Paulo Fábio Dantas Neto

Paulo Fábio Dantas Neto: A República na América

“(...) Pois os fatos são renitentes; não desaparecem quando os historiadores ou sociólogos se recusam a tirar algum ensinamento deles, embora isso possa ocorrer quando todos os esquecem(...)”. (Hannah Arendt, “Da Revolução”)

É paradoxal que a traumática experiência dos quatro anos de agressiva passagem de Donald Trump pela Presidência dos Estados Unidos tenha feito com que o destino daquele país passasse a importar mais ao mundo do que já importava antes. Assim como tornou os EUA menos auto centrados e mais permeáveis e sensíveis ao que acontece fora dele. A pretensão isolacionista de Trump produziu efeito oposto. Ele não entregou o muro que prometeu, contra o México e o mundo. Contra o seu muro, construíram-se pontes e pistas que atravessaram continentes para ajudar a república norte-americana a se defender.

Uso de propósito o termo república e não democracia – embora esteja entre os que não conseguem pensar uma instituição sem a outra – porque vejo na instituição republicana, tal como se firmou nos EUA, a fonte principal da empatia que a fórmula norte-americana suscita, mesmo em presença de crise em vários aspectos de sua democracia e de tantos motivos de antipatia historicamente enraizados por ações da política externa de seu Estado.  Hannah Arendt, cujo pensamento serve não só de epígrafe como de inspiração para este breve texto, frisou a originalidade da experiência fundacional norte-americana, a um só tempo revolucionária e criadora de um tipo de governo fiel ao espirito da revolução da qual partiu, isto é, governo limitado pela lei. A proteção de direitos de cidadãos contra a opressão do poder político institucionaliza a liberdade, causa da revolução.

Contraste significativo, mostra Arendt, com rebeliões modernas que libertaram povos de opressões - como a do Antigo Regime da bastilha e a da grande Rússia dos czares (e às quais podemos acrescentar a de títeres cubanos de plutocratas e mafiosos e tantos outros exemplos) – mas após as quais o sentido de revolução foi perdido quando seus processos políticos não construíram a liberdade, seu fundamento. Cair sob o jugo de algum tipo de “Conquistador” seria a sina de rebeliões que não se fazem acompanhar de uma revolução, no sentido político de restauração/recriação da liberdade como experiência e/ou razão.

Em contraste com tais experiências agonísticas esteve sempre a realidade de contra revoluções que, sobre o fogo fátuo das insurreições desacompanhadas de política positiva, viabilizaram governos limitados como opções pacificadoras da violência de revoluções refratadas. Nesses casos, pontua Arendt, constituições levam a governos limitados que não são sinais de vitória moderada de aspirações revolucionárias, mas da sua derrota.   

Como coisa distinta de ambas as situações sumariadas, levanta-se o caso singular da República norte-americana. A forte conexão de sentido, tanto no campo dos argumentos racionais, quanto no da análise histórica, entre o momento-libertação (a guerra da Independência) e o da construção da liberdade (da Declaração da Independência à Constituição, passando pelo amplo debate popular da questão federativa) deixa claro, para nossa autora inspiradora, que os fundadores da República americana não cometeram o equívoco de imaginar que poder e lei poderiam emanar da mesma fonte. O poder popular concilia-se com a liberdade política quando a lei - sua elaboração, aplicação e guardiania – provém de diferentes poderes derivados de uma autoridade política constituída e fundada no princípio representativo. Autoridade cujo mister é proteger o cidadão da opressão do poder, inclusive do poder que emana direto da fonte legitimadora da própria República.   Numa palavra, na República norte-americana não há poder soberano, nem o do povo, pois a premissa é que a liberdade requer governo e governo legítimo é governo limitado.

É sobre esse estuário institucional (governo da lei, não de pessoas), compactado como tradição por uma cultura política associativa, que a democracia americana trafega como presente continuo, entre avanços e recuos, tendo como resultante um processo cumulativo de inclusão política.  A violência, que todos apontam (alguns com desagrado, outros com admiração) como marca de um modus operandi da história daquele país, comparece nos vários momentos dessa construção democrática bissecular, mas encontra no estuário republicano uma força de atenuação, que é civilizatória. Sua eficácia pode ser percebida quando se compara a violência em estado bruto, de guerra, que marcou o fim da escravidão, há um século e meio, com enfrentamentos de uma década de conquista de direitos civis, há meio século, daí com lutas que permitiram a significativa eleição de Barack Obama há uma década e com vitoriosas frentes políticas de agora, pacientemente construídas para enfrentar o trumpismo, impulsionadas por gigantescas manifestações de protesto pelo assassinato de George Floyd.  A visão dessa floresta é a da República como hardware seguro ao qual de acopla a democracia como software em constante atualização.

Foi contra esse edifício monumental, sediado na história e na cultura política de seu país, que Donald Trump jogou seus apoiadores no último dia 6.  O Capitólio é o edifício símbolo do hardware que os norte-americanos construíram para se fazerem representar e serem protegidos de efeitos malévolos de dissensões sempre presentes entre eles. Ao arremessar contra o Capitólio uma parcela radicalizada de pessoas desatentas à dimensão protetiva do edifício, quis induzi-las a destruir/desmoralizar um hardware sem o qual eles próprios seriam inimigos vencidos e destituídos de qualquer direito. E como poderiam, de algum modo, na ausência desse hardware, tentar introduzir seu software extremista? Contra quem e contra o que poderiam mobilizar seu pathos destrutivo? Se por acaso não fossem tão fragorosamente fracassados, como foram, ficariam parados no ar, rebelião seguida de anomia, não de novo poder. Agora que a República prevaleceu, eles continuarão tendo a chance de tentar, desde que respeitem o hardware. Chance condicional, não excluindo que insuflador e insuflados respondam pelo atentado, já que o governo é da lei.

Mas eles quem? Todos os cara-pálida? É outra pergunta pertinente depois desses eventos. Prever o que será e como se comportará o trumpismo findo o governo Trump é, ainda, um exercício para videntes e dele me pouparei porque me falta esse talento. Entretanto, há uma questão correlata que pode ser aqui arranhada por uma evidência que salta aos olhos. Já começou a disputa de narrativas no campo oposto ao de Trump. O desfecho que o isola (ao menos momentaneamente) significa, para certos analistas politicamente engajados, a implosão do Partido Republicano ou o seu enfraquecimento a ponto de perder capacidade de polarizar com os Democratas, que tenderiam a ocupar bases do rival desorientado. Como não há ambiente propicio a partido único e atribui-se a Trump uma atitude anti-sistêmica cada vez mais ostensiva, vislumbra-se, à esquerda, a chance (ou o desejo) de que o Partido Democrata venha a ser a nova força conservadora na política norte-americana, abrindo espaço, a médio prazo, para-o surgimento de uma “nova” esquerda.  Até porque, conforme essa narrativa, a nova polarização política tende a estar impregnada pela questão racial e a noção de pluralismo – caríssima à tradição política do país - passa a assumir, nesse registro, uma conotação mais societal, enfatizando clivagens. A tese parece ser que hoje saem derrotados o trumpismo e o supremacismo radical. Amanhã será a banda moderada com a qual se identifica Biden e que será chamada a defender a herança da “sua” democracia branca. Não se distingue, no discurso, lugar para a “nossa” República. Deve-se assinalar que boa parte do movimento político anti racista parece estar evitando esse consequencialismo identitário e tem apostado firme na via eleitoral, formando frentes amplíssimas. A ver se é uma atitude política sustentável ou mais uma tática defensiva motivada pelo fator Trump. 

Para outros analistas, o isolamento de Trump conduziria a uma retomada, pelo seu partido, agora na oposição, do lugar de direita democrática que lhe cabe. Até porque a tendência da política de Biden, tendo ao lado a vice Kamala Harris, seria reforçar uma inflexão “à esquerda”, justamente para evitar que, nesse quadrante político, algo de relevante se descole do partido e passe a querer polarizar com ele. É jogo futuro, mas essa segunda hipótese guarda maior sintonia com a interpretação de que quem derrotou Trump foi o instinto de República e não o clamor por uma democracia de novo tipo. Em vez de uma “nova democracia”, uma democracia que se renova graças à robustez da República. Quanto mais atores políticos relevantes - no Capitólio, na Casa Branca, em Wall Street e na malha associativa de movimentos sociais em geral e de movimentos políticos anti-racistas  se deixarem persuadir por esse segundo caminho, mais laços haverá com o mundo exterior, para o qual a República que há na América segue sendo referência.   

Desdobramento lógico e prático dessa discussão é perguntar o que tudo isso tem de fato a ver com o mundo externo aos EUA, Brasil incluído. Tema de outra coluna, provavelmente a da próxima semana, se fatos do nosso próprio país não furarem a fila. Como gancho, deixo a sugestão de reflexão sobre se o fim da aventura trumpista inspira mais dúvida ou mais confiança na hipótese de que instituições robustas e atitude política republicana possam domar um populista de extrema-direita no poder e o impeçam de detonar o edifício.

*Cientista político e professor da UFBa.


O que mostra a eleição de Bruno Covas em São Paulo? Paulo Fábio Dantas Neto explica

Em artigo na revista da FAP de dezembro, professor da UFBA analisa relação do resultado das urnas com governador João Doria

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O doutor em ciência política e professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Paulo Fábio Dantas Neto diz que há duas versões acerca do desfecho do segundo turno das eleições de 2020 na capital paulista. Em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro, ele cita que a primeira mostra que a reeleição do prefeito Bruno Covas foi uma vitória do governador João Doria e a segunda aponta à possibilidade de o PSDB paulista adotar perspectiva mais ao centro e mais nacional.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação mensal, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Na primeira hipótese, segundo ele, poderia se estimular uma aliança entre PSDB, DEM e MDB, com posição determinante do primeiro. Na segunda, acrescenta, o objetivo seria superar dificuldades de trânsito de Doria, fora da centro-direita.

Na avaliação de Dantas Neto, o peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador. “Nessas cinco cidades, DEM, PSDB, MDB e Cidadania estiveram juntos com o PDT e/ou o PSB, no primeiro e/ou no segundo turno. Em todas, venceram”, afirma. “Em Fortaleza, a aliança chegou a englobar, no segundo turno, o PT. Nessas cidades, com diversas peculiaridades óbvias, há um desenho comum, diverso daquele que São Paulo sugeriu”, acrescenta.

Dessa bifurcação surge uma outra questão, de acordo com o autor do artigo, que foi vereador em Salvador (1983-1988), deputado estadual (1989) e secretário municipal de Educação (1994). “Saber se esses movimentos apontam a um tipo de centro moderado que pode atrair São Paulo, em vez de gravitar em torno do contencioso paulista e do PSDB. Sinalizam a chance de uma frente ainda no primeiro turno, situada, de fato, ao centro, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda”, acrescenta.

Isso, segundo ele, pede uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador. “Do nome, ainda estão longe”, afirma o professor da UFBA. “Quanto a partidos, é preciso conversar a sério sobre o DEM. Ele é tão central para essa rota Brasil-São Paulo como o PSDB e Boulos são para a rota São Paulo-Brasil. Para observá-lo, é preciso uma filmadora que capte seu movimento da centro direita ao centro, não flashs que o flagrem como um ator com ‘essência’ de centro-direita”, diz.

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Paulo Fábio Dantas Neto: Saúde Pública e Política - A eficácia da estratégia maricas

Há duas semanas - mais precisamente em 11 de dezembro passado - o ex-ministro da Saúde, Luiz Mandetta, concedeu significativa entrevista à Globo News. Além de tê-la assistido e gostado do que ouvi, constatei a repercussão razoável e favorável que obteve, na imprensa escrita e em redes sociais, aquela parte, digamos, politicamente notável da entrevista. Mandetta foi contundente, preciso e didático na crítica à conduta e à atitude do capitão Bolsonaro, desde o início da pandemia do coronavírus. De certo modo, o ex-ministro fez chover em terreno enxarcado. Reiterou críticas já formalizadas em livro que lançou recentemente e que têm sido compartilhadas e fartamente veiculadas, através de diversos meios de comunicação, por vozes de diversos setores da sociedade e diferentes posições do espectro político do País.  

Mas o fez de um modo tão direto, objetivo e bem informado, que não se tratou de mais uma chuvinha contra a ideia de gripezinha. Foi um furacão de admoestações éticas e políticas ao Presidente da República, capaz de adubar o terreno em que se poderá, talvez, no futuro, plantar iniciativas políticas e jurídicas concretas para questionar, com propriedade, a sua permanência no cargo. Mereceu aplausos de quem sentiu a alma lavada, após tantos meses de desgoverno, vividos em meio à constatação de que Bolsonaro, malgrado o rol de irresponsabilidades e mesmo crimes em que incorreu e incorre, segue irremovível, no momento, seja por ter apoio parlamentar mínimo para se segurar no cargo, seja por contar com apoio popular relevante.

Feito o registro do que reluz, passo ao que mais me impactou na entrevista e que tem se mantido relativamente na penumbra, sem eco importante no noticiário e ainda menos na análise de colunistas. Trata-se de duas constatações às quais aquela fala de Mandetta nos induz, ambas com implicações lógicas diretas sobre o plano político do “que fazer".

A primeira é que se não houver vacinação, em grau importante, já em fevereiro, estará armada a cena de uma tragédia sanitária maior que a atual. Isso porque março e abril são meses, lembra Mandetta, de sazonalidade de vírus. O sistema de saúde não dará conta de evitar centenas de mortes diárias remanescentes de falhas no combate à primeira onda, mais a contaminação da segunda onda (agora, sabemos, com adendo da mutação do vírus), e demandas da sazonalidade de outros vírus, também matadores de idosos não tratados. Em 2020 foi possível, ao Ministério da Saúde, coordenar ações com êxito, em março e abril, pois houve distanciamento e isolamento, hoje impraticáveis nos níveis em que se praticou naquele momento.  Sem falar na ausência atual de capacidade e disposição coordenadora de um ministério marcado pela inépcia.

É evidente que reconhecer a impossibilidade atual de se atingir níveis de distanciamento e mesmo isolamento a que se chegou há oito ou nove meses atrás não significa capitular perante a “fuga para a frente” que se assiste nas cidades brasileiras, como se a volta da “normalidade” econômica fosse algo factível e irreversível, na presença do vírus e de suas mutações. Vamos observar que países que já começaram a vacinar estão fazendo as duas coisas ao mesmo tempo, isto é, reintroduziram medidas que aumentam o isolamento, ao tempo em que andam com a vacinação, processo necessariamente não tão rápido, quando se trata de vacinar uma população inteira. Para atenuar o quadro trágico, negociações, de que falarei mais adiante, precisarão passar também por aí, apesar das resistências entrincheiradas, que certamente não serão poucas, nem brandas.

A segunda constatação é, justamente, a impossibilidade do SUS planejar e operar uma campanha de vacinação imediata, a nível nacional, funcionando só com duas pernas, a dos estados e a dos municípios. Seja "robusto", ou não, o suposto plano do governo federal, esse problema da vacina não se resolverá, do ponto de vista dos usuários, sem uma solução nacional, seja pelo MS, pelo Congresso, pelo STF ou pelos três juntos, como propôs, recentemente o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

É preciso aprofundar esse ponto, ligado à segunda constatação a que nos levou a entrevista do ex-ministro da Saúde. Somos uma federação de estados autônomos, não soberanos. Qualquer reunião de governadores – e algumas, politicamente incentivadas, em boa hora, têm ocorrido - deixa clara a complexidade desse fato. São assimétricas as condições de autonomia dos diversos estados, mas, à exceção, talvez, de São Paulo, nenhum tem combustível material e gerencial para dispensar, mesmo só por algum tempo, o MS como vértice de um sistema. O Brasil não é um estado unitário em que o governo central decide e o resto segue, mas também não é instituição confederativa, em que estados subnacionais podem decidir fora de diretrizes e constrangimentos coletivos.  Numa federação minimamente ordenada (e a nossa é bem ordenada no que respeita a políticas de saúde) precisa haver regramento comum e mesmo estados mais ricos e poderosos não podem (ou ao menos não devem) comportar-se como membros, com poder de veto, de algo como o Conselho de Segurança da ONU.  O problema político, social e sanitário, do qual o ministro Pazuello é apenas a expressão mais banal, só encontrará solução razoável em arenas decisórias nacionais. É bem vinda, necessária e ajuda muito, toda iniciativa de governadores, prefeitos, assembleias legislativas, câmaras municipais e sociedade civil que leve em conta essa realidade, sem desafiá-la.  Mesmo se o alvo do apelo for o Judiciário, como no caso da que foi aventada pelo governador Flavio Dino.

Juntemos as três constatações de curto prazo (Bolsonaro não cai, a vacinação é urgência urgentíssima e não pode se fazer sem o governo federal) e temos algum norteamento sobre o que fazer. Sinto se sou mensageiro de má notícia, mas, se queremos vacina já, é preciso pressionar, sim, mas também se entender e negociar com o governo Bolsonaro. Quem acha impraticável, deve, daí, tirar a consequência de que morreremos como baratas.

Na coluna passada, tratando de tema da “política dos políticos”, assim comparei as respectivas eficácias da estratégia polarizadora (atitude política negativa, voluntarista, que pretende confrontar o adversário) e da unidade com entendimento (atitude política positiva, prudencial, que pretende isolá-lo) para vencer a política antipolítica de Bolsonaro: “Santos guerreiros são ineptos para lidar com o tipo de maldade que o presidente encarna.  Provam-no os sucessivos momentos em que foi desafiado nesses termos e, das urnas ou pesquisas, emergiram efeitos perversos (...) a experiência de dois anos de labuta com o fator Bolsonaro traz bons conselhos. Olhar para os resultados das eleições e para frentes políticas que se formaram e venceram. Lembrar dos trinta primeiros dias de enfrentamento articulado da pandemia no Brasil (...) Bolsonaro se isolou e perdeu espaço. Ao inverso, recupera-se sempre que se perde o foco nesse processo plural e incremental” e sempre – completo agora - que o foco é desviado para o terreno pantanoso da “vontade política”, refúgio de demagogos que a receitam como elixir contra males que não sabem combater.

Essa chave interpretativa da eficácia de estratégias políticas pode ser usada para abrir um horizonte menos sombrio para as controvérsias sobre vacinação e vacinas. Peço licença, nesse ponto, para usar um chiste do Presidente, invertendo seu sentido negativo. Maricas é bom sinônimo de prudente, no caso da vacina. Bons negociadores são, nesse momento, mais importantes do que a soma de todas as (também necessárias) macro análises sofisticadas do problema sanitário e econômico e de todos os discursos justamente indignados com a iniquidade da cena social e com a incúria genocida do governo na Saúde.

Claro que negociadores políticos não deixarão como legado o melhor e mais racional plano de vacinação, nem a estratégia mais persuasiva e ousada para derrubar a popularidade de Bolsonaro, a curto ou a médio prazo. São maricas, afinal. Onisciência e intrepidez são, para eles, por definição, faculdades estranhas. Mas podem servir, por exemplo, para obter apoio de partes do mal chamado “centrão” para a autoconvocação do Congresso em janeiro. Quem, por premissa, vê como nula a chance de se arrastar esse governo a qualquer negociação, ajudaria se suspendesse provisoriamente esse ceticismo radical e somasse sua voz em favor dessa medida de utilidade pública. Ela é crucial para que as questões da vacinação e da sucessão das mesas do próprio Congresso possam ser tratadas, objetiva e publicamente, para além do maniqueísmo das redes, das linhas e entrelinhas do jornalismo político e das ações de afago e chantagem do governo sobre deputados e senadores. Somente sob holofotes a saúde pública receberá o tratamento de prioridade absoluta que precisa ter nesse momento. Quem quer Vacina Já deve não apenas ser maricas no trato com o vírus da Covid. Deve sê-lo também para escolher, pelas evidências, uma estratégia política maricas, quer dizer, reconhecer a maior eficácia de uma política positiva para lidar com o vírus extremista que infectou o país em 2018 e impedir que venha uma segunda onda, em 2022. 

*Cientista político e professor da UFBA. 


Paulo Fábio Dantas Neto: Congresso Nacional 2021 - Manter sempre teso o arco da promessa

A notícia da incorporação, ontem, dia 18.12, de cinco partidos de esquerda (PT, PDT, PSB, REDE, PCdoB) à frente, já anteriormente formada pelo chamado “Centro Democrático” (DEM, MDB, PSDB, Cidadania, PSL, PV), que o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, articula para disputar sua sucessão, marca uma aliança política de grande significado. Independente dessa aliança levar ou não a uma candidatura única, importa que se torna bem mais robusto um movimento de amplas dimensões pela independência daquela casa legislativa e de reação à tentativa do Poder Executivo de instrumentalizar o seu comando. Nesse momento o deputado Artur Lira, candidato apoiado pelo Planalto, passa, em tese, à condição de candidato minoritário, se somados como seus adversários os deputados integrantes das bancadas daqueles onze partidos.

Vários tópicos entram em pauta para se analisar as implicações desse fato político. Dentre eles é possível citar o grau de correspondência efetiva que haverá entre as decisões das direções partidárias e o comportamento das bancadas, as repercussões, nas bancadas dos partidos do bloco “centro democrático”, especialmente o PSL e o DEM, dessa aliança com a esquerda, PT incluído e a nova relação que se poderá estabelecer entre as eleições na Câmara e no Senado, por vezes vistas como partes de uma “operação casada”.  Cedo para compreender tudo isso. Mais produtivo analisar o contexto mais geral dos processos sucessórios nas duas casas do Congresso, ao qual o fato de ontem se incorpora.  Parto da premissa de que o referido processo teve sua dinâmica afetada pelo timing de uma decisão judicial provocada por adversários do movimento unitário que se robustece na Câmara.

Judicialização como refração de um processo político

Como sabido e já bastante comentado, as urnas de 2020 trouxeram más notícias aos bolsonarismo e ao lavajatismo, os grandes vencedores de 2018. É menos evidente, devendo ser salientado, que essas duas faces da direita negativa não metabolizaram a nova disposição do eleitorado, que valorizou a eficácia da política na gestão de municípios e deu sinal verde a políticas de frente democrática de um centro moderado. Poucos dias após a apuração dos votos, juntaram-se para tentar armar a mão do STF contra esse impulso agregador. Tiverem êxito, ainda que por apertada maioria. O tribunal interceptou o processo político que se esboçava nas duas casas do Congresso para a renovação de suas mesas diretoras. Processo que mal começara a entrar em sua fase mais importante, a fixação de candidaturas expressivas de um realinhamento de forças no Legislativo, que só poderia mesmo avançar a partir do resultado eleitoral, como se requer numa democracia.

É bom lembrar que o STF foi formalmente provocado à judicialização preventiva do processo pelo PTB, partido da base governista, que assim fez o primeiro movimento de revide ao veredicto das urnas. Na sequência, uma bem articulada ameaça de “cancelamento” via redes sociais recorreu a palavras chave do dicionário político das eleições de 2016 e 2018 para emparedar o tribunal. Embora usando outro palavreado, não foi diferente a posição da mídia tradicional. Armou-se o raciocínio de que o STF prevaricaria se permitisse a continuidade do jogo político no Legislativo. Conforme esse raciocínio, “os políticos”, fatalmente, rasgariam a Constituição. Logo, caberia ao tribunal antecipar-se, mesmo na ausência de fato concreto, para pôr ordem na “bagunça”.  Preconceito antipolítico travestido de prevenção, pois, se é verdade que havia sinais de que um ator importante, o presidente do Senado, movia-se em direção a uma transgressão, sinais opostos partiam de articulações do Presidente da Câmara. E, para além disso, o processo envolvia um conjunto de partidos e lideranças que, por dever de oficio e instinto de sobrevivência política, tenderiam a ser afetados pelo espirito das urnas. Tinha horizonte, ao menos na Câmara, a articulação de uma ampla candidatura comprometida a conservar a independência da Casa frente ao Executivo e o padrão de decisões colegiadas que ali se verificaram nos últimos anos.  E se, no caso no Senado, seu presidente passasse da intenção ao gesto para viabilizar sua reeleição, com aparente cobertura de um plano B do Governo aí, sim, o STF seria chamado a se pronunciar perante um fato concreto.

Para não raciocinar sobre hipóteses, o STF poderia ter simplesmente desconhecido a ADIN do PTB.  Aliás, se não fosse o preconceito que ali também há contra a lógica do Parlamento, essa poderia ter sido a posição preliminar do presidente do tribunal. Feito relator, o ministro Gilmar Mendes também poderia, como Pilatos, ter ido nessa direção. Não o fez, mas também não foi na linha da interferência no jogo político. Ao contrário, apontou que era assunto do Legislativo, o que lhe rendeu críticas. Se houvesse lavado as mãos seria criticado do mesmo modo, por não ter interferido a tempo para impedir a "bandalheira".  Por outro lado, o fechamento prévio da porta à estratégia de Rodrigo Maia (que acabou ocorrendo, contra o voto de Gilmar) pode ter aberto a porta da Câmara dos Deputados a Bolsonaro. O tamanho desse perigo só sabia quem tinha informação sobre a correlação de forças real. Deve ter sido o caso de Mendes, dotando seu voto de razões próprias de um cálculo político. Um pecado? Quem disso escapa, na posição em que ele está? Gilmar foi minimalista e propôs deixar à liderança do outro Poder a decisão sobre os custos políticos comparativos da derrota de um candidato de continuidade que não fosse o próprio Maia e os das implicações de marcar um gol em impedimento. Gol que no fim das contas não valeria, já que habemus STF. Logo, o voto minimalista foi condicional e não rasgou a Carta. Na contra mão de um senso comum que acha realista prejulgar políticos, penso que faria mais bem à saúde das instituições brasileiras se a maioria do STF tivesse seguido o voto de Gilmar Mendes e dado a Rodrigo Maia o benefício da dúvida, mantendo a condicional.

Por que não o fez? Difícil aceitar a hipótese de que tenha sido por razões doutrinárias. Como observou um aluno perspicaz, é curioso que a letra da Carta tenha sido defendida pelos partidários do “direito criativo” e o “jeitinho”, proposto pelos garantistas.  Do paradoxo só escapou o ministro Marco Aurélio. Afora ele, parece que gregos e troianos votaram com a lógica da política. O voto de Gilmar tem afinidades eletivas com a política dos políticos. Já a posição da maioria expressa quanto o impacto da ética faxineira da Lava Jato ainda afeta a conduta de parte da cúpula do Judiciário. Alguém me dirá que depois da desmoralização de Moro, essa hipótese é enxergar vida no velhinho que morreu ontem.

Sergio Moro e sua turma entraram em decomposição. O lavajatismo, penso que não. É força latente, atuante na subjetividade de larga faixa da sociedade, mesmo que momentaneamente esteja na penumbra, pela prioridade objetiva da pandemia sobre a corrupção. Vejo-o como um sentimento público em busca de novo intérprete após o fracasso político de Moro. João Dória é um óbvio candidato a esse legado, daí sua dificuldade e sua indisponibilidade para interagir com tudo que cheire a esquerda. Mas Bolsonaro não renunciará ao mesmo legado, daí a guerra sem quartel entre ambos. Bolsonaro, ou a política palaciana, já trabalha para reconectar o legado lavajatista ao seu eclético repertório eleitoral, usando o aparato da segurança pública, sua influência em áreas do MP e as brechas que vai abrindo no Judiciário, prisma sob o qual se deve analisar, a meu ver, a coalizão de veto que aconteceu no STF no julgamento da ADIN do PTB.

Efeitos politicamente regressivos da judicialização

Salta aos olhos que uma frente ampla contra a bolsonarização da Câmara até a npte de ontem ainda não pudera passar de palavra a ato. O jogo político exige harmonização de discursos e de interesses complexos. É preciso gerenciar compromissos político-partidários, distribuir recursos e espaços políticos entre os aliados, no Congresso e fora dele e sintonizar as alianças nesse episódio particular com as que têm 2022 no horizonte e com as ainda mais gerais e permanentes, que importam na defesa das instituições. O encurtamento do prazo para fazer tudo isso teve graves implicações. Admito não ter tido, prospectivamente, no momento em que o STF julgava, a clareza que penso ter disso hoje, após o leite derramado.  O candidato fisiológico passou a operar na Câmara com desembaraço bem maior. E mesmo que não seja bem sucedido, que perca a eleição ou mesmo desista dela, a solução alternativa vencedora deverá estar mais distante de ter um perfil político contraposto ao dele. Bolsonaro pode não ganhar a Câmara do jeito que quer, nem controlar o Senado.  Mas tampouco será fácil isolá-lo, a não ser que ele deseje.

Por outro lado, foi um teste e tanto para a possibilidade de uma frente política futura que tenha no DEM um eixo de articulação. As tensões no partido acentuaram-se na razão direta da redução do espaço de manobra de Rodrigo Maia. A costura nos bastidores do nome da ministra Teresa Cristina para a cadeira que hoje ele ocupa é um recado claro de que o partido já age para enquadrar o seu personagem até aqui mais destacado. E não é realista esperar que partidos aliados ajudem a dissipar essas tensões. O MDB enxerga a possibilidade de retomar o controle do Congresso. Tucanos, sempre no limiar do discurso hegemônico, têm essa tendência reforçada pelo comando de João Dória. Quanto à esquerda, notou-se, após o julgamento do STF, movimentos erráticos que vão desde alimentar candidatura própria a negociar no varejo turvo de Artur Lira. O gesto político de ontem sinaliza a reversão do segundo tipo de movimento, mas a ideia de candidatura de esquerda à presidência da Câmara não se afastou da boca da presidente nacional do PT.

Existe a possibilidade do passo agregador dessa sexta-feira reverter um perigo que se insinuava no centro político da Câmara dos Deputados e em suas conexões à esquerda, aquele pathos centrífugo que acometeu, a partir de 2017, a coalizão que sustentara o impeachment de Dilma Rousseff e levara Michel Temer à Presidência. A centrifugação da amplíssima articulação do presidente começou quando Rodrigo Janot produziu um artefato midiático com o caso Joesley Batista. A centrifugação do arco de Rodrigo Maia tornou-se possível desde que o STF, também diante de um artefato de apelo midiático, aceitou fazer da sucessão das mesas do Congresso um parto prematuro. 

Tirado de tempo, Maia tentou a autoconvocação do Congresso, que suspenderia o recesso parlamentar para não deixar o governo agir solto no breu das tocas. A PEC emergencial não foi pauta capaz de fazer os partidos de centro se moverem e fez a esquerda roer a corda com receio das reformas.  Pela enésima vez não confiou no caminho da negociação política, preferindo a comodidade do status quo. O relator governista da PEC não apresentou, é claro, seu relatório e assim sepultou a ideia da convocação extraordinária, cuja serventia iria além da PEC e se estenderia a dois problemas cruciais para o País, no momento, para cuja solução se requer unidade e moderação, logo, vigilância do Congresso. Além das sucessões no próprio Congresso, o da vacinação, interesse público número um, de que tratarei na próxima semana pois não se pode tratá-lo a não ser como foco central.

Com tempo ruim todo mundo também dá bom dia

Em meio a tantos percalços e com o Congresso fechado em janeiro, o campo estará, em tese, livre para o governo operar nas sombras e tentar impor seus candidatos. Mas quem der como certo que o Parlamento foi neutralizado e que aceitará ser humilhado pela leviandade contumaz do Presidente da República pode ter surpresas.  Situação oposta ficou patente, também nessa sexta-feira, 18, na tribuna da Câmara dos Deputados. O presidente da Casa reagiu de modo contundente a uma acusação de Bolsonaro ao Legislativo, qualificando-a de mentirosa e tendo sua narrativa dos fatos, pela qual restabeleceu a verdade, confirmada pelo próprio líder do governo. Fora do plenário, no manifesto que anunciou a ampliação do “Centro Democrático” lê-se que “Os radicalismos se retroalimentam e são fundamentais para explicar a nossa união. Enquanto alguns buscam corroer nossas instituições, nós aqui lutamos para valorizá-las”.

Esses sinais de contraponto à ingerência espúria de outro Poder nas decisões do Legislativo animam, mas não devem iludir quanto a dificuldades de um processo em que a assimetria de recursos de cooptação e de chantagem joga contra a autonomia da instituição e cujo desfecho se dará numa votação secreta. Mas um discurso político forte pela independência da Câmara tem apelo pragmático também. Deputados e senadores, de um modo geral, têm noção do poder de barganha que perdem se elegerem presidentes que se dobrem a um Executivo comandado por um candidato a ditador. Tendem a preferir alguém com moderação no trato com o governo, mas firmeza na defesa do Poder e que cumpra acordos internos. Esse foi o roteiro de construção da liderança de Rodrigo Maia. 

Nomes assim não podem ser encontrados se o roteiro para tratar desse problema for o confronto personalizado com Bolsonaro.  A resiliência de sua popularidade seduz os mais pragmáticos, porém, seu efeito mais corrosivo é irritar os adversários impacientes, fomentando a dispersão e jogadas para a plateia. Santos guerreiros são ineptos para lidar com o tipo de maldade que o presidente encarna. Provam-no os sucessivos momentos em que foi desafiado nesses termos e, das urnas ou pesquisas, emergiram efeitos perversos. Foi assim no segundo turno de 2018, com o “elle Não!” puxado por um lulo-petismo ferido; foi assim em maio desse ano, quando o mito começou a ressurgir, ainda antes do auxilio emergencial, logo após Sergio Moro supor que o foguetório de artificio de seu rompimento seria um tiro de misericórdia sobre um presidente até então isolado por se opor à política pública do moderado ministro Mandetta; está sendo assim agora quando, uma semana depois de fortes embates com o governador de São Paulo em torno da vacina, pesquisa Datafolha informa que Bolsonaro é bem avaliado por 37% dos entrevistados e que para 52% ele não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pela covid no Brasil.

Na esteira dessas lições o discurso político firme e unitário precisará, nesses pouco mais de trinta dias, ser combinado com a abertura de novas frentes de entendimento com áreas próximas à candidatura de Lira na Câmara e com a bancada governista no Senado. Preparar-se para vencer um embate em condições adversas é um empreendimento em que, afinal, um acordo pode também se tornar razoável. E ele também é possível, se o adversário tiver igualmente juízo atento ao preço pago por Dilma Rousseff por imaginar que poderia politizar plebiscitariamente uma eleição no interior do Legislativo.

Num cenário como esse, estará em posição privilegiada quem, a essa altura, ainda puder intermediar, com êxito, uma negociação do centro democrático do Congresso com as bases parlamentares governistas nas duas casas, em torno de possíveis nomes de consenso. A posição discreta que o ex-presidente Temer ocupa na geografia política do país faz dele alguém que poderia obter um “nada a opor” do governo a tal entendimento sem, necessariamente, precisar de um “tá ok” de Bolsonaro. Até porque não se pode escrever o que o ex-capitão diz. As chances de êxito dessa interlocução provem dela poder se dar, simultaneamente, com o centro e o centrão e favorecer um entendimento autônomo, no Legislativo, para manter teso, numa conjuntura social e sanitária crítica, o arco da promessa de governabilidade com preservação da democracia que exerceu em 2019-2020.

Na falta de um horizonte límpido, a experiência de dois anos de labuta com o fator Bolsonaro traz bons conselhos. Olhar para os resultados das eleições e para frentes políticas que se formaram e venceram. Lembrar dos trinta primeiros dias de enfrentamento articulado da pandemia no Brasil; de cooperações entre governos estaduais e municipais adversários; do auxílio emergencial, do auxílio aos Estados, da votação do Fundeb. Nesses momentos Bolsonaro se isolou e perdeu espaço. Ao inverso, recupera-se sempre que se perde o foco nesse processo plural e incremental. Sei que o que estou dizendo não responde a certas urgências e convicções, mas o que responde?

Peço, a quem o desfecho dessa coluna decepcionar, que me conceda o benefício de esperar a da próxima semana. Talvez tratando de outro tema crucial, eu possa argumentar melhor pelo bem público que faria um grande acordo político que evitasse a disputa dilacerante que se anuncia pelo controle das mesas diretoras do Congresso. Daqui a 30 dias o país agradeceria se sobre ambas reinasse, soberano, em vez da sucessão, o tema da vacinação. Sem prejuízo de que a frente democrática que se desenhou hoje na Câmara tenha longa vida e ganhe muita força no parlamento e na sociedade. Aliás, um acordo nacional para vencer a crise com aval do Legislativo é uma promessa que depende da solidez do arco.

* Cientista político e professor da UFBa.


Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro: uma eleição e dois scripts

Lemos e ouvimos sempre que eleições municipais têm lógica diferente de eleições para Executivos nacional e estaduais. Fenômenos comuns a 2016 e 2018 arranharam um pouco essa convicção. O sucesso do discurso anti-política, a força da onda lavajatista, o antipetismo como coalizão de veto e por aí vai, tudo isso se desdobrou e radicalizou entre 2016 e 2018.

Agora, um ponto em discussão é em que medida 2020 reverteu 2016. Para avaliar bem isso, deve-se considerar o insucesso eleitoral que tiveram, dessa vez, os discursos de polarização ideológica e o da “nova política” como antipolítica, a menor relevância nas urnas do tema da segurança e o pouco peso do da luta contra a corrupção. Considerar também que o eleitorado valorizou eficácia nas gestões municipais, fator cuja importância foi potencializada pelo contexto da pandemia.

Mas não se pode excluir da análise um importante elemento de continuidade entre 2016 e 2020, que é o fortalecimento eleitoral da chamada centro-direita, em sua diversidade. Aqui cabe distinguir uma centro-direita pragmática que recebe o apelido, muitas vezes impróprio, de “centrão” e aquela que, há tempos, tem o DEM como sua expressão programática, postura que manteve esse partido, por mais de uma década, na oposição aos governos do PT.

Da análise desses fatores depende a resposta à seguinte questão: a reversão que tenha havido, em 2020, do “espírito” de 2016, restabelecerá o antigo grau de autonomia de eleições municipais, deixando supor que 2022, apesar da sinalização contrária de 2020, possa reiterar o quadro inóspito de 2018 ou o padrão de desconexão que vigorou dos anos 90 até 2016-2018 seguirá sendo violado, tornando 2020 capaz de prenunciar 2022 como 2016 prenunciou 2018?

Analiticamente é possível admitir as duas hipóteses. Politicamente é interessante ver como reforçar a segunda. Uso aqui uma chave toquevilleana que abre possibilidades a escolhas políticas, em condições gerais postas por um processo que os atores não controlam. Mas reforçar qual script de 2020? Há mais de um a delinear um realinhamento de forças. Uma bifurcação liga-se a diferenças persistentes de idioma entre a política de São Paulo e do resto do país.

Há duas versões acerca do desfecho do segundo turno das recentes eleições na capital paulista. A primeira, que a reeleição de Bruno Covas foi uma vitória do governador João Dória, o que estimularia uma aliança entre PSDB, DEM e MDB, com posição determinante do primeiro. Ela estaria em dupla polarização com o bolsonarismo e uma esquerda unida que teria encontrado em Boulos uma nova rota de navegação. A segunda versão é que Covas venceu, apesar de Doria, e que sua vitória pessoal aponta à possibilidade de o PSDB paulista adotar perspectiva mais ao centro e mais nacional, para superar dificuldades de trânsito de Doria, fora da centro-direita.

O peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador. Nessas cinco cidades, DEM, PSDB, MDB e Cidadania estiveram juntos com o PDT e/ou o PSB, no primeiro e/ou no segundo turno. Em todas, venceram. Em Fortaleza a aliança chegou a englobar, no segundo turno, o PT. Nessas cidades, com diversas peculiaridades óbvias, há um desenho comum, diverso daquele que São Paulo sugeriu.

Dessa bifurcação surge uma segunda questão: saber se esses movimentos apontam a um tipo de centro moderado que pode atrair São Paulo, em vez de gravitar em torno do contencioso paulista e do PSDB. Eles sinalizam a chance de uma frente mais ampla ainda no primeiro turno, situada, de fato, ao centro, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda. Isso pede uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador. Do nome, os que trabalham com essa meta ainda estão longe. Quanto a partidos, é preciso conversar a sério sobre o DEM. Ele é tão central para essa rota Brasil-São Paulo como o PSDB e Boulos são para a rota São Paulo - Brasil. Para observá-lo, é preciso uma filmadora que capte seu movimento da centro direita ao centro, não flashs que o flagrem como um ator com “essência” de centro-direita.

Essas cogitações sugerem balizas para um agir baseado no que aí está: governo relativamente enfraquecido e Presidente relativamente popular. Muito pode mudar se presidente e governo desabarem juntos numa crise econômica e social ou se, por oposto, o capitão surpreender e vier a ser também presidente. É incerteza intrínseca ao processo. Convém as oposições terem pés no chão, para lidar com o que há e olhos abertos para o que pode vir.

*Paulo Fábio Dantas Neto, Cientista político e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBa)


Paulo Fábio Dantas Neto: Sobre coragem - esquerda e protestos de rua em hora de pandemia

O mito da coragem como parteira de soluções políticas tem prosperado muito nesses tempos de isolamento social e não apenas no ambiente sombrio da extrema-direita. Entre nós, democratas - em especial quem se auto localiza como democrata à esquerda - muitas pessoas sentem-se “culpadas” por estarem “fazendo nada” numa hora tão dramática. Essa culpa - que não nos deixa perceber, de modo profundo, o isolamento como também um gesto de cooperação social - torna as pessoas mais inclinadas a ver como benigna e superior a atitude de quem expõe sua própria pessoa e as de seus concidadãos, incluindo familiares e amigos, a um vírus de potência letal, em nome de uma causa. O impulso, então, é o de atender a um chamado mobilizador, para fazer, na rua, a sua parte e não se sentir alienado, ainda que seu móvel pessoal não coincida com a causa de quem faz o chamado.

Esse impulso heroico faz democratas sinceros duvidarem da eficácia da prudência política. A justificativa racional para o ato imprudente é de que não resta alternativa diante da ineficácia do método político “convencional” (eu diria democrático), em seu necessário tempo lento. Vamos, então, fazer aquilo que os políticos, que têm o dever de fazer, não fizeram. Aquilo o que? Tirar Bolsonaro. Estamos certos, ou ao menos esperançosos, de que indo à rua agora, faremos isso?

Não, não estamos, ao menos a maioria das pessoas não delira. O que se espera é ficar em paz com a consciência e/ou obter reconhecimento social de que fez alguma coisa que está ao seu alcance, como cidadão ou cidadã. Cada caso é um caso, é óbvio, mas penso ser comum dar-se o oposto do que diz a justificativa do gesto corajoso. O juízo negativo sobre o tempo e o método da política é veraz. Mas ele é resultado, não causa, da força interna, de caráter ético-político, que pode nos levar à rua.

Quero argumentar contra a ida às ruas nesse momento, sem com isso desconhecer a legitimidade desse impulso humano, que é precioso para que a política não se reduza a cálculos utilitários. E quero argumentar contra a ida às ruas propondo a democratas que se sentem tomados por esse impulso que não virem as costas a um juízo sobre sua eficácia. Quando a convicção desconsidera a eficácia, a política se dissolve na ideologia. Age-se só por convicção, sem medir as consequências do ato, para si e os outros. Para se ir à rua em momento de pandemia é preciso ter mais que convicções. A ação precisa ser, além de digna, útil. Numa palavra, é preciso ter, também, objetivos. Eles precisam estar além do desejo de quem os traça para serem traduzidos em público. Compartilháveis e negociáveis para que gerem ação realmente coletiva. Sem isso, consciências individuais podem até ser aplacadas pela coragem. Mas a democracia acabará cedendo espaço a algum tipo de mito.

Antes de ter a ousadia de discutir a eficácia ou ineficácia dos atos programados para esse domingo, faço um convite a que se examine a eficácia ou ineficácia da conduta até aqui seguida pela maioria dos agentes políticos da democracia brasileira. Julgo-a, com simpatia, como uma conduta prudente. Tudo o que até agora foi possível construir, em termos de defesa civil, contra essa calamidade sanitária e contra as investidas autocráticas do Presidente da República, foi obra dessa prudência política de quem está à frente dos demais poderes da República e de estados federados.

Especialmente devemos esses instrumentos de defesa à firme atuação do Congresso Nacional, para a qual tem contribuído a liderança séria e discreta do Presidente da Câmara dos Deputados. Dali surgem, há meses, soluções legislativas para enfrentamento e mitigação das crises sanitária, econômica e social. E dali surgem também recusas seguidas a aceitar o confronto político que deseja o presidente e seu governo, cuja atitude de negação, irresponsabilidade e predação social perante as mesmas crises fornece um contraste gritante com a conduta do Congresso. Negando-se ao confronto nessa hora, o Congresso, como instituição, afirma sua própria pauta, a do país real que, diante das guerras particulares do presidente, sofre e não encontra outra representação política nacional, que não a do Poder Legislativo. Como mais um argumento em favor da sua eficácia, digo que, com essa atitude, o Congresso está atraindo o governo para o campo da política, o mais adverso ao Presidente. Quem não gostar da lentidão e tiver aversão à impureza desse campo, deve pensar duas vezes em trocá-lo pelo campo de batalha frontal que o adversário escolhe nessa hora de pandemia.

Concordo que não basta a atuação das lideranças democráticas presentes na elite política. É preciso também muita mobilização civil. E a vejo crescer, com energia diretamente proporcional à também crescente radicalização do presidente. Discrepâncias há entre democratas, assim como incompreensões e equívocos. Mas nada disso nega ou impede a concretização do rumo principal tomado pelo movimento, que é unir, cada vez mais, consciências cívicas a forças políticas. Já somos 70% e, se continuarmos nesse caminho, seremos mais. Nesse ponto não estou pessimista, porque tudo anda ao seu tempo. A hora da solução pode ainda não ter chegado, mas está, a cada dia, mais próxima. Estamos cada vez mais juntos e menos ocupados que antes com as divergências entre nós. Rodas de conversa, marchas virtuais, lives engajadas de artistas, jornalistas e outros especialistas, youtubers em atuação, tudo vai formando um caldo de cultura e energia democráticas. Os manifestos de conteúdo unitário levam tempo para ganhar cada vez mais assinaturas, mas avançam e não são uma lenta coisa em si mesma. Eles são termômetros e uma antecipação do “é da coisa” que estamos construindo, através desses movimentos todos.

Mas estou preocupado, porque o adversário está vivo e joga no ataque. A sabedoria ofensiva de Garrincha e a elegância sutil de Bobô não nos deixavam esquecer o papel dos beques adversários. As dos nossos atuais zagueiros no Legislativo, no Judiciário, na imprensa e na sociedade é não subestimar o do atacante demolidor. A agitação de rua é o meio privilegiado até aqui usado por Bolsonaro para lançar torpedos contra a democracia. Aí ele consegue, no atual momento, avançar mais que na esgrima que trava com as instituições. É preciso realismo para entender que está sendo assim; confiança na democracia para prever que não ficará assim; paciência e inteligência política para ser tranquilo e infalível como Bruce Lee.

Já estou aqui comparando a eficácia do asfalto com as de outros espaços em que a luta democrática se dá nesse momento. Posso ser interrompido por alguém que, com razão, me dirá que não posso falar da eficácia, ou não, de uma mobilização de rua que ainda não aconteceu, ou melhor, apenas começou no domingo passado. Afinal, o que impede que política convencional, participação cívica virtual e mobilização física de cidadãos combinem-se, em vez de se excluírem?

Evitarei qualquer adivinhação sobre isso e até espero, de coração, que meus meros presságios negativos com a ida às ruas sejam desmentidos pelos fatos. Se isso ocorrer tenham certeza de que comemorarei o meu erro. O que tenho feito em outros textos e farei aqui é prestar atenção em experiências vividas e em traços da experiência atual. Sinais de dois tipos, que merecem comparação cuidadosa.

Em 2013, as manifestações, até um certo momento, foram tão massivas que nenhuma marca se sobrepunha à sua marca geral, que era a da diversidade. Era possível distinguir, entre os manifestantes, por exemplo, quem usava e quem não usava a tática black bloc. Hoje tende a haver confusão visual, uma busca de homogeneidade que complica a distinção, posto que não é possível distinguir os trajes do luto pela perda de vidas negras, dos trajes característicos de black blocs. Talvez essa indistinção corresponda, em alguma medida, ao traço de união civil que a luta contra o racismo no mundo pode propiciar. Então, qual é o problema? Sem entrar aqui em considerações políticas ou éticas sobre o mérito da tática black bloc, não se pode perder de vista que o estigma existente sobre ela é ouro na mão de quem quer construir uma narrativa para confundir as manifestações com guerrilha urbana. Uma narrativa dessas tem chances de prosperar no instante em que algum tipo de violência irrompa e não faltarão agentes interessados em provocá-la.

Em 2013, apareceram também depredadores destituídos de compromisso com qualquer objetivo político. Os black blocs decerto não podem ser confundidos com eles. Os próprios manifestantes entendiam e se entendiam sobre isso e até tinham a cooperação da polícia para identificar e isolar os desordeiros e provocadores. É isso o que Boulos promete fazer domingo, além de distribuir máscaras. Acontece que agora há duas novidades absolutas e explosivas a desafiar essas prevenções relativamente tranquilizadoras: os provocadores da direita abundam e as polícias vêm tendo uma conduta suspeita, parecendo mesmo estarem infiltradas por milícias. A gravidade da situação requer que nos interroguemos se governadores e comandantes de PMs poderão, em abstrato, manter sob controle a cumplicidade clandestina de policiais e milicianos, uns e outros bem concretos.

Por fim, eu que adoro futebol, sou tricolor militante e assíduo frequentador de estádios, vejo o protagonismo de torcidas organizadas como ingrediente a mais de tensão negativa. Sei que quem promove os atos não são os comandos das torcidas, mas, por se colocarem como antifascistas e democratas, não deixam de partilhar o espírito geral que caracteriza esses corpos de torcedores, em geral, exaltados. São terreno poroso também a infiltrações da extrema-direita e a lógicas predatórias e mercenárias. Como diz uma amiga minha, cujo nome não estou autorizado a revelar, são um ambiente culturalmente marcado por um machismo territorialista. Por andar se exibindo com camisas de clubes, querendo se comunicar diretamente com as torcidas, Bolsonaro talvez receba agora, como cogita outro amigo meu, o troco por ter tentado concorrer num terreno de galos, que não domina.

Parece claro que a esquerda está dividida quanto a associar-se a essa convocação. O PSOL embarcou e Guilherme Boulos anuncia que também lá estará a Frente Brasil sem Medo. O PSB emitiu uma nota em que se posiciona, claramente, em sentido oposto. O PT não emite mensagem clara. Sua bancada no Senado assinou uma nota conjunta com toda a oposição, desaconselhando participação nos atos.

Imagino que os governadores do partido e de toda a esquerda também não gostem da ideia, mas a militância está atiçada em direção ao movimento, certamente animada pelas recentes declarações de Lula e de Gleisi Hoffmann, pondo-se na contramão da convergência que cresce entre as forças de oposição. Quanto ao PC do B, salvo engano, ainda não falou. Espero que o faça em linha com Flavio Dino.

Pois bem, uma parte da esquerda embarca ou flerta com a "masculinidade tóxica" de achar que pode fazer o que a política conciliadora não pode ou, supostamente, não quer. E tempera essa atitude com uma gramática de agitação política que a traduz como coragem. Essa é a nitroglicerina que mais temo no domingo. Com o temor próprio de quem pensa nas sequelas equivalentes que a covardia e a temeridade podem deixar na democracia.

Desde ontem estou em corpo a corpo virtual com alunos, tentando que fiquem longe disso e se mobilizem noutra direção, sugerindo também que tentem fazer o mesmo com seus colegas. Apesar de não pessimista no atacado, sinto-me, nesse varejo tenso, como se fosse preciso fazer algo que lembra a lista de Schindler. A analogia é pretensiosa, mas acalma.

  • Cientista político e professor da UFBa.

Paulo Fabio Dantas Neto: O Brasil vive um perigo político imenso

Rodrigo Aguiar, Jornal A Tarde

Que cenários vê para as próximas semanas no país, após os protestos de grupos contra o governo no último final de semana?

Acho complicado prever as próximas horas, quanto mais semanas. Quem disser que não está com a vista turva quer iludir ou se iludir. Da minha parte, o que posso ver é um perigo político imenso. Gente com boa fé ser arrastada a um confronto que, caso se consume nesse momento, não aponta para um desfecho democrático. E diante disso o que posso dizer é que é preciso persistir na busca de unidade de todos os democratas, no espírito do manifesto do movimento “Estamos juntos”, que todo cidadão e toda cidadã precisa assinar e divulgar já! É um respaldo social imprescindível a que lideranças políticas e institucionais possam agir e cumprir seu papel, com ainda mais firmeza e eficácia.

Essa unidade acima de posições políticas tem dois objetivos. Primeiro não deixar que desça ladeira abaixo o que se conseguiu reunir de esforços para combater a Covid. Nada, absolutamente nada, é mais urgente nesse momento. Essa luta é sanitária e política e precisa ser sustentada em três frentes: a do máximo isolamento social possível; a do apoio ao trabalho que vem sendo feito no Congresso para decidir medidas e políticas emergenciais a pessoas vulneráveis, empresas empregadoras e os governos estaduais e municipais para que continuem a enfrentar essa pandemia; e a de denunciar e entregar à Justiça a inaceitável sabotagem do governo federal à execução dessas medidas e políticas.

O segundo objetivo é defender, sem ressalvas ou meias palavras, as nossas instituições democráticas reais (Congresso, STF e imprensa) e quem está à frente delas, de ataques que vêm sofrendo de inimigos da democracia, que invocam seu nome em vão. Reagir com firmeza sabendo reconhecer as armadilhas postas por quem quer nos fazer crer que o problema se resolverá bem na queda de braço.

O possível acirramento entre os grupos contra e a favor do presidente, com possíveis confrontos nas ruas, seria um ambiente mais ou menos favorável a Bolsonaro?

Sem dúvida alguma favorecerão o presidente e a onda fascistóide que ele patrocina. A própria quebra do isolamento social por parte de quem deseja combatê-lo já é um equívoco, do ponto de vista social, pelo agravamento do problema sanitário para o qual as manifestações de rua, nessa hora, contribuem. E é também um tiro no pé, do ponto de vista político, porque a intenção do gesto é outra, mas, na prática, se iguala, nos resultados sanitários, às imprudências dos bolsonaristas. Isso nos tira força e autoridade moral para condenar e combater esses sabotadores da luta contra a Covid.

Mas além de efeitos negativos ao desafio sanitário - que, a meu ver, repito, é a prioridade social, o acirramento ajudaria o presidente também pelo clima de violência política propício ao caos que ele tenta fomentar. Estou convencido de que, na conjuntura em que estamos, a violência, parta de onde partir, é a inimiga mais letal dos democratas. Não se pode flertar com ela. E é exatamente isso que se faz quando se admite, em nome da luta pela democracia, mobilizar torcidas organizadas para um enfrentamento de rua com o fascismo. A luta antifascista só tem chance de êxito se for uma luta cívica, fundada não só na ideia de liberdade, mas também na da paz. O sentido dessa luta é a união do país e não consagração da luta de classes. Além disso, é muito ruim politizar o futebol, assim como a religião e as relações de trabalho ou de família. Pois o fascismo se alimenta exatamente da politização de tudo.

Muito se fala sobre Bolsonaro ter ou não apoio das Forças Armadas (ou dentro das forças de segurança) para um eventual golpe. Qual a sua leitura sobre isso?

Leio que Bolsonaro, seus ministros militares e seus apoiadores, não só nas redes sociais, mas também em setores políticos e empresariais restritos, tentam fomentar violência política e caos social para arrastar as Forças Armadas a, em nome da ordem, pressionarem o Congresso e o Judiciário a lhe concederem poderes excepcionais, através de um estado de sitio. Esse instituto constitucional, nas mãos de Bolsonaro, seria o meio para, a médio prazo, acabar com a democracia e instituir uma ditadura sua, ainda que com algumas aparências de democracia. Ele precisaria fazer isso até 2022, pois sabe que mantidas as atuais regras democráticas, não vencerá eleições em dois turnos no meio de destroços de uma pandemia que ele se recusou a combater, seguida de uma forte recessão econômica. Mesmo que chegasse ao segundo turno, aí o País se uniria contra ele. Tenta, então, virar a mesa.

Esse parece ser o desejo presidencial, cenário radical que usa a todo momento como ameaça. Mas não é fatal que esse desejo se realize, depende também da firmeza e da inteligência dos democratas. Concordo, porém, que o quadro preocupa muito porque, mesmo que o desejo do presidente não se realize, sua ação subversiva pode inviabilizar também a sustentação da democracia plena que temos. Pode se impor um “meio termo” amargo, que ainda pode ser evitado, se não fizermos bobagem.

O que pode estar se apresentando agora, nos bastidores dessa crise, é uma hipótese de quase guardiania militar, com Mourão, como preço para nos livrar de Bolsonaro. Continuidade parcial do que aí está, até 2022, o que implica em acomodações. Qual o risco? A depender do grau da crise econômica e social no contexto pós-pandemia, essa quase guardiania virar, adiante, uma guardiania de verdade, no lugar da democracia. Podemos estar entre esse inseticida tóxico, ou manter o inseto letal no governo. Vale dar à democracia uma dose de cloroquina para tentar livrá-la do vírus Bolsonaro? O STF vem resistindo a isso, crendo na possibilidade de que seja garantida sua prerrogativa de Poder que dá a última palavra. Sem dúvida, essa resistência merece apoio. Esse é o caminho. Mas ela pode dar com os burros n’agua se, de algum confronto de rua, surgir um cadáver, seja qual for. Essa será a gota d’agua que falta para deixar aos políticos e à sociedade, como último recurso, escolher entre o inseto e o inseticida. Toda pessoa que ama, sinceramente, a democracia, dever pensar duas vezes antes de, neste fim de semana ou em dias próximos, expor-se ao vírus da Covid e ajudar a expor o País à armadilha autoritária que tenta provocar um confronto desigual.

Acredita que a onda mundial de protestos pela morte de George Floyd pode ter efeitos significativos no Brasil e na política nacional?

Sem dúvida, também. O Brasil não é uma ilha e esses protestos estão carregados de uma moral cívica promissora, revigorante, que chegará aqui também. E chegando deve ser saudada. O exemplo mais positivo dessa moral cívica foi dado pelo irmão de George Floyd, ao afirmar que não se sente representado pelos atos violentos, que também ocorreram e ocorrem, em meio aos atos de protesto. Foi uma declaração fortíssima, que chama a atenção para o caráter agregador da luta contra o racismo. Toda a sabedoria dos democratas brasileiros, em especial dos seus cidadãos negros e negras, estará na sua capacidade de respirar os bons ventos que sopram dessa indignação da sociedade norte-americana, recorrendo à política do bom combate para fazer com que eles soprem a favor da democracia, em vez de ajudarem à guerra interminável que seus inimigos querem nos impor.

Cientista político e professor da UFBa.


Paulo Fábio Dantas Neto: Desconstrução de memória da gestão Mandetta é ameaça ao SUS

Um debate promovido pela Globo News, na noite do último dia 02.05, mostrou que senta praça na discussão sobre as crises sanitária e política uma desconstrução da imagem positiva que a atuação do Ministério da Saúde contra a pandemia conquistou, junto à opinião pública mais informada e à população em geral, enquanto durou a gestão do ex-ministro Luiz Mandetta. Essa desconstrução política de uma experiência exitosa não é propriamente uma conspiração. Se repararmos nas vozes que a difundem, ou permitem, veremos que a coisa vai além do discurso bolsonarista. Aliás, parece que, para esse polo autoritário, o assunto é página virada, desde que o presidente exonerou o ministro, no qual farejava um concorrente eleitoral. Vozes que atualmente desqualificam, sempre de passagem, nunca frontalmente aquela experiência ocupam posições distintas, algumas até opostas entre si, como ficou claro no referido debate.

A desconstrução começa com uma pergunta de uma jornalista da emissora ao líder do governo na Câmara. Aqui não importa se foi politicamente intencionada ou se apenas superficial e desatenta. Muito menos a resposta dada pelo deputado. Importa reparar no raciocínio que levou à pergunta: o presidente - disse - exonerou o ministro Mandetta no meio da pandemia por discordar do isolamento social que o ministro defendia. O sucessor passaria a praticar outra política. Duas semanas depois, Nelson Teich reafirma que o MS defende o isolamento social. Então, se era para seguir a mesma política, por que Bolsonaro demitiu o ministro? Sem entender de política sanitária ou de gestão de saúde pública, como cidadão e na expectativa de que vozes mais abalizadas que a minha se debrucem sobre esse assunto, pergunto eu, agora:

Mesma política? A frase cínica de Teich revoga a realidade do contraste brutal entre o que era e o que passou a ser a política do ministério? Aonde foi parar aquela ênfase engajada no isolamento como conduta prudente e solidária diante dos fatos de não haver vacina e do vírus ser desconhecido? É a mesma coisa dizer que o isolamento é necessário, mas se calar diante da imprudência, ou mesmo flertar com ela, dizendo que ele deve ser compatibilizado, sob igual prioridade, com os requerimentos imediatos da economia? E por onde anda agora aquela articulação federativa que gerava sintonia fina entre o MS e os governadores? E aquela articulação com o Congresso, para opinar sobre o conteúdo das medidas de combate direto e de mitigação dos efeitos sociais da pandemia? Coincidem com ela a atual lassidão federal face à velocidade da crise sanitária que deve enfrentar e a indiferença do ministro à dimensão política dessa crise? O que significa a secretaria executiva do ministério ter sido desconectada da área de saúde e assumida por um militar interventor? Nada nos diz o simbolismo do principal quadro responsável pela área técnica e todos os que falam pela política de saúde do MS serem obrigados a se despir do colete do SUS, para se sintonizarem com o novo ministro e o interventor? São só mudanças de estilo, ou decretam uma malévola tensão do governo com a gestão do sistema público de saúde e com os vínculos dessa gestão com a sociedade civil?

Pergunta ainda mais importante é: a informação segura, realista, transparente e diária com a qual o MS vinha a público, dispondo-se a responder perguntas, pode expressar a mesma política expressa na atitude que hoje se vê, pela qual a informação rareia ou é filtrada na forma de monólogos? Estamos fora da realidade ao vermos contraste também nos resultados? Nem falo do número de vítimas, pois não há como provar que provém diretamente da insensibilidade social da nova política. Falo do salve-se-quem-puder que começa a acontecer diante da inépcia da logística do ministério para amparar estados e municípios às voltas com o assoberbamento do sistema de saúde. Trata-se do contraste entre a sensação de segurança relativa em meio ao temor, que antes se experimentava e a impressão atual de que o governo desligou os motores do carro do MS para que desça na banguela a ladeira da pandemia. Atitude compatível com o descompromisso, vizinho da sabotagem, que a área econômica desse mesmo governo mostra ao dificultar a aprovação de medidas legislativas de socorro federativo.

Tudo isso em si já é trágico. Então é preciso não deixar que a desconstrução da imagem da política anterior do MS - sugerida pela insólita afirmação de que ela e a atual são a mesma - retire também dos brasileiros até o recurso à memória recente. A informação e as orientações que ela nos legou são uma relativa vacina (única à mão) para proteger pessoas do fatalismo e do desespero, dois filhos perversos do caos alimentado por uma política friamente descolada do drama social. Por isso é importante que a comunidade da saúde se manifeste de modo esclarecedor e não nos deixe pensar que há razões legítimas para desconsiderar o contraste.

A pergunta da jornalista não foi, contudo, o único indicio de desconstrução política que se pode notar no debate da Globo News. Ciro Gomes e João Amoedo, candidatos derrotados nas eleições de 2018, pelo PDT e pelo Novo, discordaram em inúmeras coisas, como convém numa controvérsia entre esquerda e direita, quando travada por personalidades um tanto outsiders, ou instáveis, empenhadas em provar coerência ideológica aos eleitorados dos campos em que querem se situar. Tudo bem, até aí nada a estranhar. São efeitos colaterais da democracia, jogo do qual não queremos abrir mão. Mas esses políticos antípodas uniram-se em idêntica crítica ao que chamaram de isolamento tímido, adotado “desde o começo”, pela política federal de Saúde. Tal como engenheiros de obras prontas receitaram, no futuro do pretérito, o isolamento “radical”, que, segundo eles, deveria ter sido adotado tão logo chegaram ao Brasil as primeiras evidências do vírus. Gomes chegou a citar, como paradigma, a conduta da Nova Zelândia.

Estamos apenas diante de opiniões voluntariosas e diletantes ou de declarações politicamente interessadas em desqualificar a política anterior do ministério? Nessa segunda hipótese, o alvo é mais genérico (o governo federal), ou mais específico, no caso o ex-ministro Mandetta? Mais uma vez, não quero discutir intenções. Discuto implicações objetivas de uma visão como essa. Que ela desconsidera as abissais diferenças de dimensão territorial, de perfil social e cultural que há entre países como Brasil e Nova Zelândia é apenas a parte mais óbvia do equívoco. Espanta, especialmente em Ciro Gomes, um político experimentado e bem informado, a desconsideração do caráter eminentemente federativo da dinâmica de funcionamento do SUS.

Como pretender que ela pudesse se adaptar a tempo a uma política que pressuporia uma incontrastável autoridade do poder central para determinar a estratégia? E ainda que isso fosse possível, como fazer que o fosse instantaneamente, ao estalar de dedos de uma vontade política iluminada? O bom senso indica que teria que se fazer uma escolha entre adotar essa instantaneidade e essa disciplina radicais, à revelia do SUS e/ou atropelando a sua gestão, OU centrar o foco no SUS e na comunidade técnico-científica para traçar a estratégia, o que exige um tempo diverso daquele que o voluntarismo político imagina. Felizmente para o País, adotou-se o segundo caminho, que não se mostrou incompatível com um sentido de urgência.

Foi efetiva e febril a mobilização para aproveitar o isolamento e ampliar o sistema público de saúde, ainda que essa ampliação tenha ficado distante da necessidade, como é óbvio que ficaria. A essa mobilização o país deve as chances, que ainda conserva, de não submergir na tragédia.

Mais: como pretender isolamento instantâneo e radical, que travasse completamente a circulação num país imenso, sem condená-lo previamente a uma crise de abastecimento sobreposta à crise de contaminação? Ao contrário do que disse Bolsonaro, a política anterior do seu governo na área da saúde não descuidava de variáveis econômicas, apenas não as passava na frente da prioridade sanitária. O que os engenheiros de obras prontas propõem agora (sem mais os riscos inerentes à colocação da proposição em prática) é que o MS tivesse preferido o confronto absoluto com a linha do presidente, em vez da atitude firme com que Mandetta sustentou, contra ele, a sua política incremental. Mostra-se aqui como a desqualificação retrospectiva de uma política moderada contrapõe o voluntarismo à prudência e atiça um ambiente político avesso à cooperação e ao entendimento. A emissão de opiniões despreza o exame de resultados objetivos da visão diferente adotada. O debate reduz-se a uma disputa pela verdade. Nisso estamos há alguns anos no Brasil. Talvez por isso a experiência recente, havida no MS, pareça um ponto fora da curva.

Por fim, o debate da Globo News trouxe-nos um terceiro indicio de que, entre o desafio da curva e o cavalo selado que passava para se montar e dobrá-la, prefere-se ficar maldizendo a curva e procurando responsáveis por ela. O ex-candidato do PT na mesma eleição de 2018 perdeu uma excelente ocasião para ter uma atitude diferenciada. Essa esperança se justificava, de alguma maneira, pelos históricos vínculos que aquele partido foi construindo, ao longo do tempo, com o sistema único de Saúde. Embora esse tenha sido concebido, há quase quarenta anos, durante a transição democrática, por um movimento social (o da reforma sanitária), que se moveu sob influência maior de um outro tipo de esquerda, o PT somou-se, historicamente, a essa construção e certamente tem para com ela um real compromisso político.

No debate da Globo News, Fernando Haddad não deixou de declarar esse compromisso, como também fez Ciro Gomes. Sem dúvida, é uma reiteração importante, nesse momento. Mas ele perdeu a chance de usar o palanque que lhe foi franqueado agora - quando a emissora aceita o conflito com o presidente e aposta no seu acirramento - para dar consequência política à sua declaração de princípios. Era preciso defender o SUS pela pedagogia do exemplo. Isso passava por enfatizar o papel fundamental que esse sistema está exercendo, concretamente, na defesa da saúde pública e por mostrar o desastre a que estamos arriscados agora, por ele ter deixado de ser o centro de uma política pública federal. Mas em vez de realçar o contraste entre a política de um e de outro momento do atual governo, Haddad optou por minimizá-lo. Em tom morno e fulanizado, limitou-se a registrar diferença entre o ministro atual, que nada entenderia de SUS e de saúde pública, e o ministro anterior que, pelo menos, teria alguma coisa a ver com o SUS. É pouco, muito pouco mesmo.

Haddad sequer precisaria dar-se ao esforço republicano de elogiar o ex-ministro. Bastaria enfatizar, em vez de diluir, o contraste entre uma política centrada no SUS, como foi a de Mandetta (que vestiu literalmente essa camisa, para muito além de ter “algo a ver” com ela) e a que hoje dispensa o cérebro, ataca o coração e amarra os braços do SUS. Ao contrário de Ciro e Amoedo, ele não criticou a política anterior. Mas deve-se cobrar de um quadro do PT que faça mais do que Pilatos nessa hora. Que se concentre em mostrar à sociedade o que ela perdeu com a mudança da política do MS. Ao deixar de fazê-lo, por motivos que aqui também não vou discutir, ele contribui, objetivamente, para que a desqualificação prossiga e, com ela, a desconstrução de uma imagem que é de interesse público.

A desconstrução do contraste pedagógico entre os dois momentos transcorre não apenas no debate aqui comentado. Jornalista respeitado e respeitável usou sua coluna, no último domingo, para discutir o cada vez mais presente problema de como gerir, eticamente, no sistema de saúde, situações limite em que escassez de leitos e respiradores impõe a médicos escolher quais vidas salvar. Defendeu a fila única com argumentos legítimos e denunciou a resistência das corporações da medicina privada em colocar a utilização dos seus leitos sob regulação pública. Criticou o que seria silêncio conivente do ministério da Saúde para com essa resistência e, de passagem, afirmou ter sido idêntica a postura do ministro anterior. Mas a memória de primórdios da campanha de combate à Covid 19 registra a atuação pessoal do então ministro junto ao Congresso para aprovar a Lei 13979, de 16 de fevereiro de 2020. Ela prevê, explicitamente, em seu artigo 3º, que “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas”. O inciso VII do mesmo artigo inclui, entre as medidas previstas, “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

A lei não permite expropriação de leitos de UTI de hospitais privados, por interesse público e prevê indenização posterior, em bases a discutir depois. Mas decerto permite que o ministério apoie requisições administrativas feitas por autoridades sanitárias estaduais e locais e coordene uma regulação nacional que incorpore esses leitos para viabilizar a fila única. Como está claro que é preciso e justo fazer isso, se não o fizer, é justíssima a crítica do articulista. Mas não sua extensão ao antecessor que, além de não ter sido colocado objetivamente diante de tal situação, sinalizou qual seria sua conduta diante dela, empenhando-se na aprovação dessa lei. Ignoro se a moderação do texto final foi do seu agrado. Sendo ou não, ele explicava, naquelas entrevistas diárias, que a lei foi uma medida proposta pelo MS para garantir, entre outras coisas, a regulação do acesso universal ao sistema de saúde na hora mais crítica, à qual estamos chegando agora. Como no caso da profissional da Globo News, não discuto a intenção da crítica do idôneo jornalista. Registro ser injusto imputar silêncio a quem se conduziu de modo oposto.

Penso que os exemplos comentados não são bastantes para afirmar que há uma coalizão de veto à memória daquele processo benigno, ceifado em botão. Mas localizar afinidades argumentativas entre fontes de opinião tão diversas aconselha ligar o alerta. A desconstrução da memória, por intenção, omissão, ou desatenção, é nociva à saúde pública e à política.

Pode ser que alguém interprete esse texto como só um reconhecimento ao papel de Mandetta, ou mesmo como sua defesa política. Nada me custaria fazê-lo. Mas aqui o foco é outro. Quem tem mais a perder com essa desconstrução é o SUS. No lance seguinte desse jogo midiático-político, ele poderá ser responsabilizado pela tragédia com que seus inimigos flertam.

*Cientista político e professor da UFBA.


Paulo Fábio Dantas Neto: Notas sobre a conjuntura e o depois – abril 2020

Interpretação de uma situação de fato

A substituição do ministro da Saúde foi um revés para uma boa política de enfrentamento da pandemia. Esse é o impacto mais importante. Atinge todo mundo. A sociedade perde, ao menos momentaneamente, a orientação, segura, transparente e diária que vinha sendo dada pelo Ministério da Saúde, numa conjuntura crítica de incerteza e medo. O próprio Estado sofre, porque suas instituições, flagrantemente em desacordo com a decisão presidencial, tendem a ficar ainda mais tensionadas. E o governo, particularmente, terá que alterar conceitos políticos, procedimentos técnicos e rotinas administrativas em pleno desenrolar de uma situação crítica.

O impacto sobre o Presidente da República é ambíguo. De um lado, o fato dele ter tomado uma decisão na contramão da ampla maioria da população certamente desgasta mais sua imagem, já bastante desgastada por sua conduta imprudente no cargo, que não começou agora. Ao mesmo tempo o devolve ao jogo, pois ele retoma, em parte, a iniciativa política que perdera por causa dessa conduta. Ele não abandonou a atitude imprudente, longe disso, mas, radicalizando-a, criou nova situação e parece começar a sair das cordas, reanimando suas falanges - as radicais e as áulicas -, energizadas com a ostentação de autoridade. Acima de tudo, afastou do seu governo uma personalidade política em ascensão, no caso o ex-ministro Mandetta, que ele logo enxergou como concorrente. De fato, desde que Lula caiu no ostracismo e Sergio Moro foi absorvido pela rotina de governo e por seu próprio elitismo, ninguém conseguia se comunicar embaixo com a população, como Mandetta conseguiu. Tirando-o dos holofotes, mesmo ao preço de colocar a saúde pública em sério risco, o presidente espera reverter um jogo que lhe vem sendo desfavorável. Parece ter sido essa a intenção. As próximas semanas e meses mostrarão o tamanho da distância entre a intenção e consequências políticas reais do gesto.

Mandetta teve apoio da população à sua conduta, em parte por méritos pessoais de quadro tecnicamente correto da área da saúde e de quadro político afeito ao entendimento e à articulação, dotado do talento para gerar empatia com públicos amplos. Em outra parte, pela sinergia entre a equipe do ministério e o engajamento da comunidade técnica da saúde. Com espírito público e consistente experiência em gestão da saúde pública ela soube se impor e o ministro a valorizou, como fez com a comunidade científica e acadêmica. Também pela ampla adesão da imprensa e da sociedade civil ao conceito geral da política adotada pelo MS.

Esse apoio social influenciou a atitude das forças políticas. Mas nessa área, o apoio à personalidade pública do ministro não teve o mesmo tamanho do apoio à política do MS. Foi assim inclusive com forças ditas de centro e centro-direita, com as quais ele interage com mais facilidade, por afinidade prévia. É compreensível que tenha sido assim. A projetos políticos como o do governador de São Paulo, a ascensão popular do ex-ministro não teria como ser ideia simpática, ainda que sejam convergentes as visões acerca do combate à epidemia. A possibilidade do DEM passar a cogitar o nome de Mandetta para 2022 não poderia passar despercebida. Já na esquerda petista ou vizinha, a atitude em geral não foi hostil, mas cooperativa (caso dos governadores), combinada a silêncio obsequioso das bancadas parlamentares e reticências e ressalvas, geralmente ligadas no retrovisor, nas redes sociais e sites ligados a ela. O trânsito ficou mais fluente com o embate entre Mandetta e Bolsonaro. Mas na reta final, perto da queda, o ainda ministro teve restrições diretas de Lula e Ciro Gomes. Elogios no campo político dessa esquerda só se tornaram mais visíveis após sua saída do ministério.

O novo ministro, como bem assinalou a colunista Miriam Leitão, ainda não disse a que veio. Talvez consiga dizer. Por ora, o que se pode especular, a partir de genéricas pistas que deu, é que ele esteja em linha com informações e estratégias que transitam, não necessariamente de modo consensual, nos ambientes científico, empresarial e militar. Mas é improvável que consiga realizar intentos pensando e agindo apenas como técnico. O processo deve confirmar a convicção do seu antecessor de que sem política não há caminho. E no esquema que está combinado, parece que a política vai caber a Bolsonaro, mordendo e a seus militares, assoprando.

Sobre a situação do Presidente

Nove entre dez analistas da política brasileira constatam o isolamento político do presidente. Sem negá-lo, faço duas ressalvas. O isolamento chegou ao auge na primeira semana de abril, quando lhe faltou, inclusive, condições para demitir o então ministro da Saúde. Mas a partir daí nota-se uma operação para tirá-lo das cordas, levada a cabo pelos seus ministros militares. É significativo o dado de recente pesquisa do Data Folha de que 48% do empresariado, em geral, aprovaram a mudança do ministro. Trata-se, ao que parece, de uma operação de estado maior em pleno curso, mesmo que o perfil político e pessoal de Bolsonaro a dificulte. A segunda ressalva é que, para um político com atitude política extremista e personalidade arrogante como as de Bolsonaro, isolamento político não deve levar a recuo, reflexão e reorientação de conduta. Assim reagiria um liberal-democrata e ele é a antítese disso. Para políticos como Bolsonaro, isolamento é convite à radicalização.

Parece inevitável que caia no colo de Bolsonaro a responsabilidade política pelo aumento de vítimas da pandemia, mesmo que não haja aí uma relação necessária de causa e efeito, pois nunca se poderá mensurar com precisão em que grau o afrouxamento do isolamento social se deverá à influência do presidente e em que medida o afrouxamento causará maior contaminação, ou pane no sistema de saúde. Não há nem haverá provas, mas já há forte conexão de sentido, que será difícil seu discurso neutralizar, nas condições da nossa democracia. Ainda mais quando se somar, à crise sanitária, uma dura recessão econômica, com suas implicações sociais.

Os movimentos do governo Bolsonaro – estratégia ou vôo cego?

Enxergo uma estratégia de governo, da qual Bolsonaro faz parte de modo pouco usual para quem ocupa o cargo de presidente. Há momentos de confusão, mas não desorientação. O modo de enfrentamento da pandemia e o desfecho do affair com Mandetta podem ajudar a desfazer dois erros de interpretação difundidos durante o primeiro ano do governo, dos quais não me excluo, aliás. Pensava-se em alguns ministros militares como quadros da corporação dentro do governo e que eles, nessa condição, estariam contendo um presidente incompetente e radical, para o país ser governado apesar dele, com racionalidade e moderação.

Parece mais claro, agora, que paraquedistas que ocupam salas no Planalto ou na Esplanada não o fazem como agentes do Estado, ou da corporação militar, mas como governistas cujo objetivo é sustentar esse específico governo, dando respaldo a Bolsonaro, ainda que à custa de agressões ao Estado e de saias justas com a própria corporação militar. Inclusive o Gal. Braga parece migrar para essa posição. Quando convenceram Bolsonaro a não exonerar Mandetta, naquele chamado dia do fico, quem estava sendo blindado era o presidente, não o ministro. Esse começou a ser fritado em fogo alto no dia seguinte e não a partir da sua entrevista ao Fantástico, uma semana depois. A entrevista parece ter sido a reação de Mandetta e do DEM para consumar, em condições mais favoráveis, um desenlace já decidido pelo governo, por entendimento entre Bolsonaro e seus militares.

Isso não significa que, mais adiante, essa simbiose se manterá. Mas caso se desfaça, o plano alternativo não parece ser o de dar protagonismo, com vistas a 2022, a um político democrático, seja de esquerda, ou mesmo de centro, direita, ou centro direita, como Mandetta, Dória, Maia ou outro qualquer. Vejo hoje em movimento um projeto de guardiania que tem e terá relação tensa com a ampla democracia política que vigora no Brasil. Se depender desse grupo de militares (insisto que não me refiro à corporação, mas a um grupo político) seu colega fardado que ocupa a vice-presidência da República pode ter um destino político além do de um presidente- tampão. Coloca-se aqui, de novo, em questão, o tamanho da distância entre a intenção dos militares governistas e as consequências e possibilidades reais de êxito dessa estratégia, que vai ficando nítida. A questão política só se resolverá após a pandemia, a depender, em boa medida, dos estragos sociais e econômicos que ela provocar.

Mas desde já é possível dizer que esse grupo militar, além de exercer força de gravidade sobre grupos palacianos e ministérios, através dos quais dialoga com políticos e partidos, parece ter certo apoio empresarial. A base conjuntural desse entendimento que pode enlaçar, por cima, esses atores no curto prazo é a necessidade de retomar, o mais brevemente possível, a atividade econômica, com vistas a atenuar os efeitos, necessariamente rigorosos, da recessão que já se instalou e que não irá embora junto com a pandemia. Mas para que uma aliança como essa seja sustentável e produza consequências políticas sistêmicas, as suas partes terão que se acertar em assuntos estratégicos, tais como o perfil futuro da presença do estado na economia e os limites aceitáveis de absorção institucional e processamento democrático do conflito social. Normal que não haja definições sobre eles nesse momento, mas a indefinição não significa que cada qual dos atores não já esteja formando uma ideia a respeito.

No caso do empresariado é insensato pensar que chegarão a uma visão “de classe”. Decisivo será, sim, o nível se convergência possível entre setores que sejam distintos o bastante para tornar a articulação ampla e suficientemente coincidentes quanto à relevância do seu peso econômico, para que essa relevância compense, na hora da operação política, a dificuldade comunicativa com a base da sociedade, decorrente da posição assimétrica que ocupam, nessa sociedade. Para eles a questão política de fundo é a escolha entre os riscos e vantagens da democracia, de um lado, e riscos e vantagens da guardiania, de outro.

Já os ministros militares - que desde a campanha eleitoral passada vêm se constituindo como grupo político e que buscam recrutar novos quadros entre os ativos e reservistas da corporação - parecem servir-se de um pensamento estratégico mais amadurecido. A formulação, naturalmente, é externa a grupo e, nesse sentido, há nexos com a corporação militar, ainda que a execução não conte com ela e até a constranja, em certos momentos, quando entram em jogo fatores estranhos à lógica estratégica do intelectual militar. O calcanhar de Aquiles está na baixa perícia desse grupo no manejo da política, que é necessária para operar a estratégia.

Já as lideranças civis, que formam a elite política, se têm revelado prudentes e hábeis em táticas de conjuntura nessa quadra difícil, mas, ainda na defensiva e presas ao imediatismo, parecem se ressentir de uma estratégia positiva que lhes dê unidade ao lidar com desafios de médio e longo prazos. Sintoma disso foi não terem encarado a ascensão pública do ex-ministro Mandetta como capital político comum, para dar nome e sobrenome à ideia de centro político que há anos se cogita para tirar o país de uma polarização política estéril. Um cavalo passou selado e não foi montado, embora ainda possa ser, mais adiante, a depender da percepção pública sobre as decisões tomadas para enfrentar a pandemia. Se já houvessem se entendido sobre apostas a médio e longo prazos, o desafio da saúde pública justificaria ensaios de reação política e institucional à exoneração do ministro. Se não poderiam impedir Bolsonaro e os militares de removê-lo, ao menos teriam mostrado a eles que o preço político para plantar uma guardiania em vestes de democracia no Brasil será mais alto do que será se o centro político permanecer fragmentado. Mas os dados ainda rolam. Um otimismo moderado permite considerar a unidade da elite política civil como um processo em construção. É desse processo que essas notas se ocuparão, a partir daqui.

Relações entre Legislativo e Executivo – o estado da arte

Esse é terreno crucial para definir o desfecho da crise atual. Do ponto de vista dos democratas é terreno mais promissor que o da disputa, com Bolsonaro, pela simpatia do grupo militar governista. O Legislativo é o leito mais seguro para a construção de uma unidade que vá do Centrão à esquerda. Essa via – que já se ensaiava antes, principalmente com o fortalecimento da liderança de Rodrigo Maia na Câmara - tem sido intensamente testada na conjuntura de combate à pandemia. A conduta já observada entre forças aliadas na viabilização da reforma da Previdência passa, agora, quando a pauta é mais consensual, a ser adotada como padrão para as relações entre praticamente todas as forças e partidos. Esse padrão tem levado o Legislativo a suprir carências governativas advindas da irresponsabilidade presidencial, através de ampliação dos consensos internos e de um diálogo tenso, mas efetivo, com as zonas de racionalidade presentes no Executivo. Esse script tem testado positivo, não só como solução para a governabilidade, mas também como rota para a unidade política requerida para, num primeiro instante posterior à pandemia, resolver, republicanamente, a questão Bolsonaro.

Esse entendimento parte da premissa de que a ação subversiva do presidente, conquanto possa ter seus danos minimizados não se sabe até quando, promove fissuras nas crenças e procedimentos democráticos. Daí estende uma nuvem sobre as possibilidades de uma saída democrática a partir de 2022. Há uma pedra no caminho do reencontro do país com a sua normalidade e não se pode subestimar o fato dessa pedra estar ocupando a cadeira presidencial, usando-a para tentar trincar a democracia de variados modos. A reação institucional precisar vir e Legislativo e Judiciário precisarão observar o timming que, uma vez ultrapassado, tornará essa reação impraticável. Três pontos, entrelaçados, sobressaem na pauta: a avaliação prospectiva da possibilidade de se processar o impedimento no imediato pós-pandemia, a condução articulada da sucessão das mesas diretoras das duas casas legislativas e a formação de um consenso a respeito das eleições municipais.

Sobre possibilidades de impeachment

Depende de um conglomerado de fatos, circunstâncias e vontades. Fatos como a extensão da crise sanitária e de suas consequências econômicas, no Brasil e fora dele. Circunstâncias como o humor do eleitorado, a ser captado em pesquisas no pós-pandemia, ou como a realização ou não de eleições esse ano. Vontades traduzidas em estratégias de atores políticos relevantes, nos âmbitos dos três poderes e nos partidos, com destaque para a atitude e atos do presidente. E as de agentes organizados na sociedade civil, incluindo aí imprensa, empresariado e organizações populares. Matemáticos poderiam armar uma matriz de probabilidades com essas variáveis. Analistas e cientistas políticos precisam esperar. Partidos políticos podem se dar a esses luxos?

Do ponto de vista da política em ato, a questão não pode ser submetida a cálculos matemáticos, nem pode ser mais postergada. As justificativas públicas para o adiamento cessarão com o arrefecimento da crise sanitária. Se a elite política não se mover por moto próprio terá que fazê-lo de improviso quando o tema ganhar as ruas num contexto pós-isolamento, situação em que as lideranças políticas terão menos chance de orientar a sua direção.

Antecipar-se é o mais prudente e, se diante de uma conjuntura nada matemática, não é possível fazê-lo com clareza sobre a sequência dos passos, há que se fazer ao menos com a clareza possível sobre o sentido político que se queira dar ao processo. Construir as premissas para que ele se desenrole como causa cívica, apoiado por arco político mais amplo do que foi o “Fora Collor” e muito mais ainda do que o arco político e social que se formou para o impeachment de Dilma Rousseff, que não estancou a divisão do país, embaixo. Conduzido assim, o processo jurídico-político do impedimento poderá aprofundar o nível do consenso já alcançado no Congresso.

O timming também se relaciona a condições objetivas do ambiente do STF. A crise sanitária colocou em segundo plano, ao menos por enquanto, as clivagens políticas que vinham marcando algumas decisões e a imagem pública do tribunal e limitando suas possibilidades de exercer a moderação que constitucionalmente lhe compete. A virtual cristalização daquela situação está entre os motivos que faziam cada vez mais olhos se voltarem a militares, como se eles pudessem ser substitutos funcionais da instituição. A irresolução do presente conflito entre o presidente, de um lado, o sistema político e a sociedade civil de outro, mostra que o equívoco dessa posição não é apenas institucional, mas também político. A lição desse março/abril precisa ser assimilada e o novo momento do STF valorizado, ainda mais quando se sabe que a situação pode se tornar volátil com a mudança do seu presidente, prevista para setembro e a substituição do seu decano, logo a seguir.

As sucessões no Legislativo

Como maior volatilidade e maior número de incertezas são traços óbvios de conjunturas críticas, prospecção aqui é inútil. O que não impede fixar uma premissa lógica sobre esse tema. Quanto mais o ponto de equilíbrio político alcançado hoje nas duas casas for conservado a partir de 2021, tanto melhor para que o processo siga na direção unitária em que está indo e, por conseguinte, permita resolver, republicanamente, a questão Bolsonaro. Esse ponto de equilíbrio é soma de despolarização política e compromisso social. O primeiro termo do par exige, principalmente, um reposicionamento da esquerda parlamentar, mormente do PT, cuja atitude “histórica” é de resistência à integração a um centro de articulação comum, onde não possa exercer hegemonia.

Um reposicionamento vem avançando, sem prejuízo do viés populista e/ou personalista das vozes eleitorais de partidos de esquerda fora do Parlamento. O segundo termo da equação exige reposicionamento da centro- direita, que precisará acompanhar o que se dá no mundo todo e rever resolutamente seu compromisso com a ortodoxia econômica dita neoliberal. Em suma, para ter bom andamento, a estratégia da convergência para vencer as crises sanitária, econômica e política terá que afastar os fantasmas de duas ideologias contrárias à política: o hegemonismo pré-político do tempo de Rousseff e o fundamentalismo econômico de Paulo Guedes.

Na Câmara, esse script prudencial tem no atual presidente da Casa, que não concorrerá ao cargo, um protagonista natural. Na interação positiva em torno dele está a chave da execução. O risco a ser evitado é a direção do processo sair das suas mãos, situação em que consensos amplos serão mais difíceis. No Senado, incerteza adicional decorre do fato de que o detentor da posição institucional capaz de coordenar o processo deseja, ao que tudo indica, achar caminhos de interpretação regimental para se candidatar à reeleição. Essa situação em si já torna o ambiente daquela Casa mais poroso às interferências do Executivo, pela exploração desse interesse, apoiando-o ou não. O sucesso do script prudencial que sustenta o instável equilibro atual não necessariamente depende das direções da Casa e do processo político ficarem nas mãos do mesmo ator. Pode até ser requerida a moderação do Judiciário daí porque ele pode, em alguma medida, também vir a ser um ator.

O tema da sucessão será inevitavelmente implicado na tentativa de Rodrigo Maia de retomar/ melhorar seu diálogo com a esquerda, meio estremecido desde que pautou e fez aprovar a MP do contrato verde-amarelo. Efeitos imediatos desse movimento são notados em recíprocas declarações públicas dos interlocutores. Maia cuida, como deve, da mobilidade do seu pé esquerdo. E a esquerda, por seu turno, ocupa, como também deve, o espaço que lhe oferece Alcolumbre no Senado para se recuperar do revés sofrido na Câmara. O alvo comum parece óbvio: acelerar, ampliar, aprofundar o entendimento e acumular forças para um enfrentamento com o Presidente. Essa convergência de interesses contra um adversário comum não seguirá itinerário cor-de-rosa. A sucessão nas duas casas será um desafio. Pela lógica da disputa sucessória, a esquerda – mesmo que não tenha pretensões próprias – pressionará Maia para enfrentar Bolsonaro, mas em litigio, ainda que relativo, com o Centrão.

Pela lógica do processo do impeachment cívico e não politicamente polarizado, Maia resistirá a essa pressão. O jogo todo é legítimo, de todas as partes. Contanto que os jogadores não o levem ao ponto de permitir espaço a quem quer virar a mesa e o próprio jogo. A radicalização provocada por Bolsonaro pode servir de biombo a ministros como Guedes, Moro e os militares para veicularem soluções que aliviem sintomaticamente os impasses, mas permitam a reintrodução, no Congresso, de uma polarização mais permanente, seja direita x esquerda, São Paulo x nordeste, ou Câmara x Senado. Pode-se ver esse jogo quando Bolsonaro desafia Maia para uma briga de rua, enquanto o governo procura amaciar o Centrão e o Presidente do Senado. A disputa pela sucessão na Câmara e entendimentos sobre reeleição no Senado são fatores que devem ter influência crescente.

As eleições municipais

O presidente da Câmara tem usado um argumento prudencial para resistir ao adiamento das eleições. Seria um precedente a alimentar virtuais apetites no futuro. Ao lado dessa razão, é intuitivo que haja outra, de mais complexa enunciação, porém de maior peso. A interação política entre as medidas de socorro federativo ora em curso por conta da pandemia e um processo de renovação dos governos municipais criaria, na base do sistema político que se relaciona diretamente com a sociedade, um ambiente favorável à solução que o Congresso encontre para a crise política derivada da conduta presidencial. Basta pensar na possibilidade de um efeito Mandetta, em contraste com um Teich sem efeito, para supor que Maia raciocina com hipóteses conectadas ao mundo da política real. Compare-se esse cenário com o seu oposto.

Adiadas as eleições para 2022, ficariam os atuais prefeitos livres do risco das urnas e expostos a duas pressões: a do alinhamento político em torno de projetos eleitorais estaduais, comandados pelos governadores e/ou as do governo federal, que voltaria em alguns meses a deter a chave do cofre sem ter mais que obedecer aos critérios federativos estipulados consensualmente no Congresso, no contexto da crise sanitária.

Sendo fortes no Brasil, como se sabe, os laços de reciprocidade eleitoral entre prefeitos e deputados federais, o aumento da força gravitacional dos governos estaduais e do federal sobre os prefeitos, permitido pelo adiamento das eleições, afetaria, indiretamente, os parlamentares federais, no sentido de uma maior fragmentação das suas preferências. Tenderia a diminuir a influência da dinâmica política consensual em curso no Poder Legislativo na indução do comportamento dos parlamentares diante do processo de impeachment e da nova situação política que esse processo instituir.

Ademais, a ideia de prorrogar os atuais mandatos até 2022, para a coincidência dos vários níveis de eleição, é um retrocesso na autonomia que pleitos municipais passaram a ter na política brasileira, permitindo maior influência do eleitor sobre a gestão de suas cidades. Unificar os pleitos, seja com argumentos financeiros, políticos ou gerenciais é, em tese, apostar em mais verticalização do contencioso político e mais polarização.

O adiamento das eleições pode, no entanto, resultar não de escolhas políticas, mas de uma imposição das circunstâncias da crise de saúde pública. Para não brigar com fatos, talvez haja espaço para pensar num adiamento por alguns meses, garantindo a separação dos pleitos. Se as circunstâncias e interesses, combinados, descartarem uma solução intermediária e houver a unificação em 2022, esse cenário aqui suposto como adverso, não produz fatalidades. Havendo política e preservada a democracia, todo limão pode virar limonada.

Especulando preventivamente sobre o longínquo 2022

Com a pandemia, Keynes voltou à voga em economia. Mas seu chiste pragmático de que “no longo prazo todos estaremos mortos” tem estado, talvez inconscientemente, no radar da elite política brasileira e aqui se trata da elite civil, nela incluídos militares e ex militares que adentram na política. Tome-se o Congresso e os governos estaduais como palcos e será visto como a elite política, atacada por um senso comum da opinião pública que a condena pelos seus vícios e por suas virtudes, entrega-se com apuro a manobras táticas defensivas e habilmente as converte em contraofensivas. Essas devolvem-lhe poder de iniciativa, usado para tomar certas decisões racionais e socialmente positivas, como tem ficado mais evidente durante as crises que ora atravessamos.

A partir dessa performance tática, lideranças políticas, ocupando posições institucionais chave, têm conseguido não só livrar o País de ser convertido num quintal de milicianos, como recuperar, embora em dose ainda pequena, uma reputação razoável, que tinha sido quase completamente varrida pela sucessão de seus erros e, em seguida, pela captura do ambiente político pelo fundamentalismo lavajatista.

Sem de modo algum pretender fazer reparo a essa conduta tática, é possível esperar que a ela se junte alguma perspectiva estratégica, a que for possível num contexto tão volátil. Algumas linhas do que pode ser essa adição tonificadora foram esboçadas acima como sendo derivadas lógicas da tática prudencial que se tem adotado, especialmente na Câmara dos Deputados, não só por seu presidente e alguns dos líderes partidários. Exemplificam prudência também, jovens parlamentares recém-eleitos acenando a uma “nova política” e que logo se distinguiram da demagogia rasteira que se apossou dessa boa ideia.

São personalidades, algumas muito jovens, que têm compreendido, na prática, a dignidade e a eficácia da tradição do trabalho parlamentar e partidário para efetivar os compromissos que assumiram com seus eleitores. Nota-se também a crescente musculação política do presidente do Senado, um neófito alçado ao cargo pela onda de descrédito da chamada “velha política”.

Também se pode interpretar como prudencial a recente guinada pragmática ao centro do governador de São Paulo, a moderação surpreendente (ainda que seja uma febre efêmera) que acomete o do Rio de Janeiro, a cooperação ativa de governadores nordestinos de esquerda numa articulação federativa liderada por João Dória, para não falar do surgimento de genuínas e animadoras atitudes prudenciais, como as do governador gaúcho e a do ministro da Saúde, exonerado na semana passada. São exemplos diversos e distintos de um mesmo processo regenerativo da política brasileira, pelo qual ela retoma o seu espaço, miseravelmente usurpado, desde 2014, por uma associação destrutiva de ideologia e distopia. Isso tem relevância estratégica para quem busca uma saída política para a crise, que signifique opção pela democracia, não apenas em oposição a formas aberrantes de autocracia, ditadura, fascismo, etc.., mas como algo também muito distinto de uma guardiania, seja ela judicial, militar, tecnocrática, ou qualquer outra.

As linhas esboçadas nessas notas querem dizer que uma estratégia democrática não precisa de um ingrediente diferente do que compõe a tática democrática hoje em plena operação no Brasil. A atitude prudencial pode orientar uma e outra. E talvez uma das primeiras tendências de uma política prudencial é não se congelar em um plano, fora do qual ela se sinta em fracasso e resmungue, isolando-se no resmungo até se comportar como ideologia. Diversos são os caminhos pelos quais uma atitude prudencial pode prevalecer. Pode, como se sugeriu aqui, arriscar-se num passo político ousado como o de dar partida, daqui a meses, a um processo de impedimento de um presidente cinco anos após outro, desde que seja um processo distinto, pelo seu caráter cívico, não só republicano e democrático, porque a aventura destrutiva atualmente investida de poder político ameaça não só a república, mas o próprio estado; não só a democracia, mas a própria sociedade.

Ninguém sabe se a situação concreta que se desenhará no pós-pandemia permitirá que a solução parta de uma articulação entre Legislativo, Judiciário e sociedade e se concretize tão logo a pandemia passe, como aqui se supõe possível. Talvez ela não se consume, porque dividiria parte do que já está unido e assim perderia sua razão de ser. Nesse caso, por uma razão política razoável, será melhor esperar 2022. Na ausência de certeza, a prudência sugere que se pense nos dois caminhos sem descartar nenhum deles. O que não se pode arriscar é não termos saída democrática possível em 2022 porque se deixou a sabotagem da democracia consumar seu desiderato, sem a devida contenção institucional. Isso pode ocorrer, se no âmbito das forças democráticas - aqui permitam evocar Max Weber - o raciocínio se restringir a uma calculo com respeito a fins. A atitude prudencial morre no varejo político se não mobilizar também valores. Toda prudência logo será abandonada na luta para conservar o poder pelo poder. Luta ilusória, como é ilusório o poder que se exerce assim.

A conclusão dessas notas evocará não mais o pensamento de um autor, mas um processo da história política brasileira recente que tem a ver com a concretíssima democracia que temos. Qual foi a estratégia da frente democrática que a conquistou após derrotar uma ditadura num processo político de 15 anos, de 1974 a 1988? Constituição primeiro e eleição direta depois, como aconteceu, ou diretas já e constituição depois, como poderia ter acontecido? O primeiro caminho implicava num passo intermediário: participar do antidemocrático Colégio Eleitoral. O segundo exigia, com passo intermediário, obter apoio de dois terços do Congresso a uma Emenda Constitucional. Houve quem preferisse e defendesse tanto um como outro caminho.

Em ambos os casos os argumentos e os argumentadores eram muitos, e dentre esses muitos, havia vários politicamente muito respeitáveis e vários outros socialmente bem amparados. Durante aqueles anos houve momentos de avanço e recuo, de esperança e de desalento. E muitas reviravoltas, de situações e de opiniões. Gente que preferia um caminho passou a preferir outro e vice-versa. Ao final aquela ditadura acabou e, em seu lugar, não ficou outra ditadura politicamente oposta, ou uma guardiania. Instalou-se uma democracia. Esse era o objetivo estratégico. Foi alcançado porque os atores políticos não o perderam de vista, apesar da cacofonia em torno do caminho. A unidade prevaleceu porque a liderança política soube ouvir a sociedade e por isso a preservou.

Ulisses Guimarães e Tancredo Neves encarnavam, cada qual, um dos dois caminhos. Cada qual lutou pelo seu, mas não apenas agiu em favor do seu. Quando preciso, em nome do objetivo comum, ajudou a pavimentar o outro. Tancredo esteve ao lado de Ulisses em todas as praças lotadas que gritavam por diretas e mobilizou, como governador de Minas, todos os recursos possíveis para lotá-las. Ulisses comandou os democratas na ida ao Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo. Altruístas? Não. Políticos realistas, orientados aos fins e aos valores.

A regeneração da política brasileira passa pelo resgate desse tipo de realismo. Há sinais de fumaça a indicar que ele renasce, em meio ao drama do bolsonarismo e do Covid-19. Trata-se hoje de defender a democracia real que o realismo político criou. A liderança e a cidadania precisam se sintonizar no agir. A FAP pode ajudar a pensar.


Paulo Fábio Dantas Neto: Sinais de fumaça da política em tempo de pandemia

Viu-se no Brasil, durante o março tormentoso da chegada do Covid-19, um ensaio de reversão do ambiente político maniqueísta e predatório que deprime o país há seis anos. Vimos chegar, em mensagens diariamente dirigidas ao grande público, um pensamento orientador, combinando as ciências e técnicas da saúde e da gestão pública com um discurso de solidariedade social, as duas coisas bem sintonizadas com a delicadeza própria do método prudencial da política. Uma escolha pelo caminho da persuasão, que não excluía clareza na diretriz, nem firmeza na ação. O ministro da Saúde vinha sendo um dos protagonistas, certamente o mais visível, dessa estratégia promissora e promotora da segurança possível, em hora de tempestade.

Essa linha de conduta implicava em todo o poder aos médicos, antessala de uma ditadura sanitária? Provocava paranoia ou histeria? Longe disso, estava produzindo sinergia entre ciência e política, perseguindo e obtendo, gradativamente, a complexa cooperação entre os entes federativos. Esse caminho, além de dar rumo seguro ao combate à epidemia, foi levando a uma consistente legitimação do SUS como patrimônio federal de interesse público. Não é de pouco significado um ministro oriundo da direita passar a usar como uniforme, diante das câmeras, um colete do SUS. Esse simbolismo forte poderia ser encarado com grandeza ou com mesquinhez política, por quem defende o SUS por convicção. A hora cobrava de uma elite política soluções não triviais para uma situação nada trivial, como a sabotagem de um ministro bem situado, pelo próprio presidente que o nomeou. Fosse qual fosse a solução do problema Bolsonaro, ela precisaria ter como premissa, publicamente assumida por todas as lideranças responsáveis, evitar descontinuidade no Ministério da Saúde, ao qual cabia o protagonismo, por missão institucional sustentada por uma visível capacidade técnica e política do seu titular.

O “campo dos governadores”, se adota essa premissa, não lhe tem dado a atenção requerida pela gravidade da hora. Articulou-se mais ou menos em bloco, com protagonismo do governador de São Paulo. Parte relevante da mídia apoiou e instalou-se nova polarização. Agora não mais Bolsonaro x PT e sim Bolsonaro x "governadores". Esse coletivo de mandatários estaduais é uma ficção política e administrativa. Um pretenso colegiado sem lastro institucional, que tende a ser refém de vontades políticas estaduais, a baterem cabeça. Se se impuser uma descentralização forte de decisões e recursos, uma ação coordenada pode ficar inviável. Colocar recursos para livre uso nas mãos dos governadores é mobiliar a antessala de um salve-se quem puder, na hora mais grave da pressão a vir sobre os serviços de saúde. Quando a ficha cair e sentir-se a necessidade do MS, pode já ser tarde. Em jogo confederado, o empurra-empurra das culpas, que há muito começou, tende a se disseminar.

Pode-se contra argumentar, com razão, pelo realismo político, tanto no diagnóstico da situação, quanto na prescrição do remédio. A conduta irresponsável do presidente criou um vácuo que os governadores, pressionados por suas próprias responsabilidades, precisavam preencher. Deve-se louvá-los por isso, não criticar. O que aqui se discute não é a decisão política de fazer contraponto à negligência presidencial. Discutível é se foi levado suficientemente em conta que o protagonismo político do MS no processo precisava ser sustentado por eles, como condição para o próprio sucesso desse contraponto. Um caminho mais seguro do que aquele que foi afinal adotado, ou admitido, pelo qual o ministro foi mantido no cargo até aqui, mas enquadrado pelos militares palacianos numa saia justa que não impede o presidente de prosseguir fomentando o seu desgaste. Poderia ter sido diferente? Talvez não, mas não há indícios de que outro caminho foi tentado.

O clima de polarização (e ficou evidente que não só Bolsonaro aposta nele) asfixia, como sempre, qualquer atitude política moderada, como é a de Mandetta. Abre porta a que a lógica da guerra se torne autônoma em relação à da persuasão. Com o tempo ela tende a se tornar superior, como perigosamente se insinua com os primeiros acenos a imposição vertical de um isolamento horizontal. Uma coisa é adotar essa imposição no Japão da disciplina e na China da ditadura. Outra coisa, em democracias fortemente enraizadas numa cultura de liberdades civis, como na Europa Ocidental e nos EUA. Uma terceira coisa é que se pense e possa fazer isso numa cidade-estado, como Cingapura.

Uma quarta e muito diferente coisa é adotá-la no Brasil, um país imenso, onde uma ampla democracia política federativa vigora em sociedade plural e crescentemente liberal nos valores, em cuja psicologia social a disciplina individual é, no entanto, traço menos marcante que a solidariedade religiosa ou familiar. Sociedade conservadoramente gregária, assentada, ademais, em abissal desigualdade social e numa ainda frágil cultura de direitos, da qual é sintoma explícito a truculência tradicional e ainda relativamente impune de suas várias polícias e milícias, quando entram em contato com cidadãos socialmente mais vulneráveis. E não é de outra coisa que se trata quando se precisa manter em casa a população aglomerada em realidades urbanas onde se expõem as dores dessa modernidade complexa.

A lenta infiltração, nas mentes, da lógica da guerra em lugar da aposta na persuasão, é um fator que trabalha para deslocar o comando prático do processo, do MS em direção a núcleos “duros” do Estado e para desgastar a liderança do ministro. Ele próprio pode ser tentado, aqui e ali, a morder a maçã do atalho vertical, supondo sua eficácia, como ficou patente em sua improvisada afirmação sobre a cooperação de milícias, um escorregão que, ironicamente, adversários conhecedores desse submundo estrangeiro ao ministro não deixarão lhe sair grátis.

Estará enganado quem pensar que dou a essas reflexões um valor de lição ou profecia. São apenas apreensões para com riscos adicionais desnecessários que se está correndo no contexto de uma pandemia, por si só, já tão saturado de perigos. Se não há uma coalizão de veto, há, no mínimo, um relativo dar de ombros a um ministro que se destaca como bom articulador político e como bom gestor de políticas públicas de estado. Isso ocorre de modo, a meu ver, insensato, num momento grave em que precisamos exatamente de gente assim, de ocorrência escassa na cena pública atual. O clima de aclamação sanitária que se criou desde a última semana de março já não se mostra tão consistente hoje. Diatribes insolentes do presidente conseguem causar perda de foco em mais pessoas e, com isso, menos solidariedade e mais leniência social.

Uma desconstrução mais sutil da imagem do ministro vem com a crítica de alguns setores por, supostamente, ele ter se deixado enquadrar. Ou seja, por ter dado a César o que é de César, seja lá quem, nesse momento, represente melhor essa metáfora da autoridade, se o presidente Bolsonaro, se uma “presidência operacional”. Tal como no caso uso do colete do SUS, há dois modos de interpretar esse mandamento da ética cristã que é, ao mesmo tempo, mandamento do realismo político. Um é encará-lo como apego a uma "boquinha". Interpretação mesquinha, que gente com boa fé às vezes segue. Outro modo de interpretar o mandamento é entender que, dando a Cesar o que é de Cesar, está se afirmando que nem tudo é de Cesar. E no caso da epidemia e da luta para vencê-la, o que não é de Cesar é o que conta mais. Aos poucos o povo vai percebendo isso. Havendo tempo, editoriais de empresas de mídia talvez acabem entendendo que até guerra santa tem limites. Quanto a Bolsonaro, se não entender o mandamento nessa interpretação ampla, deixará de ser Cesar, caso ainda o seja.

Tornou-se esporte popular adivinhar intenções do Presidente. Missão impossível para quem trabalha estudando política. O esforço de compreensão possível começa por não ver o affair que ele provocou com seu ministro como episódio isolado, mas como algo relacionado aos efeitos que a crise da pandemia tem exercido sobre a operação diluidora da democracia, posta em prática pelo presidente desde que chegou ao cargo. A quantas ficou a operação Bolsonaro depois da chegada da crise sanitária e do imprevisto fator Mandetta?

Há a hipótese psicanalítica de que o presidente, sentindo que não tem condições pessoais de gerir a crise, esteja criando uma situação para ser afastado. O colunista Reinaldo Azevedo tem oferecido essa interpretação que, por mero instinto, não descarto. Estaria agindo, conscientemente ou não, tendo em conta sua própria inépcia (essa seria a parte realista de sua estratégia, por essa primeira hipótese), mas isso não quer dizer que ele pretenda sair de cena. Depois de fugir ao peso da responsabilidade, poderia vir a parte delirante desse script: ele poderia tomar emprestada uma roupa populista de vítima de golpe para, mais adiante, na hora de se contar o total de mortos da epidemia e das vítimas da depressão econômica, apontar o dedo acusador para quem tenha enfrentado o desafio e tentar convencer que teria feito melhor. Tentaria ser candidato de novo com esse discurso ou, caso impedido, tentaria conflagrar suas milícias (se ainda fossem suas) para sabotar as eleições.

Circula, difusamente, uma segunda hipótese, mais política. Diante da pandemia, o presidente estaria apostando ainda mais num caos social como atalho para governar autoritariamente, sem mais cumprir os atuais procedimentos constitucionais, especialmente na relação com o Legislativo e o Judiciário. Sabotaria a política de combate à epidemia, traçada no MS, defendendo o indefensável para desorientar e instigar o povo ao tumulto, dividir seu próprio governo e se vacinar contra os efeitos da provável crise humanitária e da inevitável crise econômica, pondo a culpa dos dois fracassos em quem não ouviu seus avisos (todas as instituições). Justificaria, assim, uma solução autoritária e também populista, como via de salvação. Nessa segunda hipótese o presidente também delira. O script para o atalho e a volta por cima não seria o de vítima, mas o de redentor. E não exclui eleições em 2022, com ambiente democrático seriamente comprometido.

Por fora dessas hipóteses de que delira, ou além delas, há quem pense que o presidente aja como simples miliciano. Em vez de estar armando um golpe futuro, já estaria concretamente fazendo movimentos golpistas, desde antes da epidemia se instalar. Ou melhor, desde que sentou na cadeira presidencial. Segundo adeptos dessa teoria baseada em supostas intenções, fatos anteriores, configurando inúmeros crimes de responsabilidade, já não deixariam dúvida de que temos, em ato, um presidente subversivo da lei e da ordem. A base seria a disseminação, pelo aparelho de doutrinação bolsonarista, em estratos mais baixos da oficialidade das Forças Armadas, de uma ideologia golpista e salvacionista. Em que grau essa subversão de valores democráticos já avançou recentemente na corporação e se infiltrou em outros organismos do Estado em um ano e cinco meses de governo, é algo que só pode ser sabido por quem detém informações privilegiadas.

É preciso escapar da armadilha intencional para tentar avaliar o estado das artimanhas do ator subversivo. Desde antes da pandemia, a obstinada desconstrução de valores democráticos e a persistente tentativa de desmoralizar instituições e desacreditar agências do próprio Estado já preocupava quem se preocupa com a democracia. Afinal, os crimes de responsabilidade e solapa acumulados não são mera teoria sobre intenções.

A pandemia foi fator imprevisto na escalada de solapa da democracia, porque sugeriu ao país outra lógica política. Além de dar destaque do ministro Mandetta, realçou a importância do Congresso, governadores e prefeitos, permitindo demonstração pública de virtudes políticas como cooperação e entendimento, desvalorizadas desde que se instalou, em 2014, a polarização extrema. Considerando isso, a lógica do presidente pode ser melhor entendida. Se o enfrentamento da pandemia tiver êxito em unir o pais para a redução de danos, murcha a razão polar que permitiu a sua vitória em 2018 e que, caso mantida, poderia e ainda pode levar à sua eventual reeleição.

O enfraquecimento do presidente não é irreversível. Mas sua força está na razão inversa do sucesso da política prudencial que os líderes das principais instituições adotam para enfrentar uma crise sanitária que é mundial e atende pelo nome de Covid 19 e a crise política, que é nacional e se chama, cada vez mais, Jair Bolsonaro. O êxito dessa política passa fortemente pela manutenção do ministro da Saúde. E ela, por sua vez, depende de aval ministerial, da continuidade do engajamento da comunidade cientifica e técnica do setor, do apoio político no Congresso (não só para mantê-lo no cargo, mas para aprovar medidas que levem recursos para a Saúde, a assistência social e a garantia de renda), de cobertura judicial contra atropelos e sabotagens, da cooperação da imprensa e da sociedade em geral e da manutenção da já explicitada confiança popular nas orientações do Ministério da Saúde e na liderança do ministro, que tem feito, com maestria, a ponte entre ciência e política. É muita coisa e talvez seja realista considerar improvável a presença sustentável de tão complexas variáveis.

Uma consideração política abre uma brecha nesse realismo cru. Vale trazê-la à discussão, pois é igualmente realista (ou ao menos razoável) supor que atores políticos levem aspectos políticos em consideração. Se a pandemia se agravar e a situação humanitária sair do controle, estará criado um ambiente inóspito, no qual será mais difícil Bolsonaro continuar a ser isolado, como está sendo, por uma política prudencial. Ele poderá desabar de vez, ou cavalgar no agravamento da crise, restabelecendo a polarização. Até aqui, a política da prudência tem se imposto e é imprudência pô-la em risco, trocando o ocupante da cadeira do MS. Mas se for esse o rumo de acontecimentos em série, cujas implicações uma boa razão nem sempre consegue deter; ou se a entrega da cabeça do ministro não for bastante e o presidente teimar em diatribes por querer continuar isolado, será preciso prestar atenção no seguinte: pela lógica miliciana, isolamento não é problema. É incentivo à ação de confronto. A democracia, nessa hora, não pode hesitar em exercer autoridade para impedir essa ação.

Nove entre dez leitores do noticiário dos últimos dias sabem que a situação do ministro é instável e isso não se deve apenas aos ciúmes de Bolsonaro. Embora a política do MS tenha amplíssimo apoio político, midiático e popular, não é do mesmo tamanho (embora seja grande também) o apoio político e midiático à pessoa do ministro. O fundamentalismo de guerra é pouco simpático a flexibilizações que ele precisa e precisará fazer.

Além disso, para a área política e o próprio governo, se a cabeça do ministro for o preço para Bolsonaro sossegar, haverá quem ache razoável pagar, seja para apaziguar os ânimos, seja para tranquilizar aspirações políticas inquietas consigo. Ou as duas coisas. E não duvidemos da possibilidade de Bolsonaro aceitar. Parece que para ele o problema é Mandetta, mais do que a política do MS. Há precedentes, contudo, para se saber que não sossegará. Por isso, tal acordo será um equívoco. Mas a política tem razões que as outras razões não governam. Mandetta sabe disso e, se sair por acordo que ao menos preserve a política do ministério, não deverá se fazer de vítima, dizendo-se traído. Seu perfil parece ser outro. Por isso está adicionando componentes ativos da química da política para renovar o ar viciado de um ambiente contaminado por paranoias de vários tipos.

Nem tudo será claridade, nessa possivelmente nova atmosfera política. Se vingar, herdará muita nuvem. Passada a pandemia, tudo indica que a sociedade e o sistema político terão que encarar o fator Bolsonaro em toda a sua nebulosidade. O tema do impedimento do presidente, já presente nos espíritos hoje confinados de políticos e cidadãos, tende a se fazer presente nas agendas das instituições e movimentos. Será incontornável resolver, de algum modo, essa questão.

Sinto simpatia pela ideia de afastar o presidente, por mais que um processo de impedimento seja um trauma, reacenda polarizações, alimente apetites golpistas, etc.. É que Jair Bolsonaro rebaixa, desmoraliza as crenças democráticas na sociedade e não há futuro para instituições democráticas se as crenças da sociedade vão na contramão delas. Trata-se, no entanto, de algo bem diferente de uma questão de preferência ou desejo.

Problema é alimentar um argumento como esse, sem confundi-lo com o “Fora Bolsonaro” que uma certa frente para-partidária de esquerda proclama como foco de sua ordem do dia. Há que se demarcar um raciocínio: noves fora o raso oportunismo do gesto, pensar em remover o presidente agora, além de ser uma ideia irrealista (militares e empresários que contam não querem), seria, caso possível, uma imprudência, no meio do furacão da epidemia. Em momento tão tenso e potencialmente explosivo, essa esquerda mais barulhenta, embora tenha pouco poder de fogo real, não pode ser tratada na base da condescendência. Quem quiser falar a sério, sem demagogia, em impeachment, precisa ajudar a isolar Bolsonaro agora. Para isso não ajuda nada a conversa diversionista de formar uma “frente popular contra os lucros". Assim como não ajudam tentativas de desgastar o ministro da Saúde, como se tem feito há semanas, aberta ou veladamente, em redes sociais de esquerda. Se a esquerda contribuir para que saíamos dessa tempestade sanitária de um modo razoável, com a sociedade em pé e capaz de se mobilizar, pode ser que diferentes orientações democráticas, à esquerda, ao centro e à direita, partam juntas, no ano que vem, para uma campanha em favor do impeachment do indivíduo que, pelos atos que praticou na posição que ocupa, tornou-se um perigo concreto para a democracia.

É bom que a ficha caia para a sociedade quanto a esse perigo concreto e quanto a uma necessária mobilização das forças políticas que a representam para enfrenta-lo e conjura-lo. É sombrio, em contraste, um cenário em que ela fique refém de um “bom senso” político-militar para afastar o presidente em caso dele não se submeter ao enquadramento que esse suposto bom senso busca, nos termos dos consensos políticos que ele mesmo construa. É a Constituição quem pode e deve enquadrar os mandatários, em seus próprios termos. Essa é a distinção mais importante entre uma solução pela democracia e uma solução pela guardiania.

O ex-presidente Lula é um ator a ser analisado, assim como o seu PT, o partido da ex-presidente alvo do mais recente processo de impeachment. Uma vez concretizado um pedido de impeachment do presidente Bolsonaro, uma conexão entre os dois processos será obviamente feita e, por isso, PT e Lula merecem reflexão à parte. É provável que o envolvimento do PT traga duas implicações capazes de converter um processo cujo alvo é um recomeço político em algo preso ao retrovisor. De um lado, é de esperar que o bolsonarismo desqualifique moralmente o PT por estar participando de uma operação assim, depois de ter enfaticamente denunciado, aqui e no exterior, como golpe de Estado, o processo que impediu Dilma Roussef, há apenas quatro anos atrás. Do mesmo modo, o PT poderá narrar o impedimento do presidente como uma espécie de reparação do “golpe” de 2016. Poderá justificar o impedimento com o argumento de que o governo Bolsonaro seria “ilegítimo”, por um mal de nascença, mal que também afetaria o governo do seu vice, antecipadamente destinado a receber do PT o mesmo tratamento dispensado a Michel Temer. Pela direita e pela esquerda, o processo contra Bolsonaro poderá resvalar para a reiteração da polarização que atormenta o país desde 2014.

Será esse mais do mesmo de varejo uma fatalidade que recomendaria arquivar a ideia do impeachment? Ou esse acerto de contas entre a democracia e seu agressor tem chance de se constituir em processo de grande política, um julgamento jurídico-político de uma experiência inédita de desconstrução institucional operada por Jair Bolsonaro e a facção que com ele passou a ter acesso ao Estado brasileiro? Nesse caso, em vez de uma polarização entre facções políticas, poderemos ter uma convergência nacional de porte bem mais amplo do que foi o “Fora Collor”. Pela direita, pelo centro e pela esquerda, pelos andares de cima, médios e baixos, a nação, revigorada por uma campanha unitária contra uma ameaça sanitária comum, partiria para recuperar o seu Estado das mãos de uma facção que tentou reduzi-la a coisa sua. Estará o maior partido da esquerda brasileira à altura de um gesto capaz de promover sua integração a esse empreendimento? Será capaz de substituir o ressentimento por um novo sentimento que o reconecte com essa nação? E de pautar sua conduta, não por uma atitude voluntarista de vingança, mas pela atitude prudente da conciliação? A história do PT, conquanto marcada por uma proverbial aversão a alianças e concertos republicanos e conquanto manchada por processos de fundo ético mais recentes, também contempla o sentido democrático e socialmente inclusivo que seu advento, já quarentão, teve na história política do Brasil. Essa marca, decerto valiosa num país tão desigual, confere-lhe, assim penso, apesar de seus pesares, um direito ao benefício da dúvida. Daí porque começo a tentar especular sobre sua atitude política numa eventual campanha cívica pelo impedimento de Bolsonaro, a partir da observação do que tem sido os passos do partido e do seu líder máximo na atual conjuntura de crise.

Em fevereiro último, no auge dos ataques bolsonaristas aos outros dois poderes, Lula disse, na França, que não havia base legal para impeachment e que o PT deveria esperar as eleições de 2022. Ao se colocar lá fora assim, como democrata politicamente correto, parecia tentar também frear o ímpeto inicial de um movimento que, se deflagrado, não teria protagonismo, nem dele, nem do PT. Em primeiro de abril, quando o affair de Bolsonaro com seu ministro Mandetta aproximava-se do auge, Lula ensaiou refazer essa avaliação, admitindo que Bolsonaro havia perdido condições de continuar a governar. Interpreto que, acenando com uma mobilização pelo impeachment, tentava novamente conter um movimento (o da “presidência operacional” do Gal. Braga) que também se fazia com o PT à margem. Dez dias depois, quando as frentes "sem medo" e "popular" roeram a corda, animadas pela segunda fala do seu líder e arriscaram um avanço de sinal, ele freia de novo, mostrando que era só um primeiro de abril. Para não perder o controle sobre os seus radicais e assim poder manter o PT mais ou menos articulado com governadores, com Rodrigo Maia, Alcolumbre e com a corporação da saúde, ele volta a descartar a ideia do impeachment já. Motivações à parte, isso ajuda, é importante.

Mas dessa vez Lula rejeita o impeachment já, com duas diferenças: a primeira é a justificativa do descarte, que não é mais a ausência de um crime de responsabilidade, como ele avaliava em fevereiro. Agora é o combate à pandemia, a prioridade absoluta. A segunda diferença é que agora o adiamento do desejo de tirar Bolsonaro é por prazo mais breve. Se em fevereiro ele acenava esperar as urnas de 2022, agora acena para um movimento fora Bolsonaro, no imediato pós-corona. É bom também, ou ao menos necessário, esse encurtamento de prazo. Creio que Lula está recomeçando a sintonizar a mesma frequência geral de quem não pensa que Bolsonaro é só uma marolinha ou uma gripezinha, que a democracia do PT vai tirar de letra. Ainda que entre o seu "Fora Bolsonaro!" e o que pode ser um movimento nacional pelo impeachment haja diferenças não desprezíveis. Diferenças entre uma visão populista e uma liberal-democrática da democracia.

Como quase sempre, Lula faz política com competência, de acordo com a conjuntura. Não pode dar cartas porque tem a Justiça segurando sua mão. Mas joga bem com os dois pés. Se o chamado "centro" - ou qualquer nome que tenha o time de oposição não petista a Bolsonaro - não marcar esse artilheiro buliçoso que andava meio quieto e ficar pensando só em 2022, sem passar por 2020 e 2021, Lula e o PT podem correr por trás e fazerem, de uma campanha pelo impeachment, um estilingue, já antecipadamente fazendo, de um eventual Mourão, a nova vidraça, como fez com Temer. Se tiver pretensões políticas, o DEM (o partido que mais tem hoje, além do PT, condições de agir como um partido digno desse nome), precisará marcar por zona esse potencial adversário enquanto aceita sua colaboração contra Bolsonaro, o adversário comum. Esse é o papel de Rodrigo Maia, que precisa ficar livre de atritos à sua esquerda para poder sair jogando pelo centro e pela direita e lançar a bola adiante para um candidato que talvez ainda possa ser Mandetta, a depender do desfecho da campanha contra a pandemia. Mas precisará ter zagueiros na esquerda, segurando o jogo sollo de Lula. Por isso, Maia - e ACM Neto, o presidente nacional da sigla - precisam conversar com o inorgânico Ciro Gomes.

Com licença ou não (mas de preferência, com) de João Dória e do PSDB, Rodrigo Maia (o Tancredo da hora) vai precisar cuidar também do pé esquerdo da frente defensora das instituições, durante a campanha contra o Covid-19 e depois, na operação pelo impedimento de Bolsonaro. Alugar a canhotinha de Lula não basta, já que o ex-presidente é craque e sabe jogar também pela direita. Por isso, ao contrário de Ciro, pode ter recursos para formar seu próprio escrete, largar a frente pendurada na brocha e fazer, em 2022, sua própria campanha simbólica e/ou a de um petista que encarne o símbolo. As eleições de 2020, ou 2021, serão base de acumulação para 2022. Ganhar a eleição não parece hoje possível, mas o PT poderá, ao menos, repetir sua façanha de 2018, ocupar um lugar no segundo turno e congelar a política brasileira em ambiente polar, por mais quatro anos.

Em meio a essas evidências e cogitações sobre a política real, o benefício da dúvida pode parar no lixo e a evocação da grande política ser mero delírio idealista. O argumento, porém, é que entre a grande e a pequena política não há abismo quando uma causa política desperta uma nação. Nesses momentos o varejo político não se dissolve (dissolvê-lo, só abolindo inteiramente a democracia) mas se volta para captar o que vem de baixo.

Foi assim nos anos de 1980, quando os militares se retiraram pacificamente do poder porque a sociedade já não mais os reconhecia como poderosos e quando, por outro lado, o exclusivismo fundacionista do PT teve de ser mitigado e Lula repartiu palanque com os líderes do PMDB, porque a sociedade assim queria. A democracia era, naquele momento, uma causa nacional que ocupou o centro político, fazendo com que as pontas do espectro ideológico gravitassem em torno dela. Tal condição não foi obra do acaso nem imposição de uma revolução “de baixo”, contra “as elites”. Foi em boa parte arquitetura de uma elite política democrática que se forjou na luta contra uma ditadura. A democracia não foi obra da sociedade contra os políticos. Foi obra de uma política que persuadiu a sociedade. Apoiar e reforçar uma política prudencial, de conciliação e solidariedade, duas causas políticas cujo conteúdo prático a campanha contra o Covid-19 escancara: essa é a natureza do passo que precisa ser dado agora, na hora agonística dessa epidemia. Quem o der com mais firmeza, tendo clareza de que a política renasce na crise, tenderá a liderar o centro a ser ocupado por essas duas causas. O resto virá por gravidade. E será bem-vindo, pois as causas são generosas e juntam, em vez de separar.

*Cientista político e professor da UFBa.


Paulo Fábio Dantas Neto: Prudência e urgência (razões de tática e estratégia políticas)

Pouco mais de um ano de governo Bolsonaro e tornou-se um bordão, aceito em amplos ambientes, a ideia de que os democratas brasileiros precisam se articular e se entender para derrotar a estratégia de enfraquecimento da democracia representativa, levada a cabo pelo Presidente da República. Situação limite essa, pois caberia, a quem ocupa esse posto, ser justamente o mais poderoso e eficaz defensor do regime e da Constituição, graças aos quais chegou aonde está. Os fatos, porém, já não deixam dúvida de que temos um presidente subversivo da lei e da ordem. Esse ponto é tacitamente reconhecido, seja por quem aplaude, seja por quem abomina a sua conduta golpista. Quem aplaude admite lhe dar ainda mais poderes para, supostamente, mandar os políticos embora. Quem abomina, busca a melhor maneira de atalhar esse seu caminho.

No campo bolsonarista, eventuais dúvidas táticas sobre como levar ao sucesso a sua estratégia golpista resolvem-se com ordens do dia de um capitão que se tornou especialista em constranger generais. A ordem em vigor, no momento, convoca abertamente, para o próximo domingo, 15/03, uma manifestação de rua, fisicamente próxima à Praça do Três Poderes, para aclamar o presidente e contestar as autoridades ocupantes dos dois outros poderes da República. A essa altura, a sociedade, apreensiva, já se pergunta, com razão, o que farão a Polícia Militar e as Forças Armadas se algum dos dois poderes postos na berlinda solicitar, legitimamente, sua proteção, em caso dessa manifestação sair dos limites razoáveis e degenerar em agressão direta como, aqui e ali, há muito tempo se ensaia. Augusto Heleno esteve só, em sua provocação golpista? Poderia ser devidamente “enquadrado”, por seus interlocutores na ativa, depois daquelas declarações? Autoridades militares responsáveis e comprometidas com a democracia terão força para não deixar que o ovo da serpente alimente os apetites e contamine a corrente sanguínea de seus pares e comandados?

Essas perguntas não calam porque nenhuma pessoa sensata, que observe com atenção a cena política atual, ignora que as cúpulas dessas corporações já podem estar sofrendo uma dupla pressão nas bases que, por hierarquia profissional, comandam. Refiro-me à disseminação, pelo aparelho de doutrinação bolsonarista, em estratos mais baixos da oficialidade das forças armadas, de uma nostálgica ideologia golpista e salvacionista que a derrota do regime autoritário na transição democrática dos anos de 1980, seguida de três décadas de democracia, puseram em desuso naquele ambiente. Em que grau essa subversão de valores democráticos já avançou recentemente na corporação é algo que só pode ser sabido por quem detém informações privilegiadas. Mas o processo preocupa, assim como deve preocupar também a pressão corporativa que pode emanar, em grau crescente, ainda mais embaixo, diante de uma eventual indisposição, por dever constitucional, de comandantes militares com um presidente subversivo. Sim, pois esse presidente e seus filhos propagam um discurso demagógico que acena às tropas com vantagens materiais e, no caso de policiais transgressores da lei, também com uma odiosa impunidade.

Já nas instituições civis e no campo político heterogêneo que se opõe a essa aventura, parece ainda estar longe o momento em que uma estratégia comum será pactuada. Ela convém, entre outras razões, para tornar consequente a tática de evitar o confronto, que tem sido intuitivamente adotada por todos, por cálculo político racional, e/ou por receio de retrocesso institucional. Paciência e moderação têm sido as contraordens que até aqui interditaram o caminho, democraticamente justificável, de um processo de impeachment, para o qual o presidente já forneceu vários motivos, cometendo sucessivos crimes de responsabilidade.

O bom senso já nos sugere supor que esses crimes estão sendo cometidos deliberadamente, como um risco calculado, para antecipar um confronto político, num momento em que se sabe ainda não existir, no Congresso, maioria qualificada para impedir o presidente. E ela não existe justamente porque ainda não há, no eleitorado, clara rejeição ao presidente (como já existe na sociedade civil), nem há, no empresariado, convicção sobre o malogro da atual política econômica. Com eleitores divididos e empresários indecisos, o Congresso fica neutralizado para um confronto, embora possa operar – e tem operado - como importante força política de contenção do golpismo presidencial.

Assim, ao usarem o cálculo político, lideranças do Congresso e das demais instituições civis têm conseguido evitar que Bolsonaro converta a eventual rejeição de uma denúncia contra si em capital político, isto é, em trunfo para avançar mais em sua estratégia golpista. Ao falarem com prudência sobre o tema, as forças políticas mais responsáveis do País têm evitado dar, ao bolsonarismo, o pretexto que busca para colocar a sociedade (e as forças armadas) diante de um dilema crucial entre um quadro de desordem e uma solução autoritária. Cenário plausível, pois não temos mais direito a duvidar de que a lógica miliciana que guia o Presidente não hesitará em fomentar (inclusive apelando à violência e ao terror) tal quadro problemático para obter tal solução.

Tudo correto, portanto, com a tática dos democratas. Mas alguma tática, por mais racional e prudente que seja, pode ter sucesso, em política, se não estiver ligada, de modo politicamente convincente, a uma estratégia? É possível defender a democracia com eficácia política pensando só em prevenir, isto é, tratando-a - para reiterar jargão conhecido - como plantinha tenra que se deve regar todo dia, tal qual bem alertava Octávio Mangabeira, como sugestão de conduta virtuosa para tempos normais? Se não estamos em estado de exceção, mas estamos num tempo de gravidade excepcional, é preciso ver que a democracia é mais que uma planta tenra. Sequer é só uma árvore.

É complexa floresta de instituições, direitos e interesses, que pode ser agredida, inclusive, pelo manejo demagógico dessa malha. A democracia representativa precisa não apenas ter, mas demonstrar, sempre, a força necessária para dissuadir aventureiros, quando eles a testam.

A missão não é fácil pois o terreno do trabalho atual é pantanoso. A estratégia dos golpistas é ajudada pela imagem má que políticos e partidos têm perante a sociedade e o eleitorado. Aqui não tenho como me deter sobre razões e não razões desse fenômeno, mas chamo a atenção para o fato de que a imagem negativa se refere a apenas um lado da realidade da democracia representativa.

O outro lado, muito positivo, é o suculento inventário de conquistas democráticas que encontram no Congresso uma usina de processamento. A agenda de políticas públicas socialmente positivas avançou muito no Brasil desde que superamos a ditadura militar e isso se deve, fortemente, a processos de elaboração e negociação legislativa. No fundo, o povo sabe disso e não se pode precipitadamente achar que sua insatisfação com outros aspectos da atividade de representação política leve a que ele queira abrir mão dela, seja para entregar seu futuro a ditadores, seja para cair na ilusão de que pode, como povo, governar diretamente o País. Pode ter faltado ao povo brasileiro, no passado, ocasiões de participação maior, para exercer uma cidadania mais qualificada e pode estar lhe faltando hoje um cardápio de representantes de melhor qualidade. Mas algum senso de medidas não lhe falta, mesmo quando suas necessidades e medos abrem espaço a demagogias populistas. Por isso, entre nós, jamais tiveram durabilidade aventuras caudilhescas irresponsáveis, ou discursos meramente utópicos. Nossas elites políticas, mesmo quando não democráticas, precisaram sempre negociar sua legitimação no terreno das realizações concretas.

Mas preocupa, e muito, a ausência ou, ao menos, a invisibilidade, na atual conjuntura, de uma estratégia política comum das forças democráticas, que se preocupe com movimentos táticos, mas também as prepare, desde já, para desdobramentos que não se pode prever de antemão. Deixo claro que não se trata de propor que persigam objetivos político-eleitorais que supostamente possam unir democratas de direita, de centro e de esquerda. Isso é quimera. Trata-se de cuidar, em conjunto, da preservação de condições para que disputas democráticas continuem acontecendo. Isso passa por não deixar dúvidas na opinião pública sobre a capacidade das instituições se fazerem respeitar, inclusive pelos poderosos. Do mesmo modo, não se trata de fazer análises adivinhadoras de cenários futuros, como se ações políticas devessem se orientar por essas especulações. Sabemos que nenhuma linha de ação tem futuro se não se ancorar no que há, no aqui e no agora. Trata-se é de não deixar que um poderoso inimigo da democracia representativa jogue solto e decrete o futuro como resultado de ações ousadas no presente. Ponho-me entre aspas para recorrer a uma metáfora que usei em artigo publicado há três meses: “um desafio à política positiva é ser eficaz na conjuntura. Seus praticantes não podem ser uma zaga que olha para a bola, com foco eleitoral em 2022, sem marcar o atacante demolidor” (Política positiva e política negativa, Estadão, 01.12.2019).

Na ausência de estratégia defensiva comum, cada zagueiro age à sua maneira. Declarações do ex-presidente Lula, em recente homenagem que recebeu da esquerda francesa, se ajustam como uma luva à metáfora acima. Aposta suas fichas num novo embate eleitoral polarizado, em 2022. Nessa posição há dupla racionalidade política: objetivamente, ele lidera, de fato, o partido que ainda é a maior força eleitoral da oposição e que, por isso, pode pensar em desafiar eleitoralmente o bolsonarismo, nem que seja para conservar essa condição de polo de oposição, que conquistou em 2018. E, subjetivamente, Lula raciocina ser esse o melhor modo de seguir politizando seu embate com a Justiça brasileira. Porém, ao dizer que esperar 2022 é dever democrático, ele não apenas descarta, por ora e por realismo político, a defesa de um processo de impeachment. Vai mais longe e admite que Bolsonaro ainda não cometeu crime de responsabilidade que o justifique. Relaxando assim na marcação do atacante agressivo, esse “bom mocismo” fará, da ala do lado esquerdo da defesa democrática, uma avenida. Quantos gols serão marcados por ali até um zagueiro democrata poder se arriscar a um contra-ataque nesse sonhado 2022? Em quanto já estará o placar em favor do time cuja estratégia é asfixiar a democracia? Que chance haverá de haver uma eleição livre?

Zagueiros democráticos mais ao centro (os do fugidio centro político e os que ocupam posições institucionais centrais) costumam usar retórica crítica mais contida que a do PT, porém têm sido mais diligentes na marcação do atacante. Ainda assim não escapam da carapuça da metáfora. Marcam por zona, evitando o enfrentamento individual, justamente porque operam instituições e – é preciso reconhecer - elas objetivamente têm impedido, até aqui, demolições explícitas. Mas os recuos que conseguem impor revelam-se efêmeros porque dirigem ao atacante seguidas advertências, mas não sanções por violação das regras. Assim, no momento seguinte, novos ataques voltam a deixar a defesa em permanente estado de tensão e perigo. Contudo, prevalece sempre a tática da paciência de jardineiros de plantas tenras, sancionada por recentes declarações do também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um experimentado político orgânico que a realidade quer converter em outsider. Aos atores com seu perfil político e aos que detém poder real também cabe fazer a mesma pergunta que pode ser feita à esquerda petista: até que ponto arranhões parciais restantes após cada escaramuça poderão esgarçar - ou já esgarçaram, de algum modo - o tecido da democracia, a ponto de comprometer a chance de chegar-se a 2022 ao menos no compasso da situação atual? O enfrentamento, que táticas prudenciais querem evitar agora, poderá ser evitado se, em dado momento, a infiltração antidemocrática tiver corroído o Estado a ponto de setores decisivos seus comportarem-se como milícias? Haverá eleições “normais” se o bolsonarismo pressentir uma derrota eleitoral? E havendo eleições que, porventura, confirmem sua derrota, haverá paz para que haja governo? Que poder de retaliação terão, então, caminhoneiros em pé de guerra e policiais amotinados, se os laços que os une hoje ao bolsonarismo prosperarem por um continuado e desabrido uso não republicano do poder? E que reação se pode esperar das instâncias judiciais diante dessas retaliações, após as mudanças que podem ser feitas no STF até lá?

Zagueiros com um terceiro tipo de perfil político são imprescindíveis numa hora dessas. Refiro-me a uma direita conservadora que ainda não entrou para valer em campo e precisa entrar. Um cochilo da ala direita, na marcação de um atacante que se apresenta como conservador, embora seja o seu oposto, pode ter efeito bem mais devastador para a democracia representativa do que cálculos políticos e eleitorais de uma esquerda fora do poder. Um conservadorismo político que mereça esse nome não pode, depois de tantas lições do passado, compactuar com uma estratégia desestabilizadora da ordem e das instituições moderadoras, que tenta emparedar o Congresso, intimidar o Judiciário e sabotar, ao modo do chavismo (ver Demétrio Magnoli, “O povo e Exército” – FSP, 29.02.2020) a hierarquia das forças armadas. Principalmente não pode chancelar uma propaganda ideológica que quer desacreditar a conciliação como método, no intuito (quimérico, mas nem por isso menos perigoso) de eliminar a chamada “dialética da ambiguidade”, uma marca de origem da nossa tradição política. Conservadores que se prezam não podem coonestar com a conspiração de um governo passageiro para sufocar e assassinar uma tradição nacional.

Democratas ao centro e à esquerda não podem perder de vista que convencer conservadores a tirar o oxigênio da aventura golpista é o objetivo que pode firmar uma estratégia política comum, que falta aos democratas de todos os matizes para darem consequência política realista – portanto, eficácia - à conduta tática prudencial que têm adotado. Essa conduta precisa deixar de ser só intuitiva e reativa, para ser também racional e propositiva. O momento exige equilibrar sensos de prudência e de urgência para dar à sociedade a confiança em que a democracia é a melhor opção e em que golpistas serão enfrentados não só no terreno das ideias, mas também no da política real.

Se a consequência dessa atitude realista será a abertura de um processo de impeachment não é possível antecipar. Mas não se pode tirar a hipótese da agenda, ainda que ela não esteja na ordem do dia. Criar um abismo lógico entre essa eventualidade e a conduta prudencial é um suicídio político prévio. Equivale a subestimar o poder do adversário de provocar destruição e desordem. A conduta prudencial ajuda-nos não apenas a evitar esses males. Também nos afasta da conduta imprudente de, num ambiente polarizado, fazer política sem um objetivo estratégico no horizonte.

*Cientista político e professor da UFBa


Paulo Fábio Dantas Neto: Política negativa e política positiva

Frente democrática terá de encarnar numa liderança a ideia de centro político

A fórmula que inspira o título foi de San Tiago Dantas, ministro de Jango, nos idos de 1964. Ajuda a pensar a frente democrática exigida pela experiência de 10 meses de mandato de Jair Bolsonaro. Sistema político, instituições jurídicas, algumas corporações profissionais do Estado e setores da sociedade civil, imprensa incluída, reagem com cautela ao ataque do Executivo a fundamentos democráticos da ordem política. O professor Werneck Vianna chama essa estratégia defensiva de guerra de posição. Uso política positiva em sentido análogo.

Em conjuntura crítica, San Tiago Dantas chamou de esquerda positiva a política que propunha, com senso agônico de urgência de um político progressista que pressentia a aproximação do pior. O horizonte da política positiva era um país com progresso social e economicamente moderno, horizonte submetido a duas regras de ouro: respeito rigoroso às instituições políticas e recusa de ideias de revolução ou de refundação do País. Certos conservadorismo e ceticismo, em vez de obstáculos ou argumentos contra as reformas, eram o método político para fazê-las.

San Tiago perdeu e a derrota foi do Brasil, que viveu duas décadas de ditadura. Sua agenda foi, com o tempo, revisitada, pelos militares, do modo autocrático que ele rejeitava por convicção. Pragmatismos em contraste: o de San Tiago, que propunha um futuro pela via da democracia e da civilização do conflito social pela moderação da política; e o de Golbery do Couto e Silva, que atrelava o presente a uma guardiania contra o demos, um regime que revogava a política (ou a restringia a jogo palaciano) em nome de eliminar os extremos. Num caso, construção moderada do centro político, no outro, extremismo de centro, que a história de outros povos nos ensina ser um dos biombos do fascismo.

A transição democrática e a Carta de 88 remeteram Golbery ao passado e agora ele quer voltar. Sua estratégia para vencer a linha-dura do regime que ajudou a fundar parece inspirar movimentos da direita democrática que tentam conter o extremismo do presidente Jair Bolsonaro, de sua família e sua facção. Assim como Golbery e Geisel ajudaram, na política de porões, a nos livrar de coisa pior, ajudará se, na nossa democracia atual, a aliança liberal-conservadora do presidente da Câmara com o governador de São Paulo detiver a aventura obscurantista que ocupa o Planalto.

Essa estratégia positiva, porém, será insuficiente se limitada à união de liberais e conservadores. A frente democrática necessita de um pé esquerdo, para a dissidência se separar, de fato, da extrema direita e se tornar oposição. Outra lição da experiência da transição democrática é que a abertura lenta, gradual e segura de Golbery não seria viável sem o avanço, no sistema político e na sociedade civil, da estratégia que mirava a democracia, e não uma guardiania light. Se Rodrigo Maia quiser ter um papel à altura do que teve Tancredo, terá de encontrar seu Ulysses e seu PCB, quer dizer, aliados capazes de mobilizar a margem esquerda da política pela via positiva, dando à frente democrática seu pé esquerdo. Essa articulação precisará alcançar, além de todo o centro, a esquerda convencional, um maciço ideológico que hoje rejeita e pune jovens políticos que tentam renovar a política pela política, e não contra ela.

O andar da carruagem da esquerda não favoreceu o polo positivo. Sob mediação do arranjo de poder caído em 2015-2016, fabulações nacional-desenvolvimentistas, de comunitarismo cristão e de democracia de alta intensidade foram linkadas ao identitarismo pós-moderno, emergente na sociedade civil. Conexões de sentido que exilam ideias de nação, de povo, em assembleias, conselhos deliberativos e coletivos identitários deixaram a esquerda brasileira mais distante da via cosmopolita, institucional e incremental da esquerda positiva. A política da esquerda negativa difundiu crenças e mobilizou interesses artífices do estilingue que hoje a alveja com força de bumerangue. A ponta da lança é a política negativa da direita soberanista e autoritária.

Para construir a frente democrática há ainda que desfazer uma confusão: o termo conservador não ter uso para nomear esse mix de ideologia e pragmatismo míope. Um conservadorismo que se preze está na oposição a um governo cuja pauta, inédita no Brasil, é destruir instituições.

Além de formar a frente democrática, um desafio à política positiva é ser eficaz na conjuntura. Seus praticantes não podem ser uma zaga que olha para a bola, com foco eleitoral em 2022, sem marcar o atacante demolidor. Ataques do capitão convertem consensos civis em dissensos selvagens, rebaixando crenças democráticas, mesmo se ficam na ameaça. Por isso dão razões para processos de denúncia formal e pedidos de impeachment.

O realismo político descarta essa via legal preventiva, ainda mais com Lula solto. O script racional da sua política atual é negar tudo o que está no governo, mas complementa o script de um governo que nega a complexidade legal e social do País. O quadro é favorável a essa mútua negatividade bipolar. A campanha de 2022 já começou e a frente da política positiva não se construirá em ritmo de valsa. Tocando dobrado, terá de encarnar numa liderança a ideia de centro político, como em outros tempos encarnou em Tancredo e Ulysses, em FHC e no ex-Lula. Como não existe liderança natural, ela só pode sair de acordo político em torno de quem mais unir os fragmentos que hoje se supõe representarem 40% do eleitorado.

Para desmentir quem chamar essa solução de conluio sem programa, a voz do centro unificado precisará combinar realismo político, convicção democrática, responsabilidade econômica, pluralismo cultural e forte compromisso com reforma social. Para quem achar essa combinação impossível, ou indesejável, é simples: dobrar a aposta e alinhar-se a Lula ou a Bolsonaro.

*Cientista político, é professor da Universidade Federal da Bahia