve. Todos os países árabes rejeitaram a partilha e declararam guerra ao Estado recém-criado, com o apoio tácito dos britânicos. A República Popular da Checoslováquia fornecera, em grande medida, as armas utilizadas pela Haganá, embrião do Exército israelense, na Guerra da Independência (1948). Note-se que o processo de descolonização na Ásia e África estava em marcha com o apoio decisivo da URSS. No entanto o Estado Palestino não existe até os dias de hoje.

TVFAP: Entrevista de Dina Lida Kinoshita



Foi um momento de grande unidade do povo judeu. Sionistas e progressistas apoiam a criação do Estado de Israel – se para os primeiros essa criação simboliza a realização de um sonho milenar de volta à “Terra Prometida”, para os segundos, trata-se de um movimento de libertação nacional em que o apoio soviético para um Estado judeu, afetaria os interesses imperialistas numa região altamente estratégica como tem sido ao longo de séculos, o Oriente Médio. Por outra parte, não se pode ignorar que embora houvesse um apoio firme da URSS e das Repúblicas Populares na ONU à criação do Estado de Israel, a atitude dos comunistas sempre foi matizada por um outro sentimento: havia a esperança de um reflorescimento das comunidades judaicas no Leste Europeu, que seria a experiência socialista, e não sionista, de solução da “questão judaica”.

Esse momento durou pouco: a frente constituída nos anos da guerra que perdurou no imediato pós-guerra sofreu uma fratura. Retiraram-se das organizações progressistas, primeiro os sionistas de esquerda e mais tarde outros grupos socialistas. Os sionistas de esquerda, em nível mundial, se alienam das políticas locais e passam a privilegiar uma política de fortalecimento e consolidação do Estado de Israel que pretendiam democrático e socialista. Esta política se expressa na prática por um apoio financeiro, cultural e uma emigração expressiva para o Estado de Israel, entre 1948 e 1965, principalmente de jovens que se dirigem para Bror Khail, Guivat Oz e Gash, conhecidos como os kibutzim de brasileiros.

Contudo, para entender as mudanças, não se pode deixar de fazer uma reflexão a respeito da política brasileira no que diz respeito ao antissemitismo. Durante o Estado Novo, o governo brasileiro foi muito influenciado pelo integralismo, com grandes simpatias pelo Eixo, e praticou uma política cujo conteúdo tem fortes matizes antissemitas. Nesta conjuntura, um grupo de imigrantes que se sente marginal, acaba ingressando num partido de propostas internacionalistas que também é marginal, clandestino e ilegal como o PCB, embora houvesse um número reduzido de anarquistas e trotskistas. Segundo Hobsbawm[20]. talvez, por falta de opções. Outro fator que deve ser levado em conta, é a “política de substituição de importações” implantada no Brasil que propicia às novas gerações de judeus nascidos na região uma ascensão social e cultural. Estas comunidades deixam de sentir-se marginais, e nos momentos de democratização tem maior leque partidário para escolha.

Mas a lua-de-mel dos Aliados dura pouco. Este quadro começou a mudar de rumo, por várias razões:

Menos de um ano após a vitótia Aliada, Winston Churchill profere em 5 de Março de 1946, na cidade de Fulton, EUA, o famoso discurso sobre a Cortina de Ferro, dando início à Guerra Fria.

O Estado de Israel era economicamente inviável. Embora a URSS tenha se empenhado na criação deste país, não tinha condições de prestar ajuda econômico-financeira, dado que necessitava reconstruir o seu próprio país que sofrera perdas humanas e materiais incalculáveis durante a Grande Guerra. O Plano Marshall possibilitou uma recuperação mais rápida à Europa Ocidental. Ao ser criada a República Federal da Alemanha, seu primeiro chanceler, Konrad Adenauer, firmou um tratado com o Estado de Israel (1951) pelo qual os sobreviventes do Holocausto teriam indenizações vitalícias, e a soma referente aos 6 milhões de assassinados destinar-se-ia ao novo Estado, o que deu um certo alento econômico.

Com o surgimento do macartismo nos Estados Unidos, houve um certo temor de que ocorressem perseguições aos judeus norte-americanos, uma vez que havia manifestações antissemitas e racistas em vastos setores do país. Portanto, não interessava o confronto com esta superpotência.

Em 1951, se reorganiza a Internacional Socialista (IS), totalmente destroçada com a ascensão do nazismo, uma vez que o Partido Social-Democrata Alemão havia sido o grande sustentáculo desse campo político. Os partidos trabalhista (Mapai) e socialista (Mapam), majoritários na fundação do Estado de Israel, ingressaram na IS.

Mais adiante, num contexto absolutamente polarizado da Guerra Fria, os países europeus, dirigidos por partidos pertencentes à IS, alinharam-se com os Estados Unidos, bem como Israel, A URSS passa a investir nos países árabes para fincar uma posição estratégica no Oriente Médio. Os países da OTAN já haviam cercado os países do bloco soviético e, a URSS buscava manter bases militares nos países do Terceiro Mundo.

A comemoração realizou-se com pleno êxito com a presença de um grande número de delegações estrangeiras, sem, no entanto, nenhum delegado soviético. Todos se indagavam onde estava a antiga Comissão Antifascista. E os rumores começaram a se espalhar pelo mundo.

Mas as manifestações antijudaicas já aparecem no início de 1948. A primeira envolve  URSS e Polônia ainda no início de 1948. Hersz Smoliar recorda em suas memórias: o Comitê Central dos Judeus Poloneses, hegemonizado por velhos quadros do PC polonês, decidiu realizar um grande evento internacional,  por ocasião do quinto aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia com a inauguração do Monumento em homenagem aos Heróis e Mártires do Gueto. Organizações judaicas de quase todos os países, não só aprovaram a ideia, como a apoiaram financeiramente. O Comitê polonês considerava de suma importância que uma delegação soviética de grande representatividade comparecesse ao evento apesar das dificuldades havidas naquela época para cidadãos soviéticos saírem do país, ainda que para as Repúblicas Populares. Smoliar, em nome do comitê polonês, havia contatado Itzik Feffer para dar andamento ao projeto além dos trâmites legais requeridos.

Combinaram de se falar por telefone semanalmente, sendo que a chamada era feita alternadamente por um deles. Num determinado dia agendado, Smoliar esperou por um longo tempo ser chamado de Moscou, mas foi em vão. Decidiu então ligar e, a secretária de Itzik Feffer, com voz embargada e muito alterada comunicou-lhe que Itzik Feffer não se encontrava e que Solomon Mikhoels já não está de todo... o primeiro reflexo de Smoliar era, que haviam levado Shlomo Mikhoels, detido... talvez também a Feffer. Voltou a ligar em seguida ao redator do Einikeit (Unidade), que lhe transmitira tudo que sabia então, a respeito da morte de Shlomo Mikhoels. Smoliar transmitiu imediatamente tudo que soubera à fração comunista do Comitê Central dos Judeus Poloneses e ninguém teve qualquer desconfiança de que esta morte tivesse sido planejada.

A comemoração realizou-se com pleno êxito com a presença de um grande número de delegações estrangeiras, sem, no entanto, nenhum delegado soviético. Todos se indagavam onde estava a antiga Comissão Antifascista. E os rumores começaram a se espalhar pelo mundo.

Mas os camaradas poloneses tinham um outro desgosto. Wladislaw Gomulka, secretário-geral do Partido Comunista Polonês e chefe do governo daquele país, se jactava em afirmar em seus discursos que a Polônia pós-guerra era um Estado uni nacional, negando a existência de minorias ucranianas e alemãs e jamais se referindo aos 10% de judeus desaparecidos como vítimas do Holocausto nazista[21].

Entrementes, nos EUA grassava o macartismo e ninguém escapava às investigações extremamente agressivas da Comissão de Investigação de Atividades Antiamericanas. Funcionários públicos, cientistas, intelectuais e artistas eram os mais visados. Carreiras eram destruídas, muitos perdiam seus empregos e alguns eram presos. Um dos investigados foi Paul Robeson que saiu do país.

De acordo com várias versões biográficas de Feffer e Robeson na Wilkipedia,  seis anos depois, Robeson havia chegado a Moscou por ocasião das comemorações do 150º aniversário do poeta Alexander Pushkin. Ao chegar a Moscou, preocupado com a situação dos artistas judeus soviéticos, Robeson solicitara às autoridades soviéticas um encontro com Feffer, que havia conhecido e se tornaram amigos, durante a guerra, nos EUA. Foi-lhe dito que Feffer estava passando férias na Criméia e se demoraria naquela região. Diante da insistência de Robeson, as autoridades soviéticas tiveram que retirar Feffer, muito debilitado, da prisão, mantê-lo sob cuidados médicos por um tempo para que se restabelecesse, e então, o levaram ao encontro com Robeson. Um encontro estranho onde ambos se abraçaram, sem que Feffer pudesse emitir mais que uma palavra, pois, a sala havia sido grampeada pela NKVD (antecessora da KGB). Feffer conseguira transmitir a Robeson por meio de gestos que Mikhoels havia sido assassinado pela polícia secreta bem como a real situação dele e de muitos outros intelectuais e artistas. Desafiando as autoridades soviéticas, em sua apresentação na sala Tchaikovsky, no dia 14 de junho de 1949, homenageou seus amigos Feffer e Mikhoels e cantou o Hino dos Partisans de Vilna, em iídiche e russo.

Os sionistas já denunciavam esses fatos mas a esquerda judaica não sionista, não acreditava no que ocorria, dizendo que eram invencionices dos imperialistas. Um emissário soviético chegou a circular entre as comunidades judaicas da América Latina desmentindo os fatos.[i]

Golda Meir (E) tornou-se a primeira embaixadora do recém criado Estado de Israel na URSS. Foto: AP

Outro acontecimento inusitado ocorreu poucos meses antes. Golda Meir tornou-se a primeira embaixadora do recém criado Estado de Israel na URSS. Pouco depois de sua chegada a Moscou ela foi à Grande Sinagoga por ocasião de Rosh Hashaná. Costumeiramente, apenas uns dois mil judeus moscovitas participavam destas cerimônias e, nesta ocasião compareceram cerca de cinquenta mil pessoas, obviamente  para prestigiá-la e não por razões religiosas. As autoridades soviéticas interpretaram este gesto como um renascimento do nacionalismo judaico o que deu ensejo a novo expurgo. Desta vez os julgados foram acusados de “cosmopolitismo”. Poucas semanas depois os embaixadores foram convidados para uma recepção, em homenagem ao 31º aniversário da Revolução Russa. O Ministro de Relações Exteriores da URSS era Vyascheslav Molotov. Durante a festividade, a esposa do Ministro, Polina Molotov, havia se dirigido a Golda Meir em iídiche, exortando-a a frequentar mais vezes a sinagoga.

 Poucos dias depois, Polina Molotov foi detida, obrigaram-na a se divorciar e, em seguida, enviaram-na para um campo de trabalhos forçados na Sibéria.   Foi julgada por alta traição por desconfiarem que houvesse transmitido segredos do Estado Soviético à líder sionista[22].

Nesta conjuntura mundial ocorreu outro fato, desta vez, um expurgo na Checoslováquia. Rudolf Slansky, secretário geral do PC Checoslovaco e outros 13 altos dirigentes do partido foram presos sob a acusação de alta traição à Pátria. Todos, velhos quadros experimentados, dos quais dez eram judeus, foram acusados como, burgueses, sionistas e titoístas. Foram condenados à morte. Arthur Londor, apesar das violentas torturas sofridas sobreviveu, condenado à prisão perpétua e, mais tarde, confirmou que os outros foram liquidados[23]. Este processo espetáculo ocorrera mais ou menos na mesma época que o de Julius e Ethel Rosenberg, vítimas do macartimo nos EUA, também condenados à morte por alta traição porque teriam fornecido à URSS, segredos referentes à bomba atômica.

Em 1953, pouco antes de morrer, Stalin havia determinado que os seus médicos judeus fossem assassinados porque estariam metidos num complô para assassiná-lo ministrando-lhe substâncias venenosas.

Há quem atribua todos esses fatos à mente doentia e conspiratória de Stalin.  Contudo, ao  analisar os fatos em seu conjunto, é crível que o alinhamento do Estado de Israel com as democracias ocidentais havia provocado uma “limpeza” de judeus nos altos postos da URSS e das Democracias Populares.

No fim de fevereiro de 1956 ocorreu o XX Congresso do PCUS quando Nikita Khruschev denunciara os crimes stalinistas e afloraram vários dos episódios aqui relatados entre muitos outros[24]. Esse Relatório Secreto provocou um verdadeiro terremoto em todos os partidos e organizações de esquerda do mundo. Não foi diferente em São Paulo. Em particular, houve debates muito acirrados na Casa do Povo entte os que continuaram apoiando o bloco socialista ainda que criticamente e os que pretendiam uma postura de rompimento total. Em 1957 formaram-se duas chapas para eleger  a Diretoria. Tentando um consenso pela unidade em três assembleias. Mas na primeiras não houve consenso. Na segunda, Manoel Casoy, presidente de honra, assumiu a Presidência pro tempore. E na terceira, decidiram que as duas chapas formadas teriam direito de ter um número proporcional de diretores e conselheiros de acordp com a quantidade de votos obtidos. Mas a chapa capitaneada por Godl Kon, apesar de obter 40% dos votos, não  indicou ninguém para os cargos que lhe cabiam e se retirou da Casa do Povo. Foi impossível o consenso. Num mundo onde só havia branco e preto, sem tons e semitons, muitos quadros e ativistas da chapa derrotada se retiraram; alguns passaram a trabalhar em organizações sionistas, outros simplesmente se afastaram de qualquer atividade sócio-cultural. Alguns poucos ficaran nuito deprimindos e houve até um caso de suicídio.

História Oral Wexler do Yiddish Book Center



Enquanto a aproximação do Estado de Israel com os EUA atingira seu ápice logo após a Guerra dos Seis Dias (1967), quando os israelenses ocupam a Cisjordânia, Gaza, o Golan, o Sinai e a parte oriental de Jerusalém, a URSS e grande parte da comunidade internacional condenaram veementemente essa decisão. A URSS e as Democracias Populares do bloco soviético romperam relações diplomáticas com este país. Num processo binário de “bandido e mocinho”, se deu apoio integral aos palestinos e a clivagem se tornou absoluta.

Após o golpe militar ocorrido no Brasil em 1964, há um esvaziamento do movimento popular de um modo geral. A despeito disso, a Casa do Povo ainda exerceu alguma influência na comunidade até 1967. Muitos dos que não se deixaram abater, mesmo em momentos críticos para os judeus progressistas, tiveram uma atitude diferente em 1967. Poucos dos judeus progressistas mantiveram sua serenidade, o emocional falou mais alto, e a maioria apoiou Israel posteriormente. Foram pouquíssimos os que condenaram a ocupação desde o início, previram as dificuldades que os israelenses teriam se não desocupassem logo a região e continuaram apoiando a URSS e o Leste Europeu, por seu papel na descolonização da África e Ásia, por se contrapor à política agressiva do imperialismo americano e por entender que era justo criar um Estado Palestino, do mesmo modo que havia sido justo criar o Estado de Israel.

Muito poucos tiveram uma visão profundamente internacionalista, tendo clareza de que embora os interesses do Estado Soviético e os do Movimento Comunista Internacional, nem sempre caminhassem juntos, mas disciplinadamente jamais criticaram a URSS, para não dar munição ao inimigo imperialista. Neste período, no contexto da lógica binária da Guerra Fria, Israel tornou-se o principal aliado estratégico dos EUA no Oriente Médio enquanto a URSS e todo o bloco do “socialismo real” rompeu relações com o Estado de Israel e apoiou decididamente a OLP e alguns países árabes. A situação política e sócio-cultural das comunidades judaicas do Leste Europeu deteriorou-se culminando com um verdadeiro êxodo de velhos quadros comunistas na Polônia, todos cassados e aposentados compulsoriamente.

Os soviéticos nem podiam emigrar para não fornecer dados sigilosos aos países capitalistas.  Esse quadro desloca o voto da maioria da comunidade judaica para a direita.  Entretanto, perante parte da juventude de esquerda sionista o modelo de um Estado de Israel democrático e socialista sofrera forte abalo com a ocupação dos territórios. Muitos abandonaram a militância sionista e abraçaram uma militância socialista no Brasil. Entretanto não engrossaram as fileiras dos progressistas. Estes grupos ingressaram preferencialmente em organizações trotskistas ou nas dissidências armadas. Muitos pagaram com a própria vida por esta opção. Alguns entendiam que o PCB era muito moderados; outros declararam que Israel ainda estava nos seus horizontes apesar do abalo, e não poderiam ingressar em um partido profundamente vinculado à URSS e às Democracias Populares que haviam rompido relações com o Estado de Israel, apoiando irrestritamente os países árabes e a OLP.        

Afastamento do Brasil dos EUA levou o regime militar à política do “pragmatismo responsável”. Foto: Arquivo Nacional

Durante o governo do general Garrastazu Médici, ocorreu uma inflexão no Brasil. O país teve uma acelerada acumulação capitalista no período, passando a ser um exportador de manufaturados. Dentro da perspectiva do “Brasil, Grande Potência”, a questão energética necessária para o desenvolvimento dos grandes projetos mínero-metalúrgicos, petro e cloro-químicos foi considerada prioritária. Como corolário o Estado brasileiro decide implementar também o projeto de desenvolvimento da tecnologia nuclear, para satisfação daqueles que desde os anos 1940 defendiam essa alternativa energética. Além de aumentar a energia hidroelétrica com a construção de Itaipu. Ambos os projetos criaram contenciosos com os americanos e com a Argentina.

O afastamento do Brasil dos EUA levou à política do “pragmatismo responsável” caracterizada pelo reconhecimento imediato, junto com Cuba, da República Popular de Angola e por uma abertura para o mundo árabe, que acabou culminando com a assinatura de uma moção na ONU, denunciando o “caráter racista do sionismo”. Pouco a pouco, o “establishment” da comunidade judaica foi então se afastando do regime militar brasileiro.  Por outro lado, a direita passa a governar o Estado de Israel, e apesar dos acordos de Camp David com o Egito (1981), houve uma escalada de atrocidades nos territórios ocupados que culminam com o massacre nos acampamentos de Sabra e Chatila em 1982. 

Várias lideranças que anteriormente fizeram parte do arco da esquerda passaram a dar-se conta que o apoio irrestrito a Israel foi um erro. Mas em Israel também surgem vozes influentes discordantes. O Movimento Paz Agora adquiriu força e grande visibilidade, acabando, anos depois, por levar à queda o governo de direita israelense de Shamir. Entretanto a política de Brezhnev com relação aos chamados "dissidentes", muitos deles judeus, e com relação à comunidade judaica soviética como um todo, dificultou a aproximação entre comunistas e os outros grupos que reivindicavam a paz no Oriente Médio. Levando em consideração que o comportamento político da comunidade judaica era balizado em grande medida pela guerra fria e seus desdobramentos no Oriente Médio, é importante lembrar que M. Gorbachev, enquanto secretário-geral, tenha declarado anos mais tarde, que a política soviética para o Oriente Médio foi excessivamente unilateral. 

Embora os protestos contra o massacre de Sabra e Chatila tenham chocado setores muito mais amplos e expressivos da comunidade judaica, o único espaço disponível para abrigá-los em São Paulo, foi a Casa do Povo, bastante esvaziada. 

Mas este processo de retomada de consciência não implica um reflorescimento da Casa do Povo ou pela esquerda. No plano mais geral, é notório que a "transição democrática" no Brasil ocorre num momento em que o declínio do "socialismo real" já é evidente para muitos. No que concerne a comunidade judaica, é o momento de desaparecimento da geração de imigrantes, de mudanças do perfil sócio-econômico, responsáveis pelo deslocamento das atividades sócio-culturais para regiões urbanas distintas da original. O mais importante e o menos debatido, talvez, se refira ao fato da cultura não isolacionista da esquerda judaica e o encorajamento de integração às lutas do povo brasileiro trazer em si o germe da destruição de uma cultura trazida da Europa oriental que por sua vez não foi substituída por vínculos mais significativos com setores progressistas israelenses. Essa ruptura se dá por duas razões: por um lado os israelenses menosprezam a cultura do judeu do Leste Europeu, chegando em alguns momentos à proibição da língua iídiche e de todas as suas manifestações culturais e por outro, no clima exacerbado da Guerra Fria, os judeus comunistas ignoram que o Estado de Israel é um fato concreto, com sua pluralidade cultural e política e simplesmente o condenam por completo.

Anos de autoritarismo na América Latina e governos de direita em Israel, são fatores que fortalecem os setores democráticos das comunidades judaicas. O esgotamento do modelo do socialismo real e o fim da Guerra Fria caracterizada pelo enfrentamento dos blocos político-militares, pela corrida armamentista e o equilíbrio fundado na ameaça do terror nuclear são fatores determinantes na dinâmica estratégica no Oriente Médio e do papel exercido pelo Estado de Israel de aliado preferencial dos EUA. Os setores da esquerda mais ortodoxa que não atentaram para a crise de civilização que estava se prenunciando, e continuaram a sonhar com o “Birobidjan”[25] acabaram se marginalizando completamente e ficarão na história mas temo que sejam fontes de pensamentos retrógrados e conservadores no futuro. Por outro lado, os setores mais realistas e construtivos vem buscando um novo humanismo, engajando-se nas lutas ambientais, pela cidadania e pela paz e novos meios de superar o sistema capitalista injusto e excludente pela via da democracia e da liberdade. Essa posição implica um aprofundamento dessas questões – a democracia e a liberdade – em condições sociais e políticas novas. É uma posição que pode abarcar as variadas vias contemporâneas de expressão desse humanismo que se redefine, permitindo identificar e criar formas de luta adequadas às também novas formas de fascismo e autoritarismo que afloram hoje. A Casa do Povo não se exime desse debate e tem conseguido trazer mais gente jovem para atividades relacionadas a esse novo judaísmo contemporâneo.

Notas

[1] FREIRE, R., Carta convite enviada a intelectuais brasileiros por ocasoão da criação da Fundação Astrojildo Pereira

[2] LÊNIN, V. I., Discurso proferido por Lênin logo após a tomada do poder pelos Bolcheviques, 1917

[3] HOBSBAWM, E., ”A Era dos Extrtemos”, Companhia das Letras, São Paulo, 1995,

[4]EHRENBURG, I., “Memórias!”, vol. 4, A Europa sob o nazismo, Civilizaão Brasileira, RIO de Janeiro, 1966.

[5] Atas tssaquigráficas do Congresso, Paris, 1937,

[6] KINOSHITA, D. L. “O ICUF como uma rede de intelectuais”, Universum n. 15, Talca, 2000

[7]In Gang” (Em Marcha), Editado por Pinie Katz, Abril de 1937 e entrevista oral com Rivka Gutnik.

[8] IOKOI, Z. M. G., “Intolerância e Resistência: a Saga dos Judeus Comunistas”, Associação Humanitas- Univale, São Paulo, 2004

[9] PINHEIRO, P. S,, “Estratégias da Ilusão”, Companhia das Letras, São Paulo, 1995

[10] KOIFMAN, F., “ O Imigrante Ideal”, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2012  2,

[11] Singer, I.B., A Família Moskat, Livraria Francisco Alves Ed., Rio de Janeiro, 1982

[12] Smoliar, H., Oif der Letzter Pozitzie, mit di Letzter Hofnung, Ed. I. L. Peretz, Tel Aviv, 1982

[13] Brossat, Alain e Klingberg, Sylvia, Le Yiddishland Revolutionnaire, Balland, 1983

[14] WEINSTOCK Le Pain de Misère, La Découverte, Paris, 1984     

[15] VIAZOVSKI, T.  O mito do complô judaico comunista no Brasil, Humanitas, São Paulo, 2008,  

[16] Ginsburg, J. Aventuras  Língua Errante, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1996

[17] Departamento de Ordem Interna, departamento especial formado pelo Serviço Nacional de Informações, Exército e Polícia Militar, encarregado da repressão e tortura de presos políticos nos anos 70

[18] Faziam parte da coordenação Carlota Lachtermacher, Dobe Zonenchein, Ienta Lerner, Ferga Zylbersztajn, Mania Akcelrad, Ita Akcelrad, Tuba Schor, Chaike Lustik,  Gitl Rotstein, Clara Steinberg, Regina Landman e Lola Kaufman entre outras

[19] Grol, T., Gueshtaltn un perzenlekhkeitn in der iidicher un velt gueshikhte, Paris, 1976

[20] Hobsbawm, E., Trabalhadores, Ed. Paz e Terra, Petrópolis

[21] SMOLIAR, H., Oif der letzter pozitzie mit der letzter hofnung, Tel Aviv: Ed. I.L. Peretz, 1982. ,

[22] GREEN, D. B., This Day ln Jewish History: Golda’s Soviet welcome, Haaretz, 4/10/2012

[23] Executedtoday.com 1952: Rudolf Slansky and 10 “conspirators”. Acesso em

3/12/2007.

[24] VOLKOGONOV, D., STALIN:triunfo e tragédia, Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2004

[25] Região Autônoma Judaica na URSS


[i][i] Entrevista com Mina Fridman, militante do Partido Comunista Argentino e ativista social no meio judaico,  realizada em Buenos Aires, em outubro de 2000


“Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino” é tema de podcast

O cineasta Vladmir Carvalho fala sobre a chegada do filme ao NOW, da NET, e da história de vida desse importante personagem da história política do Brasil

João Rodrigues, da equipe da FAP

Sucesso no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2019, o documentário “Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino” chegou à disposição do grande público no NOW, da NET, uma das maiores plataformas de streaming do Brasil, nesta semana. O filme retrata a vida do líder comunista baiano Giocondo Dias, militante de esquerda que viveu dois terços de sua vida na clandestinidade e liderou o PCB como secretário-geral.

Além de resgatar um importante personagem da história política do Brasil, sobretudo na resistência à ditadura, o documentário é uma obra notável do cineasta Vladimir Carvalho, convidado desta edição do podcast da Fundação Astrojildo Pereira. O programa conta com perguntas de Caetano Araújo (diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado), Ivan Alves Filho (jornalista, historiador e escritor), Renato Ferraz (jornalista e gerente de Comunicação da FAP), Gilvan Cavalcanti de Melo (editor do blog Democracia Política e novo Reformismo) e Luiz Carlos Azedo (colunista do Correio Braziliense e do Estado de Minas).


Ouça o podcast!




O episódio tem áudios do filme “Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino Online”, documentário #MINHABRASÍLIA 60 Candangos e do Canal Curta!, no Youtube.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.

Confira o documentário no link: www.nowonline.com.br/filme/giocondo-dias-o-ilustre-clandestino/1838586.




“Velho lar”
É nesse contexto que os judeus foram se “enraizando no Brasil e aprendendo a língua”, como diz a cientista. “Eles tinham um olhar sobre o que ocorria no velho lar, que é onde viveram, nasceram, e essa gente criou muitas identidades culturais. A cultura sempre mesclada com a política. Fizeram teatro, coro, escolas, colônia de férias. Então, já havia uma movimentação muito grande desses judeus que se consideravam progressistas”, afirma ela.

No entanto, no Brasil, segundo Dina, os judeus imigrantes nunca falavam que eram comunistas porque sempre tinham a espada de Dâmocles, por medo de serem deportados já para a Europa nazifacista. Assim, à medida que o tempo foi passando, os filhos deles passaram a nascer em casas comunistas. “Os jovens brasileiros foram se incluindo nesse meio”, relembra a professora, cuja vida é marcada por um enredo distinto do que foi contado até aqui.



Integrantes das brigadas internacionais na Espanha. Foto: Wikipedia

“A minha história é um pouco diferente. Meu pai nasceu no começo do século 20, em família religiosa, e saiu da casa dos pais para Varsóvia. Ele acabou se envolvendo com a juventude comunista e chegou a ser membro do Comitê Central nos anos 1930. Lutou na Guerra Civil Espanhola”, recorda Dina.

Wolf Lida era comissário político de um pedaço da Brigada Polonesa, onde lutavam os judeus. O rumo dele, porém, mudou de repente. O Partido Comunista Polonês, em 1938, foi dissolvido pela internacional comunista e não tinha mais força alguma, assim que acabou a Guerra Civil Espanhola.

“Meu pai não pôde voltar para Polônia, não tinha jeito. Ele acabou indo para a União Soviética, não ficou em Moscou porque a cidade era o centro da Internacional. Ele foi morar na região da Ucrânia que está em litígio, começou trabalhando numa mina de carvão e depois trabalhou no correio”, lembra.



A Batalha de Stalingrado foi  ponto de virada da guerra na Frente Oriental, marcando o limite da expansão alemã na URSS. Foto: Reprodução

Batalha de Stalingrado
No dia em que os nazistas invadiram a União Soviética, em 22 de junho de 1941, Wolf Lida se alistou no exército soviético, e não no polonês. “Ele passou a guerra toda na União Soviética. Lutou, inclusive, na Batalha de Stalingrado e, depois, ainda, foi para o Oriente lutar contra o Japão, mas foram lançadas bombas atômicas. E ele foi desmobilizado, voltando para Polônia”, conta.

Ainda muito criança, no Brasil, Dina passou a viver em uma atmosfera ligada diretamente não só ao PCB, mas aos partidos comunistas do movimento internacional. Ela ingressou no partido em 1961, no primeiro ano do governo de João Goulart. “Nós todos, os mais jovens, éramos mais ou menos filhos da Declaração de Março de 58, quando o partido muda toda a sua política e acaba tendo como estratégia permanente a aliança”.

Em sua juventude, Dina viveu um momento de muita efervescência cultural e política. Além de ver, de perto, o governo Jango, presenciou greves e lutas de camponeses e a série de tentativas de reformas urbanas, na época. Com atuação de destaque, ela chegou a ser dirigente da União Paulista dos Estudantes Secundaristas. Nomes como os de Mário Schenberg e Salomão Malina passaram a ser ouvidos por ela ainda nos anos 1950.



Mario Schenberg: Considerado por Albert Einstein como um dos mais importantes cientistas de sua época. Foto: Reprodução

Mario Schenberg
Aos 15 anos de idade, Dina conheceu Mario Schenberg, em 1962, ano em que ele foi candidato a deputado estadual pela segunda vez, antes de ser eleito suplente, no período da democratização pós-Segunda Guerra Mundial. “Fiz a campanha dele. Ganhou, e ainda tinha mais três deputados eleitos, mas eles não foram empossados, porque o Tribunal Eleitoral disse que eram notórios comunistas e não poderiam assumir”, relata Dina.

Logo depois do golpe militar de 1964, a jovem ingressou na faculdade. Em seguida, Mário Schenberg foi preso. Ele, que era defensor do desenvolvimento da ciência e da tecnologia no Brasil, já era um dos maiores físicos do mundo e considerado por Albert Einstein como um dos mais importantes cientistas de sua época.

Apesar de ser renomado, conforme descreve Dina, Mário Schenberg, um dos fundadores do Conselho Mundial da Paz, “era uma pessoa muito simples”. Recebia os estudantes em casa para conversar. Além disso, trabalhou com os maiores vencedores de Prêmio Nobel do mundo.

“Ele não era uma pessoa interna do partido, mas era uma pessoa que nós podíamos apresentar em qualquer lugar do país e do mundo como uma pessoa que é preocupada com o Brasil e o mundo, contra guerra e defensor da igualdade entre as pessoas”, diz a professora aposentada da USP. Ela também é autora da biografia “Mario Schenberg: o cientista e o político”. O físico morreu, em novembro de 1990, aos 76 anos.



Salomão Malina, “figura ímpar do partido”, define Dina Lida Kinoshita. Foto: Acervo O Globo

Salomão Malina
Outro grande nome da história de Dina é Salomão Malina, definido por ela como “figura ímpar do partido”. Ele era de uma turma de descendentes de judeus nascidos no Brasil. Alistou-se na Força Expedicionária Brasileira (FEB) e lutou na Itália. “Ganhou o maior prêmio de heroísmo e bravura, que foi cassado”, conta a professora aposentada.

Na época, Salomão Malina era estudante de engenharia da hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e militava na juventude do partido. Abandonou tudo. Ao retornar ao Brasil, voltou com ainda mais energia política. Ele trabalhava na Tribuna Popular do Rio. Chegou a ser candidato a vereador, mas não foi eleito. Durante a ditadura, ele foi para o exílio.

Dina fortaleceu os laços com Salomão Malina depois da redemocratização do país, que ocorreu em 1985. No ano seguinte, os dois passaram a trabalhar juntos. “Uma pessoa firme, com ideias muito determinadas, mas, também, um ser humano doce, que conversava, na época, com muitos jovens intelectuais, recém-doutorados ou que ainda estavam estudando”, diz ela.

Diplomático, ele foi uma figura bastante emblemática para o fortalecimento do partido e também se preocupou com as relações exteriores. “Ele teve um câncer muito agressivo e parou de viajar. Confiava muito em mim. Como falo muitas línguas e conhecia muita gente no exterior, até por causa das comunidades judaicas, ele me mandava para tudo quanto é canto do mundo. Aprendi muito com ele”, relembra Dina.

“Não era um homem que tinha algum título universitário, mas tinha um nível intelectual muito alto. Ele foi o meu grande professor da política”, orgulha-se a professora aposentada da USP. Ela também integrou a executiva mundial da Associação Internacional dos Educadores para a Paz e o Conselho Mundial da Paz. Além disso, foi membro da Cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância.







Entrevista com Dina Lida Kinoshita

Confira a entrevista com Dina Lida Kinoshita para o evento virtual “Os judeus comunistas na história brasileira”, realizado ontem (29/7) pela Fundação Asatrojildo Pereira (FAP) e mediado pelo economista Sérgio Besserman Vianna. O debate virtual faz parte da série de eventos on-line da Fundação em pré-celebração do centenário do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e teve transmissão em tempo real no portal da FAP, na página da entidade no Facebook e no canal dela no Youtube.




Sérgio Besserman: Narrativa do comunismo caiu com o Muro de Berlim

Economista vai mediar debate em pré-celebração ao centenário do PCB, no dia 29 de julho, a partir das 19h

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

O economista Sérgio Besserman Vianna afirma que a narrativa do comunismo do século 20 desabou com o Muro de Berlim, em 1989, e pertence ao passado da história da humanidade. “Essa narrativa, estruturalmente, morreu de morte morrida, foi enterrada com estaca de madeira”, afirma ele, neto de judeus comunistas, ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília


Confira o vídeo:




Besserman vai mediar debate virtual sobre judeus comunistas na história brasileira, na quinta-feira (29/7), a partir das 19 horas, como parte da série de eventos on-line da FAP em pré-celebração do centenário do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O evento terá transmissão em tempo real no portal da FAP, na página da entidade no Facebook e no canal dela no Youtube.



“Judeus que vieram para o Brasil antes da ascensão de Hitler ao nazismo, como meu avô e minha avó, tiveram uma experiência no leste europeu que assistiram a episódios revolucionários”, afirma. Ele é presidente do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O economista lembra que alguns judeus anteciparam a vinda para o Brasil por perceberem que “o clima era muito desfavorável, com controle horroroso, perseguição, muitas mortes na Rússia do final do século 19, e nas primeiras décadas do século 20”.

“Alguns decidiram imigrar. Meu avô, por exemplo, antevendo os acontecimentos. Meu avô era polonês, numa parte que atualmente é Rússia, e minha avó era alemã, da parte que atualmente é Polônia”, relata o economista. No Brasil, segundo estimativas do IBGE, cerca de 120 mil pessoas se identificam como judeus.

Além dos partidos comunistas daquela região, havia também partido de judeus de esquerda, mas que não aderiam ao leninismo propriamente e não tinha diálogo com o sionismo. “Esses judeus, quando aqui chegam por São Paulo e Rio de Janeiro, vários deles trouxeram um lançamento dessa tradição de esquerda e aqui se organizaram”, lembra.


Webinários – 100 anos do PCB








“Mais ganancioso”
Besserman também observou que havia narrativa de um sistema estatal, “voltado para maximizar a acumulação da mesma forma do mais ganancioso dos capitalismos, mas com a única peculiaridade de ser estatal”.

“Ela também morreu, ficou moribunda, porque todas as experiências, sem nenhuma exceção, daquele socialismo real deram origem a ditaduras horrorosas e totalitarismos que, às vezes, foram responsáveis pela morte de dezenas de milhões de pessoas”, ressalta o economista.

O chamado socialismo real, segundo Besserman, foi incapaz de competir com o sistema de mercado, ao longo das décadas de 1970 e 1980, “terminando por desaparecer completamente como narrativa não apenas sobre a história da humanidade, mas como narrativa sequer de esquerda, porque não se pode, no século 21, chamar regimes antidemocráticos e pouco progressistas, do ponto de vista da cultura, de esquerda”. “Não era esquerda, era engano”.

Judeus e Marxismo
O estudo Judeus e Marxismo no Brasil: 1922 – 1960, do professor adjunto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Sydenham Lourenço Neto, mostra que, após a primeira guerra, sob o impacto da revolução russa, formaram-se no Brasil distintos grupos comunistas, reunindo principalmente militantes sindicais e intelectuais.

“Em 1921, na cidade do Rio de Janeiro, foi formado um grupo político, visando constituir um partido comunista de acordo com as 21 condições de adesão à III Internacional. No ano seguinte, este grupo fundou o PCB, em um congresso clandestino realizado na cidade de Niterói-RJ. Entre os fundadores destacavam-se Astrojildo Pereira e Otávio Brandão. Dois intelectuais de origem pequeno-burguesa”, escreveu Lourenço.

O pesquisador conta que, ainda nos primórdios da história do PCB, ingressaram no partido, alcançando rapidamente posto na direção do mesmo, indivíduos de origem judaica como Leôncio Basbaum, Mário Schenberg, Mauricio Grabois, José Gutman e um pouco mais tarde Jacob Gorender, Salomão Malina e Moises Vinhas.


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“Especialmente durante o episódio que ficou conhecido como a intentona comunista, a presença de judeus foi bastante expressiva. Estiveram envolvidos na preparação da rebelião, Olga Benário, Nute e Liuba Goifam, Guralski e Arthur Ernst Ewert, militantes que foram destacados pelo movimento comunista internacional para apoiar a ação liderada por Luis Carlos Prestes”, observou o pesquisador.

De acordo com a pesquisa, a prisão de alguns desses militantes ajudou a fomentar o mito do complô judaico bolchevique. O estudo atesta ser bastante complexo obter o número exato de militantes do PCB que tinham origem judaica para as duas primeiras décadas de vida desse partido.

“Em primeiro lugar, porque na maior parte desse período o PCB esteve na clandestinidade e evitava guardar registros precisos e centralizados com a identidade de seus militantes, em segundo lugar porque esses registros, quando existem, raramente fazem uma menção explicita a condição de judeu”, diz a pesquisa.

Para o período posterior este dado é mais facilmente encontrável e já existe pelo menos um estudo completo sobre a presença de judeus em uma seção estadual do PCB.

 “Nesse estudo, verificamos que entre os dirigentes do PCB do Paraná, entre os anos de 1945 e 1964, os judeus declarados somavam dez por cento do total. O dado é ainda mais revelador se lembrarmos que a maioria (70%) se declarava ateus, e os judeus formavam o maior grupo religioso, bem superior aos que se declaravam católicos”, diz a pesquisa.

Webinar da série sobre pré-celebração do centenário do PCB
Os judeus comunistas na história brasileira
Data:
 29/7/2021
Transmissão: a partir das 19 horas, no portal da Fundação Astrojildo Pereira, página da entidade no Facebook e canal no Youtube
Realização: Fundação Astrojildo Pereira (FAP)


Disputa pelo mercado de trabalho será marcada por competências, não títulos, diz Nelson Tavares Filho

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Com carreira no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ex-secretário da Fazenda do Rio Grande do Norte, o economista Nelson Tavares Filho diz que “está havendo uma total mudança nas relações trabalhistas” no Brasil. “A questão maior agora é que as pessoas vão disputar o mercado de trabalho pelas suas competências, não mais pelo título”, afirma.

Confira o vídeo!

https://www.facebook.com/fundacaoastrojildofap/videos/793882214894824/

De acordo com ele, a habilidade para apresentar resultados passará a valer mais. “A competência para atender a determinadas demandas será fundamental”, afirma. “Obviamente, numa perspectiva de que a carteira assinada será quase um luxo de uma minoria, de 30% ou 40% [do total de trabalhadores]”, assevera.

Ele vai debater o papel dos sindicatos e o novo mundo do trabalho, no segundo encontro da série de webinar mensal sobre os 100 anos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que serão comemorados em março de 2022. O evento online será realizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP). Veja mais detalhes ao final desta reportagem.

“Olhar atualizado”

Mediadora do debate, a diretora executiva da FAP e presidente do Sindicato dos Bancários de Campinas (SP)Ana Stela Alves de Lima considera necessário “que o olhar sobre os trabalhadores se atualize”.

Ana Stela ressalta a maior possibilidade de celebração de acordos de trabalho diferenciados que contemplem trabalhadores e empresas, se os sindicatos tiverem um “olhar contemporâneo”, embora a reforma trabalhista permita inovações contratuais.


Podcasts da Rádio FAP – 100 anos do PCB


“Para que isso ocorra, é necessário compreender que não haverá volta à segurança da CLT, em todo o mundo do trabalho brasileiro. E os sindicatos são ainda uma forma de organizar estes trabalhadores”, assevera a presidente do sindicato.

Nelson, por sua vez, acredita que “a mão de obra mais bem formada está em xeque”. “E como vai ser daqui a 10 anos é uma incógnita”, observa. “Os direitos do trabalhador serão reformulados, uns acabarão, outros permanecerão, outros surgirão também”, ressalta.

Avançar

Ana Stela pontua, ainda, que considera importante a discussão sobre o avanço dos sindicatos em relação a questões não somente corporativas, como a defesa do Sistema Único de Saúde (SUS).

“É preciso avançar na defesa da educação pública e outros temas. A luta puramente corporativa não politiza os trabalhadores e cria guetos”, acentua a bancária.

Em relação à história do PCB, o economista diz que “o partidão foi uma universidade”. “[O partido] ensinava você a interpretar a conjuntura política, e a militância no partido era de fundamental importância”, ressalta Nelson.

 


Série de webinar – 100 anos do Partido Comunista Brasileiro (PCB)https://www.facebook.com/fundacaoastrojildofap/videos/1433013897045004/


A seguir, confira a relação de participantes do webinar:

Ana Stela Alves de Lima:  mediadora, bancária, presidente do Sindicato dos Bancários de Campinas (SP) e diretora da FAP.
Lucília Neves Delgado: historiadora, professora da UnB e palestrante principal.
Nelson Tavares Filho: economista, aposentado pelo BNDES e ex-secretário da Fazenda do Rio Grande do Norte.
Comentaristas: Davi Zaia, Enilson Simões de Moura, Roberto Percinoto, Tarcísio Tadeu.

 

SERVIÇO

Webinar 100 Anos de PCB: Os sindicatos e o novo mundo do trabalho
Dia: 30/4/2021
Horário da transmissão: das 19h às 21h
Onde:  portal da FAP e redes sociais da entidade (Youtube e Facebook)

OBS: Os arquivos dos debates da Fundação Astrojildo Pereira ficam disponíveis para o público no portal e nas redes sociais da entidade, por tempo indeterminado

 

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