Paulo Freire

Cristovam Buarque: Paulo Freire, hoje

A partir de Freire, educar passou a ser o mesmo que caminhar para a liberdade: dos que se educam e do mundo que eles construíram

Cristovam Buarque / Correio Braziliense

São raros os pensadores cujas obras atravessam o tempo: Paulo Freire é um desses. Por isso, estamos comemorando seu centenário. Eles têm em comum o fato de mostrarem o mundo de uma maneira diferente de como ele aparecia antes. Como Copérnico, que mostrou que a Terra girava ao redor do Sol, o que parecia impossível à época. Com ineditismo, Paulo Freire mostrou que a educação não se faz apenas do professor para o aluno, mas em uma interação entre eles e as coisas que os rodeiam. A partir dessa visão, revolucionou a maneira de alfabetizar os adultos. 

No lugar dos velhos métodos de ensiná-los como se faz com crianças, ele formulou o seu método: substituir o professor que chega com a cartilha pronta, por uma construída depois de pesquisa, identificando palavras que o aluno usa no seu dia a dia. No lugar de u-v-a igual a uva, m-a-n-g-a igual a manga, no lugar de n-e-v-e igual a neve, usar f-o-m-e como fome. Essa mudança simples, que hoje parece óbvia, representou uma mutação epistemológica, característica de um gênio. Paulo Freire deu o toque de mudança para explicar o mundo e dizer como transformá-lo. 

Não ficou apenas nisso. Paulo Freire promoveu outro ponto de mudança ao sugerir que educar é mais do que instruir, é também dar passos para a liberdade das pessoas que se educam. Antes de Paulo Freire, a educação era um instrumento para ensinar crianças a sobreviverem e contribuírem na construção de um mundo melhor, mais rico e mais belo. Mas ele ensinou que educação é o vetor da libertação de cada pessoa ao conhecer, deslumbrar-se e agir. A partir de Freire, educar passou a ser o mesmo que caminhar para a liberdade: dos que se educam e do mundo que eles construíram. 

Paulo Freire juntou filosofia libertária com o método de alfabetizar, na realização desse processo libertário. Com o u-v-a igual à uva, o aluno tem mais dificuldade, mas pode mesmo assim se alfabetizar, mas ao descobrir que f-o-m-e é igual à fome ele aprende mais facilmente e adquire consciência de sua situação no mundo, das injustiças que sofre e da necessidade de lutar para ir em direção à liberdade, inclusive das necessidades essenciais à vida. 

Com Freire, o papel da educação passou a ser o de ampliar o horizonte da liberdade da pessoa, de seu povo e da humanidade inteira. Ele mostrou também que o aprendizado é resultado da convivência entre o aluno e o professor, sem submissão de um ao outro, com o mundo onde eles vivem. Com essas duas formulações - educação que liberta e que é feita pelo professor junto com o aluno, em sintonia com o que há ao seu redor - Paulo Freire é o Copérnico da educação. 

Depois de Paulo Freire, a alfabetização passou a ser o passo inicial da libertação. Ter visto o que não era visto antes, faz dele um gênio. A partir dele, cabe a nós avançarmos na definição do conceito de analfabetismo, e ampliarmos o uso das novas ferramentas para promover a “alfabetização contemporânea”. Nos tempos dele, analfabeto era quem não sabia decifrar as letras, no mundo global e tecnificado que surgiu deste então, o “alfabetizado contemporâneo” precisa ler, falar, entender, escrever bem seu idioma, falar pelo menos um idioma estrangeiro, conhecer as bases da matemática, das ciências, das artes, das ideias do mundo; ser capaz de entender os problemas, os desafios e os rumos da civilização em sua globalidade e sua interação com a natureza; dispor das habilidades necessárias para exercer pelo menos um ofício e ser capaz de continuar aprendendo até o final de sua vida. 

Esta “alfabetização contemporânea” exige uma educação com a máxima qualidade para todos: quebrar a injustiça com pessoas, ao negar educação a uma parte da população, e parar a estupidez social de desperdiçar o potencial de conhecimento dos que são deixados para trás. Além de aproveitar as modernas tecnologias da teleinformática, a “alfabetização contemporânea” exige assegurar a chance de escola com a máxima qualidade e qualidade igual para toda criança, do dia em que nasce até o final do ensino médio, independentemente da renda, do endereço, da raça e do gênero. Para tanto, será necessário que o Brasil disponha de um Sistema Público Nacional Único de Educação, sem o qual não será possível a máxima qualidade, ainda assegurar equidade plena. 

Paulo Freire foi o gênio educador, sua obra e o mundo precisam agora de educacionistas ativos para abrir os caminhos da liberdade para todos. 

*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o futuro da educação. 

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/10/4953439-cristovam-buarque-paulo-freire-hoje.html


George Gurgel: Paulo Freire e os desafios da educação brasileira

Educação é parte integrante de formação da Cidadania e um dos fundamentos de modernização do Estado e da Sociedade

George Gurgel de Oliveira / Democracia Política e Novo Reformismo

No presente texto, fazemos algumas reflexões sobre a educação, como parte integrante de formação da Cidadania e um dos fundamentos de modernização do Estado e da Sociedade brasileira.

É a nossa maneira de homenagear o centenário de nascimento de Paulo Freire que, por toda a vida, buscou a inclusão social, através da educação, como o caminho mais democrático de transformação da sociedade. Lembrando ainda Anísio Teixeira e Darci Ribeiro, referências quando se fala em educação no Brasil, e o nosso incansável Cristovam Buarque, quixotes de uma educação a ser construída com a participação efetiva dos que, no dia a dia, fizeram e fazem a educação no Brasil.

Discussão oportuna face a atual realidade brasileira, em plena pandemia, desafiada a transformar o sistema nacional de educação frente à nossa difícil realidade política, econômica, social e ambiental, comprometendo as forças democráticas a pautar a questão da educação como um dos fundamentos de um Programa de Governo reformista a ser construído para as próximas eleições presidenciais, em 2022, com a participação efetiva da sociedade.

A educação brasileira continua enfrentando sérias dificuldades que vão se ampliando neste segundo ano de Covid-19, nos colocando o imperativo de avaliar o atual sistema educacional brasileiro nas suas vulnerabilidades e potencialidades, durante e pós Pandemia.

A sociedade contemporânea é herdeira da revolução industrial quando a ciência, a tecnologia e a educação profissionalizante começam a ser incorporadas nos processos de produção e distribuição de mercadorias, transformando o cotidiano da humanidade, construindo novas relações políticas, econômicas, sociais, culturais e espirituais da sociedade entre si e com a própria natureza.

Desde então, a base técnica, científica e educacional construída criou as condições materiais de resolver a maioria dos problemas sociais, econômicos e ambientais existentes, inclusive os desafios educacionais enfrentados hoje pelo Brasil e por toda a humanidade. A internet, a robótica, a micro-eletrônica, as tecnologias de informação, os novos materiais e as energias renováveis entraram definitivamente nas nossas vidas, transformando as relações sociais estabelecidas, modificando a maneira de ser e estar das pessoas em sociedade.

Como os que trabalham com educação, o alunato e a sociedade em geral estão dialogando e vivendo estas novas realidades educacionais em plena Pandemia e quais seriam os desafios imediatos da educação brasileira?

Os educadores, as organizações acadêmicas, científicas e tecnológicas estão desafiados a enfrentar e superar os antigos e novos dilemas em defesa de uma educação pública de qualidade frente às transformações em curso que estão acontecendo nesta área. As atividades educacionais, hoje realizadas à distância, deverão continuar e ter um papel de destaque durante e pós a Pandemia, podendo consolidar-se um sistema híbrido presencial e à distância, refletindo as mudanças e as novas relações entre formas, conteúdos e resultados pedagógicos diante desta nova realidade.

O que deve permanecer e o que deve mudar em relação à educação brasileira?

A partir da Constituição de 1988, melhorias vêm acontecendo, inclusive com alguns bons resultados, nos últimos anos. No entanto, em uma velocidade que fica muito a desejar considerando a atual realidade educacional – são mais de 10 milhões de analfabetos no Brasil, além dos analfabetos funcionais. Ainda há que considerar os impactos causados pela própria Pandemia e os desafios econômicos, sociais e ambientais da maioria da sociedade e a necessidade de colocar a educação como fundamento estratégico de afirmação e transformação da sociedade brasileira frente à sociedade mundial.

 A inexistência de um Sistema Nacional de Educação (SNE) dificulta e muito uma visão mais abrangente da educação brasileira, a curto, médio e longo prazos. Embora previsto já na Constituição de 1988 e no artigo 13 da Lei que institui o Programa Nacional de Educação (PNE), o SNE - que deveria ser constituído até 2016 - ainda não o foi no Brasil.

Assim, as demandas e as contradições da educação brasileira vão se acumulando nas últimas décadas, hoje desnudadas com a Pandemia, impondo mudanças urgentes frente à nossa realidade. Como não destacar, por exemplo, uma dessas maiores contradições: em geral, as melhores Escolas de Educação Básica no Brasil são privadas e as melhores Universidades são públicas - uma parcela significativa dos estudantes de Escola Pública, do ensino básico, vão estudar à noite, em faculdades privadas, muitos sem direito a diploma no final do curso, por não serem reconhecidas pelo Ministério da Educação.

Portanto, é urgente a criação de um Sistema Nacional de Educação como espaço institucional de diálogo com todos os atores políticos, econômicos e sociais que nos leve à equidade educacional como política de Estado e de toda a Sociedade no caminho da otimização dos recursos materiais e da inteligência nacional em prol de uma educação de qualidade no Brasil.

Neste contexto, deve-se incorporar todas as experiências educacionais bem sucedidas nos últimos anos no Brasil. Sejam elas da área federal, estadual ou municipal como também de escolas privadas ou mantidas por fundações e ONGs educacionais. A partir de parâmetros educacionais federais, todas estas escolas e universidades seriam avaliadas e incorporadas, quando bem avaliadas, ao Sistema Nacional de Educação ora proposto. 

Neste processo de transição para a construção de uma educação de excelência no Brasil, com foco nas regiões de menor Índice de Desenvolvimento de Educação Básica (IDEB), a área federal deverá ter um papel de destaque. A estratégia de federalização da educação pública brasileira aconteceria em função das prioridades destacadas no próprio PNE, criando as condições para a melhoria do IDEB em níveis e conteúdos educacionais de excelência, compatíveis com as demandas educacionais dos Estados e Municípios, considerando a realidade social e econômica onde estão inseridos.

Assim, o Governo Federal deveria também assegurar, de maneira permanente, os recursos financeiros, a viabilidade técnica e pedagógica do planejamento e da gestão das demandas federais, estaduais e municipais que alavancariam as regiões de menor IDEB, em cooperação com o Estado e os Municípios da região em questão. Aqui as experiências educacionais bem sucedidas das Fundações, ONGs e Organizações privadas seriam avaliadas a nível federal e, quando aprovadas, incorporadas neste esforço nacional de melhoria da educação pública brasileira.

O conceito de sustentabilidade social, econômica e ambiental nos ajuda nesta construção. Deve nortear, de uma maneira transversal, todo o processo de elaboração e viabilização de uma política de educação no Brasil, considerando as distintas realidades sociais, econômicas e ambientais nos planos nacional, estadual e municipal, como instrumento de transformação da vida de cada uma das crianças e da juventude brasileira, em todo o território nacional.

O Governo Federal, dialogando com as diversas representações existentes na área de educação do Estado, do mercado e da sociedade civil em geral, deve com a urgência devida realizar uma ouvidoria da realidade atual da educação brasileira, a partir da educação básica, diagnosticando os avanços e limites do atual PNE.

A partir do conhecimento da realidade atual da educação pode-se construir, em discussão com a sociedade brasileira, um Sistema Nacional de Educação que venha a implementar um Plano de Metas Educacionais para o horizonte dos próximos 5, 10, 20, 30 anos.

São os desafios de uma nova política de educação para o Brasil que devem avaliar a realidade educacional existente, a instabilidade vivida atualmente pelo próprio Ministério de Educação, sem uma política nacional clara para enfrentar os complexos desafios da nossa realidade educacional, funcionando sem a devida integração com os Estados e Municípios, demonstrando como o Governo Federal enfrentou e está enfrentando a situação educacional já no segundo ano de Pandemia. As perdas de aprendizado, individuais e coletivas, são significativas e ainda estão por ser devidamente avaliadas. Esta situação tem atingido diretamente os(as) trabalhadores(as), os(as) educadores(as) e os milhões de alunos(as) de escolas públicas que continuam sem as condições de estudar à distância, em suas casas, desorientando-os(as) e sem um devido apoio governamental que os(as) ajude a superar esta triste e preocupante realidade.

Esta situação tem atingido diretamente os(as) trabalhadores(as), os (as) educadores(as) e os milhões de alunos(as) de escolas e universidades públicas que continuam sem as condições de estudar à distância em suas casas, desorientados(as) e sem um devido apoio governamental que os(as) ajude a superar esta triste e preocupante realidade. 

A agenda nacional da área de educação, a ser pactuada pela sociedade brasileira, deve realizar as reformas educacionais, pensando a educação brasileira no presente e no futuro imediato, considerando as suas especificidades e as desigualdades regionais. A construção de um modelo educacional nacional deve incorporar a educação, a ciência e a tecnologia como valores estruturantes e estratégicos, integrado a um projeto nacional para a melhoria da qualidade de vida da infância e da juventude dos brasileiros e brasileiras com uma atenção devida aos(às) professores(as) e trabalhadores(as) da área de educação.

Finalmente, a agenda nacional da área de educação, a ser pactuada pela sociedade brasileira, deve enfrentar os reais problemas educacionais agravados com a pandemia: realizar as reformas educacionais pensando a educação brasileira no presente e no futuro imediato, considerando as suas especificidades e os desafios regionais. A construção de um modelo educacional nacional deve incorporar a educação, a ciência e a tecnologia como valores estruturantes e estratégicos, integrados a um projeto nacional para a melhoria da qualidade de vida da infância e da juventude dos brasileiros e brasileiras, com uma atenção devida aos professores e trabalhadores da área de educação.

São os desafios a serem superados. Seremos capazes?

Uma contribuição recente para enfrentarmos os desafios e os dilemas da educação brasileira é a publicação e a discussão em andamento realizadas pela Fundação Astrojildo Pereira. A Revista Política Democrática, publicada recentemente: A Educação Presente e o Futuro, reúne textos e análises sobre o presente e o futuro da educação brasileira. Destaque-se o Manifesto: Por um Sistema Nacional Único de Educação, do Professor Cristovam Buarque, como uma colaboração efetiva nesta direção (Revista Política Democrática, ano XXI, nº 57, www.politicademocratica.com.br).  

*Professor Doutor da Oficina da Cátedra da UNESCO - Sustentabilidade da UFBA e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia

Fonte: Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/10/george-gurgel-de-oliveira-paulo-freire.html


Paulo Freire, 100 anos: como o legado do educador brasileiro é visto no exterior

Esta reportagem foi publicada originalmente no dia 12 de janeiro de 2019 e republicada em 19 de setembro de 2021, data do aniversário de cem anos do nascimento de Paulo Freire.

Tratada pelo governo Bolsonaro como bode expiatório da má qualidade do ensino público brasileiro, a obra do educador Paulo Freire (1921-1997) pode ser controversa. Mas o trabalho do pedagogo e filósofo, nomeado em 2012 patrono da educação brasileira e autor de um método de alfabetização que completou 50 anos em 2013, não deixa de ser bastante relevante nas discussões mundiais sobre pedagogia.

Freire é estudado em universidades americanas, homenageado com escultura na Suécia, nome de centro de estudos na Finlândia e inspiração para cientistas em Kosovo. De acordo com levantamento do pesquisador Elliott Green, professor da Escola de Economia e Ciência Política de Londres, na Inglaterra, o livro fundamental da obra do educador, 'Pedagogia do Oprimido', escrito em 1968, é o terceiro mais citado em trabalhos acadêmicos na área de humanidades em todo o mundo.

Para especialistas em educação ouvidos pela BBC News Brasil, entretanto, a raiz da controvérsia em torno da pedagogia de Paulo Freire não é sua aplicação em si - mas o uso político-partidário que foi feito dela, historicamente e, mais do que nunca, nos dias atuais. "Li a maior parte dos livros dele. Minha tese de doutorado foi amplamente baseada em seus ensinamentos. Tenho aplicado seu método de várias maneiras em minha carreira profissional, na prática e na pesquisa", afirmou a pedagoga Eeva Anttila, professora da Universidade de Artes de Helsinque, na Finlândia.

"A maior vantagem de sua metodologia é a abordagem anti-opressiva e não autoritária, a pedagogia dialógica e respeitosa que ele promoveu. O problema é que suas ideias têm sido usadas para fins políticos - o que, em meu entendimento, nunca foi seu propósito inicial", disse a finlandesa.

Freire tornou-se conhecido a partir do início dos anos 1960. Ele desenvolveu um método de alfabetização de adultos baseado nos contextos e saberes de cada comunidade, respeitando as experiências de vida próprias do indivíduo. Aplicou o modelo pela primeira vez em um grupo de 300 trabalhadores de canaviais em Angicos, no Rio Grande do Norte. De acordo com os registros da época, a alfabetização ocorreu em tempo recorde: 45 dias.

Homenagens pelo mundo

Referência mundial em qualidade do ensino, a Finlândia conta, desde 2007, com um espaço dedicado a discutir a obra do educador brasileiro. O Centro Paulo Freire Finlândia fica na cidade de Tampere. "É um hub para os interessados em Paulo Freire e em seu legado para tornar o mundo mais igualitário e justo", de acordo com a definição da própria instituição. Eles publicaram, online, três livros com artigos - em finlandês - analisando a obra do brasileiro. O material teve 17 mil downloads.

Mural de Paulo Freire na Faculdade de Educação e Humanidades da Universidade do Bío-Bío, no Chile
Um mural retratando o pedagogo pernambucano na Universidade do Bío-Bío, no Chile. Foto: NEFANDISIMO /CC BY-SA 4.0

Há centros de estudos semelhantes, todos batizados com o nome do brasileiro, na África do Sul, na Áustria, na Alemanha, na Holanda, em Portugal, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá. Na Suécia, Freire é lembrado em um monumento público. Localizada no subúrbio de Estocolmo, 'Depois do Banho' é uma obra em pedra-sabão esculpida entre 1971 e 1976 pela artista Pye Engström. Sentadas lado a lado, estão retratadas sete personalidades com apelo político, como o poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), a escritora sueca Sara Lidman (1923-2004) e a sexóloga norueguesa Elise Ottesen-Jensen (1886-1973).

Mas a obra do educador brasileiro está longe de ser unanimidade entre os países que costumam liderar o ranking Pisa (sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). Em Cingapura, que apareceu na primeira colocação na edição 2016 da avaliação trienal realizada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) com escolas conhecidas por adotar um método linha-dura, a BBC News Brasil procurou a mais importante instituição de ensino superior do país para saber se algum pesquisador comentaria a obra do brasileiro Paulo Freire.

Professor destacado pela assessoria de comunicação da Universidade Nacional de Cingapura para atender à reportagem, Kelvin Seah disse que "não era a melhor pessoa para comentar sobre Paulo Freire". "Eu não sou familiarizado com seu método", afirmou.

Convidado a comentar sobre qual seria o método mais adequado ao contexto brasileiro, o especialista recomendou que os gestores analisassem caso a caso. "O método mais apropriado para os alunos em uma escola depende do perfil dos alunos da escola, do treinamento prévio recebido pelos professores, bem como dos recursos de instrução e financeiros disponíveis para a escola."

Pedagogia do diálogo nos Estados Unidos

Em artigo acadêmico analisando o legado de Paulo Freire pelo mundo, o professor de filosofia da educação da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, Ronald David Glass aponta que o mérito de Paulo Freire está no método que valoriza a "consciência crítica, transformadora e diferencial, que emerge da educação como uma prática de liberdade".

"Paulo Freire viveu sua vida no espaço desta consciência; é por isso que inspirou e energizou pessoas no mundo inteiro, e é por isso que seu legado se prolongará muito além de qualquer horizonte que possamos enxergar agora", escreveu o professor. "Freire sempre estava buscando se tornar mais humano, tornar possível que outros fossem mais humanos e, se acolhermos esta busca com tanto amor e determinação quanto ele, então uma maior medida de justiça e democracia estará ao alcance."

Professor da Faculdade de Educação da Universidade Cristã do Texas, Douglas J. Simpson causou certa polêmica no meio acadêmico ao publicar, anos atrás, um artigo intitulado 'É Hora de Engavetar Paulo Freire?'. "Na verdade, não acho que suas ideias devam ser arquivadas", esclareceu ele à BBC News Brasil. "Meu texto foi pensado para atrair a atenção daqueles que acham que sempre estamos recorrendo a Freire. Pessoalmente, acho importante descobrir de novo ou pela primeira vez por que precisamos combinar uma forte paixão reflexiva 'freireana', de respeito e amor, a pessoas carentes de justiça pessoal."

Retrato de Paulo Freire
Paulo Freire. Foto: Instituto Paulo Freire

Simpson afirma que a pedagogia baseada no diálogo é fundamental "para que a educação e a democracia prosperem, ou pelo menos sobrevivam". Ele culpa justamente a falta de diálogo pelo fato de as sociedades - e as escolas - estarem fortemente polarizadas politicamente. "Não temos sido efetivamente ensinados a praticar o diálogo nas escolas, muito menos nos governos." Para o professor, Paulo Freire ensinou, acima de tudo, que precisamos aprender "a ouvir, a entender e a respeitar uns aos outros" e a "trabalhar juntos nos problemas".

Considerando o contexto brasileiro, Simpson acredita que não deveria haver uma padronização - ou seja, que as escolas não deveriam seguir todas o mesmo método pedagógico. "As escolas precisam de culturas e responsabilidades que se baseiem em uma ética profissional, políticas e práticas meritórias", disse. Para ele, os métodos são necessários, "mas devem ser vistos como revisáveis, porque as escolas, sociedades, trabalhos e aprendizados são dinâmicos". "A padronização nas escolas muitas vezes leva a uma inércia indevida, de mesmice, de regulamentação estéril", complementou.

Nos anos 1970, o pedagogo John L. Elias, então professor da Universidade de Nova Jersey, escreveu muito a respeito de Paulo Freire. O educador brasileiro foi tema de sua tese de doutorado. Em texto de 1975, Elias apontou "sérios problemas no método" do brasileiro.

"A teoria da aprendizagem de Freire está subordinada a propósitos políticos e sociais. Tal teoria se abre para acusações de doutrinação e manipulação", afirmou ele. "A teoria de Freire da aprendizagem é doutrinária e manipuladora?", provocou.

A escultura "after Bath", em Estocolmo
Paulo Freire é a segunda figura, da esq. para a dir., nesta escultura de 1976 de Nye Engström. A obra fica em Estocolmo, na Suécia. Foto: BERGNT OBERGER/ CC BY-SA 3.0/ PAULO FREIRE FINLAND

Elias apontou que o educador brasileiro via "os sistemas educacionais do Terceiro Mundo como o principal meio que as elites opressoras usam para dominar as massas". "Conhecimento e aprendizado são políticos para Freire, porque eles são o poder para aqueles que os geram, como são para aqueles que os usam", argumentou.

Professora de Educação Internacional e Comparada na Faculdade dos Professores da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, Regina Cortina já abordou a metodologia de Paulo Freire em diversos estudos sobre educação na América Latina, mas disse à BBC News Brasil que não se sentia "confortável" em comentar o tema no momento "por causa das mudanças administrativas no Brasil". Cortina afirmou, por meio da assessoria de imprensa da universidade, que não é possível vislumbrar com clareza "como as coisas vão seguir nas escolas brasileiras".

REPRODUÇAO DA CAPA DO LIVRO PEDAGOGIA DO OPRIMIDO, DA EDITORA PAZ E TERRA
Principal obra de Freire, "Pedagogia do Oprimido" foi escrito em 1968, mas só foi publicado no Brasil anos depois, em 1974. Foto: Editora Paz e Terra/Reprodução

Quais as ideias de Freire?

Para Freire, o ensino ocorre a partir do diálogo entre professor e aluno, desenvolvendo assim capacidade crítica e preparando os estudantes para sua emancipação social. No jargão do meio, o método Freire é o oposto ao conceito "bancário" de educação - aquele no qual o professor "deposita" o conhecimento nas mentes dos alunos. Para Freire, a educação é construída em conjunto.

O método Paulo Freire chegou a ser adotado pelo governo de João Goulart (1919-1976) em esforços para alfabetização de adultos. Com a ditadura militar, entretanto, o educador passou a ser perseguido, chegou a ser preso por 70 dias e viveu no exílio na Bolívia e no Chile. Após a publicação da 'Pedagogia do Oprimido', em 1968, Freire foi convidado para ser professor visitante na Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

Reconhecido desde 2012 como o Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire é considerado o brasileiro mais vezes laureado com títulos de doutor honoris causa pelo mundo. No total, ele recebeu homenagens em pelo menos 35 universidades, entre brasileiras e estrangeiras, como a Universidade de Genebra, a Universidade de Bolonha, a Universidade de Estocolmo, a Universidade de Massachusetts, a Universidade de Illinois e a Universidade de Lisboa. Em 1986, Freire recebeu o Prêmio Educação para a Paz, concedido pela Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciências e Cultura.

Paulo Freire
Paulo Freire em retrato de 1963. Foto: Arquivo Nacional

Há instituições de ensino que seguem o método Paulo Freire em diversos países. É o caso da Revere High School, escola em Massachusetts que em 2014 foi avaliada como a melhor instituição pública de Ensino Médio nos Estados Unidos. Em Kosovo, um grupo de jovens acadêmicos criou um projeto de ciência cidadã inspirado na pedagogia crítica do brasileiro. Os participantes recebem um kit para monitorar as condições ambientais e, assim, juntos, pressionar o governo por melhorias na área.

"Acredito que seria ótimo que a pedagogia em qualquer escola de qualquer país partisse do pensamento de Freire", comentou a pedagoga finlandesa Anttila. "Especialmente no Brasil, dada a atual situação política e a história do país." Ela diz que um método de ensino, para funcionar bem, precisa levar em conta as situações de vida dos alunos. "Não acredito em pedagogia autoritária. As aulas não precisam ser autoritárias. É preciso diálogo, discussão, negociação, exploração. Construir conhecimento para que haja capacidade de expressar ideias e ouvir os outros. Eis a chave para a democracia. E a educação democrática é a única maneira de salvaguardar uma sociedade democrática", declarou.

Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46830942


Por que a extrema direita elegeu Paulo Freire seu inimigo

Para especialistas, é da natureza da pedagogia freireana incomodar, porque ela propõe ensino libertador e baseado na formação crítica do aluno

DW Brasil

Em dezembro de 2003, o então ministro da Educação Cristovam Buarque inaugurou, na frente da sede do ministério, em Brasília, um monumento em homenagem ao educador Paulo Freire (1921-1997). O pedagogo era então aclamado como uma personalidade importante da história intelectual do país — nove anos mais tarde, uma lei federal o reconheceria como patrono da educação brasileira.

Em 2019, Abraham Weintraub comandava o mesmo ministério no primeiro ano da gestão do presidente Jair Bolsonaro. Diante dos maus resultados obtidos pelo país no ranking Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), ele chamou o monumento a Freire de "lápide da educação" e afirmou que o pedagogo "representa esse fracasso total e absoluto".

O próprio Bolsonaro já criticou Paulo Freire, e em mais de uma oportunidade. Numa das ocasiões, referiu-se a ele como "energúmeno". É um discurso recorrente: nos últimos anos, a extrema direita brasileira tem usado Paulo Freire, cujo centenário de nascimento é celebrado neste 19 de setembro, como bode expiatório para a baixa qualidade do sistema educacional brasileiro.

De acordo com especialistas ouvidos pela DW Brasil, o que incomoda reacionários e também alguns conservadores é o fato de a pedagogia freireana ser essencialmente política. "A essência da obra de Freire é totalmente política, no sentido nobre do termo, não no sentido da política partidária", diz o sociólogo Abdeljalil Akkari, da Universidade de Genebra, na Suíça. "Por isso em todas as regiões do mundo, sua obra é lembrada como algo muito interessante para refletir sobre o futuro da educação contemporânea."

"O objetivo da pedagogia freireana é fazer com que cada uma e cada um aprendam a dizer a própria palavra, ou seja, tenham a capacidade de ler o mundo e se expressar diante do mundo. É a pedagogia da autonomia, da esperança: libertadora no sentido de as pessoas terem as capacidades de se libertarem das opressões que buscam calá-las", diz o educador Daniel Cara, professor da Universidade de São Paulo e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Professor do curso de pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Ítalo Francisco Curcio acredita que parte dessa controvérsia seja por desconhecimento do que é, enfim, o método Paulo Freire. "A maior parte dos que dizem rejeitá-lo nem é especialista em educação, acaba repetindo frases apregoadas por líderes com os quais se identifica", comenta. "Isso é muito ruim. Quem padece é a própria população, desde a criança até o adulto."

Diálogo em vez de lógica bancária

Paulo Freire desenvolveu sua pedagogia no início dos anos 1960. Em 1963 ele trabalhou na alfabetização de adultos no Rio Grande do Norte — e conseguiu resultados muito eficientes com sua abordagem. Em linhas gerais, ele defendia que a educação não poderia obedecer a uma "lógica bancária", em que o conhecimento era simplesmente depositado na cabeça dos alunos. Clamava por um ensino baseado no diálogo, em que professor e estudante constroem o conhecimento em conjunto.

Por princípio, é uma pedagogia inclusiva. E saberes específicos, de acordo com contextos particulares, são valorizados. "Ele ressaltou no meio educacional, especialmente na formação de professores e gestores escolares, que é imprescindível considerar os conhecimentos e saberes que o educando já possui, ao ser recebido como aluno. É célebre sua frase: 'Ninguém ignora tudo, ninguém sabe tudo'", diz Curcio.

"Seu método não fala em ideologias, mas em formas de ensinar e aprender. Não é um instrumento proselitista", acrescenta. "Quem faz proselitismo é a pessoa, por meio de seus atos e discursos, e não o método. Eu posso utilizar uma faca tanto para cortar o pão ou a carne e me alimentar, quanto para matar alguém."

O educador Cara argumenta que Freire não é bem aceito pela extrema direita justamente porque sua filosofia não admite a doutrinação. "O sectarismo do autoritarismo impede o reconhecimento de uma pedagogia verdadeiramente libertadora", afirma. "Então, Freire se tornou inimigo dos ideólogos de direita porque busca uma pedagogia libertadora, enquanto o modelo tradicional é uma pedagogia opressora."

"Quando a extrema direita chegou ao poder no Brasil, precisava agir no campo da educação. E a figura de Freire se mostrou fácil de ser atacada, porque era algo comum nas comunidades educacionais do Brasil", diz Akkari.

Para o professor, conservadores tendem a acreditar que os problemas educacionais podem ser corrigidos com base em aspectos instrumentais, ou seja, mais tecnologia, equipamentos e carga horária, e não com uma mudança de abordagem. Além disso, existe um tabu sobre politização e formação crítica — ele lembra o movimento Escola Sem Partido, criado nos anos 2000 e que ganhou notoriedade no país após 2015.

Paulo Freire é o oposto de tudo isso: sua obra é baseada na formação crítica do aluno. "Ele é o pedagogo da politização da educação", define Akkari.

Mazelas do ensino

Outro mito que os especialistas combatem é o de atribuir à Paulo Freire a culpa pelos problemas educacionais brasileiros. O principal argumento contrário, ressaltam eles, é que a pedagogia dele nunca foi implementada de modo amplo e irrestrito no Brasil. E há ainda o aspecto oposto: o método freireano é muito disseminado em países que costumam se destacar em avaliações educacionais, como a Finlândia.

"Não faz o menor sentido culpar o Paulo Freire pelas mazelas educacionais brasileiras. Ele não é responsável pelo subfinanciamento da educação, pelos péssimos salários dos professores, pelo fato de que o Brasil só passou a colocar a educação como questão nacional a partir dos anos 1930. E, na prática, mesmo em governos alinhados à esquerda não se fez uma pedagogia freireana no país", diz Cara. "Até porque é uma pedagogia que demanda investimentos sólidos em formação e um replanejamento de todo o sistema de ensino."

Akkari observa que essa negação de Paulo Freire por um viés ideológico só ocorre no Brasil. "Se você observar o resto do mundo, a obra dele é consensual", diz.

Isso fica claro no amplo reconhecimento que Paulo Freire recebeu. Em vida, foi homenageado por pelo menos 35 universidades de todo o mundo — entre as quais as de Massachusetts e a de Illinois, nos Estados Unidos; a de Genebra, na Suíça; a de Estocolmo, na Suécia; a de Bolonha, na Itália; e a de Lisboa, em Portugal. O brasileiro também foi reverenciado pela Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciências e Cultura, com o Prêmio Educação para a Paz, em 1986.

"Particularmente, entendo que, por ele ter se tornado uma celebridade internacional, identificado historicamente com uma educação socializante, acaba incomodando algumas pessoas que vêm em sua obra alguma possibilidade de doutrinação", avalia Curcio. "E isso faz com que pessoas que desconhecem o método acabam por dispensar-lhe a mesma conotação."

Curcio ressalva que Paulo Freire não é criticado pela direita, "mas por certas pessoas de direita". Denominando a si mesmo conservador e mencionando que tem muitos amigos educadores também conservadores, ele afirma que, mesmo que haja críticas ao método Paulo Freire, é dispensado "o mais profundo respeito pelo trabalho dele", que continua sendo estudado. "É apenas uma questão de identificação. Não de rejeição ou abominação", diz.

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/por-que-a-extrema-direita-elegeu-paulo-freire-seu-inimigo/a-59211191


Dois grandes nomes da Educação brasileira: Paulo Freire e Anísio Teixeira

Paulo Freire é, sem dúvida, um dos grandes educadores que o Brasil produziu. Certamente é o mais conhecido de todos, tendo sua obra principal, “Pedagogia do Oprimido” como uma das mais citadas e estudadas no mundo. No início dos anos 1960 quando o Brasil fervilhava com ideias de desenvolvimento autônomo, de construção de uma cultura civilizacional própria, logo após a inauguração de Brasília, Paulo Freire elaborou um método de alfabetização para populações pobres e marginalizadas que produziu efeitos imediatos. Aplicou com sucesso este método em comunidades de cortadores de cana de Pernambuco e numa pequena comunidade de uma cidadezinha do interior do Rio Grande do Norte.

O método Paulo Freire consiste principalmente na ideia de que o conhecimento é construído pelo indivíduo, onde o professor seria tão-somente um facilitador. Uma variação desse método foi emulado por um programa educacional em mais larga escala, chamado “De pé no chão também se aprende a ler”, pela prefeitura de Natal, liderada por um político extraordinário chamado Luiz Maranhão, hoje esquecido. O golpe de Estado de 1964 desbaratou esse programa e tantos outros projetos educacionais criados naqueles anos, inclusive a Universidade de Brasília, concebida e criada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Paulo Freire foi exilado, trabalhou no Chile por cinco anos e por volta de 1973 passou a desenvolver seu programa como consultor da ONU, da FAO e do Conselho Mundial de Igrejas em diversos países da África, notadamente Guiné-Bissau e Moçambique, ambos ex-colônias portuguesas. Em sua volta ao Brasil, a partir de 1979, Paulo Freire foi reconhecido como um grande educador e sua obra teve imensa divulgação. Filiado ao Partido dos Trabalhadores, entre 1989 e 1991 foi secretário de Educação da cidade de São Paulo, sob o governo de Luiza Erundina (gestão 1989-1993).

O grande mérito educacional de Paulo Freire é seu método, de cunho dialético, onde o indivíduo aprende por uma espécie de diálogo entre aspectos de sua experiência vivenciada e as ideias novas a serem pensadas e elaboradas. Filosoficamente, é um método que fora elaborado anteriormente pelo filósofo americano John Dewey ainda na década de 1920. Porém Paulo Freire vai adiante ao propor que a educação deve servir para conscientizar e libertar o homem de suas condições sociais e econômicas, reconhecendo a opressão que muitos sofrem. É aí onde reside o carisma do Método Paulo Freire. Na prática, a alfabetização de adultos tem sido o maior sucesso de aplicação do método Paulo Freire, ainda que suas reflexões sirvam para pensar o homem como um ser premido pela busca da liberdade e da igualdade social. Em 2012, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que o declara Patrono da Educação brasileira.

Ultimamente, têm surgido muitas críticas ao legado educacional de Paulo Freire, desafiando inclusive o mérito de ser Patrono da Educação brasileira. As críticas se referem ao seu uso do método dialético e sua orientação política, sugerindo-se que esse título foi-lhe dado por influência de um partido político. Ora, o título foi dado por decisão do Congresso Nacional, portanto, tendo havido intensas discussões a respeito. Sugerem seus detratores que um nome mais adequado seria o jesuíta e missionário dos primeiros anos do governo geral do Brasil, o padre José de Anchieta, que foi uma grande figura nacional, sem dúvida, mas, na verdade, um doutrinador.

Penso, por outro lado, que a elevação de Paulo Freire a figura maior da Educação brasileira, sombreia outros grandes educadores nacionais que tiveram influência mais abrangente e que precisam ser resgatadas e estudados para se repensar a educacional nacional. Dentre eles está Anísio Teixeira, que não somente tratou da filosofia da educação, como exerceu papéis político-educacionais que deixaram permanência mais consistente em nossa educação, sem dúvida combalida nesses anos que vivemos. Anísio criou um método de educação integral, fundou escolas na Bahia (início da década de 1920) e no Rio de Janeiro (início da década de 1930), fundou a Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, em 1935, que, embora extinta por Getúlio Vargas em 1937, deu raízes à criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras que terminou se consolidando na Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Criou também a Escola Parque, em Salvador, em 1951, e, junto com Darcy Ribeiro, concebeu e edificou a Universidade de Brasília, em 1960-61, que serviu de modelo para o sistema de ensino superior em nosso país.

Interessa, nesse momento crucial para a Educação brasileira que vivemos, reconhecer grandes mestres, inclusive Darcy Ribeiro, que dedicaram suas vidas a pensar o papel da Educação na formação do ser humano brasileiro.

No meu livro, O BRASIL INEVITÁVEL: ÉTICA, MESTIÇAGEM E BOROGODÓ, Cap. 8, trato do papel de Anísio Teixeira como um dos principais pensadores do Brasil. Eis o trecho sobre esse mestre da Educação.

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Anísio Teixeira (1900-1971)

Muito antes de despontar como um educador que podia tomar a responsabilidade de criar uma universidade para o Distrito Federal, em 1935, Anísio Teixeira já era o principal formulador de uma visão moderna para a educação brasileira tanto em aspectos de filosofia quanto como visão pedagógica e prática escolar, para todas as classes sociais brasileiras. Em 1932, ele e um grupo de educadores de ponta – com destaque para Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Hermes Lima, Cecília Meireles, Afrânio Peixoto e o indefectível Roquette-Pinto (que estava em todas nesses anos) – assinaram o “Manifesto dos pioneiros” que introduzia um programa com uma série de conceitos sobre educação no Brasil que ficou conhecido como Escola Nova. A Revolução de 1930 tinha despertado a possibilidade de mudanças no Brasil e, ainda que regida por gente ligada ao positivismo, havia abertura para novidades, se estas viessem com força persuasiva política. O programa se manifestava pela inclusão de todas as classes sociais, sem discriminação, em um programa pedagógico universal, para todos com idades entre sete e quinze anos. O Manifesto falava também sobre o “desenvolvimento natural e integral do ser humano em cada uma de suas etapas de crescimento”.

Na década de 1920, depois de ter sido inspetor de ensino público na Bahia, Anísio Teixeira passou uma temporada na Europa, observando as escolas de diversos países e, depois de uns anos na Universidade Columbia, em Nova Iorque, a mesma onde estivera alguns anos antes Gilberto Freyre, lá concluiu um mestrado em filosofia da educação com ninguém menos que John Dewey, o filósofo americano por excelência, talvez o maior responsável pela consolidação da visão de educação públicanorte-americana desde o início do século XX. Para Dewey a educação era uma dimensão da vida moderna que deveria contribuir para o espírito de igualdade social e democracia política. Acreditava também que o indivíduo devia ser visado como um ser integral para ser tanto cidadão como profissional e que a escola deveria ser de turno integral, misturando disciplinas do espírito com as do corpo. Foi mais ou menos isso que Anísio Teixeira quis estabelecer no Brasil para o nível juvenil, ao longo de sua vida de educador e político, e de fato estabeleceu um protótipo do que seria essa educação pela famosa Escola Parque, quando foi secretário de educação na Bahia, no final da década de 1940. Essa mesma ideia foi repercutida no programa educacional conhecido pela sigla CIEP, criado e dirigido por Darcy Ribeiro, em um período de oito anos, entre os anos 1983 e 1995, no estado do Rio de Janeiro.

Para Anísio Teixeira e seu confesso discípulo Darcy Ribeiro, não poderia haver muito mistério em se prover educação de qualidade para todas as crianças brasileiras. Bastava vontade política e recursos humanos e financeiros. A simplicidade e a clareza de sua visão sobre educação constituem a sua grande contribuição ao pensamento social brasileiro. Mas nada foi fácil quando ambos tentaram tocar projetos ambiciosos e, eventualmente, não alcançaram êxito permanente.

Anísio Teixeira, como Darcy Ribeiro, também elaborou e organizou universidades no Brasil. Anísio foi o principal responsável pela concepção e instalação da Universidade do Distrito Federal, na cidade do Rio de Janeiro, sob o patrocínio do prefeito Pedro Ernesto, em 1935, tendo já sido secretário de educação municipal nos anos anteriores, quando construiu diversas escolas públicas que elevaram a qualidade do ensino no Distrito Federal por muitas décadas. A UDF não durou muito, pois Getúlio Vargas mandou fechá-la após a tentativa do levante comunista em novembro daquele mesmo ano. Gilberto Freyre chegou a preparar um curso de antropologia cultural, naquele ano, com algumas aulas. O modelo sobreviveu na criação ainda em 1939 da Faculdade Nacional de Filosofia, a qual abrangia as ciências humanas, a filosofia e as demais ciências, como física, química e biologia, até que foi fundada a Universidade do Brasil, e cada bloco de ciências criou seus próprios institutos. Hoje é a Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Anísio e Darcy também criaram juntos a Universidade de Brasília, novamente para ser um exemplo e modelo da educação superior no Brasil. De fato, mesmo tendo sofrido a intervenção militar durante os anos da ditadura, a UnB serviu de modelo para o sistema universitário brasileiro que foi instalado no final da década de 1960 pelo ministério da Educação do governo militar-ditatorial.

A história brasileira é um redemoinho de ironias e tragédias. Anísio morreu em 1971 em condições até hoje consideradas suspeitas. Seu corpo foi encontrado no fosso do elevador de um prédio no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Ou ele era muito distraído ou um vento o empurrou ao vazio.