paulo fabio dantas neto

Paulo Fábio Dantas Neto: Impressões sobre uma ambígua quinta-feira

Imediatamente após o desfecho favorável à democracia e à estabilidade institucional que teve a crise, artificialmente criada pelo governo federal, em suas relações com as corporações militares, o ambiente político se desanuviou, ainda que sem permitir celebrações, em face da gravidade mantida de uma tragédia sanitária com fortes e variadas implicações sociais. Retornou com mais força a sensação (já presente em semanas anteriores ao episódio dos militares) de que ações simultâneas – mesmo que nem sempre bem articuladas - do Congresso, STF, governadores, prefeitos e lideranças políticas, além de significativas manifestações unitárias no plano da sociedade civil, estavam conseguindo afrouxar um pouco o nó que ata a política e a sociedade ao clima depressivo da pandemia.

 A queda do ministro das Relações Exteriores foi fator de descompressão que desobstruiu caminhos para se seguir correndo atrás do prejuízo por ele causado à imagem do Brasil no exterior e às possibilidades de o país obter apoio para o combate à pandemia. No plano das ações internas, o fluxo da vacinação melhorou, conseguiu-se criar ambiente um pouco mais cooperativo entre setores do Executivo e o Legislativo, levando a comprometimento mínimo do novo ministro da Saúde com um discurso racional e responsável, ainda que omisso quanto a medidas de restrição a aglomerações e atividades econômicas, decretadas por governadores e prefeitos. Esse é, como sabemos, o principal ponto de tensão que Bolsonaro, em crescente processo de isolamento político e queda de popularidade, promove no ambiente político e social. O isolamento, aliás, acentuou-se, como deixaram evidente manifestos de políticos e empresários que já fizeram parte da sua base de apoio.

Nada disso eliminou, ou mesmo aliviou, a dura rotina mortífera da contaminação e do colapso sanitário. Mas em meio à espiral crescente de efeitos perversos que se verificava antes da queda do ministro Pazuello, reabriu-se, com a rotinização relativa e lenta da vacinação, alguma perspectiva de alívio futuro. O carro do desespero permanece lotado e em movimento, mas é sensato supor que em abril ele parou de descer ladeira na banguela, como ocorria desde o início desse ano. A realidade dos recordes diários de mortes registra o ocorrido; a de internações e leitos, um processo que, timidamente, desenha esperanças. Bolsonaro segue hostil a todo alívio, mas com decrescente poder de criar retrocessos reais.

O dia 8 de abril foi de protagonismo do STF. Uma ambígua quinta-feira que trouxe alento e novos sobressaltos a esse processo incerto de racionalização do drama. Alento quando, por significativa maioria, o plenário da corte revalidou a autonomia de governadores e prefeitos no campo de luta contra a pandemia, no qual o governo federal lhes move uma guerra paralela, sugando energias preciosas que fazem falta na batalha contra o vírus.  Frustrou-se a tentativa canhestra de arrastar a esse campo o tema da liberdade religiosa. Foi uma decisão em sintonia com o momento nacional de valorização racional da vida.

Penso que o mesmo não se pode dizer da segunda decisão do dia, pela qual um ministro da corte obriga o Senado a instalar uma CPI para, a princípio, investigar a condução do governo federal no combate à pandemia. Aqui não se discute nem a constitucionalidade (legitimidade objetiva) da decisão, nem a justeza da aspiração de se apurar e punir responsáveis por algo que tem fortes indícios de conduta criminosa.  A análise dos fatos não pode, contudo, ignorar efeitos que essa decisão já causa sobre a instável coordenação entre os poderes e sobre as buscas de contenção racional do conflito político. E não pode vislumbrar que repercussões concretas a CPI poderá ter sobre o imediatamente grave cenário sanitário. Em nome da objetividade, o analista deve converter esses dois pontos em perguntas. E o compromisso social que também lhe cabe deve considerar que a legitimidade subjetiva da decisão dependerá da resposta à primeira pergunta (retrocesso na coordenação dos poderes e na contenção do conflito político?) ser um não e/ou da resposta à segunda pergunta (diminuirá a escala da tragédia sanitária?) ser um sim.  

As respostas que consigo encontrar são as inversas e dão lugar à seguinte interpretação: a intervenção judiciária, nesse caso, não atende ao maior interesse público do momento, que é salvar vidas. Para que esse interesse seja atendido, um requisito importante é haver o máximo possível de coordenação e cooperação entre os Poderes da República. Que sentido tem o Senado instalar um tribunal neste momento, como um Nuremberg em plena guerra?

Alega-se ainda que a instalação da CPI é um direito da minoria do Senado. Pois bem, esse direito não pode ser adiado em nome da saúde pública, como foi adiado, em nome da mesma causa, o direito de pessoas religiosas terem acesso aos seus templos? Penso que o STF acertou em cheio nesse último caso e se equivocou, no caso da CPI. 

 Os produtos que se espera de uma CPI séria são: levantamento de fatos pretéritos; verificação de possíveis e prováveis irregularidades e crimes; apuração de responsabilidades de entes públicos; denúncia ao Ministério Público de pessoas investidas na condição de agentes. Tudo isso pode ocorrer daqui a meses e será bom. Mas não salvará a vida de quem hoje agoniza sem atendimento hospitalar adequado. Por outro lado, pode suscitar um clima de conflagração política e institucional que ponha em risco mesmo os modestos avanços que se tem alcançado no combate à pandemia nas últimas semanas.

Meu argumento não deve ser confundido com previsão de catástrofe. É de esperar que hábeis bombeiros consigam evitar que a CPI transcorra em ritmo de aventura.  Se forem capazes de controlar a intensidade das labaredas, ela pode até ajudar a tornar mais evidente, para eleitores menos informados, os ardis do governo, aumentando seu desgaste e frustrando o desvio de objeto, que decerto tentará, para confundir alvos e atingir governadores, prefeitos e possíveis concorrentes em 2022, como o ex-ministro Mandetta. Se tudo correr dentro desses trilhos benignos, a CPI pode até pavimentar o terreno em que o presidente do Senado opera a sua política normalizadora. Que assim seja e que a política lenta conserve suas unhas no leme, para atravessarmos melhor esse nevoeiro até 2022. Mesmo no caso-limite de ineficácia do remédio político conservador, a CPI poderá pavimentar a via constitucional alternativa do impeachment. Dependerá não dela em si, mas de condições de temperatura e pressão da atmosfera sociopolítica do pós-pandemia.

Politicamente falando (pois para a saúde pública qualquer repercussão será a longo prazo) a CPI é janela de oportunidade para governo e oposição, creio que um pouco mais para o governo e o presidente, que, antes desse fato, pareciam estar cada vez mais pressionados contra as cordas. A ver, mas não perderemos nada se ficarmos atentos ao que nos ensina a experiência do Brasil com CPIs. Nelas, o banco dos réus costuma ser lugar de vencidos, não de quem maneja o poder. Será uma proeza se essa CPI sentar o governo nesse lugar.

O efeito específico do fator Jair Bolsonaro sobre tudo isso também não pode ser previsto, mas, seja qual for, tende a ser relevante, para bem dele e mal do país, ou vice-versa. Como é da sua natureza, Bolsonaro já aproveita o sismo para plantar terremoto. Oposições contam menos com seus próprios méritos e mais com o voluntarismo pelo qual Bolsonaro, com suas próprias aventuras, desperdiça as seguidas chances de reabilitação que certos adversários também voluntaristas e fogosos lhe oferecem, vide o affair com Sergio Moro.

Uma reflexão se impõe para que a CPI seja vista - sem lentes de aumento, otimistas ou pessimistas – no quadro do contencioso político nacional, que lhe transcende em muito. Trata-se de se o capital político acumulado pelas oposições e pela sociedade já evita que atalhos como essa CPI alterem a rota principal que pode levar os brasileiros a superarem, em 2022, a escolha trágica de 2018. Mais um teste de maturidade democrática nos desafia.

Há razões para supor que sim, pois uma consciência cívica voltada à resistência avança no Brasil desde as eleições de 2020 e tem sempre retornado à tona em patamar mais avançado após cada uma das várias escaramuças provocadas, nos últimos meses, por pescadores de águas turvas, especialidade na qual o presidente é doutor, mas não está só. Escolho não enumerar exemplos para não alongar o texto. Fico apenas naquilo que pesquisas sinalizam: que o presidente voltou a se isolar – como em março/abril de 2020 - porque se aparta, na companhia de suas milícias digitais e presenciais, de um amplo consenso básico da sociedade política, da burocracia da administração pública e da sociedade civil, sobre como lidar com a pandemia. O presidente conserva influência sobre sentimentos públicos de modo a incompatibilizar faixas da população com esses esforços e a rebaixar o nível de crença geral na democracia. Aí está o nó político a desatar. É preciso dedicar tempo a analisar senões que, no campo das oposições, ainda limitam as chances de o relativo consenso cívico que se formou ter dinâmica de convergência política irreversível.  Tratarei disso no próximo sábado, se novos sismos não mudarem a pauta.

 *Cientista político e professor da UFBa


Paulo Fábio Dantas Neto: Emergência sanitária e paciência política - O fator Mandetta

Ao longo do ano de 2021 a situação de grave vulnerabilidade sanitária em que se encontra a população brasileira promete converter-se numa nefasta singularidade no mundo. Tudo parece indicar que seremos, ao final desse ano, o único país de relativa importância que não terá vacinado, em grau decente, a sua população. Além das centenas de milhares de vidas já perdidas, o acesso precaríssimo a vacinas condena os brasileiros à ausência de horizontes. À insegurança, à desconfiança e ao medo, que afetam a qualidade da vida de cada pessoa, corresponde a experiência comum de radical incerteza quanto ao momento de interrupção do círculo vicioso de adoecimento e morte, que afeta o ambiente social.

Ar rarefeito, dura e ameaçadora realidade enfrentada pelas pessoas enfermas, tornou-se metáfora precisa das condições possíveis de sobrevivência coletiva em nosso país. Elas são uma jaboticaba venenosa, plantada pelo desligamento paulatino e deliberado dos motores do Ministério da Saúde, a partir do final de abril de 2020. O atentado ao SUS, a virtuosa jaboticaba federativa que o processo de democratização nos deixou como legado, já produziu consequências irreversíveis. O que se pode - em angustiante médio prazo que requer ação imediata - é deter a marcha implacável da tragédia e mitigar seus efeitos, por meio de uma política de redução de danos. Inusitado convívio de emergência e paciência.

É dever da política providenciar o oxigênio. Inexiste explicação, argumento ou causa nobre que justifique deslocar a plano sequer concorrente qualquer outra prioridade do país. Suspender juízos doutrinários, moderar impulsos inovadores, adiar definições partidárias, repensar alianças políticas são procedimentos cabíveis para combater, da melhor forma possível, os danos sociais da pandemia. Esse o sentido mais objetivo e atual que podem assumir a política econômica, as políticas de auxílio a vulneráveis e as chamadas reformas, por mais que todas essas políticas remetam, também, a horizontes transcendentes ao contexto da pandemia. Prospecções e metas, sejam quais forem seus intervalos temporais, tendem ao fracasso se não dialogarem com esse contexto que as pauta. Pode-se dizer que entregar esse oxigênio é a prova de legitimidade a que se submete, hoje, nossa democracia.

A representação política é a forma institucional que permite conseguir o oxigênio para a sociedade não parar de respirar. Fora dela o sucesso é improvável. Contra ela, inviável. A ciência normativa da política ensina que, num país onde presidencialismo é tradição arraigada e instituição vigente, a representação política nacional realiza-se, de fato, por duas vias concorrentes, o Congresso e a Presidência da República, que repartem o governo. E sendo o Estado, ademais, federativo, essa bifurcação da representação desdobra-se em governadores e prefeitos, deputados e vereadores. 

No mesmo sentido há uma lição da política prática que a pandemia reitera de modo cabal. Passaram pelo crivo da representação política – sob guarda e vigilância do Judiciário - todos os instrumentos de que, bem ou mal, dispomos hoje para reduzir danos. E todos os fracassos que agravaram danos estiveram ligados à pretensão presidencial de desvirtuar a representação política, seja para tornar despótica a que ele exerce, seja para atacar as demais instâncias representativas e seus respectivos titulares, em quem vê inimigos.

É fato, porém, que, mesmo subvertendo instituições e os padrões de interação política próprios da democracia, o presidente exerce um mandato representativo. E para que não se incorra em autoengano, é bom entender que seu mandato foi conquistado em arena eleitoral diversa daquela que cria a representação legislativa, sendo exercido, portanto, conforme lógica personificada, oposta à que preside a dinâmica partidária do Legislativo.  Portanto, não será propriamente uma aberração Bolsonaro enfrentar com sucesso uma nova eleição presidencial mesmo se estiver novamente, como já esteve, isolado, no Congresso.

Do mesmo modo poderá se dar mal na reeleição, mesmo com todo o centrão em seus braços. Retomo um ponto que mencionei em artigo recente (“Crônica de um revés parcial: duas arenas e a política de resistência democrática” – Revista eletrônica Política Democrática / fevereiro 2021para frisar que a dinâmica eleitoral e parlamentar do Congresso é uma, a da disputa e exercício da Presidência, outra.  O fato de Bolsonaro ser um protofascista não deve cegar para o fato de que não apenas ele é um líder plebiscitário, mas também é plebiscitária a lógica da instituição que ele preside, embora o faça de modo exacerbado, capaz de levar a lógica à sua nêmesis. Competir implica atentar a esse aspecto.

Conclamações, no interior da sociedade política, a um esforço comum dos Poderes da República, acima dos partidos e grupos, para haver vacina e vacinação refletem crescente consenso a partir de uma gradativa noção da gravidade do problema e do perigo intrínseco que ele traz de esgarçar o tecido social e assim trincar a legitimidade do sistema político. Porém, é da própria natureza da política democrática, que a coordenação de ações cooperativas ocorra tendo como premissa a competição política.

Nada mais inócuo do que o apelo - ingênuo ou demagógico - para que se sacrifique crenças e interesses parciais para abraçar crenças e interesses comuns. O repertório de crenças é sempre plural e o interesse comum são pontos. Portanto, fala-se aqui não de sacrifício, mas de boa compreensão. Os termos da competição mudam em presença da pandemia, reforçando o hábito de alianças e a construção de consensos.  Mas não se cogita suspender a competição. Precisamente nisso consiste uma diferença crucial entre saídas democráticas e autoritárias da crise.

Resulta, daí, que é possível pensar numa ampla frente por vacinação no Congresso, que vá do centrão à esquerda, quase uma unanimidade e ser necessário fazer, na outra arena, oposição frontal à política (ou antipolítica) de Bolsonaro na Saúde. O mesmo vale para o auxílio emergencial e todos os demais pontos da agenda política. Consensos legislativos constroem-se pela média das posições. Eles não excluem que o que ficou à margem do consenso seja objeto de renhida disputa na arena presidencial.

Considerar assim a competição implica em saber que o governo federal, em que pese ter posto em prática, durantes vários meses, uma ação negacionista aniquiladora dos meios institucionais de combate à pandemia, acena agora a uma reversão de turbina no objetivo, sem, no entanto, desistir do método de desconstruir instituições. Declara agora querer apressar a vacina e sob esse pretexto procura desqualificar tecnicamente a Anvisa, por uma manobra legislativa que a submeteria a comandos políticos. Sob o mesmo pretexto, o ministro Pazuello altera o critério da vacinação e desorienta prefeitos a não mais guardarem segundas doses, ainda que ao risco de criar um contingente de sub vacinados.  Seriam folclóricos, se não fossem delituosos, os arroubos ilusionistas do ministro, fazendo projeções fictícias com vistas a acalmar os sobressaltos, adiando-os até que se tornem novos e trágicos fatos consumados. Para não falar na manutenção, em meio à guinada retórica, da mesma omissão do MS nas tarefas de coordenação do SUS, do que resulta uma ausência de padrão nacional no modus operandi da vacinação e a insensata definição de 80 milhões de pessoas como prioritárias. A demagogia é filha primogênita do negacionismo. Quais serão os frutos podres seguintes?

Há, portanto, novidades nos movimentos atuais do Bolsuello na Saúde e quem quiser se opor a eles de modo consequente precisa entender o mal desde a gênese. É errado narrar o processo como desastre iniciado só quando o Eichmann da logística sentou-se na cadeira de ministro. Assim como erra quem supõe que o mal é banal como ele e se irá com ele caso as instituições o expilam, como devem fazer.  A operação militar cujas consequências mais drásticas talvez o país ainda não tenha sofrido não pretendeu, a princípio, implantar coisa alguma, só intentou destruir um arranjo institucional de política pública com alta capacidade de agregação política, que dava a esse arranjo também um potencial eleitoral. A imprensa brasileira e os meios políticos enxergaram bem que Bolsonaro, ao retirar Luiz Mandetta do ministério da Saúde, no auge da pandemia, queria afastar um potencial adversário nas urnas. Mas não estavam igualmente atentos – ou se estavam subestimaram – ao fato de que o script era, mais que afastar Mandetta, destruir o arranjo que ele armou. 

A memória dessa pandemia precisa corrigir um equívoco: ela não se divide em antes e depois de Pazuello e sim entre um durante e um depois de Mandetta. É inaceitável colocar como análogas a sua experiência no MS e a de Nelson Teich. Mas é o sistematicamente dito, desde aquela época. E, no entanto, cá estamos, um ano depois, falando de Mandetta. Por que, se nenhum partido o adotou? Atribuo o fato à consistência do legado de uma gestão.

Uma oposição realista que se deseje digna do substantivo e do adjetivo não fará movimentos em círculo para reinventar a roda.  Se quiser um roteiro para uma condução alternativa à irresponsabilidade do MS, irá encontrá-lo naquela curta experiência. A propósito, permitam-me fazer nova autorreferência, agora ao artigo “Desconstrução de memória da gestão Mandetta é ameaça ao SUS” (Revista Política Democrática / maio 2020). Relembro aqui partes dele, indicando que Pazuello ainda não era ministro e já não se sabia aonde fora parar a ênfase engajada no isolamento como conduta prudente e solidária; a conexão estreita com o mundo da ciência e a área técnica da saúde pública; a articulação federativa que gerava sintonia fina entre o MS e os governadores; a articulação com o Congresso, para opinar sobre o conteúdo das medidas a serem votadas.

Pazuello ainda era o segundo do MS e já se notava a lassidão federal face à velocidade da crise sanitária e era notória a indiferença do ministro sucessor à dimensão política da crise. Já ali a intervenção começara, através da secretaria executiva do ministério, desconectada da área de saúde e assumida por um militar interventor que já rondava a cadeira do ministro.  E já ali se interrompia o fluxo de informação segura, realista, transparente e diária com a qual o MS vinha a público, substituída por informação rarefeita e filtrada na forma de monólogos.

Infelizmente não se deu a esse imediato contraste a atenção devida. O fato do novo ministro ser um médico permitiu uma benevolência que gerou um lapso curto, mas fatal. Os meios de comunicação e as forças políticas do País não esboçaram, diante do gesto absurdo do presidente contra um gestor comprometido com uma política pública geradora de moderação e de grande empatia social, uma reação sequer aproximada à que se deu quando, logo depois, o ministro Sergio Moro saiu do governo atirando. Bem pesadas as coisas, merece reflexão crítica a prioridade dada, como fato digno de reação política e civil, à indicação do superintendente da PF do Rio de Janeiro, objeto de intervenção judicial, enquanto a demissão do ministro da Saúde sequer suscitara declarações de intenção de embargo. Contudo, o contraste foi instantaneamente gritante entre a sensação de segurança relativa de antes, em meio ao temor e a impressão, já então presente, de que o governo desligara os motores do MS para descer na banguela a ladeira da pandemia.

Hoje já está em curso mais do que uma ação destrutiva. Apesar dos danos que ela causou e causa, o governo pretende ser beneficiário de ações da coalizão pró vacina que se articula no Congresso Nacional. Entendendo o paralelismo das arenas, é papel da oposição reforçar a coalizão sem permitir essa fraude. A marcação cerrada sobre o MS, com ou sem Pazuello, não poderá descansar. Precisa envolver a sociedade civil e ter clareza sobre o que propor.

Os pontos que alinhavei sugerem que cabe ao ex-ministro da Saúde papel de coliderança no grande esforço nacional para enfrentar a crise sanitária sem ceder ao caráter antissocial da política do governo e ao mesmo tempo sem dispensá-lo das pressões possíveis para que cumpra o seu papel. Sua imagem pública lhe permite agir ao modo usual da sociedade civil .

Ele também é um quadro da sociedade política que se conectou com o andar de baixo do eleitorado  sem a mediação de uma prévia identidade partidária. É um perfil incomum no âmbito do que se tem chamado de centro do espectro político. A dificuldade desse campo construir alternativas politicas viáveis na arena eleitoral presidencial possivelmente tem a ver com a lógica parlamentarista que costuma guiar a práxis dos seus quadros. Nesse sentido, Mandetta é um ponto fora da curva, porque funde uma prudência política centrista e afeita à arena parlamentar, com a conduta assertiva nos campos da gestão e da comunicação política, típica de protagonistas da arena de competição presidencial.

Por esse motivo penso que está em patamar diverso de outros nomes do chamado centro, que se concentram em entendimentos interpartidários, típicos da arena parlamentar, como possíveis plataformas de lançamento a projetos voltados a eleições majoritárias. Será bom caminho trocar a imagem do médico que não abandona o paciente pela de pré-candidato à procura de um partido? Ademais ele já faz parte de um, cujo rumo em 2022 é incerto e influenciável pela paciência. Visitar a planície do mercado partidário agora não parece ser caminho para que ele contribua efetivamente ao debate nacional em momento de emergência sanitária.  

O diálogo com parlamentares e partidos pode correr frouxo e a eles poderá retornar sempre, amarrando as coisas no devido tempo e com suficiente familiaridade porque outsider não é e possui, além do mais, posição ideológica clara, que costuma declarar. Sem ser de esquerda e jamais cogitar sê-lo, pode com ela dialogar e pontualmente convergir. Sendo da centro-direita e sem deixar de sê-lo, pode, dentro dela, divergir e levá-la a viagens mais interessantes do que as cercanias do palácio. Se nada disso ocorrer, mais uma vez, paciência. Terá travado o bom combate, numa emergência.

*Cientista político e professor da UFBa


Paulo Fábio Dantas Neto: As unhas da política e as viúvas da Lava Jato

Começo explicando porque o presente texto tornou-se, excepcionalmente, dominical. A live de Maria Bethânia, a princípio, foi só um belíssimo pretexto, convertido em aviso aos leitores dessa coluna, para adiar de ontem para hoje a publicação do artigo semanal. As nuvens políticas do sábado estiveram tão densas que a noite chegou e eu não conseguia encontrar o que dizer com mínima convicção, a não ser constatar a virtual dissolução de uma política moderada no interior do autodenominado centro político.

Depois do cavalo de pau de Rodrigo Maia em adesão (para mim, surpreendente) ao modo João Dória de fazer política - o qual pode até ser chamado de “extremismo de centro” - outros políticos do centro democrático começaram a seguir, ou ameaçar seguir, essa tocha de insensatez que pode conduzi-los a um haraquiri político. Estava a centímetros de arriar o rei diante desse xadrez político de baixa qualidade quando escutei duas frases de Bethânia achadas agora na rede, como memória da live, podendo citá-las sem risco de ser infiel. Uma expressa um desejo de abelha-rainha: "A força dos meus sonhos é tão forte que de tudo renasce exaltação e nunca minhas mãos ficam vazias.". Outra, uma vontade prudente, mediada pela necessidade, com a qual a realeza revela empatia para com quem trabalha e vê entes queridos morrerem como formigas: "Quero vacina, respeito, verdade e misericórdia". 

Acordei neste domingo com a sensação de que a falta de atores políticos capazes de construir uma vontade agregada e prudente está deixando a maioria dos brasileiros sem sonhos fortes e de mãos vazias, em vias de exasperar, por não verem o que exaltar. Ouvi, no entanto, numa entrevista à CNN, concedida dias atrás, pelo jovem governador gaúcho, entre outras ideias que me pareceram lúcidas, a seguinte frase: “eu acredito numa política que efetivamente seja mais sobre cicatrizar do que sobre abrir novas feridas”. Percebi um zum-zum na testa que abriu uma fresta no desalento. Achei não só essa frase, como toda a entrevista, merecedora de um comentário dizendo sim. Mas o dever da análise impunha também considerar as inúmeras razões para dizer não ao que se tem falado e feito no campo onde o governador se move. Só que a algaravia é tão intensa que entontece e não indica por onde começar. Uma segunda leitura, da coluna de hoje da jornalista Eliane Cantanhede, no Estadão, deu-me mote a uma crítica menos apegada às jogadas de varejo do xadrez político e mais voltada a interpretações que se faz sobre elas. Achei, numa interpelação à visão da respeitada colunista, o tema que faltava ontem.  

Cantanhede aventa a hipótese de a empresária Luiza Trajano vir a ser uma alternativa eleitoral, diante da virtual falência de uma frente política do centro liberal-democrático, que estaria se derretendo por adesismo ao governo de Bolsonaro.  A hipótese teria um indisfarçável sentido de retomar o tema da alternativa à “velha política”, que teve forte apelo nas eleições gerais de 2018 e foi arquivado pelos eleitores nas municipais de 2020. Na falta da Lava Jato e diante de Sergio Moro passar de aspirante à política a candidato a réu, seria como buscar outro herói (no caso, heroína) para enfrentar Bolsonaro, alijando a “política dos políticos” do segundo turno. Para sermos justos com Trajano, é preciso dizer que se ela seria tão outsider na política quanto Moro tem as vantagens, em relação ao ex-juiz, de já ter história, como empresária e ativista do grupo Mulheres do Brasil, de contraponto ao extremismo vigente, fazendo oposição afirmativa ao sexismo e ao racismo e de liderar um arrojado e muito bem vindo projeto de intervenção civil em favor da causa da vacinação em massa, que é o principal desafio social do momento. Pauta irrepreensível, cujo apelo agregador provém do fato de ela não ter, até aqui, pretensão político-partidária. Se passar a tê-la, como teve Moro, arrisca-se a perder sentido. A quem se ocupa de política com responsabilidade pública cabe apurar se a hipótese aventureira de substituir o juiz como salvação do país, contra a política, tem anuência da própria Trajano, ou não. No caso de não ter, como parece mais provável, muito bem fará quem a ela se associar. Havendo fogo sob essa fumaça, é preciso que políticos e partidos responsáveis providenciem o antídoto para que esse recurso ao amadorismo político não vingue, como ideal de solução de crises tão complexas como as do Brasil atual. Obtém-se o antidoto por palavras e gestos de moderação e agregação, no campo do centro liberal democrático e na esquerda. Mas no dito centro, abundancia retórica de palavras unitárias já divide espaço com outras que as negam.  E preocupa a escassez de gestos concretos. As razões disso precisam ficar claras.

ACM Neto pode perder a batalha interna que trava no DEM para resistir ao governo pela razão oposta à que Cantanhede aponta. Em vez de adesismo, já se pode perceber - em suas mais recentes declarações sobre a indicação, por um outro partido, de um liderado seu para o ministério da Cidadania - imprudência quase análoga às de Maia e Dória. Mesmo estando o ato do governo cercado de evidências de que se trata de estratégia intencional para colar no presidente do DEM a etiqueta de governista e, com isso, consumar uma implosão do partido, o alvejado cedeu à retórica voluntarista, diante de uma imprensa ávida por confrontos na pequena política. O modo como se expressou, cobrando lealdade política e pessoal a um quadro de outro partido, torna irresistível, para seus adversários, acionar a memória do lado mandonista e informal da complexa e contraditória atitude política do seu avô. Esse lado nega a imagem pública construída pelo neto há mais de uma década. É o que indica até aqui a exoneração, da Prefeitura de Salvador, de um quadro ligado ao ministro indicado, João Roma. Envolve na briga uma prefeitura que já não mais dirige e num contexto social crítico, em que ela precisa manter interlocução com o governo federal. Traz instabilidade, simultaneamente, à institucionalidade federativa e ao combate à pandemia. Tenho me colocado sempre contra visões elitistas, travestidas de progressismo, que desprezam ou demonizam a pequena política. Ela tem papel importante no mundo real, mas Antônio Gramsci é aqui referência incontornável: é grande política reduzir tudo à pequena política. Esse tipo de grande política desertifica a política positiva. ACM Neto ainda tem crédito para se supor que tenha sido um escorregão hepático.

Cantanhede está vendo "implosão" no PSDB também. Será que é isso o que ocorre mesmo, ou ali está se procurando evitar a implosão, um risco provocado por quem a articulista considera ser a vítima, no caso o governador de São Paulo?  Até onde posso enxergar, essa discussão está ligada à situação que abordei em artigo nessa coluna, em 12.12.2020 (“Em busca de um centro: uma eleição e dois scripts”). Da experiência promissora das eleições de 2020 surgiram duas possibilidades de construção de alianças no chamado centro político.

A primeira seguiria uma rota a partir de São Paulo e levaria a atrair a centro-direita para uma aliança ao centro, sob hegemonia do PSDB, para um confronto desde já com Bolsonaro, sendo a possibilidade de incluir a esquerda transferida para o segundo turno, a depender de quem lá chegasse. A segunda possibilidade, que teve êxito em várias capitais, a de uma frente mais ampla se formar já para o primeiro turno, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda, tendo como âncora uma agenda positiva capaz de envolver o PSDB, outras partes da oposição e setores que se declaravam independentes do governo, como DEM e MDB, sem reconhecimento prévio de hegemonia de qualquer partido. O então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, parecia talhado a ser o principal articulador dessa segunda rota, enquanto o governador de São Paulo seria o da primeira.

O modo como se constituiu a frente em prol da candidatura de Baleia Rossi à presidência da Câmara atou, àquela disputa, o destino de uma eventual aliança eleitoral e o modo como Maia reagiu à derrota fê-la transbordar os muros da Câmara e comprometer a segunda possibilidade de rota na arena interpartidária. Recepcionando, no PSDB, o articulador derrotado da segunda rota, João Dória imaginou consolidar, definitivamente, a rota São Paulo - Brasil. Esqueceu de avisar a cozinha, onde a outra rota estava sendo considerada, como demonstram a entrevista do governador gaúcho e a decisão, da Executiva do partido, de prorrogar, por um ano, o mandato do presidente que Doria queria substituir. Evidentemente, como no caso do DEM, o dedo do palácio comparece para incendiar a luta interna, mas quem a provocou é questão em aberto e não uma premissa.

Resta, ainda, falar do MDB e o farei de modo sucinto porque nesse partido não há, por enquanto, uma crise interna com as proporções das que afetam DEM e PSDB. O deputado Baleia Rossi, que se conduziu com dignidade na disputa da Câmara e mantém, após a derrota, um também digno silêncio, precisará mesmo submergir para tentar se manter, ou ao seu grupo, no comando nacional do partido. Terá, para isso, que refratar o duplo ataque que lhe aguarda. De um lado, o do palácio, que quer tornar invertebrados os três principais partidos do centro de modo a ampliar o seu centrão. De outro, o do hábil senador Renan Calheiros, que ensaia fazer da posição de líder do partido no Senado um posto articulador para levá-lo a mover guerrilhas tão verbalmente imoderadas quanto pragmaticamente pontuais contra o governo, como se o MDB pudesse ser uma espécie de centrão do B.

É logico que está em curso, por parte do governo, uma operação para rachar os três partidos, que estão entre os mais institucionalizados do país. Operação que, ademais dos seus objetivos táticos, é coerente com uma tradição estatal brasileira de modelar partidos ao gosto dos interesses do Executivo e com uma estratégia mais geral, do governo atual, de esgarçar e, no limite, destruir instituições. Tem ficado evidente, também, a vulnerabilidade desses partidos a esse tipo de investida, seja por uma crescente dependência de fontes de financiamento orçamentárias (fenômeno estrutural dos sistemas políticos atuais e não uma jaboticaba brasileira), seja por uma cultura personalista que os afeta (embora não os defina, nem seja singularidade deles, pois se espalha por toda a sociedade e tem também uma incidência internacional), seja por  redes de clientela que a eles se vinculam (embora a vida desses partidos não se resuma a elas), seja, ainda, por particularidades regionais próprias da forma federativa do Estado brasileiro e por aí vai. As duas coisas (a investida do governo e a vulnerabilidade dos partidos) são facilmente verificáveis.

O que é obscuro na argumentação - aparentemente límpida, em sua simplicidade - de que o centro político cava sua própria sepultura ao se comportar mal, é o motivo pelo qual deveríamos achar que a estratégia do governo é meramente uma ação beneficiária da má qualidade de uma elite política formada por políticos “menores”, em especial de uma inépcia essencial do centro político. Sem colocar aqui em questão essa qualidade geral, ou a inépcia do centro atual, penso que se toma como causa o que é mais consequência ligada a uma baixa capacidade de certos atores do sistema em dar resposta a desafios. As crises internas do DEM e do PSDB são análogas, mas com raízes distintas. A do DEM resulta de uma iniciativa do palácio, que não está sendo refratada a contento. A do PSDB, de uma afoiteza endógena, aproveitada pelo palácio.  Mas, varejos à parte, a baixa capacidade de resposta afeta os voluntaristas, mais do que os políticos praticantes da moderação. Daí a preocupação prioritária de extremistas adversários do sistema político de alvejarem lideranças e instituições partidárias ligadas ao centro, onde a moderação é mais frequente.

De todo o modo, o extermínio do centro é estratégia de governo e não cabe fazer, de seus alvos vulneráveis, sujeitos de uma oração cujo sentido é uma sentença acusatória que reitera, pela direita, o diagnóstico de “falência da velha política”, por vezes corroborado, na ponta esquerda, pelo de “crise da representação”. Depois de render homenagens, nem sempre sinceras, a políticos que, por terem sido derrotados no jogo pelo seu voluntarismo, tornam-se resíduos funcionais ao argumento, o arremate final dessa argumentação contra políticos moderados resilientes é que, diante do seu adesismo, o jeito é Trajano, mora? Aqui se conclui o diálogo com Cantanhede e começa a análise de um sentimento difuso de contestação da política, que, a meu ver, data vênia, a sua análise subestima.

Extremismo tornou-se consenso negativo tanto na sociedade civil, como no âmbito das instituições. Mesmo se a Câmara de Lira se converter em turba, arrancar recursos de poder para reeleição de deputados e dividir o país em torno de costumes, dificilmente dirá tudo bem, diante de arroubos extremistas contra o sistema democrático. Embora não se saiba até que ponto o eleitorado corresponderá, em 2022, a esse feliz consenso negativo, as urnas de 2020 também deixaram claro um recado por moderação, agora reforçado pelo exemplo de processo político pacificador que deu a vitória a Biden, nos EUA.  Com isso a roda da fortuna girou favoravelmente à elite política e o “lugar de fala” que ela ocupou, no pós-2018, passou a ser cobiçado. Agora todo mundo quer ser moderado, até Bolsonaro.

A acusação de adesismo ao governo Bolsonaro é a tocha acesa por adversários da política dos políticos, deserdados pelo acordo do governo com o centrão, para desalojar políticos moderados da posição relativamente confortável que vinham ocupando. Podiam, desde já, dialogar com a esquerda em torno de protocolos civilizados e, mais adiante, atrair parte do centrão a uma ampla frente democrática, num segundo turno. A imputação de adesismo cumpre o papel centrífugo que acusações de corrupção cumpriram no pre-2018. Em vez de lavar a política, trata-se agora de incendiá-la de novo. A aposta parece ser que ocorrerá o que ocorreu no clima de lacração prévio àquele pleito, ou seja, políticos em geral seguirão atras da tocha, disputando quem é oposição mais firme, num salve-se-quem-puder, procrastinando as pautas unitárias que realmente importam, nesse momento. Essas pautas poderiam ser, então, empalmadas por algum outsider adversário, tanto dos políticos sem rumo, quanto do presidente extremista. O problema é que, enquanto a tocha é seguida, o governo se expande, ocupa o centro, tenta roubar os discursos da vacina, do auxílio social e até o da conciliação.  Daqui a pouco será confundido com a misericórdia.

Especula-se, nas últimas horas, que Luciano Huck, dobrando a aposta de Dória e Maia, poderia ir até a esquerda tourear com Ciro, Lula e Boulos. Flavio Dino, se o está atraindo, faz o jogo certo de quem está na esquerda, tentando levar gente do centro para oxigenar seus ares e torná-la mais competitiva. O jogo do centro é outro e não dá nem pra fazer cócegas em ninguém se não for capaz de unir seus quadros e ainda dividir a direita, costeando o alambrado do centrão. Se uma direita governista é difícil de ser vencida, mesmo quando dividida, imaginem se estiver unida, sob uma hegemonia antidemocrática!

Numa democracia, no entanto, a política dos políticos não chega nunca a ser suprimida e, em geral, após uma faxina, renasce como unha. Foi o que começou a ocorrer nas eleições de 2020. Sobreveio, para o dito centro, um começo de 2021 adverso, pela combinação de assédios de fora e erros em casa. O impulso das urnas do ano passado pode ser retomado se esse agrupamento informe tiver compromisso social para priorizar o combate à pandemia e o auxílio aos mais pobres, responsabilidade para entrar no debate econômico, firmeza na defesa da Constituição, instinto de preservação para não incendiar suas instituições partidárias e prudência política para pacificar os ânimos. São muitos “ses”, o que torna o protagonismo do centro uma hipótese pouco provável no horizonte atual. Sem a concretização de, ao menos, parte dos “ses”, será difícil uma aliança nesse campo tomar forma política e atrair um candidato competitivo – como Luiz Mandetta, por exemplo - para, na hora certa, chamar o eleitorado. Mesmo cumprindo seu dever de casa, até aqui mal encaminhado, não é certo que esse pretenso campo político consiga protagonismo. Mas se parar de bater cabeça terá ao menos como marchar razoavelmente unido para uma outra solução democrática, mesmo exógena, para tentar derrotar o extremismo, que deve piorar muito, se houver reeleição. Pela consideração dessas distintas hipóteses (endógena e exógena), Mandetta será o foco da coluna, na próxima semana. E na seguinte, a esquerda. 

*Cientista político e professor da UFBa.


Paulo Fábio Dantas Neto: Reposicionamento do DEM?

Frustrarei alguns dos ainda poucos leitores ou ouvintes regulares desta coluna, ao não comentar diretamente o desfecho de eleições recentes para as mesas da Câmara e Senado. É que estou escrevendo um artigo sobre esse assunto, que será publicado, em breve, pela revista eletrônica “Política Democrática”. Quem ainda não estiver saturado de informações, interpretações e conclusões sobre isso poderá acessar a revista, na próxima semana. De todo modo, o tema de hoje deriva daquele. É, por assim dizer, um efeito colateral do desfecho da disputa da Câmara, que vem sendo tratado - a meu ver, indevidamente e não inocentemente - como se fosse uma causa. Trata-se do posicionamento político do DEM.

Cultivo o hábito, hoje meio fora de moda, de avaliar, de saída, a posição de políticos e partidos pelo que eles declaram em público. A declaração tem valor em si, porque – salvo em casos limite, devidamente comprovados, de desprezo pela razão e uso contumaz da mentira - compromete o declarante, além de provocar ações de terceiros, que a tomam como baliza.  De modo complementar, fazer reflexões para avaliar se estão sendo verazes, usando, como evidências, fatos e informações cruzadas de outras fontes, mas sempre pondo-as na condicional, sem fazer conjecturas passarem por veredictos. Pior do que a benevolência acrítica é o criticismo imprudente. Por isso, parto da entrevista concedida, pelo presidente nacional do partido em foco, ao jornal Folha de São Paulo, no último dia 3.

O título da matéria é “DEM não vai com extremos em 2022, mas não posso descartar agora estar com Bolsonaro, diz ACM Neto”.  Quem foi além do título e leu a entrevista, viu que essa não foi uma declaração da iniciativa do entrevistado e sim uma resposta sua a uma pergunta direta do jornal.  Leu também, no restante da mesma resposta, uma pergunta feita pelo político baiano:  Qual Bolsonaro vai ser? O dos dois últimos anos que passaram? Não queremos. Agora, haverá um reposicionamento? Para a construção de algo mais amplo, que não fique limitado à direita? Não sei.”  O título da matéria reproduz o núcleo da resposta e destaca o que nela suscita mais polêmica. O contexto da polêmica é a divisão do DEM na disputa da Câmara dos Deputados, fato que já vinha sendo interpretado, predominantemente, nos meios de comunicação, sob a chave da “traição”, da maioria da bancada e do presidente do partido, ao deputado Rodrigo Maia. Como estratégia jornalística, tudo certo, o entrevistado perderá tempo em reclamar.

O uso político da notícia-título, nos dias subsequentes, tem sido intenso e sem alusão ao complemento da resposta do entrevistado. Soltos os freios, as especulações abundam. Segundo elas, o presidente do DEM já indicou o mesmo virtual ministro para as pastas da Educação e da Cidadania, já está cotado para vice de Bolsonaro e esse último pode se aboletar no DEM. Alguma terminará acertando o alvo porque o que vale para qualquer partido não vale do mesmo modo para seus membros, individualmente. O padrão de independência política declarado pelo DEM com base nessa premissa não é contestado pelo palácio. Prova isso a permanência de quadros do partido em ministérios desde 2019, inclusive durante surtos milicianos do capitão, mesmo quando Mandetta, Maia e o próprio Neto se posicionavam, pontualmente, contra várias posições e iniciativas suas. Por que seria diferente agora quando Bolsonaro faz uma performance de político “normal”?

O padrão seletivo das especulações tem favorecido quem aposta em racha definitivo do DEM, animado pelo fato de destacados quadros do partido assumirem hoje uma nítida atitude de oposição, enquanto outros quadros se declaram independentes e outros ainda ocupam ministérios. Para se ter uma ideia da complexidade do quadro, é preciso ver que, além de tradicionais políticos regionais e daqueles da clientela do varejo, que não particularizam qualquer partido, dada a sua difusão em diferentes quadrantes ideológicos (os partidos do chamado centrão não se diferenciam por terem esse tipo de político mais que outros partidos e sim por quase não terem outros tipos além dele), convivem, no DEM, expressões carimbadas de várias espécies de centro, direita e centro-direita.

Sem pretender ser exaustivo, cito figuras hoje facilmente consideradas no chamado centro liberal democrático (como Rodrigo Maia e mais recentemente Luiz Mandetta), um exemplar de direita sem conexão fácil com qualquer centrismo (governador Caiado), um liberal ativista ao molde de Kin Kantaguri; um pragmático conectado com a extrema direita (Onix Lorenzoni), além de uma expressão política do agro negócio, a ministra Teresa Cristina e da mais recente aparição, na primeira cena da política, como presidente do Senado, de Rodrigo Pacheco, quadro de um conservadorismo moderado que lembra o estilo Marco Maciel, duas vezes vice-presidente da República, com a aparente vantagem de, no  mineiro, a moderação sobressair mais do que o conservadorismo.

Quem quer analisar esse conjunto de crenças, interesses e configurações regionais, sem apenas fazer política com sua crise, precisa evitar etiquetas puras, colocar estratégias jornalísticas entre parênteses e prestar atenção às palavras de quem preside esse intricado mosaico, ele mesmo um caso complexo, herdeiro de uma tradição conservadora e pragmática que interagiu com autoritarismo e democracia e, com o tempo, foi adquirindo perfil liberal em trânsito na direção do centro, sem com isso perder seu pragmatismo.

Combinemos: se o presidente nacional do DEM dissesse em público que o nome de Bolsonaro está descartado como opção para 2022, essa não seria uma fala de oposição? Motivos não faltam para se fazer oposição no momento, mas acontece que o DEM não é oposição. É ambivalente. Uso essa palavra sem a conotação pejorativa que a ela se costuma dar, como se fosse um desvio de conduta política. Não é. Frequentemente, a ambivalência é uma atitude política positiva, que corresponde à ambiguidade de uma situação concreta. Nesses casos, político que quiser se livrar dela, vai parar na doutrina ou na demagogia.

Pode-se argumentar - e a meu ver com bastante razão - que o fator Bolsonaro desidrata o ambiente político da ambiguidade que poderia justificar uma ambivalência de posição. Tolerar ataques extremistas a granel sem um enfrentamento firme enfraquece moralmente a democracia porque vai rebaixando as crenças da sociedade em relação às instituições. Por outro lado, o fato de o extremismo ter chegado ao palácio e a isso juntar-se uma pandemia cria uma situação perigosa, levando a um argumento diferente, que também tem sua razão: é preciso defender a democracia dos ataques extremistas, mas também haverá risco institucional para ela se não se agir com moderação quando o presidente extremista ainda tem apoio popular e construiu uma base no Congresso. É fato que o DEM vem seguindo essa linha prudencial, desde o começo do governo Bolsonaro.

Nos limites da habilidade e clareza possíveis, o presidente do DEM disse que o Bolsonaro desses dois anos (o Bolsonaro real) não terá seu apoio, que o partido não quer nada com extremos nem seguirá algo que se limite à direita. Mas que em nome das prioridades do país, no contexto de pandemia, é preciso mediar e reduzir o conflito político e adiar o momento de opções eleitorais, para que se consiga clima de governabilidade e cooperação. Trata-se de um reposicionamento? Penso que não. É a mesma política de conciliação que o DEM vem pregando e praticando desde que o governo começou. Com essa estratégia conduziu-se na Câmara, sob o comando de Rodrigo Maia, no Ministério da Saúde dirigido por Luiz Mandetta e, em contexto mais limitado, com o próprio ACM Neto na prefeitura de Salvador, inclusive atuando em cooperação com o governo estadual adversário, durante a pandemia. Política nacional de conciliação que se combinou com alianças ao centro e até com a centro-esquerda nas eleições de 2020. E que se expressa agora na base de alianças que elegeu Rodrigo Pacheco presidente do Senado e na sua postura política.

Afinal, não era exatamente essa política que, semanas atrás, chamei, elogiando sua eficácia, de “estratégia maricas”, a mesma política que levava o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a ser acusado de conivente com Bolsonaro? Assim como não estava de acordo com essa crítica, penso que também não procedem as que hoje se dirigem ao presidente do DEM. Adesismo ao governo e estratégia maricas podem ter pontos de intersecção (eis a ambivalência) mas não são sinônimos. É possível discutir razões que passaram a levar quadros do DEM, como Maia e Mandetta, a preferirem o caminho aberto da oposição e até a flertarem com a ideia do impeachment. Diante da derrota da campanha de Baleia Rossi na Câmara, resolveram alterar a conduta, talvez até mudar de estratégia.  Juntam-se à oposição, achando ser esse, nas circunstâncias seguintes à derrota na Câmara, caminho melhor para derrotar Bolsonaro e seu governo. Pode ser que estejam mais certos do que ACM Neto. Mas o reposicionamento é deles e não do partido ou do seu presidente.  

Até onde posso imaginar a profundidade das feridas, o DEM retirou-se do bloco de apoio a Baleia Rossi porque não foi possível chegar a um acordo com Maia em torno do partido permanecer no bloco e aceitar-se a liberação da bancada, sabendo que a maioria ficaria com Lira. Foi essa a solução achada no PSDB, que também foi majoritariamente para Lira. Com todo desacordo interno, é no mínimo duvidoso que o DEM tenha virado centrão, ou tenha rompido com a perspectiva de frente ou de frentes democráticas. Esse risco existe, é claro, mas parece longe de ser favas contadas. O desfecho na Câmara foi de afastamento por razões diversas, que incluem o fisiologismo político, mas a ele não se restringem (tratarei disso no artigo da PD). Foi derrota importante da frente democrática para a qual as defecções no DEM decerto contribuíram. Mas a larga margem da derrota indica que a avaliação das causas não conduz a explicações simplórias. Muito menos a se considerar o DEM território inóspito para, por exemplo, uma eventual candidatura presidencial de Luiz Henrique Mandetta surgir e ter boa receptividade no centro e áreas da centro-esquerda.

Chego assim ao último ponto que quero abordar neste texto. O ex-ministro da Saúde tem dado sinais bem recentes de que interpreta o cenário político de modo diferente do ponto de vista que estou tentando aqui expressar. Fala-se que, assim como Rodrigo Maia, estaria considerando deixar o DEM e ingressar em algum partido menor que abrace a sua pre candidatura. Paciência! Se acontecer, não será a primeira nem será a última vez que discrepância parecida ocorre entre as perspectivas de um ator e de um espectador.

Tentarei ser sintético. Militares do palácio e o centrão estão oferecendo a Bolsonaro uma chance de se customizar para 2022. Conseguirão baixar sua rejeição e torná-lo competitivo numa eleição em dois turnos (algo que, hoje, não é)? Não sei, ninguém sabe. Mas esses agrupamentos governistas, não necessariamente bolsonaristas, parecem dispostos, mais uma vez, a maquiar o miliciano, agora com mais decisão.  Dando certo, mergulharão o país numa aventura mais radical de extrema direita, após as eleições. É possível, como já disse nesta mesma coluna, que a customização tenha um sentido de ultimato. Batendo fofo, a opção é usar a posição institucional de Arthur Lira pra abrir caminho a uma espécie de Rússia, com Mourão, que passa por estraçalhar, casuisticamente, a Constituição. Aliás, se o estupro da Carta avançar até o sistema eleitoral talvez dê pra seguir com Bolsonaro mesmo, desafiando a sua rejeição. A solução russa não faz questão de patente.

Quais as evidências de que essa é, ou possa vir a ser, a aposta do DEM? Vamos pensar se é sensato, sem tais evidências, supor que tenha esse horizonte quando se nega a sair da posição de independência para a oposição. Vejo mais evidências de que aposte em ser a alternativa política e eleitoral da reconciliação do país, possível quando a maquiagem improvisada de Bolsonaro borrar. A incerteza maior que a novíssima conjuntura traz é que essa alternativa pode se tornar inviável, se as saídas do partido de Maia, Mandetta e do vice-governador de São Paulo se confirmarem e se derem em tom de rompimento.

Claro que a Bahia também está no meio disso. A negação dessa suposição intuitiva foi um momento em que ACM Neto não pareceu veraz. Como qualquer político, tem aspirações e ambições pessoais.  Quer ser governador e para isso é bom estar nacionalmente junto do PP e do PSD, aliados do PT na Bahia e, também, perto de centros gerenciadores de decisões governamentais. Mas isso não quer dizer que pretenda correr o Estado com Bolsonaro a tira colo. Quem conhece minimamente o que se passa na Bahia pode avaliar o que ele teria a perder com isso. A esquerda baiana bem o sabe e por isso esfrega as mãos para que esse casamento de raposa aconteça, ou pareça que vai acontecer. O pragmatismo evidente do presidente nacional do DEM também não quer dizer que sacrificaria o papel mediador do partido que preside nacionalmente por uma aspiração provinciana. Vou concluir com isso.

Aparências não devem enganar. A tradição política que o DEM herdou na Bahia apela, em alguns momentos, a um discurso bairrista. Mas é uma tradição baiano-nacional. Escrevi um livro sobre origens e implantação do carlismo (“Tradição, autocracia e carisma: a política de Antônio Carlos Magalhães na modernização da Bahia, 1954-1974” – Ed. UFMG), dizendo isso.  Foi publicado em 2004. A atualização sairá este ano e cobrirá o auge e o declínio do seu poder. O DEM, na maré vazante, aprendeu a manejar seletivamente sua tradição. Na Bahia, caminhou devagar em direção ao centro e hoje já se entende com parte da esquerda não governista. E não havia escolha, já que os partidos de direita e centro direita, satélites do PFL no tempo de ACM, tornaram-se (ainda são) aliados do PT, no Estado. O car1ismo acabou. Resta a memória, emulada por diversos, até opostos, partidos. Boa parte da Bahia sabe disso. Setores da imprensa nacional precisam se despedir do avô. 

Se há uma percepção que vai da direita democrática à esquerda, é a de que Bolsonaro e democracia pluralista não combinam. O presidente nacional do DEM é um liberal pragmático, mas não um político de voo solo. Irá aonde o campo liberal brasileiro for. Não há sinais, até aqui, de que esse campo pode seguir na contramão da democracia.

*Cientista político e professor da UFBa


Paulo Fábio Dantas Neto: Espectros e esfinges - A esquerda na estrada até 2022

Dois dos temas mais carregados de incerteza na política brasileira atual são o rumo da oposição de esquerda até 2022 e sua sorte nas eleições presidenciais do mesmo ano.  Quem quiser ser radical na recusa a especulações, deve ser igualmente radical em não escrever sobre qualquer dos dois temas. Sobre o segundo, a incerteza desestimula até conjecturas. Entre a irrelevância que profetizam os espíritos desejosos de varrê-la do mapa político, a confirmação de uma posição de coadjuvante, desenhada nas eleições municipais de 2020 e a possibilidade de protagonismo polarizador, cavalgando uma crise econômica e social de proporções ainda maiores que a atual, há várias gradações possíveis para a sorte eleitoral da esquerda que é chamada por esse nome.  Seria exaustivo e sempre insuficiente tentar antecipá-las aqui. Já sobre o primeiro tema, como amante da moderação, desisti do excesso de cautela e resolvi me aventurar.

Um dos poucos consensos entre analistas é que, no interior desse campo onde se movimentam PT, PDT, PSB, PCdoB, PSOL, REDE e outros partidos menos cotados – e do qual se exclui uma esquerda que, no subsolo em que se viu colocada pela confrontação ideológica, já opera em interação com o campo liberal-democrático - , está em curso um realinhamento de forças, quiçá uma renovação de estratégias, métodos e programas, que poderá dar cabo da longeva hegemonia do PT sobre ele.

Evidenciada nas eleições municipais, essa possível tendência ainda precisa passar pelo teste de uma eleição nacional. Até lá, têm sido comentadas e interpretadas, nessa direção, as várias alianças eleitorais bem sucedidas que PDT e PSB celebraram - entre si e com partidos do centro e da centro direita - em muitas cidades relevantes, alianças das quais estavam ausentes o PT e o PSOL, com o PCdoB flutuando. Aponta para a mesma tendência (de realinhamento) a maioria dos comentários sobre a campanha de Guilherme Boulos em São Paulo, em cujo desfecho relativamente vistoso, os mais afoitos veem um tendencia do PSOL a substituir o PT como partido-polo de uma frente de esquerda e, os mais realistas, um movimento de Boulos em direção ao legado lulista, partindo da premissa de que o PSOL não é Boulos e Boulos não é o PSOL (assunto futuro para outra coluna).

São realinhamentos com sentido político diverso. Pelo primeiro, puxado pelo PDT e PSB, essa parte da centro-esquerda integraria, em 2022, uma frente ampla cujo epicentro estaria fora do seu campo. No segundo caso, haveria uma atualização da antiga ideia de pura frente de esquerda. Esses dois movimentos podem vir a ser contraditórios, de modo a um prevalecer e anular o outro - ou complementares.

O paralelismo de duas frentes anti bolsonaristas, uma de esquerda, outra ancorada ao centro, mas com participação de setores da centro-esquerda e ambas convergindo, num segundo turno, para se contrapor à reeleição de Bolsonaro, delineia-se como um possível e benigno desdobramento lógico das alianças que se firmaram para as eleições de 2020. Trata-se, entretanto, de conjectura destituída de caráter de predição. Por outro lado, é possível ver três modos pelos quais poderia prevalecer um dos dois tipos de realinhamento, anulando-se o outro.

Modo um seria a eventual frente ampla conseguir atrair o eleitorado de esquerda e anular a competitividade eleitoral de uma frente esquerdista, repetindo-se, no pleito nacional, o que se assiste, no momento, na campanha de Baleia Rossi à sucessão de Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados. Como os eleitorados dos dois pleitos são completamente diferentes, a hipótese só não é delirante se a frente tiver um candidato mais à esquerda (Ciro Gomes, por exemplo), reeditando a fórmula de FHC, de um nome de esquerda sem um programa de esquerda, ou até contraposto ao dela, como ao da extrema direita. Ou se o centro construir um nome que dialogue com o andar de baixo do eleitorado nacional (pode ser, por exemplo, Luiz Mandetta] a ponto de fazer a centro-esquerda calcular que vale a pena.

Modo dois seria se Boulos conseguisse fazer do Brasil um imenso São Paulo e, por gravidade, atraísse PSB e PDT para uma frente de esquerda, tirando o chão da candidatura de Ciro Gomes, ou aliando-se com ela, murasse a outra frente, cujo arco se restringiria, assim, ao centro e à centro-direita.  Modo três seria a reinvenção da polarização direita-esquerda com fragmentação do centro político. Fala-se aqui do espectro de 2018 assombrar o processo político, por provocação de algum fator externo oposto à lógica moderadora do sistema político-partidário.

Um desses catalisadores negativos pode ser o recrudescimento da crise sanitária, econômica e social com os elementos explosivos aí embutidos, a saber, a politização do tema da vacinação, o agravamento do desemprego, o fim do auxilio emergencial, bombas-relógio potencializadas pela inércia governamental e pelo estímulo aberto do bolsonarismo à desobediência civil e ao desafio às instituições, como ante sala para uma solução autoritária. É visível que a extrema direita retoma sua ofensiva de maio desse ano, assim como é previsível que parte da esquerda não resista à tentação de aceitar o confronto nesse terreno.

Um segundo possível catalisador do espectro de 2018 é a reintrodução, como pauta central do País, através da mídia e do Sistema de Justiça, do tema da corrupção do sistema político. Essa iniciativa não é politicamente inocente, no sentido de que há, no interior da sociedade política, forças que trabalham contra a lógica moderadora do sistema representativo. Dentre elas a mais conspícua é, por definição, o próprio bolsonarismo. Mas há também atores que vêm perdendo terreno e protagonismo com a dinâmica agregadora que tem prevalecido das eleições municipais para cá, tendo como centro irradiador o Congresso Nacional.  Refiro-me aos setores cujas atitudes e pautas reportam-se ao lavajatismo e à parte da esquerda que vem sendo levada a reboque pelo processo de realinhamento em curso no próprio campo, como acima comentado.  Detenho-me neste ponto porque há uma nuance que não pode passar despercebida. Um eventual retorno de uma cena política polarizada pelo tema da corrupção, com suas implicações policiais e judiciais, não necessariamente terá, como protagonistas, os atores de 2018. 

Outra parece ser a visão da experiente jornalista Eliane Cantanhede, em artigo (“O pino da granada”) publicado em sua coluna em “O Estado de São Paulo”, em 29.12.20. Para ela, “ao abrir os arquivos hackeados da Lava Jato para os advogados do ex-presidente Lula, o ministro Ricardo Lewandowski tirou o pino da granada e vem por aí uma explosão política com epicentro no Supremo Tribunal Federal e estilhaços nas eleições presidenciais de 2022”. E conclui que o efeito político disso “deve ser favorável ao presidente Jair Bolsonaro”, porque pode facilitar a anulação de processos contra Lula, torná-lo elegível e, assim. “eletrizar o País e acirrar a polarização Lula versus Bolsonaro em 2022, o que ainda é favorável ao capitão, como em 2018”.

Devemos admitir que seja sim, uma granada. O risco de reiterar a polarização é real porque a personificação populista da esquerda na figura de Lula, aos olhos de uma larga faixa do eleitorado, e a predisposição de outra ampla faixa, ao populismo lavajatista, seguem sendo entraves ao livre fluxo da democracia e da política de isolamento da extrema direita. Mas quem daria a Bolsonaro o aval para se apresentar ao eleitorado como expoente desse segundo populismo se o perigo petista já não se apresenta como em 2018, a ponto de se apoiar o capitão para evitá-lo? Sem o “perigo do retorno” e sem o fator Lava Jato/Sergio Moro, Bolsonaro e as eleições de 2018 não teriam sido o que foram. Da explosão da granada de Lewandowski, temida por Cantanhede, Moro sairia mais fraco do que já se encontra. O script lavajatista não tenderia a vagar em busca de um novo ator? Não se duvida que Bolsonaro possa disputar esse lugar, mas que o conseguirá não é uma consequência lógica da explosão, pois não faltarão concorrentes a tentar se apropriar da retórica faxineira. Ela é candidata a se diluir como cereja de muitos bolos, de variados sabores ideológicos. Mas dificilmente será o centro do debate num País traumatizado pela pandemia e pela cumplicidade do Governo com ela.

Nesse ponto, podemos voltar à esquerda, nosso foco. Quem prestou atenção à campanha de Boulos em São Paulo viu que não se afastou da sua pauta o tema da corrupção. Muito pelo contrário, tentou fazer dele um foco para desestabilizar o oponente, através do questionamento da figura do seu vice.  Detonada a granada pelo STF, a solidariedade a Lula, no campo da esquerda realinhada, iria até o ponto da desmoralização de Moro para colar no ex-presidente a etiqueta de perseguido. Mas a partir desse ponto, quem na esquerda renunciaria ao tema para apostar em Lula como piloto do novo navio? O realinhamento no âmbito da esquerda (e até no próprio PT) já chegou a um ponto em que esse revival não tem mais espaço. Numa eventual reiteração da polarização estéril de 2018, a fila terá andado dos dois lados. Nem Moro nem Lula podem mais representar o que representaram.

Como político realista que é, Lula sabe disso melhor do que ninguém. Sabe que precisa usar uma eventual reabilitação eleitoral - advinda da sua batalha junto à Justiça para levar a Lava Jato a ocupar o seu lugar no banco de réus - para conquistar um mandato em condições menos incertas, do que se aventurar a uma candidatura presidencial. É mais racional que opte – como se cogita e se planta em sites e colunas - por uma candidatura ao Senado na Bahia. Se vitoriosa, renderia um abrigo institucional para prosseguir nas suas lides judiciais, que voltariam à estaca zero, mas não se extinguiriam. O lugar nacional que tentaria ocupar seria o de apresentador, sob protestos do PSOL, de Guilherme Boulos como príncipe herdeiro de sua majestade pretérita. Já na Bahia, a primeira barba tostada seria a do Governador Rui Costa, cuja estratégia política seria virada de ponta-cabeça por esse eventual movimento de peças em que o Estado se tornaria um bunker da resistência à renovação da esquerda. Mas nunca é demais repetir: isso tudo poderá ocorrer se a política moderadora não prevalecer.

* Cientista político e professor da UFBa.


Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Revista da FAP analisa o resultado das eleições em direção diferente a da polarização de 2018; acesso gratuito no site da entidade

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O recado das urnas em direção oposta à da polarização de dois anos atrás, o desastre da gestão governamental de Bolsonaro que gerou retrocesso recorde na área ambiental e a incapacidade de o presidente exercer sua responsabilidade primária, a de governar, são destaques da revista Política Democrática Online de dezembro. A publicação mensal foi lançada, nesta quinta-feira (17), pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza a íntegra dos conteúdos em seu site, gratuitamente.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

No editorial, a publicação projeta o que chama de “horizonte sombrio”. “Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional”, diz um trecho.

Em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, o professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), José Álvaro Moisés, avalia que existe, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer Bolsonaro nas eleições de 2022.

Moisés, que é coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade. Isso, segundo ele, para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País.

Outro destaque é para a análise do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, que avalia que “o Ano 2 – como dizem os jovens – ‘deu mal’ para Bolsonaro”. Ao final de 2020, diz o autor do artigo, o destino o presidente é cada vez mais incerto, com popularidade declinante e problemas políticos de grande magnitude. “Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico”, afirma Aggio.

“O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a ‘País pária’ na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo”, acrescenta o professor da Unesp.

Ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública e ex-deputado federal, Raul Jungmann analisa, em seu artigo, a necessidade de dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil. Isso, segundo ele, “é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana”.  “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente”, assevera.

O conselho editorial da revista Política Democrática Online é formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Veja lista de todos os conteúdos da revista Política Democrática Online de dezembro:

  • José Álvaro Moisés: ‘O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum’
  • Cleomar Almeida: Vítimas enfrentam longa via-crúcis no combate ao estupro
  • Charge de JCaesar
  • Editorial: Horizonte sombrio
  • Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo
  • Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo
  • Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro – Uma eleição e dois scripts
  • Bazileu Margarido: Política ambiental liderando o atraso
  • Jorio Dauster: Do Catcher ao Apanhador, um percurso de acasos
  • Alberto Aggio: Bolsonaro, Ano 2
  • Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo
  • Ciro Gondim Leichsenring: Adivinhando o futuro
  • Dora Kaufman: Transformação digital acelerada é desafio crucial
  • Henrique Brandão: Nelson Rodrigues – O mundo pelo buraco da fechadura
  • Hussein Kalout: A diplomacia do caos
  • João Trindade Cavalcante Filho: O STF e a democracia
  • Raul Jungmann: Militares e elites civis – Liderança e responsabilidade

Leia também:

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


RPD || Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro - Uma eleição e dois scripts

Eleições municipais mostraram que, para vencer Bolsonaro no pleito de 2022, será necessário uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador

Lemos e ouvimos sempre que eleições municipais têm lógica diferente de eleições para Executivos nacional e estaduais. Fenômenos comuns a 2016 e 2018 arranharam um pouco essa convicção. O sucesso do discurso anti-política, a força da onda lavajatista, o antipetismo como coalizão de veto e por aí vai, tudo isso se desdobrou e radicalizou entre 2016 e 2018. Agora, um ponto em discussão é em que medida 2020 reverteu 2016. Deve-se considerar o insucesso eleitoral dos discursos de polarização ideológica, da “nova política” como antipolítica, a menor relevância nas urnas do tema da segurança e a pouco peso do da corrupção. Também que o eleitorado valorizou eficácia nas gestões municipais, fator cuja importância foi potencializada pelo contexto da pandemia.

Mas não se pode excluir da análise importante elemento de continuidade entre 2016 e 2020: o fortalecimento eleitoral da chamada centro-direita, em sua diversidade. Aqui cabe distinguir uma centro-direita pragmática que recebe o apelido, muitas vezes impróprio, de centrão, e aquela que há tempos tem o DEM como sua expressão programática, postura que manteve esse partido, por mais de uma década, na oposição.  

Da análise desses fatores depende a resposta à seguinte questão: a reversão que tenha havido, em 2020, do “espírito” de 2016 restabelecerá o antigo grau de autonomia de eleições municipais, deixando supor que 2022, apesar da sinalização contrária de 2020, possa reiterar o quadro inóspito de 2018 ou o padrão de desconexão que vigorou dos anos 90 até 2016-2018 seguirá sendo violado, tornando 2020 capaz de prenunciar 2022 como 2016 prenunciou 2018?  

Analiticamente, é possível admitir as duas hipóteses. Politicamente, é interessante ver como reforçar a segunda. Uso aqui a chave toquevilleana que abre possibilidades a escolhas políticas, em condições gerais postas por um processo que os atores não controlam. Mas reforçar qual script de 2020? Há mais de um a delinear um realinhamento de forças. Uma bifurcação liga-se a diferenças persistentes de idioma entre a política de São Paulo e do resto do país.  

"O peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador"
Paulo Fábio Dantas Neto

Há duas versões acerca do desfecho do segundo turno das recentes eleições na capital paulista. A primeira, que a reeleição de Bruno Covas foi uma vitória do governador João Dória, o que estimularia uma aliança entre PSDB, DEM e MDB, com posição determinante do primeiro. Ela estaria em dupla polarização com o bolsonarismo e uma esquerda unida que teria encontrado em Boulos uma nova rota de navegação. A segunda versão é que Covas venceu apesar de Doria e que sua vitória pessoal aponta à possibilidade de o PSDB paulista adotar perspectiva mais ao centro e mais nacional, para superar dificuldades de trânsito de Doria, fora da centro-direita.  

O peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador. Nessas cinco cidades, DEM, PSDB, MDB e Cidadania estiveram juntos com o PDT e/ou o PSB, no primeiro e/ou no segundo turno. Em todas, venceram. Em Fortaleza a aliança chegou a englobar, no segundo turno, o PT. Nessas cidades, com diversas peculiaridades óbvias, há um desenho comum, diverso daquele que São Paulo sugeriu.  

Dessa bifurcação surge uma outra questão:  saber se esses movimentos apontam a um tipo de centro moderado que pode atrair São Paulo, em vez de gravitar em torno do contencioso paulista e do PSDB. Sinalizam a chance de uma frente ainda no primeiro turno, situada, de fato, ao centro, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda. Isso pede uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador. Do nome, ainda estão longe. Quanto a partidos, é preciso conversar a sério sobre o DEM. Ele é tão central para essa rota Brasil-São Paulo como o PSDB e Boulos são para a rota São Paulo-Brasil. Para observá-lo, é preciso uma filmadora que capte seu movimento da centro direita ao centro, não flashs que o flagrem como um ator com “essência” de centro-direita.  

Essas cogitações sugerem balizas para um agir baseado no que aí está: governo relativamente enfraquecido e Presidente relativamente popular. Muito pode mudar se presidente e governo desabarem juntos numa crise econômica e social ou se, por oposto, o capitão surpreender e vier a ser também presidente. É incerteza intrínseca ao processo. Convém as oposições terem pés no chão, para lidar com o que há e olhos abertos para o que pode vir.

*Doutor em Ciência Política, bacharel em Ciências Econômicas e mestre em Administração. É professor da FFFCH/UFBA, onde atua como docente no Departamento de Ciência Política e no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e, como pesquisador, no Centro de Recursos Humanos (CRH). Foi Vereador em Salvador (1983-1988), deputado estadual (1989) e secretário municipal de Educação (1994).  


Marco Aurélio Nogueira: Flertando com o inimigo

Quando partidos como o PT e o PSB se omitem na eleição da Câmara, deixam claro que há algo de podre no reino das esquerdas

O sempre competente cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, da Bahia, concluiu seu mais recente artigo (“Em busca de um centro: uma eleição e dois scripts”)  com uma homenagem ao realismo político. Depois de analisar os resultados das eleições de novembro  e observar que, a partir delas, é preciso “levar o DEM a sério”, arrematou: “Convém as oposições terem pés no chão, para lidar com o que há, e olhos abertos para o que pode vir”.

Paulo Fábio tem sido um insistente defensor da tese de que o fim do trágico ciclo bolsonarista passa por uma articulação ampla dos democratas, aí incluídos liberais, conservadores democráticos e as variadas famílias de esquerda. O desgaste de Bolsonaro está dado, ainda que não se deva concluir que ele não possa vir a atuar como presidente e recuperar o terreno perdido. Seu caminho parece, a essa altura, espinhoso, seja porque não tem se mostrado à altura da gravidade da crise sanitária, à qual assiste praticamente parado e sem compaixão, seja porque há uma crise fiscal que não sabe equacionar e uma crise econômica que se prolonga no tempo. Essa combinação de crises põe em risco o próprio governo e, por extensão, qualquer projeto de reeleição.

Para além dos erros governamentais, há também seus movimentos, que não têm sido benfazejos. O atrito com São Paulo pode levar a uma crise federativa. A falta de um plano de imunização não lhe transfere popularidade, por mais que haja quem se manifeste contrário à “vacina chinesa”. E seu esforço para emplacar um presidente da Câmara que lhe seja favorável (o deputado Arthur Lira, líder do Centrão) pode não dar certo, dada a correlação de forças, o que expressa incapacidade de articulação e ausência de uma base coesa e confiável no Legislativo.

Arthur Lira pode ser derrotado. Para o bem da democracia e do futuro imediato, precisa ser derrotado. Seus seguidores fiéis não são em número suficiente e ele tem o rabo preso na prática da “rachadinha”. É uma figura complicada, para dizer o mínimo. Por mais que a articulação promovida por Rodrigo Maia esteja indefinida, e não contar com os votos necessários, tem a seu favor a disposição de fixar a bandeira da independência da Câmara.

A situação abre extraordinária oportunidade para as oposições mostrarem que sabem agir em nome de interesses maiores.

O passo mais decisivo no momento atual é derrotar Lira. Não há terceira via possível para impedir que Bolsonaro “ponha a pata” na Câmara, como disse Rodrigo Maia. A hora é de mostrar se há mesmo intenção sincera de fazer com que os democratas venham a formar uma coalizão que imponha outra dinâmica ao País.

Precisamente por isso, chama atenção a vacilação de certas áreas da esquerda (PT, PSB, PDT, PSol) que ainda não definiram o que fazer. Há os que acham que o melhor é “marcar posição”, já que os candidatos com chances de vitória pertencem ao “campo conservador”. Outros admitem conversar com Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro, porque acham que podem lucrar algumas migalhas e porque querem se vingar do grupo de Rodrigo Maia. E há os que querem endurecer para ver se conseguem algum espaço adicional nas negociações, benefícios na composição da mesa diretora da Câmara ou mesmo algum dinheiro extra para emendas parlamentares.

No final de semana, o deputado Rui Falcão (PT-SP) foi ao Twitter lavar um pouco da roupa suja que se acumula no partido. O PT, dias atrás, havia barrado uma proposta de Falcão para incluir em uma resolução o veto ao candidato de Bolsonaro. O deputado e ex-presidente da legenda foi na jugular: “Por uma candidatura de oposição para derrotar Bolsonaro na eleição da Mesa da Câmara! O PT não pode votar no candidato do Governo. Vacina para todos e todas. Impeachment já”, escreveu.

No PSB, por sua vez, houve ensaios de aproximação com Lira, o que levou o deputado Alexandre Molon a disparar, na reunião do Diretório Nacional: “Podemos não saber ainda o que fazer, mas já sabemos o que não fazer: apoiar um candidato de Bolsonaro”.

Parlamentares que se dizem de esquerda e flertam com o governo, trocando piscadelas com Arthur Lira, desonram a ideia de esquerda e de democracia, não conseguem absorver os riscos que o País corre. Alguns fazem joguinhos para exibir poder e autonomia, outros são simplesmente tontos.

Quando falam em nome próprio, são parlamentares com pouca representatividade. Mas quando as direções de partidos como o PT e o PSB se omitem, ou se posicionam mal, lançam um sinal claro de que há algo de podre no reino das esquerdas.

Os partidos de esquerda sabem que seus votos serão decisivos para a definição da disputa. Se lançarem um nome próprio, lavarão as mãos e deixarão a Câmara sob controle do governo. Os que pensam assim irão dourar a pílula, dizendo que a disputa entre os dois blocos é briga entre “iguais” e que a esquerda deve lutar contra retrocessos na área econômica e de direitos humanos.

Ainda há chão pela frente. Mas a postura dos partidos, até o momento, é a prova cabal da doença infantil das esquerdas, da dificuldade brutal que têm de andar com “pés no chão e olhos abertos”.

Uma vergonha, com todas as letras.